O Urso – William Faulkner (1942) O Urso – William Faulkner (1942)
Tinha dez anos. Mas aquilo j
Tinha dez anos. Mas aquilo j
áá
come começç
ara antes, muito antes do dia em que – afinal – escreveu aara antes, muito antes do dia em que – afinal – escreveu a idade com dois algarismos e viu pela primeira vez o campo de caidade com dois algarismos e viu pela primeira vez o campo de ca
çç
a onde seu pai, o Major Spain, oa onde seu pai, o Major Spain, o velho General Compson e os outros passavam duas semanas todo mvelho General Compson e os outros passavam duas semanas todo m
êê
s de s de novenovembro e outras duasmbro e outras duas todo mtodo m
êê
s de junho.s de junho. EntEnt
ãã
o, o, jjáá
herdara deles – sem nunca o ter visto sequer – o medonho urso da pata aleijada numa herdara deles – sem nunca o ter visto sequer – o medonho urso da pata aleijada numa armadilha. O urso que, numaarmadilha. O urso que, numa
áá
rea de quase cento e cinquenta quilrea de quase cento e cinquenta quilôô
metros de circunfermetros de circunferêê
ncia,ncia, ganhara direito a um nome, a um tratamento, como um homem.ganhara direito a um nome, a um tratamento, como um homem. H
H
áá
muitos anos que ele ouvia a hist muitos anos que ele ouvia a históó
ria, a lenda dos celeiros roubados, de leitria, a lenda dos celeiros roubados, de leitõõ
es e cevados, dees e cevados, de vitelos levados inteiros para a floresta e devorados; de armadilhas e fossos desfeitos e c vitelos levados inteiros para a floresta e devorados; de armadilhas e fossos desfeitos e cãã
eses mutilados ou mortos; demutilados ou mortos; de chumbadas de cachumbadas de ca
çç
adeiras e atadeiras e atéé
de carabinas atiradas quase de carabinas atiradas quaseàà
queima-roupa queima-roupa com menos resultado do que se fosse um punhado de ervilhas atirado por uma criancom menos resultado do que se fosse um punhado de ervilhas atirado por uma crian
çç
a. Hista. Históó
rias derias de um corredor de ruum corredor de ru
í í
na e destruina e destruiçã
çã
o, que comeo, que começç
ava antes do seu nascimento e atravava antes do seu nascimento e atravéé
s do qual corria,s do qual corria, nn
ãã
o muito depressa mas com a deliberao muito depressa mas com a deliberaçã
çã
o implaco implacáá
vel e irresistvel e irresistí í
vel de uma locomotiva, o vultovel de uma locomotiva, o vulto hirsuto e medonho. O urso.hirsuto e medonho. O urso.
JJ
áá
antes de ver o urso ele lhe surgia tal como era, especialmente nos sonhos. Muito antes de ter antes de ver o urso ele lhe surgia tal como era, especialmente nos sonhos. Muito antes de ter sequer avistado os bosques onde o animal deixava a sua pegada torta, era capaz de descrev sequer avistado os bosques onde o animal deixava a sua pegada torta, era capaz de descrevêê
-lo,-lo, felpudo, enorme, de olhos vermelhos, antes grande do que maldoso, grande demais para os cfelpudo, enorme, de olhos vermelhos, antes grande do que maldoso, grande demais para os c
ãã
es quees que tentavam acosstentavam acoss
áá
-lo, para os cavalos que tentavam derrub-lo, para os cavalos que tentavam derrubáá
-lo, para os homens e as balas que o-lo, para os homens e as balas que o perseguiam, grande demais para a prperseguiam, grande demais para a pr
óó
pria regipria regiãã
o a que estava limitado. Parecia vo a que estava limitado. Parecia vêê
-lo inteiro, muito-lo inteiro, muito antes de ter visto a solidantes de ter visto a solid
ãã
o selvagem e condenada, de orlas o selvagem e condenada, de orlas constantemente e covardemente cortadasconstantemente e covardemente cortadas e roe ro
í í
