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Do instinto de cuidado a uma sociedade cuidadora.

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Academic year: 2021

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Revista da Frater Março/Abril 2015 – www.frater.com.br P á g in a

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Do instinto de cuidado a uma sociedade cuidadora.

A biologia de nossas relações sociais.

Por Silvia Garelli, médica obstetra. Revista D&D – Itália Tradução Myrthes Gonzalez “Os adultos não são inevitáveis prisioneiros da própria infância. A resiliência está presente em todos os espíritos humanos e o cuidado na idade adulta (amizades próximas, matrimônios estruturados ou uma pessoa que te de apoio) representam a chave da resiliência.” S.E.Raylor Era uma vez um tigre de dentes de sabre que, depois de dias de fome, decide atacar os homens, provocando um caos no grupo que estava diante da caverna. O homem mais próximo ao animal, assustado, tentou instintivamente a fuga, mas o tigre foi mais veloz e saltou sobre ele. Já começava a saborea-lo quando um homem mais corajoso o atacou, estimulando a intervenção também de outros companheiros que afugentaram o animal. Daquele dia em diante o homem teve honras, glória e o reconhecimento perene de todo o grupo.

Desde que, nos anos 30, o Dr. Cannon definiu a relação de ataque e fuga (fight or flight) como resposta universal à ameaça, o mundo científico se curvou diante da demonstração de que o aumento da frequência cardíaca e pressão arterial, a sudorese e os tremores são um sinal de que entra na circulação catecolaminas que interrompem atividades pouco essenciais para favorecem as que promovem uma resposta eficaz ao estresse. Ainda hoje, como na

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história, a mensagem de ameaça que vem da amídala é enviada ao eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenais, causa uma resposta rápida do sistema simpático: alerta, energia e ansiedade, deixam o corpo pronto para reagir ao perigo com agressão ou fuga. Mas o que aconteceu com o grupo de mulheres?

Sem demora as mulheres haviam chamado e recolhido as crianças, refugiando-se todas juntas em um canto da gruta, onde acalmaram os filhos com a voz e com o calor do próprio corpo... Inovadora e finalmente completa, chega à alvorada do terceiro milênio a resposta biológica da reação feminina ao estresse:

Enquanto os homens reagem tipicamente conforme descrito pelo Dr. Cannon e até mesmo os hormônios masculinos como a testosterona parecem alimentar esta resposta em nível biológico, psicológico e fisiológico, no gênero feminino, mesmo tendo as respostas de ataque e fuga, existe uma orientação diversa, que foi estudada pela Dr. Shelley E. Taylor, psicóloga californiana, idealizadora da teoria chamada tend and befriend (literalmente: cuidado e agregação). Como as mulheres poderiam atacar e fugir carregando um ou mais filhos? A seleção natural teria eliminado quem não tivesse uma resposta adequada ao estresse. Assim as fêmeas de cada espécie tiveram que se adaptar para formular uma solução que garantisse o prosseguimento de seus genes. Para simplificar podemos dizer que em situações de estresse uma mulher em primeiro lugar procura acalmar, cuidar e nutrir seus filhos e num segundo momento busca suporte social e coalizão contra a ameaça. A pesquisa demonstrou que como no comportamento de ataque e fuga, também no comportamento de cuidado e agregação existe uma base biológica semelhante à resposta a fome, a sede a aos impulsos sexuais que é repassada através dos genes como característica essencial para a sobrevivência humana. Neste caso especifico vamos falar de hormônios da maternidade: a ocitocina, que relaxa diante do estresse, acalma, diminui a ansiedade, induzindo a um estado de suave sedação (tend) e, enquanto hormônio social, leva à agregação (befriend). Além do relaxamento a ocitocina está

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associada à diminuição da resposta ao estresse, o que significa uma tendência menor a reagir com ataque e fuga.

