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Laços pessoais e rede de solidariedade entre vaqueiros no sertão de Morro do Chapéu na segunda metade do século XIX 1 Niedia Mariano Nunes 2

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Laços pessoais e rede de solidariedade entre vaqueiros no sertão de Morro do Chapéu na segunda metade do século XIX1

Niedia Mariano Nunes2

RESUMO: Esta pesquisa tem como objetivo identificar por meio do processo criminal sobre

furto de gado do ano de 1879 os testemunhos dos vaqueiros, para que se possa analisar e refletir as redes de solidariedade e sociabilidade tecidas por tais trabalhadores em prol da busca pelo gado desaparecido. A discussão se deterá na medida do possível em destacar o testemunho dos vaqueiros, já que a intenção é que o olhar analítico recaia sobre eles. Os resultados apontaram que o estabelecimento de relações sociais e estreitamento dos laços de solidariedade eram imprescindíveis quando se tratava de furto de animais antes mesmo do inquérito chegar à justiça e, tecer essas redes de solidariedade fazia parte do universo dos vaqueiros e ao que se evidencia, sabiam muito bem estimular tais redes.

Palavras chaves: Sertão. Vaqueiro. Solidariedade. Proteção. Laços pessoais.

Como tem sinalizado Sidney Chalhoub, o período oitocentista caracteristicamente é uma sociedade organizada em torno das relações pessoais, de modo que o indivíduo é caracteristicamente a rede de relações pessoais nas quais está inserido3. Seguindo essa lógica,

objetiva-se identificar e refletir sobre a teia de relações que os vaqueiros estavam inseridos, quais as relações pessoais, solidariedades, oportunidades e até mesmo conflitos que poderiam surgir dessas relações.

É interessante destacar que as testemunhas estavam “longe de se constituírem em atores secundários”, isto por serem “peças fundamentais na consolidação de um processo. Era importante que sua escolha fosse bastante cuidadosa”4. Sendo assim, ressalta-se novamente

que além de as testemunhas serem fundamentais frente à justiça, no caso de furto de gado, pressupõe-se que elas se faziam essenciais antes mesmo da abertura oficial do processo, ou seja, ainda na descoberta do delito e de seus possíveis autores.

Passaremos a acompanhar o processo movido pelo Tenente Porfírio Pereira de Souza, proprietário, criador e residente no município de Morro do Chapéu, e em janeiro de 1879 foi à justiça denunciar Silvano Francisco do Nascimento, João Barro Vermelho e José Florêncio de Souza por furto de 12 cabeças de gado5. Não alongarei em explicar como ocorreu o fato em si, mas sim, elencar as situações de como os vaqueiros desse criador, especialmente o vaqueiro Xavier, conseguiram investigar os caminhos percorridos pelos denunciados para se chegar ao paradeiro do gado furtado.

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Assim, o foco dessa análise servirá de base para descortinar variadas situações, as quais constituem um mecanismo importante de acesso às falas de vários vaqueiros, bem como, de outros testemunhos e da defesa dos envolvidos, para além das falas em si desses personagens, cujas declarações apresentam, ainda que seja em pequenos vestígios, uma realidade do período oitocentista, da convivência e da rede de solidariedade, da dinâmica interna do trabalho agropecuário, que envolvia vaqueiros e fazendeiros.

O queixoso declarou ter chegado ao seu conhecimento que havia sido conduzido algumas reses suas pelo queixado José, este se dizia vaqueiro do também acusado Silvano e por ordem deste teria levado uns animais para a povoação da Baixa Grande. Com tal informação e por ter algumas cabeças de gado desaparecidas, o tenente Porfírio tratou logo de mandar seus vaqueiros averiguar o fato, e estes logo obtiveram notícia de que estava em marcha para o mesmo lugar um outro lote de gado de seu patrão. Cujo lote tinha reses com as mesmas marcas que são ferradas os gados de Porfírio e dos seus agregados, apesar das marcas estarem alteradas com queimaduras recentes não tiveram dúvidas da verdadeira propriedade dos animais.