das por homens com machados e arados, que tinham medo dela por ser selvagem, homens quedas por homens com machados e arados, que tinham medo dela por ser selvagem, homens que sem conta e sem nome uns para os outros na regisem conta e sem nome uns para os outros na regi
ãã
o onde o pro onde o próó
prio urso ganhara um nome. Viu-o,prio urso ganhara um nome. Viu-o, mesmo, muito antes de imaginar a regimesmo, muito antes de imaginar a regi
ãã
o atravo atravéé
s da qual corria ns da qual corria nãã
o o ssóó
um animal mortal mas um um animal mortal mas um sabe Deus o qusabe Deus o qu
êê
, indom, indomáá
vel e invencvel e invencí í
vel, vindo de um tempo jvel, vindo de um tempo jáá
morto; um fantasma, ep morto; um fantasma, epí í
tome etome e apoteose daquela vida selvagem que o enxame de homens covardes lacerava numa fapoteose daquela vida selvagem que o enxame de homens covardes lacerava numa f
úú
ria deria deóó
dio edio e de terror, como pigmeus em torno das patas de um elefante sonolento, e sobre o velho urso solit de terror, como pigmeus em torno das patas de um elefante sonolento, e sobre o velho urso solitáá
rio,rio, indomindom
áá
vel e svel e sóó
, vi, viúú
vo sem filhos e svo sem filhos e sóó
, absolvido da mortalidade e s, absolvido da mortalidade e sóó
..At
At
éé
os dez anos de os dez anos de idade, quando chegava o midade, quando chegava o mêê
s de novembro, o rapaz via o carros de novembro, o rapaz via o carroçã
çã
o com os co com os cãã
es,es, as camas, a comida, as armas, o pai, o negro Jim da Tennie e oas camas, a comida, as armas, o pai, o negro Jim da Tennie e o
í í
ndio Sam Fathers (filho de umandio Sam Fathers (filho de uma escrava e de um chefe deescrava e de um chefe de
í í
ndios Chicksaw), todos partindo pela estrada para a vila, para Jefferson,ndios Chicksaw), todos partindo pela estrada para a vila, para Jefferson, onde o Major e os outros seonde o Major e os outros se reuniam. No entender do rapaz, aos sete, oito e nove anos, eles nreuniam. No entender do rapaz, aos sete, oito e nove anos, eles n
ãã
o iamo iam ao Vale Fundo para caao Vale Fundo para ca
çç
ar ursos ou veados. Iam para ter um encontro com o urso, que nem sequerar ursos ou veados. Iam para ter um encontro com o urso, que nem sequer pensavam em matar. Tantopensavam em matar. Tanto
éé
que voltavam ap que voltavam apóó
s duas semanas de cas duas semanas de caçç
a, sem trof a, sem troféé
us, sem peles nemus, sem peles nem cabecabe
çç
as. Nem ele esperava por elas. Nem temia que o carroas. Nem ele esperava por elas. Nem temia que o carroçã
çã
o trouxesse alguma coisa. Acreditavao trouxesse alguma coisa. Acreditava que quando fizesse dez anos e o pai o levasse tambque quando fizesse dez anos e o pai o levasse tamb
éé
mmàà
ca caçç
a nas duas semanas de novembro, elea nas duas semanas de novembro, ele seria apenas um dos participantes, com o pai, o Major e o General Compson, com os outros, com os seria apenas um dos participantes, com o pai, o Major e o General Compson, com os outros, com os ccãã
es que tinham medo de o acossar e as caes que tinham medo de o acossar e as caçç
adeiras que nem sangue lhe faziam: seria mais um noadeiras que nem sangue lhe faziam: seria mais um no cortejo anual decortejo anual de homenagemhomenagem
àà
imortalidade do velho urso. imortalidade do velho urso. AtAt
éé
que ouviu os c que ouviu os cãã
es. Foi na segunda semana da sua primeira caes. Foi na segunda semana da sua primeira caçç
ada. Ficou parado ouvindo, comada. Ficou parado ouvindo, com o Sam Fathers, de encontro a um enorme carvalho, ao lado do cruzamento que vigiava jo Sam Fathers, de encontro a um enorme carvalho, ao lado do cruzamento que vigiava j
áá
por nove por nove manhmanh
ãã
s. Ouvira-os js. Ouvira-os jáá
uma vez antes disso, numa das manh uma vez antes disso, numa das manhãã
