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O que será o amanhã? A economia e a vida pós-covid-19 (Parte IV) Aécio Alves de Oliveira Cel-Zap: (85)

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A economia e a vida pós-COVID-19

(Parte IV)

Aécio Alves de Oliveira

aecioeeco@ufc.br

Cel-Zap: (85) 999940444

O hoje

Quais as verdadeiras causas das múltiplas crises hoje vivenciadas? A economia de há muito não funciona como preceitua a chamada ciência econômica, o Estado dedica-se apenas a intervir na economia para beneficiar corporações e credores da dívida pública, a democracia representativa está em cheque e interessa apenas à minoria, o aparelho da repressão institucional se amplia no sentido de estabelecer uma espécie de ditadura democrática... Essas facetas são expressões concretas da “contradição em processo” que é o sistema do capital, um sistema que gera crises permanentes e recorrentes para não serem resolvidas. Mas, a que objetivos atendem essas crises permanentes e recorrentes?

Primeiro, evitar que se pensem alternativas inclusivas que melhorem as condições de vida de todas as pessoas. As crises desviam a atenção do problema da elevada concentração de riqueza, ajudando assim a legitimar as desigualdades. Em segundo lugar, impor medidas para combatê-las que incluem a eliminação de direitos individuais e sociais. A demolição do Estado de bem-estar social é justificada pela necessidade da redução de gastos públicos em geral: a educação, a saúde e a seguridade social são as primeiras ‘vítimas’. São as chamadas medidas de ajuste para garantir a remuneração dos credores das dívidas públicas. Em terceiro, mas não em último lugar, atender à desregulamentação de proteção dos ecossistemas.

Ao mesmo tempo, a normalidade das sociedades modernas introjetam nas pessoas um estranho sentimento de segurança. Mesmo quando alguma insegurança se insurge, as mídias acionam mecanismos para que seja minimizada, promovendo a venda de ‘produtos de segurança’: planos privados de saúde, apólices de seguros de vida, do carro, da residência; serviços de empresas de segurança, terapias psicológicas, academias de ginástica... Logo que se instala um surto viral, desfaz-se essa quimera e desmorona-desfaz-se a desfaz-segurança. Os mecanismos criados pelas mídias perdem sua eficácia e se restringem a lembretes do tipo: <<anuncie na crise, senão a crise fará com que sua marca seja esquecida>>.

O novo coronavírus derrubou a economia logo no primeiro tempo e desnudou o neoliberalismo praticado nos últimos quarenta anos. A pandemia agravou a situação de crise da economia global, desvelou sua incapacidade de oferecer melhores condições de vida à população mundial e mostrou as fragilidades dos serviços públicos de saúde para seu enfrentamento em quase todos os países. A atual pandemia tem a ‘virtude’ de introduzir mudanças inusitadas no comportamento das pessoas. O isolamento social (#FiqueEmCasa) possibilita tempo para alguma reflexão, para ler um livro e passar mais tempo com os familiares. Possibilita consumir menos e conter o vício de passar uma parte do tempo de vida em shoppings, olhando para o que está à venda, e lembra que coisas importantes podem ser obtidas por outros meios que não pela compra. Também abala a ideia conservadora de que não há alternativa ao modo de vida (imposto) das sociedades modernas. Mesmo tendo sido excluídas, as alternativas acabam emergindo no cenário pelas ‘portas dos fundos’, abertas pelas crises econômica, política e sanitária, ou pelas ‘portas’ abertas pelos desastres ambientais ou pelos colapsos financeiros. As alternativas emergem pelas vias do pior possível.

Sabe-se também que a pandemia (todo o povo) não é ‘democrática’. Mesmo assim, a etimologia da palavra sugere que todas as pessoas estão vulneráveis. Contraditoriamente, ser socialmente solidário

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é estar socialmente isolado. E quem não tiver condições de vida para tal, se vê com elevada probabilidade de ser ‘sorteado’ e fazer parte da fila por atendimento médico-hospitalar.

Uma parte significativa da economia foi obrigada a parar em todos os países. As consequências negativas recaíram principalmente sobre aqueles e aquelas que vivem da venda de sua força de trabalho ou de algum negócio que funciona como fonte de renda. Mas, visivelmente, diminuiu a poluição da atmosférica e da água de superfície. Na ausência do homem, os canais aquáticos de Veneza voltaram a ser frequentados por outras espécies; as tartaruga voltam a se ‘banhar’ na Baía de Guanabara; as emissões de GEE diminuíram... Parece que o coronavírus sinaliza que a única via para evitar o colapso ecológico global é a destruição do modo de produção e de vida das sociedades modernas, junto com destruição massiva de vidas humanas.