Joana Medrado Nascimento sinaliza que, “em regra eram essas marcas que acabavam por desmascarar os ladrões de gado”6, e de acordo com o vaqueiro de Porfírio, o Xavier, isso foi fator determinante para o reconhecimento dos animais, pois alegou que mesmo o rebanho estando com as marcas desfiguradas e recentemente contraferradas com o ferro do acusado, não teve dúvida que se tratava dos animais do seu patrão.

No século XIX, as cercas ainda eram algo praticamente inexistente, ou quando existente muito precária, o que dificilmente impedia que animais de diversos donos se misturassem e pastassem juntos. Por isso, nesses casos de furto de animais como este em discussão, evidencia-se a importância do vaqueiro para o bom funcionamento, desenvolvimento e preservação do patrimônio em gado dos criadores, além do mais, nesses momentos era posto em xeque a sua desenvoltura em solucionar e reaver o gado sumido.

Como se defende, possuir vínculos e estabelecimentos de laços sociais poderia ser extremamente necessários quando se refere à casos de animais furtados, nesse sentido, embora não seja regra, para aqueles que detinham “enraizamento em uma propriedade, estabelecimento de laços estáveis” representava fatores de estabilidade da vida social, isso significava e permitia a esses indivíduos “identificar-se como membros integrantes de uma

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comunidade – a fazenda – e asseguravam a permanência das relações afetivas que os ligavam ao meio social circundante”7. Consideração consoante fez Michele Soares Lopes, em estudo

sobre a Vila do Príncipe, na província do Rio Grande do Norte (entre 1850 a 1888), nele indicou que é crucial considerar que para o desenvolvimento de algumas atividades, especialmente de cunho rural, o “estabelecimento da ajuda mútua entre os vizinhos de sítios e membros de um mesmo grupo familiar, funcionava como elemento integrador do sistema social”8. Desse modo, a própria dinâmica e a situação da vida rural geravam ou ao menos propiciava esse tipo de experiências entre os moradores da comunidade e circunvizinhança.

Este é o caso da teia de relações tecidas entre o vaqueiro Xavier e as outras testemunhas, em sua maioria também vaqueiros, que depuseram perante à justiça nesse caso de furto de gado do ano de 1879. Cabe ressaltar que se nota um diferencial pois do processo evidencia que houve muito mais uma rede de solidariedade entre os próprios vaqueiros no descortinamento da autoria do crime e na busca pelo paradeiro dos animais, indício, portanto, que reforça a política de solidariedade existente entre os vaqueiros e que será exposta ao longo da apresentação das testemunhas.

Começamos por Manoel Caetano de Souza, que nas declarações prestadas em interrogatório narrou que esteve conversando com Joaquim Machado, irmão do vaqueiro Xavier, e por este lhe foi dito que vindo do pé da serra teria encontrado umas vacas da qual estavam à procura, e naquele dia conduziu-as para sua morada no lugar denominado Bananal. Justificou que tomou tal atitude a fim de prevenir prejuízo ao criador e especialmente ao seu irmão Xavier, o qual era vaqueiro do queixoso, depara-se, portanto, com uma situação de solidariedade e relação pessoal fundamentalmente importante para o descobrimento dos autores do delito e posteriormente para a descoberta do paradeiro dos animais furtado.

Como se sabe, o vaqueiro é o responsável pelo cuidado com o gado que vai desde os manejos simples do dia a dia ao seu desaparecimento, pois consequentemente é encarregado de investigar o paradeiro de animais em caso de sumiço.

