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Vossa Mercê bem sabe de onde viestes: um caso de gramaticalização na história do português

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Vossa Mercê bem sabe de onde viestes:

um caso de gramaticalização na história do português

Leonardo Lennertz Marcotulio

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Vossa Mercê bem sabe de onde viestes:

um caso de gramaticalização na história do português

Leonardo Lennertz Marcotulio

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa). Orientador: Profª Drª Silvia Regina de Oliveira Cavalcante Coorientador: Profª Drª Célia Regina dos Santos Lopes

Rio de Janeiro Março de 2012

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Vossa Mercê bem sabe de onde viestes:

um caso de gramaticalização na história do português

Orientador: Profª Drª Silvia Regina de Oliveira Cavalcante Coorientador: Profª Drª Célia Regina dos Santos Lopes

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

Rio de Janeiro, 6 de março de 2012. Examinada por:

______________________________________________________________________ Presidente, Professora Doutora Silvia Regina de Oliveira Cavalcante (UFRJ)

______________________________________________________________________ Coorientador, Professora Doutora Célia Regina dos Santos Lopes (UFRJ)

______________________________________________________________________ Professor Doutor Jairo Morais Nunes (USP)

______________________________________________________________________ Professora Doutora Márcia Cristina de Brito Rumeu (UFMG)

______________________________________________________________________ Professor Doutor Eduardo Kenedy Nunes Areas (UFF)

______________________________________________________________________ Professora Doutora Ana Paula Quadros Gomes (UFRJ)

______________________________________________________________________ Professor Doutor Juanito Ornelas de Avelar (UNICAMP) – Suplente

______________________________________________________________________ Professora Doutora Maria Eugênia Lamoglia Duarte (UFRJ) - Suplente

Rio de Janeiro Março de 2012

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Marcotulio, Leonardo Lennertz.

Vossa Mercê bem sabe de onde viestes: um caso de gramaticalização na história do português / Leonardo Lennertz Marcotulio. – Rio de Janeiro: UFRJ / FL, 2012.

xxi, 252f.:il.; 30 cm.

Orientador: Profª Drª Silvia Regina de Oliveira Cavalcante

Tese (Doutorado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, 2012.

Referências bibliográficas: f. 220 – 231.

1. Forma de tratamento. 2. Sintagma possessivo. 3. Pronome. 4. Gramaticalização. I. Marcotulio, Leonardo Lennertz. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas. III. Título: Vossa Mercê bem sabe de onde viestes: um caso de gramaticalização na história do português.

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Resumo

Na história do português, a gênese da forma de tratamento Vossa Mercê tem sido descrita por análises de cunho sócio-pragmático (cf. LUZ 1958; CINTRA 1972; FARACO 1996; entre outros) que correlacionam fatores sociais, como a estrutura hierárquica da sociedade medieval portuguesa e a posição ocupada pelo rei, a mudanças linguísticas no paradigma das formas de tratamento. Os argumentos mais utilizados apontam para uma necessidade social de que o rei fosse tratado com a cortesia requerida por seu posto. A inserção de Vossa Mercê é, assim, justificada pelo fato de a forma Vós, com acelerado desgaste semântico-pragmático, apresentar, no século XV, sinais de fraqueza.

Sem desconsiderar a atuação de fatores externos, meu objetivo, nesta Tese, é demonstrar como, em termos gramaticais, esse processo foi possível na gramática do português dos séculos XIV a XVI. A gênese da forma de tratamento Vossa Mercê é aqui tratada como um processo de gramaticalização em que o DP possessivo Vossa Mercê é reanalisado como o DP pronominal Vossa Mercê.

A partir de textos do português dos séculos XIV a XVI (DAVIES e FERREIRA 2006) e de uma perspectiva teórica formal sobre o processo de gramaticalização (ROBERTS e ROUSSOU 2003), esta Tese mostra que, em termos qualitativos, o DP possessivo Vossa Mercê e o DP pronominal Vossa Mercê apresentam comportamentos sintáticos distintos, o que lhes garante diferentes estatutos categoriais. Em termos quantitativos, o comportamento de Vossa Mercê parece se afastar do comportamento dos outros sintagmas possessivos comuns do mesmo período. Os resultados sugerem que Vossa Mercê passa a fazer parte do quadro de tratamentos do português através da posição sintática de sujeito, na passagem do século XV para o XVI.

No plano teórico, como defendido por Roberts e Roussou (2003), a gramaticalização do sintagma Vossa Mercê envolve um processo de redução estrutural: (i) como um DP possessivo, o nome mercê é concatenado em N° e realiza dois movimentos de subida, para os núcleos n° e Num°. O possessivo vossa, inicialmente concatenado como sujeito do DP, em [Spec,nP], sobe para a posição pré-nominal – [Spec,FP] – para o seu licenciamento formal. Devido ao seu estatuto categorial como forma fraca XP (cf. MIGUEL 2001, 2002, 2004), o possessivo não realiza mais movimentos, estando a posição de D° disponível para abrigar um artigo definido; (ii) como DP pronominal, Vossa Mercê é um “bloco único congelado” que é concatenado, como os demais pronomes, diretamente em D° (cf. ABNEY 1987). A reanálise de um sintagma possessivo em um pronome de segunda pessoa leva em consideração: (i) a dependência semântica do nome relacional mercê de entidades que apresentam o traço [+humano]; (ii) a presença, no interior do sintagma, de um item que codifica o traço gramatical de segunda pessoa, como o possessivo vossa; e (iii) a ambiguidade gerada na posição de sujeito em construções com verbos como saber, que atribuem papel temático de experienciador a constituintes que devem apresentar o traço [+humano].

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Resumen

En la historia del portugués, la génesis de la forma de tratamiento Vossa Mercê (Vuestra Merced) ha sido descrita por estudios de tipo socio-pragmático (cf. LUZ 1958; CINTRA 1972; FARACO 1996; entre otros) que relacionan factores sociales, como la estructura jerárquica de la sociedad medieval portuguesa y la posición ocupada por el rey, con los cambios lingüísticos en el paradigma de las formas de tratamiento. Los argumentos más utilizados apuntan a una necesidad social de que el rey fuese tratado con la cortesía requerida por su posición. De este modo, la inserción de Vossa Mercê está justificada por el hecho de que la forma Vós, que muestra un acelerado desgaste semántico-pragmático, presenta en el siglo XV, señales de debilidad.

Sin negar la acción de factores externos, el objetivo de esta Tesis es demostrar cómo, en términos gramaticales, este proceso fue posible en la gramática del portugués de los siglos XIV a XVI. La génesis de la forma de tratamiento Vossa Mercê es aquí tratada como un proceso de gramaticalización en el que o DP posesivo Vossa Mercê es reanalizado como el DP pronominal Vossa Mercê.

A partir de textos portugueses de los siglos XIV a XVI (DAVIES y FERREIRA 2006) y desde una perspectiva teórica formal sobre el proceso de gramaticalización (ROBERTS y ROUSSOU 2003), esta Tesis muestra que, en términos cualitativos, el DP posesivo Vossa Mercê y el DP pronominal Vossa Mercê presentan comportamientos sintácticos distintos que les sitúa en diferentes categorías. En términos cuantitativos, el comportamiento de Vossa Mercê parece alejarse del comportamiento de los otros sintagmas posesivos comunes en ese mismo periodo. Los resultados sugieren que Vossa

Mercê pasa a formar parte del sistema de tratamiento del portugués a través de la

posición sintáctica de sujeto, en la transición del siglo XV al XVI.