China e Cuba, por exemplo, acionaram métodos de vigilância e controle da pandemia bastante rigorosos. As medidas foram eficazes. Outros países, mais preocupados com a economia do que com a vida, se apressaram em liberar as atividades econômicas. Os resultados não foram melhores. Uma pandemia com essa dimensão não cria, mas sim torna visível as ‘sombras’ já existentes. Por exemplo, a extrema vulnerabilidade ao vírus de milhões de refugiados e imigrantes detidos nos campos de internamento. Na Grécia há mais de 38.000 migrantes em espaços para pouco mais de 6.000 pessoas. Os internados não podem manter isolamento social. O mesmo ocorre nas favelas e periferias das grandes cidades brasileiras e com milhões (ou bilhões) que compõem a base da pirâmide das desigualdades sociais.

O coronavírus alterou profundamente o modo de vida das sociedades modernas. Instaurou momentos atípicos que certamente têm ajudado muitos de nós a exercitar outras reflexões, agora fora da zona de conforto a que estávamos acostumados antes da pandemia. Pouquíssimos das atuais gerações vivenciaram uma situação de confinamento semelhante. Agora temos a chance de refletir, pesquisar e discutir sobre como o mundo está, e como poderá ficar no pós Covid-19.

O fato de estarmos vivenciando um momento histórico inédito de múltiplas crises – econômica, política, social e sanitária – não deve nos inibir de pensarmos possibilidades e menos ainda vislumbrar outras formas societárias para a humanidade. Obviamente, possibilidades que sejam pensadas como processos que considerem as relações vitais entre Natureza, sociedade e economia. Alguns pontos podem ser sugeridos para reflexão. As causas da pandemia, os efeitos diferenciados sobre a sociedade, a segurança alimentar e a capacidade de atendimento dos sistemas de saúde, os impactos econômicos e a reorientação da economia são alguns pontos dentre muitos outros.

No contexto de profundas desigualdades que envolvem a maioria dos países, as consequências sempre recaem sobre os segmentos sociais mais vulneráveis que ocupam a base da pirâmide social. O novo coronavírus desnudou essas desigualdades, mesmo nos países com renda per capita elevada, e mais ainda naqueles que alimentam a ilusão de que chegarão ao paraíso do chamado “primeiro mundo”. Mesmo assim, o debate mais sério tem sido evitado. O crescimento econômico ilimitado continua sendo a pauta, embora seja incompatível à vida a longo prazo. E que, para atender essa pauta, a maioria da sociedade é tratada como coisas, ou na melhor, se vê coagida à condição de servos da produção, do comércio e dos serviços para que tenham acesso aos meios de vida biológicos e sociais. Em geral, servos e senhores da modernidade vivem o hoje como se não houvesse o amanhã. Reproduzem um sociometabolismo que consome organismos humanos como um “fator da produção” qualquer, descartável, para o enriquecimento material de poucos.

Há uma pauta volumosa de interesse geral que envolve questões relacionadas ao neoliberalismo, à mercantilização da vida, às cadeias produtivas mundiais das mercadorias, à precarização do trabalho

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e das condições de vida de muitos. Agora, com a pandemia, as questões que falam da intensificação da exploração, como o ‘retorno’ do “trabalho em domicílio” do século XIX com a roupagem das TIC. Outras no mesmo nível de importância, relacionadas às economias e tecnologias alternativas, o combate às discriminações de gênero e raça e das minorias, ao lado da assistência e cuidados pessoais. São pautas que têm ganho muita visibilidade nesses tempos e que certamente alcançarão maior expressão no pós pandemia.

A proteção econômica do Estado – ajuda emergencial no Brasil, ou renda básica em outros países – daqueles e daquelas que perderam suas fontes de renda certamente não ocorreria dentro da normalidade ultraliberal. O choque causado pela pandemia poderá trazer alguma mudança de comportamento individual e social, caso melhore a percepção de muitos do que seja essencial. Talvez se abram janelas para que se perceba se as coisas voltarão à normalidade anterior ou se outra normalidade começará a se esboçar. Talvez as práticas dos gestores públicos e o poder exercido sobre a sociedade não sejam as mesmas nem o mesmo. A realidade quando ‘fala’ contribui para ampliar a compreensão de que, por exemplo, o novo coronavírus e a nuvem de gafanhotos que invade a América do Sul resultem das agressões feitas aos habitats pelo avanço da transformação da Natureza em mercadoria para fazer crescer a economia. A compreensão de que a destruição da biodiversidade provoca a eliminação de hospedeiros e de predadores.