s da semana anterior. Ouvira ums da semana anterior. Ouvira um murmmurm
úú
rio rio que que ececoavoava a pelpelos os bosbosqueques s molmolhadhados, os, crecrescescendo ndo em em vozvozes es seseparparadaadas, s, posposssí í
veiveis s dede reconhecer e chamar pelo nome. Levantou a arma com o dedo no cde novo ficou im
ó
vel, enquanto o alarido, a corrida invisí
vel, se aproximava, passava, morria ao longe. Quase lhe parecia ver o veado macho, fulvo, cor de fumo, retesado pela velocidade, voando, desaparecendo, os bosques, a solidã
o cinzenta ainda a vibrar mesmo depois da algazarra dos cã
es ter desaparecido.– Agora solte o c
ã
o – disse Sam.– Voc
ê
já
sabia que eles nã
o vinham pra´qui.– Sabia. Quero que aprenda o que deve fazer quando n
ã
o disparar.É
depois que se perde a oportunidade de atirar que acontecem desastres aos homens e aos cã
es. Seja como for – disse depois – nã
o passava de um veado.E agora, na d
é
cima manhã
, ouviu outra vez os cã
es. Aprontou a espingarda comprida e pesada – como Sam ensinara – ainda antes que oí
ndio desse ordem. Mas desta vez nã
o havia veado, nem coro de cã
es a correr sobre um rastro fá
cil. Era um latir fatigante, uma oitava acima, com qualquer coisa de indeciso e até
de abjeto; que parecia nã
o se mover e levava tempo enorme para ficar longe do alcance do ouvido. E que entã
o deixava no ar um eco agudo, levemente histé
rico, quase lamentoso, humano. Aquilo nã
o podia ser a perseguiçã
o a qualquer animal fugitivo, cor de fumo, herbí
voro. E o Sam, que lhe ensinara a armar a espingarda antes de mais nada, a tomar posiçã
o de onde pudesse ver tudo e depois nã
o se mexer nem bulir na espingarda, viera para o lado dele. O rapaz ouvia oí
ndio respirando sobre o seu ombro e via a curva arqueada das narinas do velho.– Ah – disse Sam – nem se d
á
ao trabalho de correr. Vem andando.–
É
o velho Ben – a voz do rapaz estava excitada. – Mas tã
o aqui em cima?– Faz isso todos os anos – disse o
í
ndio. – Uma vez. Provavelmente para ver quem veio este ano, seé
gente que sabe atirar ou nã
o. Para ver se já
temos o cã
o capaz de acossá
-lo e meter-lhe os dentes. Vai levar os cã
es todos ao rio e depois mandá
-los para trá
s.O menino ficou ouvindo. Sam disse vamos voltar e depois disse, mais para si pr
ó
prio: – Vai ver o aspecto deles, quando chegarem de volta ao acampamento.Quando chegaram ao acampamento os c
ã
es já
estavam lá
, dez deles, encolhidos atrá
s da cozinha. O rapaz e oí
ndio acocoraram-se para espreitar na escuridã
o onde estavam amontoados, silenciosos, de olhos reluzentes que acendiam e apagavam. E nem umú
nico som. Só
aquele pressentimento de qualquer coisa mais forte do que um cã
o e nã
o apenas um animal ou fera. Nada houvera diante daquele latir abjeto e quase doloroso senã
o a solidã
o selvagem.E quando o und
é
cimo cã
o chegou, ao meio-dia, todos olharam, até
o velho tio Ash – que se dizia cozinheiro antes de mais nada. E Sam tratou-o com terebentina e massa de untar os eixos, passando mã
os cheias na orelha em tiras e na espá
dua. E para o rapaz, o autor de tudo aquilo continuou a ser a solidã
o selvagem que castigara com uma pancada leve a temeridade do cã
o. Aquilo nã
o parecia obra de uma criatura viva, mortal.– Tal e qual um homem – disse Sam. – Tal e qual. Foi demorando, demorando o mais poss
í
vel, adiando a ocasiã
o de ter coragem, sabendo perfeitamente que mais tarde ou mais cedo teria de ganhar coragem para poder continuar merecendo o nome de cã
o; e sabendo antecipadamente o que lhe aconteceria, quando a coragem chegasse.Nessa tarde, montado na mula caolha do carro
çã
o, que nã
o se importava com o cheiro de sangue (nem, como lhe contaram, com o dos ursos), e com Sam ao lado montado na outra, cavalgaram durante mais de trê