En el plano teórico, como defienden Roberts y Roussou (2003), el proceso de reducción estructural de Vossa Mercê forma parte de la gramaticalización del mismo: como un DP posesivo, el nombre mercê es concatenado en Nº y realiza dos movimientos de subida, para los núcleos nº y Numº. El posesivo vossa, inicialmente concatenado como sujeto del DP, en [Spec,nP], sube a la posición pre-nominal – [Spec,FP] – para su licenciamiento formal. Debido a su categoría como forma débil XP (cf. MIGUEL 2001, 2002, 2004), el posesivo no realiza más movimientos y la posición de Dº está disponible para albergar un artículo definido; (ii) como DP pronominal, Vossa

Mercê es un “bloque único congelado” que es concatenado, como los demás

pronombres, directamente en Dº (cf. ABNEY 1978). El reanálisis de un sintagma posesivo en un pronombre de segunda persona tiene en consideración: (i) la dependencia semántica del nombre relacional mercê de entidades que presentan el rasgo [+humano]; (ii) la presencia, en el interior del sintagma, de un ítem que codifica el rasgo gramatical de segunda persona, como el posesivo vossa; y (iii) la ambigüedad generada en la posición de sujeto en construcciones con verbos como saber, que atribuyen papel temático de experienciador a constituyentes que deben presentar el rasgo [+humano].

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Abstract

In the history of Portuguese, the genesis of nominal forms of address such as

Vossa Mercê (Your Mercy) has been described based on the analysis of historical

pragmatics. The traditional linguistic literature available on this topic (cf. LUZ 1958; CINTRA 1972; FARACO 1996; among others) correlates social factors, such as the hierarchical structure of Medieval Portuguese Society and the position occupied by the king, to linguistic changes in the addressing paradigm in which the pronoun Vós (You) was the only form used in terms of distance in opposition to the intimate Tu (You). The arguments most often used point out to a social necessity to treat the king with the courtesy required by his position. The insertion of the first nominal form – Vossa Mercê – is thus justified by the fact that the pronoun Vós, with accelerated semantic-pragmatic bleaching, displayed, in the 15th century, signs of weakness. That is why a new form, coated with more courtesy and indirectness, would have been recruited to the royal figure.

Without denying the role of the external factors, the main aim of this Dissertation is to demonstrate, in grammatical terms, how this process was possible in the grammar of Portuguese from the 14th to the 16th centuries. I argue that the genesis of

Vossa Mercê is a case of grammaticalization, in which the possessive DP Vossa Mercê

is reanalyzed as a pronominal DP Vossa Mercê.

Based on texts from Medieval Portuguese – from 14th to 16th centuries – (DAVIES and FERREIRA 2006) and on a a formal syntactic approach (ROBERTS and ROUSSOU 2003), this Dissertation shows that, in qualitative terms, the possessive DP

Vossa Mercê and the pronominal DP Vossa Mercê present distinct syntactic behavior,

which means different categorical status. In quantitative terms, the behavior of Vossa

Mercê seems to move away from the possessive category. The results suggest that Vossa Mercê is introduced the Portuguese addressing system by the subject position from the

15th to the 16th century.

On theoretical grounds, as argued by Roberts and Roussou (2003), the grammaticalization process of Vossa Mercê implies structural simplification: (i) as a possessive DP, the noun mercê is merged in N° and rises to n° and Num° due to number feature requirements. The possessive vossa, initially merged in a “subject position” of the noun phrase – [Spec,nP] –, rises to the pre-nominal position, to [Spec,FP] for its formal licensing. No other movement is done because of the categorical status of the possessive as a weak form XP (cf. MIGUEL 2001, 2002, 2004); (ii) as a pronominal DP,

Vossa Mercê, as a “frozen and single block”, is merged, as other pronouns, directly in

D° (cf. ABNEY 1978). The reanalysis of a possessive phrase towards a second person pronoun takes into account: (i) the semantic dependence of the relational noun mercê of entities that have the features [+ human] (ii) the presence within the phrase of an item that has a second person feature, as the possessive vossa, and (iii) the ambiguity generated in the subject position with verbs like saber (to know), which assigns a experiencer theta-role to constituents with a [+human] feature.

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Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.

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Dedico este trabalho ao paizão Roberto, à mãezinha Vera e ao irmão Renato.

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Agradecimentos

À professora Silvia Cavalcante, orientadora e amiga, agradeço por ter aceitado subir “no bonde andando” e acreditar que esse projeto de pesquisa era viável. Sem a sua seriedade, profissionalismo e constante acompanhamento, essa Tese não teria sido possível. À professora Célia Lopes, coorientadora e “mãe-amiga”, pela confiança e apoio demonstrados nesses oito anos de caminhada juntos que me fizeram, a cada momento de fraqueza, acreditar que era possível chegar ao fim desta Tese.

Ao professor Afranio Barbosa e às professoras Dinah Callou, Maria Eugênia Duarte, Silvia Brandão, Silvia Rodrigues Vieira e Márcia Machado Vieira, pelo interesse que sempre demonstraram em meu trabalho e pelas lições linguísticas e extralinguísticas.

À professora Maria Antónia Mota, professora da Universidade de Lisboa e minha orientadora no período do estágio sandwich em Lisboa, pelo carinhoso acolhimento no Centro de Linguística, pelas discussões sobre a Tese e os encaminhamentos que resultaram dessas conversas.

Aos professores pesquisadores do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, Gabriela Vitorino, João Saramago, Amália Mendes e Amália Andrade, que faziam do CLUL um lugar de convivência agradável e interessante.

Aos professores da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Inês Duarte, Ana Maria Martins, Rita Marquilhas, Esperança Cardeira e Matilde Miguel, pelo tempo dispensado, pela paciência e pelas valiosas contribuições que deram a essa investigação. À professora Ana Castro, da Universidade Nova de Lisboa, agradeço o carinho, a atenção, o material fornecido e as frutíferas lições sobre o sintagma possessivo.

Às professoras Maria Eugênia Lamoglia Duarte e Ana Paula Gomes, pela leitura atenta e pelo direcionamento no momento do Exame de Qualificação.

Aos professores Jairo Nunes, Márcia Rumeu, Eduardo Kenedy e Ana Paula Gomes, por terem aceitado o convite de participar da Banca de Doutorado e pelas contribuições que trouxeram a esta pesquisa.

Aos meus amigos brasileiros, em especial à Marcelle Leal, Paulo Belisário, Danielle Lima, Lorena Lennertz, Adriana Angelita Conceição e aos integrantes da F-316; e aos amigos que fiz em Lisboa, Habiba Naciri, Kelli Machado, Louise Rodrigues,

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Maria João Colaço, Jorge Moraes e Carmine Bonacci, pelo suporte, nos momentos difícies, pelo incentivo e compreensão em relação a inúmeras ausências.

À minha mais nova grande amiga luso-brasileira Simone Betoni, pela força diária, doçura, gentileza e generosidade que se mostraram maiores e mais fortes em nossa rotina lisboeta.

À minha família, paizão Roberto, mãezinha Vera e irmão Renato, que sempre acreditaram em mim até mesmo nos momentos em que eu mesmo não podia fazê-lo. Sem o seu apoio constante, nada disso teria fundamento.

A Alberto, cuya sonrisa me enseñó que, además de esta Tesis, hay muchas más cosas que hacen que la vida valga la pena.

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Lista de Siglas e Abreviaturas

SG – singular PL – plural 1P – primeira pessoa 2P – segunda pessoa 3P – terceira pessoa

1 SG – primeira pessoa do singular 2 SG – segunda pessoa do singular 3 SG – terceira pessoa do singular 1 PL – primeira pessoa do plural 2 PL – segunda pessoa do plural 3 PL – terceira pessoa do plural CdP – Corpus do Português

CIPM – Corpus Informatizado do Português Medieval UG – Gramática Universal (Universal Grammar) Língua-I – Língua Interna

Língua-E – Língua Externa

PF – Forma Fonética (Fonetic Form) LF – Forma Lógica (Logic Form)

FI – Princípio de Interpretabilidade Plena nas Interfaces (Full Interpretation) EPP – Princípio da Projeção Estendida (Extended Projection Principle)