Manoel Caetano explicou ainda que Joaquim Machado também comentara que indo providenciar a entrega deste gado, isso antes mesmo de serem furtados encontrou o acusado Silvano, este teria dito que recolheria aquele gado ao curral de José da Cruz, alegando que entre eles ia uma vaca sua e por isso queria verificar o ferro para ter certeza se realmente se tratava da sua vaca, porém, Joaquim Machado respondera sem hesitar que “não recolheria o

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gado ao curral de José da Cruz, e sim ao curral de seu irmão Xavier, que era o vaqueiro responsável pelo gado”9, por já supor que aqueles animais tivessem sido extraviados do local de onde pastara já que aquele não era o local de costume, e com isso evitaria de “seu irmão Xavier ficar mal satisfeito”10. Nisso, Silvano até tentou convencê-lo ao dizer que uma

daquelas vacas estava parida e José, seu vaqueiro, teria amarrado o bezerro no mato, mas mesmo assim Joaquim continuou a recolher o gado para o curral de seu irmão.

A ação de Joaquim, já mencionado irmão do vaqueiro Xavier, e que foi descrita por Manoel Caetano, revela que a Joaquim interessava garantir que esses animais chegassem até o seu irmão e para isso ele estaria disposto se preciso fosse a bater de frente com quem atrapalhasse seus planos. Isso demonstra que em situação como esta, as relações familiares e comunitárias entre esses trabalhadores fossem parentes ou apenas amigos constituíam alicerces básicos de solidariedade e ajuda mútua. Embora posteriormente a essa atitude tomada por Joaquim não tenha impedido o furto dos animais serviram como ponto de partida para juntar os detalhes e apontar um possível suspeito para assim chegarem a tempo de evitar maiores prejuízos.

Edward Palmer Thompson, referindo-se à análise de trabalhadores e trabalhadoras da Inglaterra do século XVIII, manifesta que é comum encontrar “muitas evidências de solidariedade e consciência horizontais”11. Monica Duarte Dantas, em seu trabalho Fronteiras

movediças: relações sociais na Bahia do século XIX, também defende os laços horizontais como sendo pilares “fundamentais para a sobrevivência cotidiana”12, e a depender de algumas

situações, essas relações se faziam “mais importantes do que as verticais”13. Afinal de contas,

apesar do animal pertencer ao fazendeiro, cabia ao vaqueiro a incumbência de procurar os animais desaparecidos quando fosse o caso e certas vezes havia animal do próprio vaqueiro, assim, contar com pessoas dispostas a contribuir nesses momentos se fazia peças fundamentais para que obtivesse êxito com a empreitada.

Segundo Lycurgo Santos Filho, “dos servidores da fazenda de criação, o vaqueiro era o de maior importância. Cabiam-lhe os principais misteres, as principais obrigações”14. No caso em questão, esse vaqueiro seria Francisco Xavier Machado (ou simplesmente Xavier, como está sendo constantemente referenciado), ele foi testemunha e principal encarregado de reaver o gado por ser o vaqueiro do queixoso.

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Em depoimento o vaqueiro Xavier contou que seguindo ordem do seu patrão saiu em busca de uma vaca parida pertencente ao mesmo, mas que chegando até o local foi informado pelo seu irmão, Joaquim Machado, que a referida vaca havia desaparecido do curral que ele mesmo teria recolhido. Ainda nessa ocasião, seu irmão lhe contara que voltando de cima da serra havia encontrado três vacas paridas pertencentes ao queixoso e por saber que ali não era o pasto delas, as conduziu como extraviadas para serem recolhidas no curral dele, na Gameleira, como de fato procedeu, entretanto, o gado desaparecera do curral e ele supôs que alguém teria facilitado a fuga.

Mas deixemos um pouco de lado o desfecho sobre o gado para percorrer os caminhos e o quebra-cabeça que foi montado para se chegar aos autores do furto e as paragens que o tal gado furtado se encontrava, pois, o que interessa do fato é em que medida ele pode ajudar a entender as teias de relações de solidariedade familiar e comunitária da região, bem como as ações dos vaqueiros que participaram do caso, fossem enquanto testemunhas direta ou indireta do processo.

Montando o quebra-cabeça: rastros, caminhos e detalhes

Esconder um furto de gado poderia ser uma tarefa difícil, especialmente porque qualquer vestígio poderia desmoronar toda a façanha perpetrada pelos articuladores do delito. E como expõe as testemunhas, vestígios e pequenos indícios não faltaram para o furto em questão.