O fato é que devemos estar mais conscientes ainda de que esses debates já estão postos e que definirão a agenda de discussões dos próximos anos, junto com a intensificação da retomada das pautas da mudança climática.

Com ou sem pandemia, após décadas de agressões à Natureza, as economias das sociedades modernas – de mercado ou de comando central – apresentam oscilações em suas trajetórias, mesmo que se perceba uma tendência geral de expansão. Esta tendência cíclica é determinada por leis econômicas que organizam a estrutura e o funcionamento da economia moderna. A “anarquia da produção”, que decorre de decisões orientadas por sinais de mercado e que são tomadas livre e isoladamente pelos agentes econômicos. A elevação da “composição técnico-orgânica do capital”, que possibilita a substituição do homem pela máquina. As inovações tecnológicas sem fim, que simplificam o trabalho e desvalorizam o trabalhador e sua formação, e que também desqualificam as áreas do conhecimento do campo das humanas. E por último, pela imposição da lei da produtividade crescente para reduzir custos e mais bem preparar para os embates da livre concorrência entre as empresas e as corporações. Essas são as leis econômicas que caracterizam a normalidade da economia das sociedades modernas e que desencadeiam a “tendência decrescente da taxa de lucro” sobre o capital investido. Por isso é que, desde os anos de 1980, a esfera financeira ganha a condição de destino especial para um enorme volume de excedentes gerados pelas empresas que não encontram alternativas na economia real. Na esfera financeira não há limites para a expansão do dinheiro.

Assim, as crises econômicas tornam-se a regra e a perda de confiança na economia monetária é equivocadamente identificada como sua causa. A solidez do sistema financeiro-bancário se desmanchar no ar para que as causas reais permaneçam intocadas. A frustração do crescimento econômico abala a convivência entre a democracia representativa e a economia. Por essa via, insinua-se o domínio oligárquico sobre a sociedade e o enfraquecimento da esfera pública pela corrupção entranhada das estruturas institucionais e pelas pressões advindas da competição internacional. As sociedades modernas, portanto, demonstram sinais patológicos para os quais não há cura. Como resultado, agravam-se as desigualdades sociais e se ampliam as agressões à Natureza. A instabilidade social e política torna-se a regra.

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Vários caminhos estão disponíveis para superar esse cenário dantesco. Mas, de alguma maneira todos esbarram nas estruturas ditas democráticas das sociedades modernas. Quando se trata de propor tecnologias sociais que minimizam os efeitos entrópicos de algum processo econômico, as pessoas mais influentes vociferam com justificativas relacionadas às economias de escala, à eficiência, à competitividade internacional. Fazer uma crítica às novas tecnologias, em virtude de seus efeitos negativos, nem pensar. Ninguém pode parar o progresso.

A realidade, no entanto, demonstra que as tecnologias terão que ser repensadas, pois as inovações tornam os processos econômicos cada vez mais ineficientes. Ao mesmo tempo, degradam matéria; contaminam o solo e a água, poluem a atmosfera e dissipam energia, em escala ampliada. Elas contribuem para uma crescente quantidade de resíduos que afetam a capacidade de suporte dos ecossistemas. O consumo desmesurado dos ecossistemas e o descarte de material humano é sua face mais cruel.

Conforme Michael Huesemann e Joyce Huesemann, em TEHNO-FIX (Capítulo 10):

Contudo, as tecnologias são verdadeiros imperativos; não podem ser questionadas. Qualquer um que aceite o imperativo tecnológico para orientar suas ações desistiu, de fato, de qualquer consideração ética em sua tomada de decisão. Em vez de considerar, cuidadosamente, se uma nova tecnologia, quando completamente desenvolvida e implementada em larga escala, é útil ou inútil, construtiva ou destrutiva, inofensivo ou prejudicial, humana ou desumana, certa ou errada, boa ou má, a pessoa que acredita no imperativo tecnológico endossará e disseminará as novas tecnologias simplesmente porque elas são novas. [Tradução livre]