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Lista de Gráficos

Gráfico 1. Distribuição dos sintagmas possessivos em função da posição do possessivo no século XIV: dados de Mattos e Silva (1989) ... 108 Gráfico 2. Distribuição dos sintagmas possessivos em função da posição do possessivo e dos séculos. ... 108 Gráfico 3. Distribuição dos sintagmas possessivos com possessivo pré-nominal em função da presença ou ausência de determinantes ou outros elementos diante do possessivo. ... 115 Gráfico 4. Presença de artigo definido diante de sintagma possessivo ao longo do tempo. ... 117 Gráfico 5. Presença de artigo definido diante de sintagma possessivo em [Art def + Pos + N] ao longo do tempo. ... 119 Gráfico 6. Presença de artigo definido diante de sintagma possessivo em função do tipo de sintagma, se nominal ou preposicionado. ... 121 Gráfico 7. Presença de artigo definido diante de sintagma possessivo em função da posição do sintagma, se argumental ou não argumental. ... 124 Gráfico 8. Relações gramaticais dos sintagmas possessivos em função do tempo. ... 128 Gráfico 9. Distribuição do sintagma Vossa Mercê em função da ordem do possessivo em relação ao nome. ... 134 Gráfico 10. Presença de artigo diante do sintagma Vossa Mercê em função do tempo.137 Gráfico 11. Presença de artigo diante do sintagma Vossa Mercê em contraste com os sintagmas possessivos em função do tempo. ... 139 Gráfico 12. Presença de artigo diante do sintagma Vossa Mercê em comparação a outros sintagmas possessivos. ... 140 Gráfico 13. Presença de artigo definido diante do sintagma Vossa Mercê em função do tipo de sintagma, se nominal ou se preposicionado... 141 Gráfico 14. Presença de artigo definido diante do sintagma Vossa Mercê e de outros sintagmas possessivos: sintagmas nominais. ... 143 Gráfico 15. Presença de artigo definido diante do sintagma Vossa Mercê e de outros sintagmas possessivos: sintagmas preposicionados. ... 144 Gráfico 16. Presença de artigo definido diante do sintagma Vossa Mercê em função da posição ocupada, se argumental ou não argumental. ... 145

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Gráfico 17. Presença de artigo definido diante do sintagma Vossa Mercê e de outros sintagmas possessivos: posição argumental. ... 147 Gráfico 18. Presença de artigo definido diante do sintagma Vossa Mercê e de outros sintagmas possessivos: posição não-argumental. ... 148 Gráfico 19. Relações gramaticais do sintagma Vossa Mercê em função do tempo. ... 150 Gráfico 20. Relação gramatical de sujeito: Vossa Mercê e sintagmas possessivos comuns. ... 153 Gráfico 21. Relações gramaticais do sintagma Vossa Mercê: sujeito, objeto indireto e adjunto adnominal. ... 154 Gráfico 22. Relação gramatical de objeto indireto: Vossa Mercê e sintagmas possessivos. ... 156 Gráfico 23. Relação gramatical de adjunto adnominal: Vossa Mercê e sintagmas possessivos. ... 157 Gráfico 24. Relações gramaticais do sintagma Vossa Mercê: sujeito, oblíquo e aposto. ... 157 Gráfico 25. Vossa Mercê e sintagmas possessivos na relação de oblíquo. ... 158 Gráfico 26. Distribuição dos sintagmas possessivos em relação de oblíquo: nomes [+humano] e [-humano]. ... 159 Gráfico 27. Vossa Mercê e sintagmas possessivos na relação de aposto. ... 162 Gráfico 28. Distribuição de Vossa Mercê em função do estatuto categorial ao longo do tempo. ... 199 Gráfico 29. Vossa Mercê como sujeito em oposição às demais relações gramaticais em função do tipo de sintagma e do tempo. ... 200 Gráfico 30. Distribuição de Vossa Mercê como sujeito em construções ambíguas no século XV por tipo de verbo. ... 201

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Lista de Tabelas

Tabela 1: Textos do CdP utilizados como corpus distribuídos por séculos. ... 39 Tabela 2. Processo de concordância verbal a partir dos traços formais de Vossa Mercê: padrão I. ... 83 Tabela 3. Processo de concordância verbal a partir dos traços formais de Vossa Mercê: padrão II. ... 84 Tabela 4. Proposta de traços formais e semânticos elaborada por Lopes e Rumeu (2007) a partir da proposta de Rooryck (1994) para a forma de tratamento Vossa Mercê. ... 89 Tabela 5. Propostas para os traços formais e semânticos do sintagma pronominal Vossa

Mercê. ... 91

Tabela 6. Processo de concordância verbal a partir dos traços formais e semânticos de

Vossa Mercê: padrão I. ... 91

Tabela 7. Processo de concordância verbal a partir dos traços formais e semânticos de

Vossa Mercê: padrão II. ... 91

Tabela 8. Traços formais e traços semânticos dos pronomes pessoais retos do português. ... 92 Tabela 9. Possíveis pareamentos entre sonda e alvo considerando o traço de pessoa (Success or failure of Agree with probe-goal pairs (person features). In: Béjar, 2008:143-144). ... 95 Tabela 10. Possíveis pareamentos entre sonda e alvo considerando o traço de número (Success or failure of Agree with probe-goal pairs (number features). In: Béjar, 2008:145). ... 95 Tabela 11. Processo de concordância com Vossa Mercê de acordo com a proposta de Béjar (2008): padrão I... 95 Tabela 12. Processo de concordância com Vossa Mercê de acordo com a proposta de Béjar (2008): padrão II. ... 96 Tabela 13. Composicionalidade de traços pronominais das novas formas pronominalizadas do português a partir da proposta de Béjar (2008). ... 96 Tabela 14. Processos de concordância com as novas formas pronominalizadas do português a partir da proposta de Béjar (2008). ... 97 Tabela 15. Processo de concordância com pronome de cortesia Vós. ... 97 Tabela 16. Processos de concordância com a forma Vossa Mercê a partir da nova proposta de composicionalidade de traços. ... 99

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Tabela 17. Combinação de Vossa Mercê com pronomes de 3 SG e 2 PL. ... 100 Tabela 18. Dados gerais de Vossa Mercê por século. ... 133 Tabela 19. Formas possessivas descritas por Mattos e Silva (2008) para o português arcaico. ... 182 Tabela 20: Formas possessivas descritas por Muidine (2000) para o português antigo. ... 183

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Lista de Figuras

Figura 1. Modelo de gramática do Programa Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000). . 20 Figura 2: Processo de aquisição da linguagem no quadro da Teoria de Princípios e Parâmetros (CHOMSKY 1981, 1995, 2000). ... 23 Figura 3: A gramaticalização pela perspectiva formal de Roberts e Roussou (2003). ... 26 Figura 4. Geometria de traços pronominais (Harley e Ritter 2002). ... 85 Figura 5. Composicionalidade da forma pronominal Vossa Mercê. ... 86

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Índice

Introdução ... 1

Capítulo 1. Revisitando a gênese da forma de tratamento Vossa Mercê ... 5

1.1 – A gênese da forma de tratamento Vossa Mercê ... 5

1.2 – Síntese ... 16

Capítulo 2. Referencial Teórico e Enfoque Metodológico ... 18

2.1 – Quadro Teórico ... 18

2.1.1 – A Teoria de Princípios e Parâmetros em sua versão do Programa Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000) ... 19

2.1.2 – A gramaticalização segundo Roberts e Roussou (2003) ... 23

2.2 – Metodologia ... 35

2.2.1 – O corpus ... 35

2.2.2 – Procedimentos metodológicos ... 41

Capítulo 3. Evidências linguísticas qualitativas da gramaticalização de Vossa Mercê ... 48

3.1 – O sintagma possessivo Vossa Mercê ... 48

3.1.1 – Caráter anafórico ... 51

3.1.2 – Traços gramaticais do possessivo ... 52

3.1.3 – Estrutura ... 55

3.1.4 – Outros possessivos + mercê ... 62

3.1.5 – Construções recorrentes ... 64

3.2 – O sintagma pronominal Vossa Mercê ... 74

3.2.1 – Caráter dêitico ... 74

3.2.2 – Estrutura ... 75

3.2.3 – Papel temático ... 77

3.2.4 – Gênero ... 80

3.2.5 – Padrões de concordância verbal e Paradigma pronominal ... 81

3.2.7 – Posição de sujeito nulo ... 101

3.2.8 – Coexistência com outra forma de tratamento ... 102

3.2.9 – Particularidades filológicas e lexicais ... 103

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Capítulo 4. Evidências linguísticas quantitativas da gramaticalização de Vossa