s horas naquele dia de inverno. Nã
o seguiram nenhuma senda, nenhum atalhoque ele percebesse. Em pouco tempo estavam num lugar desconhecido para eles. Ent
ã
o, compreendeu porqueé
que Sam lhe dera a mula menos espantadiç
a. A outra parou, tentou voltar a fugir. Mesmo quando oí
ndio desceu e agarrou as ré
deas, bem curto, ela continuou bufando, puxando, querendo voltar. Sam incitava a mula a correr, gritando com ela, porque nã
o queria arriscar amarrá
-la. Finalmente, ela avanç
ou, bufando sempre. O rapaz nã
o teve dificuldade com a sua, mas també
m desceu e segurou as ré
deas, curto.De p
é
, ao lado de Sam, no escuro da tarde que morria, olhos no tronco apodrecido e virado, estripado e riscado de marcas de garras, o rapaz viu na terra molhada, ao lado, a pegada da enorme pata de dois dedos, torta. Agora sabia que cheiro sentira quando fora olhar os cã
es encolhidos debaixo da cozinha. Pela primeira vez compreendeu que o urso que via antes, que aparecia nos seus sonhos desde que se conhecia como gente e que devia ter existido antes nos sonhos do pai, do Major e até
do velho General Compson, que esse urso era um animal mortal. E que – pensou – se eles tinham partido todos os anos no mê
s de novembro para a caç
ada sem esperanç
as de voltar com o trofé
u, nã
o era porque este nã
o pudesse ser abatido, mas porque até
aqui eles nã
o tiveram ainda verdadeiras esperanç
as de caçá
-lo.– Amanh
ã
– disse ele.– Tentaremos amanh
ã
– emendou Sam. – Mas ainda nã
o temos cã
o. – Temos onze. Contamos esta manhã
.S
ó é
preciso um. Mas nã
o está
aqui. Talvez nã
o esteja em parte alguma. Aú
nica maneiraé
ele dar de cara, por acidente, com algué
m que esteja armado.– N
ã
o seria comigo. Seria o Walter, ou o Major, ou…– Podia ser – disse o
í
ndio. – Amanhã
tenha muito cuidado. Porque eleé
matreiro.É
por isso que ainda nã
o morreu. Se estiver cercado e tiver de escolher algué
m a quem atacar, escolherá
você
. – Por quê
? – perguntou o rapaz.– Como
é
que ele vai saber… Você
quer dizer que ele já
me conhece, sabe queé
a primeira vez que venho, que ainda nã
o tive tempo de… – parou novamente e olhou para Sam bem nos olhos. O rosto do velho nada revelava, a nã
o ser quando sorria. Depois disse humildemente, sem espanto algum: – Foi a mim que ele veio observar. E nã
o foi preciso vir aqui mais de uma vez, nã
oé
?Na madrugada seguinte sa
í
ram do acampamento trê
s horas antes de amanhecer o dia. Desta vez foram montados, porque era muito longe para ir a pé
. Até
os cã
es foram na carripana. Mais uma vez o nascer do dia cinzento o surpreendeu em um lugar que nunca vira antes. Sam indicou o lugar onde devia ficar, e depois o deixou. Com a espingarda na mã
o – a espingarda que era grande demais para ele porque nã
o era dele e sim do Major, e que apenas disparara uma vez, num cepo, no primeiro dia, para conhecer o coice e aprender a carregá
-la – encostou-se a umaá
rvore-de-borracha, ao lado de um riacho cujaá
gua negra e tranquila escorria sem ruí
do atravé
s de um canavial, atravessava uma aberta e se metia outra vez entre as canas onde, invisí
vel, um pá
ssaro (o enorme pica-pau que os negros chamam senhor-pra-deus) matraqueava num tronco morto.Era um posto como qualquer outro, apenas incidentalmente diferente do que ocupara todas as manh
ã
s durante dez dias. Um territó
rio novo para ele e, no entanto, tã
o estranho quanto esse outro que, ao fim de duas semanas começ
ara a acreditar que conhecia ligeiramente. O mesmo isolamento, a mesma solidã
o que seres humanos apenas atravessaram sem alterar, sem deixar marcas, nem cicatrizes, que se mantinha exatamente como a devia ter encontrado no primeiros dos antepassadospunho. Diferente apenas porque, acocorado ao p