Se nada ocorrer para alterar a normalidade das sociedades modernas, a inevitável conclusão é que estaremos contribuindo para reproduzir um sistema econômico que funciona com uma lógica irracional que conduz ‘cegamente’ as ações individuais e as práticas sociais no sentido de que realizem agressões à biodiversidade, causem poluição da atmosfera, contaminem a água de superfície e dos aquíferos e influenciem o clima do Planeta. Evidentemente, os vírus deslocados são indicadores da destruição de habitats; as nuvens de gafanhotos, refletem a falta de seus predadores; a prática da utilização de agrotóxicos, antecipa a perda da fertilidade do solo; e as inúmeras dissociações e desigualdades sociais parecem confirmar que “os seres humanos não foram eficientemente projetados” (HOBSBAWM, Erik) para as sociedades modernas. O aquecimento global, as poluições, as contaminações, as pandemias, as nuvens de gafanhotos ... são prenúncios da insegurança alimentar que deverá desabar sobre expressivos segmentos da população mundial.

Estaríamos, então, diante de prenúncios de que já passou da hora de alterarmos a lógica que caracteriza o tempo histórico da modernidade? Que outra ordem econômica e social teria condições de proporcionar condições materiais de vida, culturalmente adequadas, para a diversidade da população mundial? Que desenho social e econômico pode ser apresentado?

As instituições das sociedades modernas funcionam melhor em situação de normalidade ou em situação de crise? Em qualquer situação, funcionam muito bem para poucos e muito mal para a muitos. A atual pandemia não é uma situação de exceção que claramente se contrapõe à situação de normalidade. Na verdade, apenas desnuda e acentua o que já estava posto.

Admitir que a normalidade que se instituiu há quase 250 anos é a “contradição em processo”, significa dizer que as sociedades modernas compõem um sistema-mundo em crise permanente, e não em crise passageira. As crises recorrentes são inerentes a lógica de seu funcionamento. Em suas estruturas, econômicas devem ser encontradas as causas que as provocam. Obviamente que os gestores públicos em geral sempre recorrerão, quando o fizerem, a paliativos para mitigar consequências. Mas, aqueles gestores de corte ultraliberal sempre ficarão restritos à crise financeira como causa imediata dos

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problemas econômicos cuja resolução se torna prioritária. Daí a justificativa dos ajustes à base de cortes de gastos nos setores das políticas sociais (saúde, educação, previdência social) e a flexibilização da legislação trabalhista. Para os gestores ultraliberais, a solução está na facilitação da vida dos empresários e investidores para que a economia cresça, mesmo que a vida de muitos seja dramaticamente piorada. Para Vilfredo Pareto, economista do bem-estar social, tal decisão não seria a melhor: a vida de poucos melhora, à custa de sacrifícios da maioria.

Muitas transições para outra sociabilidade já se iniciaram em muitos lugares. São portas e janelas que se disseminam e estão à disposição nas ‘bibliotecas’ dos povos tradicionais, na riqueza dos ensinamentos da ciência da Agroecologia e da Economia Ecológica e nas refinadas formas de organização ensinadas pela Economia Solidária. Já está posto o momento da escolha: continuar a normalidade das sociedades modernas ou resgatar a ética da vida como centralidade. A nova era – antropoceno ou capitaloceno – sinaliza para mais pandemias e desastres climáticos. Ou sinaliza para a extinção da raça humana?

Janelas para perceber outro amanhã e portas para chegar lá

A continuação da normalidade típica das sociedades modernas aumenta a certeza da ocorrência de colapsos ecológicos com impactos incontroláveis sobre a humanidade e as demais espécies. O amanhã pode ser delineado a partir dos efeitos decorrentes da ultrapassagem dos limites ecossistêmicas. Uma elevação da temperatura média da superfície da Terra e dos oceanos, acima de determinado nível (acima 2º C), poderá ser catastrófico. Fome e múltiplas doenças atingirão expressivos segmentos da população mundial, principalmente aqueles mais vulneráveis.

O ensaio oferecido pela atual crise pandêmico-sanitária, mesmo que previsto, é sempre um fenômeno inesperado, principalmente nas sociedades inebriadas pelo consumismo e por aqueles e aquelas enlouquecidos e enlouquecidas pela ‘síndrome’ do crescimento econômico ilimitado. Cada vez mais claro, as doenças zoonóticas decorrem da fragmentação de habitats, do desmatamento, da mudança do uso do solo, que compõem as ações antrópicas relacionadas ao cumprimento do dogma do crescimento econômico ilimitado.

