SATANÁS E OS DEMÔNIOS
NA BÍBLIA
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SATANÁS E OS DEMÔNIOS
NA BÍBLIA
Ildo Bohn Gass
São Leopoldo
Sentindo que a violência não dobraria o operário, Um dia tentou o patrão dobrá-lo de modo vário. De sorte que o foi levando ao alto da construção E num momento de tempo mostrou-lhe toda a região E apontando-a ao operário fez-lhe esta declaração: – Dar-te-ei todo esse poder e a sua satisfação Porque a mim me foi entregue e dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer, dou-te tempo de mulher. Portanto, tudo o que vês será teu se me adorares E, ainda mais, se abandonares o que te faz dizer não.
Sumário
1 QUESTÕES INTRODUTÓRIAS ... 7
1.1 A dualidade da vida ... 9
1.2 A reflexão bíblica sobre a dualidade da vida... 11
1.3 Liberdade e teologia da prosperidade ... 13
1.4 O conteúdo deste livro ... 15
2 SATANÁS E DEMÔNIOS NO ANTIGO ISRAEL ... 19
2.1 Termos genéricos para designar os demônios coletivos ... 20
2.2 Nomes próprios para designar os demônios individuais ... 21
2.3 A serpente, o Leviatã e os serafins ... 23
2.4 Satanás: adversário, inimigo, acusador, promotor ... 24
2.5 A influência da demonologia persa na fé judaica ... 27
2.6 O helenismo e a crença em demônios ... 28
3 DIABO E DEMÔNIOS NOS EVANGELHOS SINÓTICOS ... 33
3.1 Significado dos termos para os poderes malignos ... 33
3.2 Jesus e o diabo/satanás/maligno ... 37
3.3 Jesus, os demônios e os exorcismos ... 42
3.4 Tabela dos exorcismos praticados por Jesus ... 46
4 PRÍNCIPE DESTE MUNDO E DEMÔNIOS EM JOÃO ... 51
4.1 Estatísticas dos nomes do maligno em João ... 52
4.2 Jesus é acusado de ter um demônio ... 52
4.3 O diabo é homicida e pai da mentira ... 54
5 DIABO E DEMÔNIOS NAS COMUNIDADES CRISTÃS ... 59
5.1 Diabo e demônios nos Atos dos Apóstolos... 60
5.1.1 Diabo e satanás em Atos ... 60
5.1.2 Exorcismos ... 61
5.1.3 Demônios associados a doenças ... 62
5.2 Diabo e demônios em Paulo ... 62
5.2.1 Diabo e demônios no bloco paulino ... 62
5.2.2 Principado, autoridade e poder no bloco paulino ... 69
5.3 Diabo e demônios no Apocalipse ... 72
5.3.1 Satanás e diabo, demônios e espíritos impuros ... 73
5.3.2 O dragão e as bestas... 74
1
Questões introdutórias
Eu não amaldiçoarei nunca mais a terra por causa do ser humano, porque os desígnios do seu coração são maus desde a sua infância
(Gn 8,21).
O enigma da presença do mal na história humana está na origem da experiência com satanás, os demônios e poderes dia-bólicos, poderes contrários a Deus, que é fonte de vida e de todo o bem. Não é por acaso que a crença em poderes maléficos, em espíritos malignos é um fenômeno comum a todas as culturas. São formas de explicar a presença do mal em nossa vida.
Quatro são as razões por que acreditamos ser oportuno fa-zer esta reflexão sobre satanás e seus serviçais, os demônios, con-forme a linguagem bíblica.
• Primeiro, porque é mandato de Jesus, além de anunciar a boa-nova a toda criatura, também fazer curas e expul-sar demônios (Mc 6,7.13; 16,17; Mt 10,1.7-8; Lc 9,1-2). E, mais do que nunca, as forças maléficas continuam pre-sentes nos corações humanos e nas instituições que orga-nizamos, em suas normas e leis.
• Segundo, porque a prática exorcista é muito atual e está presente em igrejas cristãs. Além disso, o discurso sobre
satanás reforça a teologia do medo. E, infelizmente, em vez de desmascarar as injustiças da sociedade, legitima a sua opressão. Com Jesus, aprendemos que o medo é o contrá-rio da fé. Daí a sua insistência para não termos medo, mas creiamos. A teologia do medo é a negação da fé.