é
da cozinha, sentira o cheiro dos cã
es encolhidos e acovardados diante dela. E porque vira em tiras a espá
dua e a orelha do que fora obrigado a ter coragem para merecer (segundo Sam) o nome de cã
o. E porque, na vé
spera, vira na terraú
mida ao lado do tronco riscado, a marca da pata.N
ã
o ouviu os cã
es. Nã
o chegou a ouvir o latido deles. Ouviu apenas o matraquear do pica-pau parar de repente. E soube que o urso estava olhando para ele. Nã
o chegou a vê
-lo. Nã
o podia saber se ele estavaà
sua frente ou nas costas. Nã
o se mexeu. Nas mã
os a inú
til espingarda, que nem sequer armara e que agora nã
o valia a pena armar, sentindo na saliva aquele travo metá
lico que conhecia agora porque sentira o cheiro do urso quando espreitara os cã
es encolhidos debaixo da cozinha. Depois, foi-se embora. Tã
o repentinamente como se interrompera, o martelar seco e monó
tono do pica-pau recomeç
ou. E depois de algum tempo o rapaz pensou que ouvia os cã
es, mas só
pensou, sem ouvir. Vinha da floresta um murmú
rio, quase que nenhum ruí
do, mas de repente aquele ruí
do encheu a floresta até
o alcance do ouvido do rapaz e de novo se afastou, morrendo ao longe.N
ã
o se aproximaram dele. Se era um urso o que perseguiam, seria outro urso.Sam saiu do canavial e atravessou o riacho, seguido pelo c
ã
o ferido na vé
spera. O bicho vinha sem fazer barulho, quase rastejando, como um perdigueiro. Veio e agachou-se juntoà
perna de Sam, tremendo, os olhos bem abertos para o canavial.– N
ã
o o vi. – disse o rapaz; e repetiu – nã
o o vi, Sam.Sua voz n
ã
o tremia, mas havia um tom estranho, emocionado. Sam respondeu, calmo:– Eu sei. Quem veio aqui foi ele mesmo. E voc
ê
nem pode dizer de que lado ele veio, nã
oé
? – Nã
o, eu…– Ele
é
matreiro – explicou Sam – matreiro demais.Olhou para o c
ã
o, que tremia fraca e continuamente junto ao joelho do rapaz. Da espá
dua retalhada escorriam algumas gotas de sangue fresco. Tornou a falar:–
É
grande demais. Ainda nã
o temos cã
o para ele. Talvez um dia, e nã
o acredito que seja ainda na pró
xima primavera. Mas um dia…Ent
ã
o, tenho de ver esse bicho, tenho de vê
-lo, pensou o rapaz.Se, pelo menos, visse o urso… Porque se n
ã
o visse, parecia a ele que aquilo continuaria sempre como continuara com o pai e o Major (que era mais velho do que o pai), e até
com o velho General Compson (que em 1865 já
tinha idade suficiente para comandar uma brigada). Se nã
o o visse agora, aquilo continuaria sempre da mesma maneira, na pró
xima vez e na seguinte, e depois, e depois, e depois. Nã
o queria admitir ele pró
prio e o urso mergulhados no limbo de onde emergia o tempo, tornando-se eles pró
prios tempo: o velho urso, absolvido da mortalidade, e ele, partilhando um pouco, bastante, dessa absolviçã
o. E agora sabia qual era aquele cheiro dos cã
es encolhidos e aquele travo na saliva. Reconhecia o medo. Tenho de ver esse bicho, tenho de ver, pensou de novo. Sem medo mas sem muita esperanç
a.Foi em julho do ano seguinte. Tinha onze anos. Estavam outra vez no acampamento, festejando os anivers
á
rios do Major e do General Compson. Embora o primeiro tivesse nascido em setembro e o outro pertinho do inverno e dez anos depois, encontravam-se sempre durante duas semanas para pescar, atirar aos esquilos e ao peru selvagem e perseguir com os cã
es,à
noite, os texugos e os gatos bravos. Istoé
: o rapaz, mais Boon Hogganbeck e os negrosé
que faziam isso; nã
o só
o Major e oGeneral (que passavam as duas semanas sentados numa cadeira de balan
ç
o, diante de uma enorme panela de ferro, mexendo e provando e discutindo com o velho Ash a melhor maneira de fazer a panelada, e vendo o Jim da Tennie passando aguardente do garrafã