As injustiças ambientais deslocam humanos; a degradação, a devastação e a destruição de habitats deslocam presas, predadores, hospedeiros e vírus. Mesmo assim, os gestores públicos dos países mais ricos – e mesmo daqueles ditos emergentes – reagem minimizando as consequências sobre a saúde e a vida das pessoas, enfatizando o crescimento da economia.

Ao mesmo tempo que dão pouca importância à vida, esses mesmos gestores acenam com estímulos e suporte financeiro a empresas e bancos para que a economia retome a trajetória do crescimento e assim mantenha o modo de vida consumista das sociedades modernas. De maneira subliminar, mas direta, entre a vida e a economia os gestores públicos e os empresariais pressionam para que a economia volte à normalidade. Por vezes, banalizam a vida com a justificativa de que a morte é inevitável; e, ao mesmo tempo, argumentam que as atividades econômicas não podem parar, pois são essenciais para garantir a vida. Frequentemente vociferam dizendo que a economia tem que ser mantida a qualquer custo.

Essa é a demonstração de que as vidas das pessoas importam, apenas quando estão a serviço da acumulação de riqueza da minoria. Parafraseando Ailton Krenak, em O amanhã não está à venda, o navio não pode ser mais importante do que tripulação.

Em 2008, o Estado prontamente providenciou cerca de 700 bilhões de dólares de ajuda aos bancos norte-americanos. Certamente, as crises simultâneas de hoje demandarão um volume muito mais

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expressivo de recursos. A estimativa é de um trilhão de dólares para combater os impactos da COVID-19. O fato é que a atuação do Estado foi fundamental em 2008, e será mais ainda em 2020.

Mas, fora dessa via tradicional de socorro, com medidas voltadas para a normalidade do modo de vida hegemônico, que transições poderiam ser consideradas para sair do sistema? O crescimento econômico não está funcionando e a globalização fracassou: não foi possível proporcionar condições de vida dignas para a população mundial. Esta não seria a demonstração cabal de que as soluções devem ser, prioritariamente, encontradas nos territórios e nos locais onde as pessoas habitam? Outro mundo é possível em que as condições de vida de todos e de todas sejam melhores. Acima de tudo, outros valores teriam que ser cultivados como essenciais como alternativas para a sociabilidade prevalecente. É preciso identificar formas concretas que mostrem claramente que o modo de produção e de vida das sociedades modernas impedem que outros valores sejam apresentados como possibilidades efetivas.

Por que não seria desejável uma sociedade justa, igualitária, democrática, solidária? Por que não seria desejável uma sociedade com igualdade de oportunidades para uma vida plena, com amplo acesso aos meios que garantam o atendimento das necessidades materiais e sociais de cada uma e de todas as pessoas? Tais valores são realizáveis nas sociedades modernas?

Em países como o Brasil – e em muitos outros que jamais alcançarão o padrão de consumo médio dos países ricos –, há janelas abertas mostram caminhos a serem trilhados com ações e práticas inovadoras e eficientes. Os pontos a seguir apresentados correspondem a algumas dessas trilhas que podem contribuir para a construção de outra ‘normalidade’. Certamente, as baterias e as armas dos ativistas que assaltaram o poder no Brasil pela via do voto, irão organizar resistências para impedir que tenhamos uma sociedade igualitária, democrática, inclusiva e solidária. Mas, é preciso abrir as portas e prosseguir por algumas trilhas de possibilidades, mesmo que sejam incertas, para serem experimentadas por dentro das estruturas existentes.

De imediato, é preciso tornar a sociedade mais resiliente a futuros choques pandêmicos que certamente ainda acontecerão. Pela experiência até agora vivenciada com a COVID-19, pelo menos as parcelas mais vulneráveis da população terão que ser amparada com uma renda básica individual permanente, independentemente da situação em que se encontre no “mercado de trabalho”. Ao lado dessa garantia de renda, o Estado terá que implementar políticas para dar mais solidez ao sistema de saúde, suporte à educação em todos os níveis, à pesquisa científica e à apropriação e disseminação dos saberes ancestrais e dos povos tradicionais. Essas políticas terão que ser complementadas com a universalização dos serviços de saneamento e moradia digna. É óbvio que esse aumento de resiliência social jamais será realizado pelo setor privado; mas também é óbvio que o conjunto das políticas beneficiará este mesmo setor privado, com uma oferta de força de trabalho mais sadia.