José Ribeiro da Cruz, ao prestar esclarecimentos enquanto testemunha, afirmou que “sabe por ver, e também por ouvir dizer, que o réu José era vaqueiro do também acusado Silvano”, e que certo dia viu o réu José sair para o campo “outras vezes não o vendo, e perguntando por ele lhe diziam ter ido campear, acontecendo as vezes sair em um dia, e voltar em outro”15. Depreende-se dessa fala que qualquer ação não passava despercebida, ainda mais quando se morava no mesmo lugar, situação da testemunha e dos réus que eram moradores da Gameleira, como já mencionado, local onde Joaquim teria trazido as vacas e prendido no curral para avisar o fato ao seu irmão.

Um outro ocorrido mencionado pela oitava testemunha, o vaqueiro Fabrício Rodrigues do Nascimento, reforçou ainda mais a má fé do então acusado Silvano. Fabrício não teve muito o que acrescentar sobre a queixa em si mas trouxe uma situação de um certo dia do qual não se recorda a data, que tendo ele de procurar uma vaca de sua entrega soube

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que a mesma se achava em pastos alheios mas chegando lá informaram que o referido animal pertencia ao acusado Silvano, pois este o tinha mandado como sua, mas ele “procurando verificar, e achando a dita vaca, reconheceu ser própria de seu patrão, que por isso a conduziu para os pastos dele, sem que até hoje pessoa alguma ou acusado se apresentasse reclamando a dita vaca”16.

Não somente as posturas de Silvano levantavam suspeitas, no caso desses réus, Silvano e José, outro fator corroborava para que a atenção da comunidade recaísse sobre eles. Eram recém-chegados na região o que por si só os colocavam em constante alerta e vigilância pela comunidade, além do mais, por causa do pouco tempo de morada não possuíam raízes nem laços na região, os quais poderiam ser essenciais perante à justiça. O primeiro era natural da Barra do Rio Grande e o segundo de Paranaguá, província do Piauí. Como infere Hebe Mattos ao analisar a dinâmica da atividade rural no sudeste, “era necessário estabelecer laços na nova região, o que demandava um tempo razoável de socialização e a permanência na área”17.

Embora não se disponibilize de outros indícios que permitam apontar qualquer constatação, pode se inferir, mesmo que seja apenas suposição, que Silvano fosse acostumado de tentar ludibriar a fragilidade da propriedade oitocentista para conseguir recursos mais rápidos e fáceis, isto se formos levados pelas declarações dos réus. Silvano, informou em interrogatório que residia a mais ou menos um ano na fazenda Gameleira, sobre a sua profissão alegou ser carpina, mas que também negociava e que ultimamente vivia de lavoura, o que demonstra que se trata de um trabalhador móvel que constantemente podia exercer pelo menos três funções distintas as quais dependiam das oportunidades propícias do momento. Assim, para este trabalhador, a mobilidade espacial se apresentava como uma “resposta necessária ao desenraizamento, que buscava, entretanto, objetivos bastante específicos”,18 e

dependia das atividades surgidas do momento.

A julgar pela versão de José, também acusado do furto, que disse ser vaqueiro de Silvano há pouco tempo, explicou que em sua vida profissional sempre viveu de lavoura, mas que depois que “tomou conta de um gado do senhor Silvano, poucas vezes pegou em enxada e machado”19. Desse modo, pode se inferir que sua situação atual naquele ano final de 1878 seria mais vantajosa, e ele prontamente teria escolhido arriscar um trabalho vaqueiral por ser menos penoso do que manejar enxada e machado, como bem frisou.

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Talvez, José até soubesse das reais intenções de seu recente patrão Silvano, e quem sabe até tenha feito um acordo do qual os dois saíssem em vantagem, caso tudo ocorresse como planejado, mas isso não é o que importa, e sim o que sobressai a partir da sua declaração. O trabalho surgido significou novas oportunidades e ele tentou aproveitá-lo visando melhorar suas condições de trabalho e de sobrevivência, já que tal oportunidade consequentemente lhe afastou da enxada e do machado, os quais são serviços braçais árduo que exigem muita força e obtêm pouca recompensa econômica e prestígio.