o para a caneca de lata e da caneca de lata para o estô
mago), mas até
o pai e o Walter Ewell, que ainda eram bastante moç
os, desdenhavam esses passatempos e apenas atiravam aos perus selvagens para fazer apostas de pontaria.Ou, pelo menos, o pai e os outros julgavam que ele ia
à
caç
a dos esquilos. Até
o terceiro dia pensou que o Sam Fathers també
m o julgava. Saí
a do acampamento todas as manhã
s logo depois do almoç
o, agora, com a sua pró
pria espingarda, presente de Natal. Voltouà á
rvore da beira do riacho, onde estivera naquela manhã
. Olhando a bú
ssola que o velho General Compson lhe dera, partiu deste ponto, em cí
rculos. Sem saber, estava aprendendo a ser um batedor melhor do que o vulgar. No segundo dia encontrou até
o tronco gadanhado onde vira pela primeira vez a pegada torta. A madeira estava agora quase completamente desfeita. E voltara com inacreditá
vel rapidez e um abandono apaixonado e quase visí
vel para a terra que dera origemà á
rvore.Percorria agora os bosques de ver
ã
o, verdes e frondosos (se havia diferenç
a era por causa da obscuridade maior do que a nebulosidade cinzenta de novembro). O sol, mesmo quando estava a pino, apenas salpicava a terra aqui e ali, que nunca secava por completo e por isso vivia coberta de serpentes: cobras-d´á
gua, mocassins, cascavé
is, todas da cor da sombra malhada e que portanto ele nem sempre via, a nã
o ser quando se moviam, se se moviam. E cada vez ele voltou mais tarde. No terceiro dia, ao passar ao crepú
sculo pela pequena estacaria que cercava o está
bulo de madeira onde Sam dava guarda aos cavalos, preparando-os para a noite, oí
ndio disse:– Ainda n
ã
o procurou como deve ser.Parou. Durante um momento n
ã
o respondeu. Depois, calmamente, cedendo pacificamente como aquelas represas em miniatura que as crianç
as fazem nos riachos, disse:– Fui at
é
aá
rvore. Cheguei a encontrar outra vez aquele tronco. Eu…– Acho que fez bem. Se calhar, ele tem at
é
andado a espiá
-lo. Nã
o viu a pegada dele? – Nã
o – confessou o rapaz – nã
o vi. Nã
o pensei…–
É
a arma – explicou Sam.Parou ao lado da sebe; im
ó
vel, o velho, oí
ndio de ganga desbotada e puí
da e com o chapé
u de palha de cinco cê
ntimos que fora a marca da escravidã
o da raç
a negra e agora era a insí
gnia de sua liberdade, estava olhando firme. O acampamento, o terreno desbravado, a casa, o barracã
o, e o seu pequeno equipamento com que o Major esgravatava de leve a solidã
o selvagem, tudo se dissolvia no crepú
sculo, voltandoà
escuridã
o imemorial da floresta.A arma, a arma – pensou o rapaz.
– Assuste-se – disse o
í
ndio. – Isso nã
o se pode evitar. Mas nã
o tenha medo. Nã
o há
bicho nenhum na floresta que nos possa fazer mal, desde que nã
o esteja cercado ou que nã
o fareje que estamos com medo. Um urso ou um veado, tal qual como um homem corajoso, precisam do medo dos covardes.A arma, a arma – pensou o rapaz. – Voc
ê
tem de escolher – disse Sam.Deixou o acampamento antes de nascer o dia, muito antes de tio Ash acordar nos seus cobertores do ch
ã
o da cozinha e acender o fogo para fazer o almoç
o. Levou só
a bú
ssola e a vara para as serpentes. Sabia o caminho até
um quilô
metro antes de precisar da bú
ssola. Sentou-se num cepo,com a invis
í
vel bú
ssola na mã
o (també
m ainda invisí
vel), enquanto os ruí
dos secretos da noite – interrompidos com os seus movimentos – de novo se esgueiravam e se interrompiam de vez. E os mochos se calaram para dar lugar ao despertar dos pá
ssaros da manhã
. Ah, já
vi a bú
ssola. Continuou rá
pida e silenciosamente a caminhada. Conhecia cada vez melhor a floresta, mas nã
o tinha consciê
ncia disso.Ao nascer, o sol levantou um veado e a f
ê