Outro caminho para consolidar a resiliência de todas as pessoas, e de cada uma indistintamente, é aquele que aponta para a definição do que seja essencial para a saúde humana. Trata-se de bens essenciais, sobretudo voltados para uma alimentação saudável, a serem produzidos de acordo com as técnicas dos sistemas agroecológicos de base familiar, no campo e na cidade. Vale lembrar que o uso e a ocupação do chamado “solo urbano” pode ser redirecionado para que a agricultura também seja urbana.

Ao lado da definição do que seja essencial para uma alimentação saudável, há um sem número de atividades voltadas para os cuidados com o ambiente natural que podem servir para a elaboração de uma base curricular comum aos sistemas de ensino e projetos pedagógicos em todos os níveis. A proteção de nascentes, a recuperação de matas ciliares das nascentes, dos rios e riachos, o

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reflorestamento com espécies nativas, a estruturação de sistemas de agrofloresta como já fazem os indígenas, a recuperação de áreas degradadas, o cultivo de hortaliças, frutíferas e de fitoterápicos nas zonas urbanas e rurais etc. São alguns exemplos de atividades que favorecem à saúde e à criatividade humana.

Uma trilha fundamental a ser construída tem a ver com o desenvolvimento da ciência e sua aplicação em tecnologias carbono zero. A economia das sociedades modernas tem sua razão de ser apoiada no crescimento econômico ilimitado, um dogma que acarreta aumento do consumo de combustíveis fósseis e, portanto, da emissão de dióxido de carbono. Em termos biofísicos ou termodinâmicos, o crescimento é insustentável porque repousa na extração e degradação de bens naturais comuns a uma escala crescente. Ao mesmo tempo, assenta-se em uma matriz energética de base fóssil, cuja queima cresce junto com o consumo de outros insumos materiais que alimentam o processo econômico. As mudanças climáticas causadas por essa economia fóssil de há muito sinalizam para a necessidade de parar as emissões de CO2, metano e de outros gases de efeito estufa. O aquecimento global aumenta

os riscos de encadeamento da extinção de espécies e nos aproxima de colapsos que cedo ou tarde nos incluirão na lista das extinções. A atual trajetória aumenta nossa vulnerabilidade a futuras pandemias. Muitas das soluções disponíveis são do conhecimento da humanidade, pois resultaram de problemas reais. Como sempre, quando problemas se apresentam as soluções já existem ou estão em vias de serem concretizadas. Contudo, a nova ordem somente poderá ser concebida, e as soluções apresentadas, à medida que ocorra a apropriação crítica do conhecimento existente, com a superação da estrutura de compulsão social que respalda a acumulação de riqueza de poucos. Ou seja, quando os coletivos sociais alcançarem a condição de liberdade inerente aos “produtores associados”. Garantir a existência biológica, social e espiritual de todos os habitantes da Terra é o único objetivo que poderá postergar a vida neste planeta. E a autoconsciência do homem, a condição necessária para que seja alcançada. Essa condição abre-lhe janelas para reconhecer que os modos de produção e de vida que têm vivenciado resultaram de processos sociais que se estruturaram historicamente. Mas, resultaram de ações humanas que levaram a profundas desigualdades sociais e a ameaças ao nosso suporte de vida. Precisamente por isso, as ações humanas podem ser outras; podem ser orientadas para um constructo social em que a radicalização da vida seja o princípio orientador. As formas sociais que venham a se configurar com outro modo de produção e de vida dependerão da compreensão das contradições que se desenvolveram ao longo da história das sociedades modernas em geral, e da sociedade capitalista em particular.

Uma leitura crítica da normalidade prevalecente permite perceber as sociedades modernas estão envoltas por uma organização econômica que cria empecilhos para uma vida plena. É uma normalidade desigual, injusta, pouco ou nada democrática, cada vez menos solidária e com a liberdade de pensar e de influenciar cada vez mais intimamente vinculada ao poder de compra. Essas características reafirmam a necessidade da autogestão e da cooperação solidária entre homens e mulheres, com elevado respeito aos direitos da Natureza, valores que certamente contribuirão para construir uma sociedade humana e igualitária. Também, reafirmam a necessidade de reapropriação coletiva do legado cultural dos povos tradicionais que tem por base outros valores que são intimamente vinculados à postergação da vida como princípio central. Assim, para que a humanidade tenha um futuro discernível é preciso que os desgastes sofridos pela força produtiva do homem e a degradação provocada ao ambiente natural sejam interrompidos, caso não queiramos apressar nossa extinção.