• Terceiro, também consideramos importante debruçar-nos sobre o tema para melhor compreender a prática liberta-dora de Jesus de Nazaré, expulsando poderes demoníacos das mentes e dos corações humanos, bem como de ins-tituições. A partir de Jesus, não há mais motivo para ter medo desses poderes, pois ele revelou os rostos bem con-cretos de quem promove opressão, possessão e injustiças de toda ordem. Assim, desmascarava pessoas, grupos de pessoas, costumes e regras, promovendo a prática do dis-cernimento e a conscientização no povo oprimido. • Por fim, a presença das forças destrutivas na vida de
Je-sus foi tão grande que a luta contra o maligno se tornou parte constitutiva de seu ser e agir. Em todos os dias, ele teve que tomar decisões, fazer opções entre diferentes ca-minhos, diferentes projetos. E, na intimidade com o Pai, discernia, buscava forças para orientar suas motivações mais profundas em favor da promoção da vida e da soli-dariedade. Mais que procurar “o próximo”, buscava “tor-nar-se próximo”, ter compaixão. Por isso, não é por acaso que incluía “as tentações do maligno” em suas conversas cotidianas com o Pai. Recomendou-nos também que esse assunto igualmente fizesse parte de nossa busca de comu-nhão com Deus: “E não nos conduzas para a tentação; mas livra-nos do maligno” (Mt 6,13).1
1 A respeito do estudo dos dois últimos pedidos do Pai-nosso, conferir BOHN GASS, Ildo. A oração de Jesus. Série A Palavra na Vida, n. 300. São Leopoldo:
1.1 A dualidade da vida
A realidade é dialética, é contraditória. A vida é dual. Esta é a condição humana na história, bem como de toda a natureza. Assim como existe o dia, temos também a noite. Há frio e também calor. Assim, todo verso tem seu anverso. O mesmo acontece com nossa experiência a respeito do bem e do mal, do amor e do ódio.
Grosso modo, o núcleo da personalidade de uma pessoa, o ego, o seu desejo, o princípio vital que determina e dinamiza suas ações, tem basicamente dois polos. No entanto, concordamos com quem vê a vida como uma realidade bem mais complexa. Em cada um desses dois campos há uma infinidade de tonalidades em seus coloridos, de intensidades na forma de vivê-los.
Contudo, para nossa reflexão, tomemos como ponto de partida esses dois caminhos fundamentais. De um lado, temos o projeto da lógica egoísta do mal, do amor próprio. Na linguagem das comunida-des cristãs originárias, essa lógica se manifesta nas tentações de Jesus (Lc 4,1-13). Ali, o caminho da injustiça é expresso como busca de poder, de glória, de riquezas e de satisfação imediata da fome. De outro, temos o caminho da lógica do amor, da solidariedade.
No primeiro caso, buscamos ser, anulando os outros, colo-cando-os a serviço de nossas satisfações, de nosso gozo pessoal. Na linguagem do escriba, é buscar o outro para ser meu próximo (Lc 10,29). No segundo polo, somos enquanto os outros também são. É um amor partilhado. A alteridade requer que o desejo das outras pessoas também seja parte do meu desejo. Ter compaixão é justamente isso. É sentir com as pessoas. Diferentemente do escri-ba que pergunta pelo próximo, Jesus inverte a questão e compreen-de que próximo é quem põe o amor em ação. A questão é tornar-se próximo do outro (Lc 10,36).
O bem e o mal convivem lado a lado em nosso ser. São duas forças que fazem parte da condição humana. Qual das duas é mais
forte? Essa é uma questão que varia de pessoa a pessoa. No entan-to, deixar que o bem ou o mal conduza nossas mentes, corações e instituições sociais depende muito do meio em que cada pessoa nasce, cresce e vive. Depende também da sua personalidade e da mística que ela cultiva na busca da liberdade. Aliás, a prática do mal, a negação do amor, também é escolha nossa, é consequên-cia da nossa liberdade. Nelson Mandela dizia que “ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pede, por sua origem ou ain-da por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender. E se podem aprender a odiar, também podem ser ensinadas a amar”. Assim, o ódio e o amor fazem parte da dualidade da vida. Qual dos dois adquire maior força para conduzir-nos? Certamente é aquele a quem alimentarmos melhor.
Para deixar fluir o amor, é preciso domar o tigre que está em cada um e cada uma de nós. A primeira carta de Pedro descreveria da seguinte forma essa experiência: “Estai alerta e vigiai, pois o vosso adversário, o diabo, vos rodeia como um leão a rugir, procu-rando a quem devorar” (1Pd 5,8). Para deixar circular o bem, Jesus nos aponta o alimento, isto é, uma vida de sintonia com a fonte do amor através da oração. Deixar-se conduzir pelo amor de Deus é ser radicalmente livre. Por outro lado, empoderar o egoísmo e a cobiça que habitam o coração humano é beber água em outro poço, chamado na tradição neotestamentária de satanás ou diabo. Beber água dessa fonte é tornar-se escravo da cobiça de riqueza, da ambição de poder e do desejo de prestígio a qualquer custo. É um espírito, uma ideologia, uma mentalidade, uma cultura e com-portamentos que encharcam mentes, corações e estruturas sociais. O profeta Oseias chamaria essa maneira de pensar de “espírito de prostituição” (cf. Os 4,12; 5,4). Será por acaso que a comunidade do profeta João compara a dominação romana, a grande Babilônia, com uma enorme prostituta sentada sobre a besta, a encarnação do dragão? (Ap 17)