mea, fazendo-os sair da cama. Ficaram a uma distâ
ncia curta, e ele viu bem até
o reflexo nos olhos deles, e ouviu o barulho que os rabinhos brancos faziam batendo no mato. Depois viu a fê
mea saltar e o veado saltar atrá
s dela mais velozmente do que julgara possí
vel. Batia a floresta na direçã
o devida, contra o vento, como Sam ensinara. Nã
o era que isto agora tivesse alguma importâ
ncia. Abandonara a espingarda. De sua pró
pria vontade e resoluçã
o nã
o aceitaria compromissos, escolhas, mas sim uma condiçã
o em que tinham sido anulados nã
o só
o até
agora inviolá
vel anonimato do urso como todas as antigas regras e vantagens do caç
ador e da presa.N
ã
o teria medo, nem mesmo no momento em que o terror o tomasse por completo, sangue, pele, entranhas, ossos, memó
ria da eternidade antes de se tornar memó
ria sua – tudo, menos a lucidez aguda, clara, imortal, que o distinguia daquele urso e de todos os outros ursos e veados que havia de matar com a humildade e o orgulho da sua perí
cia e resistê
ncia. A lucidez a que Sam se dirigira quando se encostaraà
estacaria, na vé
spera,à
boca da noite.Ao meio-dia ultrapassara de muito o pequeno riacho. Nunca penetrara at
é
tã
o longe na regiã
o nova e desconhecida. Já
nã
o caminhava só
pelo velho reló
gio de prata, pesado, volumoso, que pertencera ao avô
. Quando finalmente parou, foi a primeira vez que o fez depois de se ter levantado, de madrugada, do tronco em que estivera sentado quando consultara a bú
ssola. Estava bastante longe. Saí
ra do acampamento fazia nove horas. Dali a nove horas a noite teria caí
do há
uma hora. Mas nã
o pensava nisso. Pensou: “Bom; está
bem; mas entã
o?” E parou durante um momento, parecendo estranho e minú
sculo no meio da solidã
o verde e sobranceira, respondendoà
pró
pria pergunta antes de ela se ter formulado e terminado. Era o reló
gio, a bú
ssola, a vara – os trê
s aparelhos inanimados que durante nove horas ele usara contra a solidã
o selvagem. Pendurou cuidadosamente o reló
gio e a bú
ssola num arbusto, encostou o pau ao lado deles e entregou-se completamente a ela.Durante as
ú
ltimas duas ou trê
s horas nã
o caminhara muito depressa. Nã
o andava mais depressa agora, já
que a distâ
ncia nã
o tinha importâ
ncia. E estava tentando nã
o perder o rumo daá
rvore em que deixara a bú
ssola, procurando descrever um cí
rculo que o fizesse voltar a ela ou, pelo menos, se interceptasse a si pró
prio, já
que a direçã
o nã
o tinha importâ
ncia agora. Mas nã
o encontrou aá
rvore, e fez o que Sam lhe ensinara: descreveu novo cí
rculo na direçã
o oposta, para que os dois percursos se interceptassem mais longe. No entanto, nã
o cruzou as suas pró
prias pegadas e acabou encontrando aá
rvore mas num lugar errado, sem o arbusto, a bú
ssola, o reló
gio; e nem aá
rvore era a mesma, porque ao lado dela havia um cepo baixo. Fez o que Sam Fathers lhe ensinara a fazer em seguida e emú
ltimo lugar.Ao sentar-se no cepo viu a pegada torta, o medonho corte aleijado que se enchia de
á
gua, mesmo diante dos seus olhos. Quando olhou para cima a solidã
o uniu-se, solidificou-se, e a clareira, aá
rvore procurada, o arbusto, o reló
gio, a bú
ssola, refulgiam batidos por um raio de sol. E viu entã
o o urso.N
ã
o apareceu de parte alguma: estava ali, simplesmente imó
vel, só
lido, firmado nas manchas quentes da tarde verde e sem brisa, nã
o tã
o grande como o sonhara, mas tã
o grande como esperava, desmedido, recortado na obscuridade pintalgada, olhando para o rapaz que, sentado no cepo, lhe devolvia o olhar.instantinho sob a luz crua do sol. Quando chegou ao outro lado parou outra vez e olhou-o por cima do ombro, enquanto o rapaz, no seu respirar tranquilo, inspirou e expirou tr
ê
s vezes.E desapareceu.