Nessa mesma normalidade, as evidências climáticas no século XXI deixam mais claro que a humanidade está reproduzindo um modo de produção e de vida que privilegia a acumulação

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interminável de capital, a um custo social e ambiental incomensurável. As mesmas evidências marcam uma era histórica que John Merrick, no resumo que faz de Capitalism in the Web of Life de Jason W. Moore, denomina de “capitaloceno”. Pode-se acrescentar, uma ‘era’ em que o ‘ecossistema’ do capital desenvolve tecnologias voltadas para acelerar a mercantilização e a degradação da Natureza; uma ‘era’ em que os ecossistemas terão que processar a matéria degradada como se fosse sua ‘matéria-prima’ natural para assim demonstrar sua funcionalidade na reprodução do sistema do capital.

A nova ‘era’, entretanto, sugere que interação entre economia e Natureza terá que ser diferente de modo a proporcionar uma vida plena para a humanidade; de modo que o atendimento de necessidades humanas reais seja a finalidade. Com a ultrapassagem do ‘capitaloceno’, a nova sociabilidade deverá estar ancorada em outros valores e parâmetros orientados por princípios ecológicos, tendo por perspectiva uma sociedade justa e igualitária. Para tal, o redesenho das relações entre Natureza, sociedade e economia terá que expressar os princípios e leis que regem os ecossistemas.

O encontro entre saberes tradicionais e as ciências, e as tecnologias daí resultantes, afigura-se como um caminho interessante para a construção social de condições de vida saudáveis para o homem. Uma quadro de vida que proporcione um espaço seguro e justo que garanta o atendimento de necessidades individuais e sociais: água potável, soberania alimentar, universalização da educação e da saúde, energia renovável, equidade de gênero, igualdade social, resiliência coletiva, participação política efetiva, dentre outros atributos. As inovações tecnológicas teriam que privilegiar processos econômicos regenerativos, produção agroecológica de alimentos e energia de baixo carbono, sempre voltadas para a produção de comodidades passíveis de conserto e com longa durabilidade.

Nesse sentido, é importante aperfeiçoar as tecnologias que envolvam o reuso e a reciclagem de materiais, bem como as fontes renováveis de energia. As “tecnologias sociais” na produção de alimentos e de outros insumos básicos serão importantes para a ciclagem de elementos nos processos de reaproveitamento. Há vegetais que têm a propriedade de conservar a água das cisternas que recebem água do telhado das casas, como é o caso da semente da Moringa.

No entanto, esse quadro de vida congrega possibilidades que são inviabilizadas pelas estruturas que determinam o modo de produção e de vidas das sociedades modernas. São inviabilizadas porque apontam para o início da história sem fetiches da humanidade. O individualismo possessivo e exacerbado dá lugar ao “indivíduo social” (Karl Marx) como expressão de segurança e coesão social: a solidariedade como a liga da autonomia individual e os ecossistemas como a liga da vida coletiva. O “indivíduo social” também é a expressão do fim das discriminações, das desigualdades sociais e dos patriotismos, de preconceitos, e a afirmação da consciência de que habitamos a mesma casa. O hedonismo individualista possessivo deixa de prevalecer; e o sentimento de empatia, de compartilhamento e de solidariedade toma seu lugar.

É claro que a tentativa de esboçar o que seria uma nova sociabilidade é apenas uma tentativa de apresentar alguns princípios que contribuam para a percepção de outros caminhos a serem caminhados com os faróis das experiências emancipatórias. Evidentemente, são caminhos valiosos em si mesmos, pois têm a marca de uma pedagogia crítica que aporta valores de vivências e de experimentações de uma escala espaço-tempo ancestral. Um retorno ao passado que fala de perto sobre a necessidade vital de elevação da consciência ecológica planetária. A perspectiva é o atendimento das necessidades humanas reais, dentro dos limites ecossistêmicos à base de constructos socioculturais, considerando as condições biogeofisicoquímicas onde se desenvolverem os novos processos econômicos.