Além disso, como em qualquer processo vital de sobrevivência da espécie, a atitude materna em relação ao estresse é induzida através de diversas vias, uma substituível pela outra e uma reforçando a ação da outra: além da ocitocina os outros hormônios envolvidos são as endorfinas, que infundem prazer no cuidado e deixam as mulheres mais sociáveis; abaixando a frequência cardíaca e a pressão arterial e trazendo benefícios no plano emocional. Baixos níveis de endorfina levam a animais a procurar um contato social, por que um contato positivo ajuda a produzir endorfinas. Os efeitos destes hormônios aumentam na presença de estrogênicos e progesterona, enquanto os androgênios e a testosterona parecem ser antagonistas diretos da ocitocina. No entanto, com respeito aos machos de outras espécies, os homens são em geral mais cuidadores. Isto, explica Taylor, acontece por que em resposta ao estresse os homens buscam cuidar-se, os neurocircuitos da agressão são menos estimulados, de forma que outros hormônios podem agir. É o caso da vasopressina, hormônio do estresse secretado nas respostas de cuidado: muito similar à ocitocina, regula a pressão arterial e a função renal. Ambos, homens e mulheres secretam

vasopressina sob estresse, mas diferente da ocitocina que esta contraposta aos hormônios masculinos, a vasopressina é potencializada por estes e os homens assumem o papel de proteção na relação com a mulher e as crianças.

Fica um pouco mais claro que, em comparação com a maternidade, a paternidade é mais variável e talvez menos biologicamente guiada. É como se os pais pudessem escolher qual sistema ativar.

O que significa hoje ativar uma atitude de cuidado (tending

sistem) em relação aos demais? Crianças, sociedade, e

trabalho...

O processo de relação com o outro inicia no útero: no momento da concepção o feto desenvolve uma vida social; o ambiente em que está inserida a mãe será o ambiente da criança. Se o ambiente é ameaçador, não será apenas a mãe a estressar-se, mas também o hipocampo da criança será continuamente bombardeado pela ativação do sistema hipocampo-hipófise-suprarrenais, causando problemas de comportamento, de concentração e aprendizagem. Foi demonstrado que, crianças que nasceram em período de guerra são mais difíceis de consolar, irritáveis, hiperativas, e introvertidas; começaram a caminhar e a falar mais tarde, e levaram mais tempo para deixar as fraldas; tornando-se adolescentes mais problemáticos e agressivos.

A resposta biológica ao estresse é modelada pelo contato social desde o inicio da vida: o sistema de reação ao estresse é inato, mas o amadurecimento da resposta depende da experiência social. Ter pais acolhedores ajuda a diferenciar entre o “estranho” e o “familiar”, se reflete em um comportamento menos suscetível a reações de estresse, dando maior liberdade de explorar novas situações. Quando a criança vivencia o estresse, uma resposta amorosa dos pais não acalma somente no momento, mas ajuda a desenvolver o sistema

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regulador do estresse. Quanto mais uma criança é exposta situações onde não é adequadamente cuidada e protegida mais provável de desenvolver problemas posteriormente, por outro lado ter uma família cuidadosa reduz riscos mesmo de origem genética.

A pesquisa de Taylor demonstra que os comportamentos de cuidado são de fundamental importância para a sobrevivência da espécie, mas que mesmo se transmitindo geneticamente, também oferecem riscos.

Explicando melhor: o ato heroico do homem das cavernas que atacou o tigre para salvar um companheiro colocou em perigo a sua vida. Correndo o risco de morrer ele poderia perder a possibilidade de passar seu heroísmo aos descendentes. Assim como o heroísmo, também o cuidado também é uma atitude generosa que em curto prazo traz consigo um importante risco, mas que em longo prazo dá frutos (como o homem que recebeu honras e reconhecimento da parte de todo o grupo), fixando-se nos genes. O altruísmo é a condição imprescindível para fazer parte de um grupo, e nos aperfeiçoamos, somos biologicamente animais sociais. O isolamento aumenta todas as causas de morte; as pessoas que se ligam a outros (família, amigos, comunidade) são mais felizes, tem mais saúde e longevidade.

