A cidade
e
as serras
Eça de Queirós
Conjunto das obras de Eça de Queirós
3 fases:
1ª- Ideologia romântica:
Prosas Bárbaras2ª- Realismo- Naturalismo
:
O crime do padre Amaro (1875) O primo Basílio (1878)
crítica ácida
reforma social
zoomorfismo
3ª -
Realismo-fantasia
:
A ilustre casa de Ramires (1900)
crítica
postura mais
humanista
otimismo
A cidade e as serras
(1901) Conto “Civilização”Dance at the Moulin Rouge, Henri de Toulouse-Lautrec. French Post-Impressionist Painter, Printmaker (1864-1901)
O concerto, James Tissot 1836-1902
Caricatura representando D. Pedro IV e D. Miguel I a brigar pela coroa portuguesa, por Honoré Daumier, 1833.
Cidade
Paris (Champs-Élysées)
Palacete
,o 202
Desde o berço (...) Jacinto medrou com a segurança, a rijeza, a seiva rica de um pinheiro das dunas. Não teve sarampo, e não teve lombrigas. As letras, a tabuada, o latim entraram por ele tão facilmente como o sol por uma vidraça (...) Rijo, rico, indiferente ao Estado e ao Governo dos homens, nunca lhe conhecemos outra ambição além de compreender bem as ideias gerais (...). Por isso nós lhe chamávamos o Príncipe da Grã-Ventura.
Então o meu Príncipe, sucumbido,
arrastou os passos até ao seu
gabinete, começou a percorrer
todos os aparelhos completadores e
facilitadores da vida – o seu
telégrafo, o seu telefone, o seu
fonógrafo, o seu radômetro, o seu
gramofone, o seu microfone, a sua
máquina de escrever, a sua
máquina de contar, a sua imprensa
elétrica, a outra magnética, todos os
seus utensílios, todos os seus tubos,
todos os seus fios (...). E toda a sua
suntuosa mecânica se conservou
rígida, reluzindo frigidamente,(...)
Homem no balcão, 1880
Gustave Caillebotte
Amarrotara com cólera a carta começada – eu escapei, respirando, para a Biblioteca. Que majestoso armazém dos produtos do Raciocínio e da Imaginação! Ali jaziam mais de trinta mil volumes, e todos decerto essenciais a uma cultura humana. Logo à entrada notei, em ouro numa lombada verde, o nome de Adam Smith. (...). Avancei – e percorri, espantado, oito metros de Economia Política. Depois avistei os Filósofos e os seus comentadores, que revestiam toda uma parede, desde as escolas Pré-socráticas até às escolas Neopessimistas. (...) Contornei essa colina, mergulhei na seção das Ciências Naturais (...)
Eram os dois homens de Madame de Trèves – o marido, conde de Trèves,(...), e o amante, o terrível banqueiro judeu, David Efraim. (...) Num relance, rebuscando charutos sobre a mesa de limoeiro, compreendi que se tramava a Companhia das Esmeraldas da Birmânia, medonha empresa em que cintilavam milhões, e para que os dois confederados de bolsa e de alcova, desde o começo do ano, pediam o nome, a infância, o dinheiro de Jacinto.
Caricatura
e ironia
A igreja ancestral em Tormes desaba
Três dias depois desta festa no 202 recebeu o
meu Príncipe inesperadamente, de Portugal, uma
nova considerável. Sobre a sua Quinta e solar de
Tormes, por toda a serra, passara uma tormenta
devastadora de vento, corisco e água. Com as
grossas chuvas, (...), um pedaço de monte, que
se avançava em socalco sobre o vale da Carriça,
desabara, arrastando a velha igreja, uma
igrejinha rústica do século XVI, onde jaziam
sepultados os avós de Jacinto desde os tempos
de el-rei D. Manuel. Os ossos veneráveis desses
Jacintos jaziam agora soterrados sob um montão
informe de terra e pedra.
Melancolia
Edvard Munch ost (1894)
- Jacinto anda tão murcho, tão corcunda... Que será, Grilo? O venerando preto declarou com uma certeza imensa:
- S. Exª. sofre de fartura. (...)
Jazer, jazer, em casa, na segurança das portas bem cerradas e bem defendidas contra toda a intrusão do mundo, seria uma doçura para o meu Príncipe se o seu próprio 202, com todo aquele tremendo recheio de Civilização, não lhe desse uma sensação dolorosa de abafamento, de atulhamento!
Foi então que o meu Príncipe
começou a ler apaixonadamente,
desde o Eclesiastes até
Schopenhauer, todos os líricos e
todos os teóricos do Pessimismo.
Mas a Basílica em cima não nos interessou, abafada
em tapumes e andaimes, toda branca e seca, de pedra
muito nova, ainda sem alma. E Jacinto, por impulso
bem Jacíntico, caminhou gulosamente para a borda do
terraço, a contemplar Paris. Sob o céu cinzento, na
planície cinzenta, a Cidade jazia, toda cinzenta, como
uma vasta e grossa camada de caliça e telha.
Acordei envolto num largo e doce silêncio. Era uma Estação muito sossegada, muito varrida, com rosinhas brancas trepando pelas paredes – e outras rosas em moitas, num jardim, onde um tanquezinho abafado de limos dormia sob mimosas em flor que recendiam.
(...)
-Então é Portugal, hem?... Cheira bem. (...)
Rolávamos na vertente duma serra, sobre penhascos que desabavam até largos socalcos cultivados de vinhedo. (...) Pelo rio, onde a água turva e tarda nem se quebrava contra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco carregado de pipas. Para além, outros socalcos, dum verde pálido de resedá, com oliveiras apoucadas pela amplidão dos montes, subiam até outras penedias que se embebiam, todas brancas e assoalhadas, na fina abundância do azul.
Mito do
Sebastianismo
E
eu
próprio
me
impressionei,
quando
o
Melchior me contou que o
João Torrado, um velho
singular daqueles sítios, de
grandes barbas brancas,
(...), um pouco adivinho,
morador misterioso duma
cova no alto da serra, a
todos afirmava que aquele
senhor
era
El-Rei
D.
Sebastião, que voltara!
Final
Finalmente abalei uma tarde, depois de lançar da minha janela, sobre o Boulevard, as minhas despedidas à Cidade: -Pois adeuzinho, até nunca mais! Na lama do teu vício e na poeira da tua vaidade, outra vez, não me pilhas! (...). Adeuzinho!
E na verdade me parecia que, por aqueles caminhos, através da natureza campestre e mansa – o meu Príncipe, atrigueirado nas soalheiras e nos ventos da Serra, a minha prima Joaninha, tão doce e risonha mãe, os dois primeiros representantes da sua abençoada tribo, e eu – tão longe de amarguradas ilusões e de falsas delícias, trilhando um solo eterno, e de eterna solidez, (...), serenamente e seguramente subíamos – para o Castelo do Grã-Ventura!