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Vale enfatizar, a Economia Ecológica é afirmada como uma pedagogia crítica que contém princípios que servirão para orientar os novos processos de interação entre economia, sociedade e a Natureza; e a Economia Solidária, como modo de organização das atividades produtivas, em estreita articulação com os princípios ecológicos.

As inovações tecnológicas seriam baseadas em conhecimentos científicos orientados para outra finalidade. Não é o lucro, nem a apropriação de seus benefícios por poucos. Mas sim pela busca de condições de vida plena de cada uma e de todas as pessoas. No lugar de atender às exigências da competição, as inovações tecnológicas seriam compartilhadas com todos os países, como uma demonstração da solidariedade internacional. No lugar da “divisão internacional do trabalho”, a divisão internacional da solidariedade; no lugar das trocas desiguais, o intercâmbio de conhecimentos e experiências. Nesse sentido, o modo de vida cultural desses países seria resgatado, junto com o prazer de viver que for próprio de suas respectivas sociedades.

Claramente, um amplo processo educativo voltado para a reprodução da vida em sociedade que aponta para um futuro discernível. Para tanto, a produção das condições materiais da vida terão que estar em consonância às leis que regulam os ecossistemas.

De acordo com as argumentações aqui elaboradas, o Planeta não reivindica salvação e a Natureza não está em crise. A civilização moderna sim. Por isso, não resta à humanidade outra saída para evitar sua extinção precoce: livrar-se definitivamente do modo de produção e de vida das sociedades modernas para que o Planeta continue sendo nossa casa comum por mais tempo.

Com a nova sociabilidade ampliam-se os espaços de liberdade, da democracia direta e dos cuidados com as pessoas e com os bens comuns. A nova sociabilidade revaloriza o passado e reacende as ancestralidades dos povos tradicionais; elimina a produção de supérfluos; descarta a produção midiática de espetáculos e coloca em cena as manifestações culturais genuínas. No lugar do “fim da história”, o início da história humana da humanidade.

Esse quadro de vida contribui para que as experiências ancestrais sejam percebidas como práticas de uma economia ecologicamente orientada, com processos regenerativos e mínimos efeitos entrópicos. Que a economia deve evoluir como um organismo social para atender às necessidades humanas reais, social e culturalmente determinadas.

Nesse sentido, os movimentos sociais que se estruturam com a perspectiva da emancipação humana – contra todos os tipos de discriminação e de injustiças, e que reconhece os limites ecossistêmicos – reúnem um potencial mobilizador de forças sociais e políticas capaz de se contrapor à correlação de forças avassaladoras que ameaçam a vida na Terra.

A ciência e a tecnologia terão que ser reorientadas para viabilizar processos de baixo carbono, para a produção de bens com longa durabilidade e passíveis de conserto. Reorientadas para o desenvolvimento de uma ciência experimental criativa e inclusiva que considere o saber ancestral acumulado pela humanidade.

A redução do tempo dedicado à produção material cria condições para que se tenha um modo de vida orientado para o ócio criativo e para o desenvolvimento de atividades superiores. O tempo dedicado às atividades produtivas terá que ser reduzido a um mínimo de modo que uma parte do tempo de vida seja dedicada à formação científica e tecnológica, e à educação física.

A finalidade da nova organização econômica e social será maximizar o tempo disponível para o ócio (ativo, e não receptivo) a ser usufruído por cada um e por todos os indivíduos. O tempo de usufruto da vida, e não o tempo de trabalho, é o indicador do momento de afirmação humana e a medida da

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riqueza. As relações sociais reificadas dariam lugar a uma existência emancipada do trabalho alienado. Nesse quadro de vida as pessoas terão possibilidades de serem outras: cuidando do ambiente natural, dedicando-se à formação artístico-científica e fazendo exercícios físicos para uma vida saudável.

Na nova organização, cada espécie desempenha um papel vital para manter a Terra na condição de nossa capa protetora. A espécie humana como centro da autoconsciência terá que agir para assegurar que seus modos de vida sejam consentâneos a essa condição. A nova sociabilidade deixará claro que a liberdade nas sociedades modernas é aparente e que a ilusão de que todas as pessoas alcançarão a felicidade pela via do consumismo, tem por contrapartida a ‘servidão’ de muitos e o privilégio de poucos. Uma causa sem esperança. Por esse caminho, a causa que muitos consideram utopismo será triunfante.

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