É preciso considerar, portanto, que a oportunidade surgida para ser vaqueiro significou a este trabalhador não só colocá-lo em uma situação melhor de trabalho, de maior autonomia e quem sabe com o tempo poderia adquirir prestigio e/ou talvez ainda seu grande interesse fosse obter recurso financeiro rápido e fácil, caso tivesse logrado êxito com o furto.

Quanto a Silvano, é oportuno conjecturar algumas indagações: porque teria perpetrado um furto de gado com 12 cabeças em um local que ele era praticamente um estranho? Seria um pouco demais pensar que Silvano teve muita audácia se considerarmos que o mesmo estava há tão pouco tempo na região? A matança ou o sumiço de poucos animais não teria levantado menos suspeita? Ou será que ele visou fazer um furto de um lote de animais para poder obter maior lucro e após isso pudesse até migrar para outra localidade? Não temos como responder a tais perguntas, mas tecer tais conjecturas talvez ajude na tentativa de refletir e entender as possíveis motivações que poderia passar pela cabeça desses autores de furto de gado.

Mas deixemos essas conjecturas para retornar as teias tecidas por esses indivíduos no intuito de chegarem até os culpados e, principalmente, aos animais. Para isso volta-se ao vaqueiro Xavier, por este acrescentar outro detalhe relevante, ao narrar que já no momento em que chegou numa fazenda onde possivelmente estariam o referido gado, encontrou José, caso o leitor ainda se lembre, trata-se do vaqueiro acusado do furto. Foi nessa ocasião que ele e seus companheiros, também vaqueiros, interpelaram os presentes sobre um gado que se achava preso no curral, nisso o acusado imediatamente pediu para que deixassem para o outro dia por já ser onze horas da noite, entretanto eles não concordaram e procederam em verificar se aquele rebanho que se achava preso naquele curral realmente se tratava do gado desaparecido em que estavam à procura.

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Xavier relatou que nesse confronto José fugiu levando apenas um “burro e deixou equipamentos de montaria como sela, um par de alforjes, uma brida, e um gibão de couro de suçuarana, o qual ele já havia visto no corpo do acusado Silvano”20 certa vez em que foi na

fazenda Reunião buscar um gado e, nesta ocasião, o mesmo trazia um chapéu também forrado de couro de suçuarana. Mais uma vez se percebe a importância dos detalhes, mesmo os pequenos, que a princípio podem ser entendidos como insignificante, no entanto, para a montagem do “quebra-cabeça”, todo e qualquer indício era imprescindível e valia a pena ser considerado.

Como exposto por outra testemunha, Ciríaco Pereira de Mendonça, detalhou que estando em sua casa de morada na fazenda Gameleira, já deitado, “alta noite ouviu tropel de gado que passava na estrada na direção do Mundo Novo e Baixa grande”21, e em virtude disso, logo ao amanhecer do dia foi até o caminho verificar, justificando ser importante porque possivelmente pudesse se tratar do gado desaparecido, e de fato reconheceu que por ali havia passado algumas reses. Isso corrobora, portanto, para a defesa construída aqui de que algo destoante do cotidiano sempre levantava suspeita.

Cabe salientar que pegadas dos animais geralmente ficavam impressas no chão por se tratar de caminhos de estradas de terra, e podiam sinalizar para que direção os animais seguiram percurso bem como o porte desses animais que podia ser observado pelo tamanho das marcas de seus cascos deixados no chão. Cujos detalhes foram considerados pela testemunha que afirmara o sentido da direção dos cascos dos animais para o mesmo lugar onde posteriormente o gado fora encontrado. Pelas pegadas ainda era possível ter uma certa noção do quantitativo do rebanho passado ainda que não fosse exato, e de outros animais usados na condução como cavalo e burro. Cabe ressaltar que mesmo a passagem dos animais tendo ocorrido já tarde da noite, como disse a testemunha, nem tudo se passava despercebido e qualquer rastro ainda que ínfimo poderia levantar estranheza aos moradores. Por isso, a testemunha no mesmo dia “tratou logo de repassar as suspeitas da passagem da boiada ao vaqueiro do queixoso, o Xavier”22.