Mercê ... 106

4.1 – Os sintagmas possessivos ... 106

4.1.1 – Estrutura dos sintagmas possessivos ... 107

4.1.2 – Presença de artigo definido diante de possessivo ... 116

4.1.3 – Relações gramaticais dos sintagmas possessivos ... 128

4.1.4 – Síntese ... 132

4.2 – O sintagma Vossa Mercê ... 133

4.2.1 – A estrutura do sintagma Vossa Mercê ... 134

4.2.2 – A presença de artigo definido diante do sintagma Vossa Mercê ... 136

4.2.3 – Relações gramaticais do sintagma Vossa Mercê ... 149

4.2.4 – Síntese ... 164

Capítulo 5. De sintagma possessivo a sintagma pronominal: a gramaticalização de Vossa Mercê ... 166

5.1 – Redução estrutural ... 166

5.1.1 – O DP possessivo Vossa Mercê ... 169

5.1.2 – O DP pronominal Vossa Mercê ... 187

5.2 – Reanálise ... 192

5.4 – Síntese ... 211

Conclusão ... 213

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Introdução

Na história do português, a gênese da forma de tratamento Vossa Mercê tem sido descrita como uma mudança linguística que é desencadeada por motivações de natureza sócio-pragmática (cf. BASTO 1931; SAID ALI 1937; FLORES 1946; NASCENTES 1956; LUZ 1958; CINTRA 1972; MENON 1995; FARACO 1996; entre outros). No século XV, por um lado, como o pronome de cortesia Vós já havia aumentado seus contextos de uso, sendo utilizado para estratos cada vez mais inferiores na hierarquia social, apresentava um acelerado desgaste semântico-pragmático; por outro, o rei passou a ocupar um papel de destaque na sociedade medieval portuguesa. A atuação conjunta desses fatores fez com que a forma Vós não mais fosse capaz de traduzir a cortesia de que o rei era merecedor. Em termos de pragmática do tratamento, uma nova forma era necessária.

É nesse contexto que um sintagma disponível na língua – expressão não pronominal “que fazia referência não diretamente ao rei como pessoa do discurso, mas a uma de suas propriedades” – “perde sua realidade composicional e passa a significar em bloco” e “perde sua significação metonímica e adquire uma significação dêitica” (FARACO 1996:66). Dito de outra forma, o processo em si poderia ser descrito como a mudança em que um sintagma nominal (1) passa a funcionar como uma forma pronominal com capacidade de fazer referência à segunda pessoa do discurso (2):

(1) Senhor, disse Vellido, por que dixe ao concelho que vos desse a villa, quiserõme matar os filhos d'Airas Gonçallo, assi como vistes. E eu venhome pera vos e, se for vossa mercee, quero seer vosso vassallo. E, se o assy fezerdes, mostrarvos ey como averedes a villa, apesar de dom Airas Gonçallo e dos outros que hy som. E, se vos esto nõ fezer, que me matedes porẽ. (CdP, Crônica Geral de Espanha, 1344)

(2) Senhor diz vossa merce isso cõ tãta autoridade, que sospeito, he pessoa de maior mereci mëto que eu imagino (...) (CdP, Contos & historias de proveito & exemplo, Gonçalo

Fernandes Trancoso, 1575)

Como pode ser observado, as análises tradicionais partem da conjugação de fatores externos e internos e se preocupam em encontrar as condições sócio-pragmáticas em que opera a mudança linguística. Sem desconsiderar a atuação de fatores externos, parto da premissa de que a inserção da forma Vossa Mercê no quadro de tratamentos do português obedece a questões de natureza gramatical impostas pelas possibilidades da língua. A partir

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da análise de dados do português dos séculos XIV ao XVI (Corpus do Português, DAVIES e FERREIRA 2006), o objetivo desta Tese é demonstrar como, em termos gramaticais, esse processo foi possível.

Os estudos que se dedicam à gramaticalização de Vossa Mercê (cf. LOPES e DUARTE 2003; RUMEU 2004; MACHADO 2006; CHAVES 2006; BARCIA 2006; entre outros), sobretudo pela ótica funcionalista (cf. HOPPER 1991; HOPPER e TRAUGOTT 1993; HEINE 2003), se preocupam em mostrar como a forma de tratamento perde propriedades de nome e adquire propriedades de pronome, gerando a forma Você. Como as formas demonstradas em (1) e (2) apresentam estatutos categoriais diferentes, considero que são formas distintas, porém homófonas. Nesta Tese, proponho que o ciclo de gramaticalização tradicionalmente apresentado, como pode ser visto em (3), seja expandido de modo a considerar as primeiras ocorrências de Vossa Mercê não como uma forma de tratamento, mas como um sintagma possessivo comum. Nesse sentido, pressuponho um estágio inicial de gramaticalização em que o sintagma possessivo Vossa

Mercê é reanalisado em sintagma pronominal Vossa Mercê, como mostra (4):

(3) Vossa Mercê Você

forma nominal de tratamento > forma pronominal de tratamento

2 SG 2 SG

(4) Vossa Mercê Vossa Mercê Você

sintagma possessivo > sintagma pronominal > sintagma pronominal

3 SG 2 SG 2 SG

Para a realização deste estudo, adoto a perspectiva teórica formal de Roberts e Roussou (2003), desenvolvida no quadro da Teoria de Princípios e Parâmetros em sua versão do Programa Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000). Adotando o conceito de parâmetro como propriedades dos núcleos funcionais (cf. CHOMSKY 1995, 2000), Roberts e Roussou (2003) defendem que a gramaticalização é um caso regular de mudança paramétrica. Definida como um processo diacrônico que envolve a criação de material funcional decorrente da reanálise de material lexical ou criação de novo material funcional por meio da reanálise de material funcional já existente, a gramaticalização pode ser capturada em termos formais na medida em que uma mudança nas propriedades dos

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núcleos funcionais é capaz de gerar representações mais simplificadas em termos estruturais, livres ou reduzidas de operações de movimento.

Uma vez que a gramaticalização é um caso regular de mudança paramétrica, a reanálise se daria no momento de aquisição da linguagem (cf. LIGHTFOOT 1979, 1991), sendo desencadeada pelo gatilho oferecido por evidências linguísticas obscuras e ambíguas aos aprendizes que adquirem sua gramática.

Como é um processo frequente na gramática das línguas naturais (cf. ROBERTS e ROUSSOU 2003), argumento que havia, na gramática do português dos séculos XIV ao XVI, uma possibilidade de gramaticalização em que itens lexicais passavam a ser gerados em categorias funcionais, eliminando operações de movimento e gerando uma estrutura mais simplificada. Assim, interpreto a mudança do estatuto categorial de sintagma possessivo para sintagma pronominal como um fenômeno de redução estrutural.

Com o intuito de realizar essa análise, assumo com Abney (1987) a ‘hipótese de DP’ (sintagma determinante, do inglês determiner phrase), de que os sintagmas nominais apresentam uma estrutura paralela à estrutura da sentença, sendo, portanto, considerados como NPs (sintagma nominal, do inglês noun phrase) inseridos em uma estrutura funcional DP que é capaz de abrigar projeções funcionais intermediárias entre o núcleo lexical N° e o núcleo funcional D°. Além disso, sigo a proposta de configuração sintática dos sintagmas possessivos de que os possessivos são concatenados como sujeitos do DP e que as diferentes posições do possessivo em relação ao núcleo são transformacionalmente derivadas, sendo o possessivo concatenado em uma posição de base, podendo permanecer nessa posição se for pós-nominal, ou alçado para uma posição superior, se for pré-nominal, para o seu licenciamento formal (cf. GIORGI e LONGOBARDI 1991; PICALLO 1994; BRITO 1996; SCHOORLEMMER 1998; CARDINALETTI 1998; ALEXIADOU 2003, 2005). Assumo, também, em relação ao possessivo pré-nominal vossa no português antigo, que pode ou não ser precedido por artigos definidos, o estatuto categorial como uma forma fraca XP (cf. MIGUEL 2001, 2002, 2004). Em relação ao sintagma pronominal, sigo a proposta de Abney (1987) e opto por considerar os pronomes como determinantes intransitivos, isto é, como DPs que têm apenas um núcleo funcional D° e que não projetam NPs complementos, sendo projeções mínimas e máximas ao mesmo tempo.