A tendência de estar com os outros aumenta a resistência ao estresse, possivelmente por uma adaptação evolutiva, por que as repostas ao estresse são mais baixas quando somos circundados de pessoas que nos apoiam: a ocitocina, os hormônios de crescimento, as endorfinas – hormônios relacionados à aprendizagem, induzem as pessoas a buscarem contato com os outros e a aprender com os outros a partir do prazer. A vasopressina e a norepinefrina ajudam a recordar quem é amigo e a reconhecer o inimigo, a serotonina induz a confiança, a prolactina aumenta a resposta de cuidado e a capacidade de defender o bebê. O grupo de mulheres é nutridor na adolescência, gravidez, puerpério, menopausa... Há milhares de anos as mulheres criam ligações com outras mulheres.

Quando estas ligações faltam, frequentemente os homens são mais agressivos, às vezes abusivos. Ter um grupo de apoio reduz as respostas estressoras, cria conforto, assegura satisfação das necessidades como alimentação, cuidados com as crianças, e o aprendizado do cuidado e a proteção.

Mas o apoio tangível é apenas uma parte dos benefícios, a ligação emotiva é provavelmente ainda mais importante.

A consequente adaptação evolutiva com o fim de gerar uma maior proteção seria o matrimonio: como um tending system as mulheres cuidam dos homens de suas necessidades de uma forma que interfere positivamente de forma direta sobre sua saúde e felicidade. Os homens também cuidam das mulheres na relação de par, mas evidências mostram que a forma é diferente e não influencia na saúde e nem na expectativa de vida da mulher, mesmo que as torne mais felizes.

Nos grupos masculinos a tendência é diferente: quando um grupo se organiza em torno de uma tarefa ou objetivo, tem uma escala hierárquica dando ordem e coordenação a ação. É por isso que encontramos uma sucessão de poder entre os machos de diversas espécies. A

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hierarquia serve para controlar a agressividade do grupo, que aumenta quando esta estrutura é instável. Então somente a presença/ausência de um pai muda a agressividade de um rapaz: entre adolescentes órfãos de pai o nível de testosterona é mais alto, já quando eles se tornam adultos este baixa e aumenta o nível de cortisol, tornando-os mais ansiosos e insubordinados. De fato em uma disputa entre machos, nas diversas espécies, a testosterona aumenta a competição, diminuindo no macho perdedor, é o hormônio que induz a liderança. É associado a qualidades positivas, e a uma agressividade controlada e não impulsiva, é encontrada em alto nível nos machos alfa, assim como a serotonina: a presença deste hormônio o deixa mais sociável e cuidadoso com os demais, menos irritável e violento. Na prática é a habilidade social e não agressão violenta que predispõe a posição de líder. Os grupos masculinos podem ser letais, punitivos, duros em relação a membros menos colaborativos, conclui Taylor, mas são marcados pela mesma capacidade de sacrifício que distingue todos os sistemas de cuidado (tending system).

Uma sociedade cuidadora

O cuidado é uma força potente e é intrínseco a nossa natureza. Trocar as expectativas de um bem estar individual pela cooperação pode nos ajudar a ver as instituições e os comportamentos recíprocos como algo iluminado: podemos construir uma sociedade de cuidado! Podemos iniciar cuidando das mães, partindo do princípio de que o cuidado inicia no útero. Podemos investir tempo em nossas crianças, ler com elas, nos divertir com elas. Podemos construir um capital social, para reduzir a desigualdade. Podemos investir em uniões felizes, em núcleos familiares e em grupos de apoio mútuo.

As qualidades que fazem as pessoas bons lideres, mentores, pais e amigos são as mesmas: ajudar e cuidar dos demais. Historicamente são considerados talentos e responsabilidade das mulheres, mas os homens têm as mesmas habilidades e quando as utilizam existe um grande benefício para todos. Recordo a frase de uma mulher Moso, em uma palestra sobre a cultura indígena da paz: “O matriarcado não é um sistema de governo das mulheres. É um sistema social em que os dois sexos assumem seus próprios papeis”. Ou seja, uma sociedade cuidadora.

Referências

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