Além disso, acrescentou ainda, segundo o que seu sogro lhe contara, que certo dia apareceu o réu José Florêncio com ânimo de descansar, e tendo o sogro dele em conversação com o dono da casa de nome Manoel José de Assunção, conhecido por Manoel Padre, por este lhe foi dito que por ali havia passado a dias um lote de gado pertencente ao queixoso

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Tenente Porfírio, com destino a Baixa grande, conduzido pelos réus José Florêncio de Souza e João Barro Vermelho, tudo isto segundo lhe referiu seu dito sogro, pelo que ele imediatamente levou ao conhecimento do vaqueiro sobre este fato.

Em vista de tudo isso, os indícios não passavam despercebidos e reconstituí-los ajudava a desvendar o furto e quanto mais rapidamente lograsse êxito, maior seria a chance de reaver os animais sem maiores prejuízos.

Por meio desse depoimento, fica nítido a importância das relações de solidariedade e da importância de estreitar e reforçar os laços de vizinhança, por diversas vezes o depoente frisou que ao ter conhecimento dos indícios, tratou logo de informar ao vaqueiro Xavier. Além dos laços estabelecidos entre esses trabalhadores e fazendeiros, a descoberta do furto seria de interesse de toda a comunidade, pois a ameaça de um novo furto poderia fazer qualquer outro criador uma próxima vítima.

Em consideração a essa ênfase, retomaremos a discussão sobre esses laços de parentesco e de comunidade entre vaqueiros, entendidos enquanto redes de solidariedade e proteção. Do processo evidenciou que a maioria das testemunhas que depuseram são naturais da região ou pelo menos já tinham criado raízes, o que denota que já moravam há muito tempo, devido a isso era comum que se conhecessem e buscassem fomentar laços de amizade.

Angariar tal convívio e vínculos tão estruturados como neste caso, podem ser explicados por alguns aspectos pessoais da vida do Xavier. Neste ano da queixa, em 1879, disse ser viúvo, ter 50 anos de idade, e o principal, ser natural e morador da freguesia de Nossa Senhora da Graça do Morro do Chapéu. Possuir raízes numa localidade perfazia fatores como a naturalidade ou o tempo de morada, casamento e idade e, todo esse universo como se viu, fazia parte da trajetória desse vaqueiro.

Conviver entre familiares e amigos significa dispor de proteção. Nitidamente esse era o caso do vaqueiro Xavier, percebe-se pelo que emerge dos depoimentos que havia uma rede de interligações entre esses trabalhadores em que todos se conheciam e eram reconhecidos pela comunidade, uns com maior proximidade do que outros. E mesmo que algum deles morassem um pouco distante isso não era fator impeditivo para estabelecerem vínculos quando houvesse necessidade. Nesse sentido, nem a distância espacial os impediam de estabelecerem comunicações, transparecendo também que detinham certa mobilidade, sendo

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latente as relações de solidariedade dentro da comunidade, o recurso dos deslocamentos e relações sócio espaciais.

Depreende-se, que tecer rede de solidariedade e aproximações fazia parte do universo dos vaqueiros e ao que se evidencia, eles sabiam muito bem estimular tais redes. E estas significavam então uma proveitosa forma de saber as ocorrências do entorno da localidade e em caso de furtos de animais, imprescindíveis ajudas em prol do descobrimento e paradeiro da propriedade desaparecida.

É possível inferir que a própria dinâmica das atividades fomentava a existência e estabelecimento de solidariedades entre a vaqueirada, mais que isso, é preciso enxergá-la ainda como estratégica, e que se apresentava como um dos atributos que perfazia o universo de um bom vaqueiro. Mas, apesar de ser natural que houvessem essas relações de solidariedade, é preciso compreendê-las também enquanto mutáveis e passíveis de serem rompidas, por isso, se fazia necessário que tais redes constantemente fossem estimuladas e reafirmadas por este trabalhador.