Esta Tese está organizada da seguinte forma. No capítulo 1, apresento brevemente uma revisão da literatura sobre a gênese da forma de tratamento Vossa Mercê, em que trago

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para a discussão os autores clássicos, e precursores do tema, que adotam uma perspectiva sócio-pragmática de análise.

O capítulo 2 contempla o referencial teórico utilizado, a perspectiva formal de gramaticalização elaborada por Roberts e Roussou (2003), assim como o enfoque metodológico utilizado para a seleção do corpus, delimitação temporal de abrangência do estudo, recolha e tratamento dos dados.

Uma vez que a proposta de Roberts e Roussou (2003) se fundamenta no quadro teórico chomskyano, adoto a concepção de língua como um objeto interno à mente dos indivíduos – gramática mental ou Língua-I(nterna) (nos termos de CHOMSKY 1986) –. O conjunto de enunciados produzidos pela Língua-I é denominado Língua-E(xterna). É a partir da observação da Língua-E que se pode levantar elementos que permitem sistematizar o funcionamento da gramática. Com o intuito de teorizar sobre a mudança linguística abordada neste trabalho, os capítulos 3 e 4 têm por objetivo demonstrar as evidências empíricas (Língua-E) que apontam para o processo de gramaticalização de

Vossa Mercê de sintagma possessivo a sintagma pronominal. A apresentação dessas

evidências linguísticas se dará de duas formas distintas: em um primeiro momento, na análise qualitativa (capítulo 3), são elencadas propriedades (sobretudo) morfossintáticas que evidenciam o comportamento diferenciado de Vossa Mercê como sintagma possessivo e como sintagma pronominal; em um segundo momento, na análise quantitativa (capítulo 4), não faço distinção se o sintagma Vossa Mercê se comporta como possessivo ou pronominal. Através da comparação com outros sintagmas possessivos, o objetivo é verificar até que ponto Vossa Mercê se comporta da mesma forma que os demais sintagmas possessivos e em que medida o seu comportamento o afasta do grupo.

A partir da observação das evidências linguísticas, o capítulo 5 contempla a análise teórica do processo de gramaticalização de Vossa Mercê. São endereçadas duas questões centrais. Em primeiro lugar, a atenção é direcionada ao processo de redução estrutural que pode ser evidenciado através da derivação sintática do sintagma possessivo Vossa Mercê e do sintagma pronominal Vossa Mercê. Posteriormente, a análise dos casos de ambiguidade elucida a questão do obscurecimento das evidências linguísticas que servem de gatilho para o processo de reanálise. A esse capítulo seguem a conclusão e as referências bibliográficas utilizadas.

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Capítulo 1. Revisitando a gênese da forma de tratamento

Vossa Mercê

Como mencionado na Introdução desta Tese, a forma de tratamento Vossa Mercê tem sido objeto de estudo de diversas investigações que se debruçam sobre o processo de gramaticalização de nominais em português (cf. LOPES e DUARTE 2003; RUMEU 2004; MACHADO 2006; CHAVES 2006; entre outros). A gênese de Vossa Mercê em si, tema central desta Tese, foi contemplada por estudos mais tradicionais de orientação sócio-pragmática.

Este capítulo tem como objetivo apresentar um panorama geral dos trabalhos que enfocam a gênese de Vossa Mercê e, para tanto, se organiza da seguinte forma: na seção 1.1, apresento brevemente o quadro de tratamentos no latim e as justificativas que embasam a gênese de Vossa Mercê no português; por fim, a seção 1.2 se dedica à síntese do capítulo.

1.1 – A gênese da forma de tratamento Vossa Mercê

A língua latina conhecia apenas uma forma de tratamento no singular para se dirigir ao interlocutor: tu. De acordo com Flores (1946:53), esse tipo de tratamento “não envolvia nenhuma ideia de familiaridade nem de superioridade relativa de quem o empregava”. Isso implica dizer que, independentemente da posição hierárquica ocupada na sociedade, todos os membros utilizavam e recebiam a forma de segunda pessoa do singular. Para o plural, estava reservada a forma Vos (cf. FLORES 1946; LUZ 1958; CINTRA 1972).

Segundo Brown e Gilman (1960), o sistema latino se mantém estável até meados do século III d.C. Com a fragmentação do Império Romano, entram em cena, de modo a zelar pela uniformidade em decadência, dois imperadores romanos, um com sede em Roma e outro em Constantinopla. A primeira hipótese para a criação de uma nova forma de cortesia está relacionada ao discurso dos imperadores. Com o intuito de incluir o outro

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imperador no discurso, para que não houvesse divergência de ordens, um imperador se tratava por Nos1 e, em resposta a essa forma, o povo começa a utilizar a forma Vos, ainda que para somente um interlocutor, na tentativa de não deixar de fora a figura do outro imperador. A segunda hipótese é a mão inversa dessa história. A iniciativa teria vindo do povo, que começa a tratar o imperador por Vos e este, em resposta, se trata por Nos. Estava consolidada, assim, uma forma de tratamento cortês, como se observa nas palavras de Luz (1958):

“Quando o pronome pessoal vos entrou nos domínios do tu, passou a ser um pronome de cortesia” (LUZ 1958:26).

A nova forma, com paradigma verbal e pronominal da 2ª pessoa do plural, era utilizada para somente um interlocutor, com conteúdo semântico-pragmático de cortesia e distanciamento, associado à figura de maior prestígio na sociedade romana (cf. BROWN e GILMAN 1960).

De acordo com Luz (1958), a forma de cortesia Vos, no entanto, começou a ser utilizada para outros estratos sociais próximos à figura do imperador, como membros do clero e da alta nobreza:

“O novo plural de cortesia teve um sucesso enorme. Nos meados do século VI, já não eram só imperadores (...) que o recebiam dos seus súditos, mas também bispos, altos funcionários e outras personalidades importantes” (LUZ 1958:27).

Posteriormente, outras camadas menos nobres passam a recebê-la também. Como consequência, a forma cortês Vos perde traços semântico-pragmáticos de cortesia, sendo usada, cada vez mais, para camadas inferiores da sociedade.

Como resultado do processo de expansão dos contextos de uso da forma Vos, já nas línguas românicas, os “sinais de fraqueza” da forma cortês Vós são tantos que, no século XV, já não mais traduzia o respeito e a cortesia que a figura do rei merecia. Surge, assim, a necessidade de criação de uma nova forma de cortesia para o rei de modo a contornar o “empobrecimento” do pronome de cortesia Vós. Nasce a forma Vossa Mercê:

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“Aos reis de Portugal falou-se a princípio por vós, secundado muitas vezes pelo vocativo Senhor. A este tratamento ajuntou-se vossa mercê, appello a um predicado de monarca e linguagem que afagava a sua vaidade e amor proprio”. (SAID ALI 1937:139)2

“Havendo o tu e o vós, quase no mesmo pé de igualdade, quanto ao seu emprêgo, era necessária uma outra forma que estabelecesse certa diferença e fosse empregada pelo inferior para com o superior. A humildade do inferior soube encontrar essa forma de tratar, abstraíndo da pessoa a quem se dirigia, uma qualidade nobre ou distinta, personalizou-a, e antepondo-lhe vossa ou

sua, a ela se dirigiu na 3ª pessoa do singular, em vez da 2ª do singular e do

plural e assim nasceram as formas como: Vossa Mercê, Vossa Santidade, Vossa

Eminencia, etc.” (FLORES 1946:54-55)3

“Ao lado dessa forma polida de 2ª pessoa [Vós], como decorrência de modificações profundas na economia e nas relações sociais na sociedade portuguesa (e, como conseqüência, nas formas de tratamento para expressar tais relações), no século XIV e sobretudo no século XV, houve a introdução de formas mais respeitosas para se dirigir ao rei: Vossa Mercê, Vossa Senhoria,

Vossa Alteza, Vossa Excelência, Vossa Majestade. Tais construções, por equivalerem a uma locução nominal substantiva, empregavam o verbo na 3ª pessoa: Vossa + Nome (observe-se que vossa = de vós, forma respeitosa de tratamento)”. (MENON 1995: 93-94)4

No plano externo, com o intuito de explicar a necessidade de que uma forma de tratamento revestida de mais cortesia – Vossa Mercê – fosse utilizada para a figura do rei, em virtude do enfraquecimento da forma Vós, duas vertentes distintas são apresentadas: a redefinição do papel do rei na sociedade medieval portuguesa e o significado carregado pelo vocábulo mercê.

No que se refere à posição ocupada pelo rei, é preciso considerar uma série de transformações envolvendo as hierarquias sociais na Península Ibérica. “Nos primeiros

2 Grifo meu. 3 Grifo meu. 4 Grifo meu.

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tempos da nossa monarquia, o rei mal se distinguia dos outros nobres” (LUZ 1958:24)5. Com a crise do sistema feudal, a partir do século XII crescem o artesanato e as atividades comerciais. Há, assim, uma nova organização econômica centrada nas cidades, caracterizada pela formação de uma nova classe social: a burguesia. Com isso, há uma redução dos poderes dos senhores feudais e, consequentemente, uma maior centralização político-administrativa, marcada pelo aumento do poder nas mãos do rei (cf. FARACO 1996).

No século XIII, o rei “distancia-se das outras classes”, mas somente no século XV “consegue aniquilar qualquer espécie de autoridade oposta à sua” (LUZ 1958:24-25). A burguesia passa a competir com a nobreza já na segunda metade do século XIV e se torna a nova aristocracia. Através dos rearranjos ocorridos na sociedade medieval, o rei consegue conquistar um lugar único de prestígio:

“Com o declínio do sistema feudal e da ascensão da burguesia, o rei tinha se tornado uma personagem sem par. Lembre-se que no sistema feudal o rei era

um entre muitos pares, isto é, os senhores feudais. Em geral o rei era o senhor

que conseguia manter o maior número de vassalos e, como conseqüência, tinha mais poderes que os outros senhores feudais, pois quanto mais vassalos tinha um senhor, mais dispunha de exército (= poder, força) e por mais tempo, já que a vassalagem era um serviço militar gratuito e obrigatório, por determinado tempo, devido pelo vassalo”. (MENON 1995:93-94)

Como consequência do novo papel ocupado pelo rei, uma nova forma de tratamento, Vossa Mercê, capaz de capturar o poder régio passa a fazer parte do paradigma de tratamentos:

“(...) o processo de desenvolvimento de uma nova posição de autoridade para o rei (visto agora não apenas como o chefe militar dos tempos da Reconquista) transformou-o numa personagem social única, para quem a criação de formas diferenciadas de tratamento se apresentou como necessidade. A forma tradicional do tratamento formal (vós) não era mais considerada suficiente

5 “Nem o poder real era suficientemente forte para afastar de si as outras classes, nem as condições de vida

medievais lhe permitiam sustentar um tal fausto que tornasse quase obrigatórias fórmulas de tratamento profundamente reverenciosas e mais ou menos complicadas”. (LUZ 1958:24)

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para marcar tal status. Assim, paralelas a essa forma tradicional, outras vieram a ser usadas com uma clara função diferenciadora”. (FARACO 1996:57-58)6

Com o objetivo de encontrar uma explicação para o fato de que, diante de um vasto repertório de possibilidades, o vocábulo mercê foi selecionado para fazer parte da nova forma de tratamento, alguns autores o fazem a partir do significado que esse vocábulo pode carregar, tendo em vista que, com o fato de o rei ter alcançado uma posição no topo da hierarquia social, a cada vez mais os súditos dependiam da mercê que podia ser dispensada pelo rei e, em troca de favores e proteção, dedicavam-lhe respeito e obediência:

“Mercê: lat. merces, edis – era a paga, a recompensa. Entre as qualidades que os reinantes possuíam, naturalmente uma delas seria a de recompensar ou pagar aos que lhes prestassem quaisquer serviços e é por isso que nos livros das chancelarias dos nossos reis da 1ª dinastia, se lê vulgarmente: “... e nós, querendo fazer graça e mercê ao dito Fulano... achamos por bem e outorgamos...” etc. Era por sua ou vossa Mercê, que eram tratados os nossos primeiros reis, (...) tratamento esse que com o volver dos tempos, passou para o domínio do povo, mas antes foi passando para os mais poderosos do reino, os que naturalmente, mais estavam nas condições de dar, fazendo mercês, e a pouco e pouco foi-se vulgarizando de tal maneira que nos chegou já adulterado em vossemecê, vomecê e você”. (FLORES 1946:36-37)

“Entre as qualidades atribuidas aos reinantes, figurava naturalmente a de recompensar os que lhes prestavam bons serviços e a essa recompensa ou paga dava-se e dá-se ainda o nome de mercede ou mercê. Assim, como é sabido, eram tratados os reis entre nós ainda no século XIV, como consta dos documentos do tempo. Semelhante tratamento estendeu-se depois a outras pessoas, a princípio talvez aos poderosos, os que, depois dos monarcas, mais no caso estavam de recompensar, e, em seguida, por tal forma se vulgarizou que, por andar na boca de toda a gente, se transformou de vossa mercê em

vossemecê, vomecê e até você, em que apenas as sílabas acentuadas das duas

palavras se salvaram”. (NASCENTES 1956:114-115 a partir de J. J. Nunes em Digressões lexicológicas, p. 72)

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“Os subditos, dependentes sempre da mercê ou graça do principe, apresentavam as suas queixas e requerimentos dando-lhe o habitual vós. Sabiamente pediam por mercê e punham frequentemente vossa mercê por vós, referindo-se, não á pessoa do soberano, e sim á graça e favor que delle dimanava. Favor, graça, mercê nascem da inclinação benevolente da vontade e arbitrio do príncipe. Confundem-se muitas vezes as noções de causa e efeito.

Mercê denota ora o acto de bem fazer, ora a vontade de quem pratica”. (SAID

ALI 1937:139)

“Vossa mercê, fórmula de tratamento real – A mercê que provinha do rei acabou por se identificar com ele. Mas seria só por cortesia que o povo pedia

por mercê e agradecia a mercê? O já citado historiador Costa Lobo deixa

supor que não, quando escreve: <<Todas as obrigações benéficas do supremo poder foram qualificadas de voluntárias mercês. Por mercê se conferiam os cargos públicos; por mercê se deferia qualquer requerimento, por quão justo fosse; mercê era a emenda dos agravos apresentados pelas cortes. As leis fundamentavam-se na mercê (…). Não se pense que era esta uma frase inane

da chancelaria somente indicativa de respectiva deferência. Eram palavras que correspondiam a uma realidade, a qual, originada no intento de conservar

intemerato de apoucamento o caráter régio, resultava em o desprender de todas as restrições da legalidade>>. (LUZ 1958:69).

Semelhantemente ao que aconteceu com a forma Vós, em pouco tempo a forma

Vossa Mercê também passou a ser requisitada por outros estratos sociais, o que fez com

que novas formas nominais Vossa + nome fossem recrutadas para a figura real:

“O valor de vossa mercê como titulo baixou para a Coroa quando fidalgos e fidalgotes começaram a aceitar e exigir igual tratamento dos seus criados e subalternos. Desde então fala-se a elrei sómente por senhoria, imitação do italiano, e que já corria parelhas com mercê. A honraria devia subir de ponto com a introducção de alteza por meiados do seculo XV. Quando se começou a dar senhoria ao rei de preferência a mercê, o titulo que para a sua pessoa se escurecia era alfaia preciosa ainda para ser adjudicada por vassalos e fidalgos que a fortuna ou o nascimento collocavam acima do vulgo. O simples vós não distinguia o respeito devido a nobre ou rustico. O cálculo falhou. Vossa mercê

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agradava a todo o mundo. A classe humilde não tardou em apoderar-se da formula nova para uso proprio, mas sendo expressão um tanto longa e tendo de ser repetida a cada instante, a gente do povo abreviou-a em vossancê,

vossemecê, vossecê e finalmente você. A fidalguia repellia tudo isso, exigindo

que para com ella se articulasse vossa mercê integralmente. Foi um mal deploravel essa caprichosa exigencia. Privou a lingua portugueza de um pronome de polidez commodo e de uso geral á semelhança do hesp. usted, reducção de vuestra merced”. (SAID ALI 1937:140-141)

“Foi durante o século XV, como conseqüência das novas relações sociais constituídas na corte, que essa prática tornou-se dominante e novas formas de tratamento do rei rapidamente se multiplicaram”. (FARACO 1996:58)

“Esse processo de extensão foi retirando de algumas dessas formas sua força honorífica original e foi criando a necessidade de introduzir novas para manter um sistema diferenciado de tratamento do rei”. (FARACO 1996:59)

“(...) movimento contínuo de redistribuição social das formas: sempre que uma delas começava a ter um uso mais geral, escapando de um círculo restrito de usuários, estes a abandonavam por outra”. (FARACO 1996:61).