Adentrar nos espaços do cotidiano, nos laços de parentesco e proteção, assim como nas redes de solidariedade estabelecidas, nos ajuda a entender como se organizava, e quais os propósitos de se estabelecerem relações de convívio e de ajuda nos desfechos de casos de furto de gado fora e perante ao júri.

A região aqui estudada foi recorrente em roubo de animais e em processos assim como já mencionado, os vaqueiros eram testemunhas fundamentais para averiguar a verdadeira posse do animal, bem como incumbidos pela busca do gado sumido. Isto justifica-se pelo fato de serem os responsáveis pelas questões internas da fazenda, por saberem a quantidade de animais, as vacas paridas, as melhores criações, apartação e partilha nas fazendas e, portanto, conhecedores dos ferros e marcas dos fazendeiros, por isso, consequentemente o olhar e a responsabilidade recaíam sobre eles23. Assim, nessas ocasiões, estabelecer laços e influências poderia ser imprescindível ao se depararem com a justiça.

Pelo que se evidencia, capacidade muito bem desenvolvida pelo vaqueiro Xavier, e que foram evidenciadas através das diversas testemunhas que prestaram esclarecimentos. Portanto, eram esses estabelecimentos de relações pessoais que fundamentavam o universo de sociabilidade do vaqueiro e que poderiam ser de grande valia.

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NOTAS E REFERÊNCIAS

1 O presente trabalho é parte da pesquisa de dissertação em andamento.

2 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos Africanos, Povos indígenas e Culturas Negras- PPGEAFIN/UNEB, Campus XVI.

3 CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia da Letras, 2011.

4 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: conflitos de terras e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro, vício de leitura: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998, p. 65. 5 FMCA. Seção Judiciária. Processo contra Silvano Francisco do Nascimento, João Barro Vermelho e José

Florêncio de Souza, 1879.

6 MEDRADO, Joana. Terra, laço e moirão: relações de trabalho e cultura política na pecuária (Geremoabo, 1880-1900). 2008. 188p. Dissertação (Mestrado em História Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2008, p. 68.

7 MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e escravidão: Trabalho, Luta e Resistência nas Lavouras Paulistas (1830-1888). 2. ed., 1. Reimpr. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018, p. 12. 8 LOPES, Michele Soares. Escravidão na vila do príncipe: Província do Rio Grande do Norte (1850- 1888). Natal, 2011, p. 26.

9 FMCA. Seção Judiciária. Processo contra Silvano Francisco do Nascimento, João Barro Vermelho e José

Florêncio de Souza, 1879.

10 Ibid.

11 THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Revisão técnica Antonio Negro, Cristina Meneguello, Paulo Fontes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 62. 12 DUARTE, Monica Dantas. Fronteiras movediças: relações sociais na Bahia do século XIX: (a comarca de Itapicuru e a formação do arraial de Canudos). São Paulo: Aderaldo & Rothschild: Fapesp, 2007, p. 350. 13 Ibid., p. 375.

14 SANTOS FILHO, Lycurgo. Uma comunidade rural do brasil antigo (Aspectos da Vida Patriarcal no Sertão da Bahia nos Séculos XVIII e XIX). Biblioteca Pedagógica Brasileira. Brasiliana (Grande formato) direção de Américo Jacobina Lacombe, Série 5ª, vol. 9, 1956, p. 211.

15 FMCA. Seção Judiciária. Processo contra Silvano Francisco do Nascimento, João Barro Vermelho e José Florêncio de Souza, 1879.

16 Ibid.

17 MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista (Brasil, século XIX). 3ª ed. rev. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013, p. 51.

18 Ibid., p. 52.

19 FMCA. Seção Judiciária. Processo contra Silvano Francisco do Nascimento, João Barro Vermelho e José Florêncio de Souza, 1879.

20 Ibid. 21 Ibid. 22 Ibid.

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