De todas as formas nominais de tratamento, vossa mercê seguiu um caminho ímpar, sofrendo um processo de “erosão” fonética, aliada ao “desbotamento” semântico-pragmático, originando a forma você, que gerou rearranjos no quadro pronominal do português (cf. FARACO 1996).

Como se pode ver, os estudos tradicionais, baseados em uma perspectiva sócio-pragmática de análise, explicam a gênese da forma de tratamento Vossa Mercê a partir de fatores internos, o desgaste semântico-pragmático da forma Vós, e externos, como a redefinição do papel do rei na sociedade medieval portuguesa. Esses fatores são tomados como causa do processo da gênese.

A expansão dos contextos de uso da forma Vós é usualmente tomada para justificar o seu empobrecimento semântico-pragmático, o que levaria à necessidade de uma nova forma revestida de mais polidez. No entanto, o fato de a forma Vós ter expandido seus contextos de uso no português antigo (cf. LUZ 1958; CINTRA 1972; DOMINGOS 2000; MARCOTULIO 2009; TORRES 2009; entre outros), em diferentes relações sociais das

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mais formais até as mais familiares, e não somente em relações de inferior para superior, não significa que tenha se empobrecido. Um enfraquecimento assim geraria, em termos pragmáticos, um esvaziamento do conteúdo de cortesia da fórmula.

O pronome de cortesia Vós continua existindo para o rei, figura máxima da sociedade, até o final do século XVI, ainda que coexistisse com os novos tratamentos, como pode ser visto nas seguintes passagens do texto de Luz (1958):

“Como prolongamento da tradição latina, o pronome vós era ainda suficientemente cortês, para ser dirigido ao rei, durante toda a Idade Média”.7 (LUZ 1958:107)

“Embora o tratamento por vós, com a segunda pessoa do plural do verbo, tivesse descido até classes sociais mais baixas no período pré-românico, é essa a forma de tratamento usada por quantos se dirigiam aos nossos primeiros reis. Por vezes, o vocativo Senhor juntava-se-lhes”.8 (LUZ 1958:30)

“Do século XV foram examinados textos de cortes efectuadas em 1442, 1446, 1455, 1459, 1465, 1468, 1471, 1472-73, 1475, 1477, 1481-82 e 1490. As fórmulas de tratamento que, gramaticalmente, pedem a terceira pessoa do singular aparecem em todas, com mais ou menos abundância, mas ainda em 1490 a segunda pessoa do plural era usada no tratamento do rei”.9 (LUZ

1958:32)

“O século XV termina sem que possa dizer-se que tenha sido totalmente posto de parte o velho tratamento dado ao rei. Em pleno século XVI ainda o rei ouvia: “...deveis de acorrer com misericórdia a vosso povo...” (Col. De Cortes, ms., IV, p. 68)”.10 (LUZ 1958:32)

De acordo com Menon (1995), a forma Vós pôde facilmente ser encontrada em diversos contextos pelo fato de ser uma forma menos marcada do que a forma tu:

7 Grifo meu. 8 Grifo meu. 9 Grifo meu. 10 Grifos meus.

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“O vós era a forma polida de se dirigir ao interlocutor. O tratamento com tu era reservado para os iguais ou de superior para inferior, sendo, por conseguinte, bem marcado. Para se entender a noção de marca, deve-se levar em conta que uma pessoa não podia empregar tu ao se dirigir a outra, desconhecida. Isso seria violar as regras de conduta da sociedade da época, por ter a forma tu um uso bem mais específico, em casos bem determinados. Ao contrário, a forma vós podia ser empregada mais largamente por não ter restrições de uso, sendo assim menos marcada: não se transgride nenhuma regra social, não se ofende ninguém com um tratamento respeitoso”. (MENON 1995:93)

Nesse sentido, a extensão dos contextos de uso da forma Vós teria gerado estruturas polissêmicas11, havendo tanto usos desprestigiados, quanto a manutenção de seu valor original de cortesia:

“O pronome vós tanto se aplica ao rei, ao arcebispo ou ao bispo, como ao rústico ou vilão, quando não existe grau de intimidade ou confiança que permita o emprego de tu”. (CINTRA 1972:17)

“É fundamentalmente este sistema que se documenta ainda nas obras de Fernão Lopes, escritas na segunda, terceira ou quarta décadas do século XV. Normalmente, o rei, a rainha, o condestável, os nobres tratam os seus vassalos por vós e é este mesmo tratamento que esses vassalos empregam quando se lhes dirigem. Também é este o tratamento que tanto nobres como eclesiásticos como plebeus empregam quando falam uns com os outros.” (CINTRA 1972:18)

“Subentende-se que Vossa Mercê, sobre cujo emprego o rei não chega a legislar, tinha um campo de utilização mais vasto, situado em todo o caso a um nível superior ao do simples vós – que ainda continuava a ser possível como tratamento cortês, muito diferente do tu, de extrema confiança ou usado de superior para inferior”. (CINTRA 1972:25)

11 A presença de um Vós polissêmico parece ser a visão mais adequada para entender essa questão. Para o

caso do espanhol, Carricaburo (1999) compartilha com Páez Urdaneta (1981 apud CARRICABURO 1999) a ideia de que a forma Vos foi estendendo seus campos de atuação, sendo utilizada em distintas relações sociais, tornando-se polissêmica, sem, contudo, perder sua carga de cortesia original.

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A ideia de que o desgaste da forma Vós é a causa da inserção da forma Vossa Mercê no paradigma de tratamentos também não encontra respaldo em outro aspecto. Em termos de pragmática do tratamento, ainda que em um determinado discurso houvesse a utilização exclusiva da forma Vós, a cortesia também estava garantida por outros meios linguísticos, como a utilização do vocativo Senhor e de expressões de cortesia com o nome mercê, como mostra o exemplo abaixo retirado do texto das Cortes de 1331:

(5) Outrosy senhor agrauan se de muytas cousas que nom stam en foro nem em costume antigo. Pero segue se aos da uosa terra gram dano e grande strago delas e pedem uos por mercee que as queyrades correger12.

Diante dessas informações, uma possibilidade de análise seria considerar que a inserção de Vossa Mercê no quadro de tratamentos não é resultado do desgaste semântico-pragmático da forma Vós. Como Vossa Mercê era um sintagma nominal com carga pragmática de cortesia disponível na língua, é possível que sua inserção tenha sido causa, e não consequência, do empobrecimento da forma Vós. Depois de inserida na língua, Vossa

Mercê e Vós coexistem e disputam espaço, até que a segunda forma se enfraqueça e seja

preterida pelos falantes:

“É na consideração das modificações operadas no conjunto do sistema que temos de procurar a causa desta extrema degradação do Vós. À rápida ampliação do campo de emprego de Vossa Mercê, de Vossa Senhoria e de

Vossa Excelência, ou seja, ao número progressivamente maior de pessoas a

quem se tornou possível aplicar estes tratamentos de cortesia, correspondeu uma redução do campo de emprego de Vós e da 2ª do plural, que se tornaram naturalmente só utilizáveis para pessoas que não mereciam tanta cortesia como a que a utilização daquelas formas representava. Vós e a 2ª pessoa do plural dos verbos acabaram por ser uma maneira demasiadamente rude, rasteira, baixa, de se dirigir até mesmo a um amigo com quem não existia a intimidade que permitisse o emprego de tu”. (CINTRA 1972:35)13

12 Fonte: Marques, A. H. de O. et al (ed.) 1982. Cortes Portuguesas. Reinado de D. Afonso IV (1325-1357).

Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica.

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“O pronome vós deu indícios de fraqueza, quando se deixou substituir por construções do gênero de vossa mercê viu (documentada desde a terceira década do século XV)”. (LUZ, 1958:108)

“De todas essas considerações, podemos concluir que, pelo fim do século XV e começo do XVI, as formas de tratamento não íntimo do interlocutor singular em Portugal eram, grosso modo, as seguintes: vós, como forma universal; e

Vossa Senhoria e Vossa Mercê como formas socialmente mais específicas – a

primeira, mais comum entre a aristocracia; e a segunda (com suas variantes), nos demais casos. Nota-se também que vós estava começando a perder sua posição para as outras formas”.14 (FARACO, 1996:63)

“Pelos fins do século XV, de acordo com Santos Luz (1956, p. 359), as formas alternativas eram já mais freqüentes no tratamento dado ao rei do que o tradicional vós. Há até mesmo textos em que a terceira pessoa do verbo é usada diretamente na interlocução com o rei sem nenhuma forma explícita de tratamento, construção que veio a prosperar no português europeu”. É provável que durante o século XVI, com o uso generalizado dessas novas formas, vós perdeu sua posição até se tornar completamente arcaico no século XVIII”.15 (FARACO, 1996:66)

Independentemente de a gênese de Vossa Mercê ser causa ou consequência do enfraquecimento do pronome de cortesia Vós, a preocupação central dessas análises é encontrar as condições sócio-pragmáticas em que a mudança linguística opera na língua. Sobre como o processo de gênese da forma de tratamento Vossa Mercê ocorreu, as contribuições mais significativas aparecem registradas nas palavras de Faraco (1996)16:

(...) o português, num período de trezentos a quatrocentos anos, entre os séculos XIV e XVIII, mudou completamente o sistema de tratamento do interlocutor, substituindo o sistema tardio do latim (tu/vós – vós) por um

14 Grifo meu. 15 Grifo meu.

16 Said Ali (1937:140) também menciona o tema: “(...) no século XIV vossa mercê ainda não chegara a

crystalizar-se em expressão pronominal. A noção de acatamento e reverencia continuava focalizada nos pronomes vós, vosso e verbo na 2ª pessoa do plural. Passou mais tarde vossa mercê a ser titulo honorifico com o verbo naturalmente na 3ª do singular, perdurando, todavia, por costume ou etiqueta, a par dessa linguagem o tratamento vós e formas decorrentes”. Grifo meu.

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sistema particular em que as novas formas de tratamento têm como característica o fato de que elas se combinam com a terceira pessoa do verbo e não mais com a segunda pessoa. Essa realidade de concordância tem a ver com a semântica inicial dessas formas: utilizava-se, para tratar o rei, um sintagma nominal que fazia referência não diretamente ao rei como pessoa do discurso (em outras palavras, utilizava-se uma expressão não pronominal), mas a uma de suas propriedades (à sua mercê, à sua senhoria, e assim por diante), sintagma nominal de terceira pessoa, portanto; e, por conseqüência, determinando a concordância do verbo em terceira pessoa. Tratava-se, de início, de um modo metonímico de fazer referência ao rei como interlocutor (a propriedade pelo todo da pessoa do discurso), semântica que vai se perdendo à medida que o sistema nominal se gramaticaliza, isto é, à medida que ele

perde sua realidade composicional e passa a significar em bloco; à medida

que ele perde sua significação metonímica e adquire uma significação dêitica, processo que é acompanhado de sucessivas erosões fonéticas até a relativa estabilização da forma você. (FARACO 1996:66)17.

Assim, é no contexto do quadro anteriormente descrito que um sintagma disponível na língua passa a ser utilizado como uma forma de tratamento para a segunda pessoa do discurso, utilizada como forma de cortesia e distanciamento em oposição ao pronome de intimidade tu.

1.2 – Síntese

Em síntese, o percurso apresentado pela literatura linguística clássica pode ser sumarizado da seguinte forma. O sistema latino apresentava somente a forma tu como tratamento singular, tendo sido enriquecido com a forma cortês Vos a partir do século III d.C. Inicialmente utilizada para a figura do Imperador, a forma Vos tem seu uso estendido para outros estratos sociais.

Como resultado dessa extensão de uso, a forma Vós tem sua carga semântico-pragmática de cortesia comprometida, apresentando “sinais de fraqueza”. No século XIV, a figura do rei assumiu um papel central na hierarquia da sociedade medieval e, de modo a

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compensar o “empobrecimento” da forma Vós, houve a necessidade de criação da forma nominal Vossa Mercê para a figura do rei. Visto por uma via alternativa, a forma Vós tem seu uso estendido a outros estratos sociais, tornando-se polissêmica. O novo papel do rei na sociedade medieval portuguesa faz com que o vocábulo mercê seja cada vez mais utilizado em expressões de cortesia, o que teria favorecido a gênese de Vossa Mercê.

A forma Vossa Mercê, e não outra fórmula nominal, teria sido favorecida em função do significado do vocábulo mercê, indicativo da graça do rei, a qual todos almejavam, uma vez que este passou a ocupar uma posição de destaque na sociedade medieval portuguesa.

Vossa Mercê passa a ser usada para outras camadas sociais, sofrendo o mesmo

processo de “empobrecimento” vivenciado pela forma Vós, o que fez com que novas formas nominais Vossa + nome fossem recrutadas. Ao sofrer um processo de perda fonética e semântico-pragmática, gera a forma você, responsável por rearranjos gramaticais no quadro pronominal do português.

Como mencionado na Introdução desta Tese, não desconsidero a atuação dos fatores externos aqui reunidos. No entanto, meu objetivo é demonstrar como a gramática do português dos séculos XIV ao XVI possibilitou a mudança linguística de Vossa Mercê como sintagma possessivo para sintagma pronominal ou, nos termos de Faraco (1996:66), de expressão não pronominal “que fazia referência não diretamente ao rei como pessoa do discurso, mas a uma de suas propriedades” que “perde sua realidade composicional e passa a significar em bloco” e “perde sua significação metonímica e adquire uma significação dêitica” característica de expressões pronominais. Para tanto, passemos, no próximo capítulo, para a apresentação do quadro teórico que permitirá essa análise, assim como dos procedimentos metodológicos adotados para o tratamento dos dados.

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Capítulo 2. Referencial Teórico e Enfoque Metodológico

O quadro teórico que subjaz a análise que aqui será proposta é a perspectiva formal de gramaticalização elaborada por Roberts e Roussou (2003), que foi desenvolvida à luz da Teoria de Princípios e Parâmetros em sua versão do Programa Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000).

A partir dessa perspectiva, a gramaticalização, assumida como um caso regular de mudança paramétrica, é entendida como um processo pelo qual novo material funcional é criado a partir da reanálise de material lexical ou da reanálise de material funcional já existente. O produto desse processo é, em termos estruturais, uma forma mais econômica, livre (ou reduzida) de movimentos. Para que se possa afirmar que estamos diante de um caso de gramaticalização, é necessário constatar que duas formas cronologicamente relacionadas, ainda que sejam homófonas, apresentam comportamentos sintáticos distintos, o que lhes garante estatutos categorias diferenciados.

Os objetivos deste capítulo são: apresentar os aspectos teóricos sobre a gramaticalização, que permitirão um tratamento analítico para o caso do sintagma Vossa

Mercê (seção 2.1); e demonstrar a metodologia utilizada para a verificação do

comportamento do sintagma Vossa Mercê em termos qualitativos e quantitativos (seção 2.2).

2.1 – Quadro Teórico

A gramaticalização, termo inicialmente cunhado por Meillet (1912), recebeu grande atenção por parte de funcionalistas (HOPPER 1991; HOPPER e TRAUGOTT 1993; HEINE 2003; entre outros). A partir desse ponto de vista teórico, a gramaticalização é entendida como a sequência de mudanças linguísticas em que um item ou construção lexical, em certos usos, assume propriedades gramaticais; ou então em que um item gramatical se torna mais gramatical, como pode ser observado através do ciclo que geralmente é apresentado: item lexical > item gramatical > clítico > afixo.

Referências

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