N
ã
o caminhou para a floresta, para o mato. Desvaneceu-se, voltou a dissolver-se na solidã
o, como um peixinho que o rapaz vira um dia afundar-se e desaparecer na fundura negra da lagoa sem umú
nico movimento das barbatanas.Ser
á
no pró
ximo outono – pensou.Mas n
ã
o foi no pró
ximo outono, nem no seguinte, nem no outro. Tinha entã
o 14 anos. Matara o seu primeiro veado e Sam Fathers marcara-lhe a cara com o sangue; e no ano seguinte matou um urso. Mas já
antes disso tornara-se tã
o competente na floresta como muitos adultos que tem experiê
ncia. Num raio de 50 quilô
metros, a partir do acampamento, nã
o havia territó
rio que nã
o conhecesse, riacho, outeiro,á
rvore ou atalho. Era capaz de conduzir qualquer pessoa a qualquer ponto sem hesitaçã
o, e trazê
-la de volta. Conhecia pistas de caç
a que nem mesmo Sam Fathers conhecia. Aos 13 anos descobrira a cama de um veado,à
s escondidas do pai pediu a carabina a Walter Ewell, deitou-seà
espera de o sol raiar e matou o veado quando ele voltavaà
cama, pois Sam lhe contara como faziam os velhosí
ndios Chicksaw.Mas n
ã
o o urso velho. Embora agora já
lhe conhecesse melhor as pegadas do que as suas pró
prias, e nã
o só
a pegada da pata aleijada. Quando via uma das outras trê
s era capaz de reconhecê
-la imediatamente. Nã
o só
pelo tamanho – havia outros ursos dentro desses 50 quilô
metros, capazes de deixar marcas tã
o grandes – era mais do que isso.Se Sam Fathers fora o seu aio e os coelhos e esquilos do quintal da casa o seu jardim de inf
â
ncia, entã
o a solidã
o selvagem percorrida pelo velho urso era para ele o colé
gio e o pró
prio urso velho, há
tanto tempo viú
vo e sem filhos que se tornara o ingê
nito pai dele pró
prio, a sua universidade. Mas nunca mais vira o urso.Sabia agora encontrar a pegada torta quase sempre que bem entendesse, a vinte, quinze ou dez quil
ô
metros, e por vezes nesses trê
s anos, enquanto esperava, ouvira os cã
es na pista do urso, por acaso. Na segunda vez pareceram seguir a pista, ladrando alto, abjetamente, quase humanos de histerismo, como naquela primeira manhã
de dois anos atrá
s. Mas nunca o urso. Lembrava-se daquela tarde de trê
s anos atrá
s, a clareira, ele, o urso, imó
veis na terra pintalgada e quieta; e parecia-lhe que aquilo nunca acontecera, que també
m aquilo fora sonho. Mas tinha acontecido. Tinham-se olhado, emergidos daquela solidã
o velha como a terra, sincronizados naquele instante por qualquer coisa mais forte do que a carne e os ossos que os envolviam. E tinham tocado, afianç
ado e afirmado qualquer coisa mais duradoura do que a frá
gil teia de ossos e carne que um breve acidente podia destruir.At
é
que tornou a vê
-lo.Precisamente pelo fato de n
ã
o pensar noutra coisa, já
se esquecera de procurar por ele. Andava ainda com a carabina de Walter Ewell: viu o urso atravessar o fundo de um comprido tú
nel, corredor que um tornado varrera, atravessando mais por entre a rede de troncos e ramos do que correndo sobre eles, como faria uma locomotiva, correndo com uma rapidez de que nunca o julgara capaz, quase tã
o depressa como um gamo, porque um gamo passaria a maior parte daquele tempo no ar; mais rá
pido do que faz uma pessoa para acertar as miras da carabina. E compreendeu entã
o qual fora o seu erro durante aqueles trê
s anos. Sentou-se num cepo, vacilante e trê
mulo, como senunca tivesse visto a floresta, nem o que havia dentro dela, perguntando a si mesmo, com um espanto incr
é
dulo, como pudera ter esquecido o que o velhoí
ndio lhe dissera e o urso confirmara no dia seguinte e voltara a reafirmar agora, depois de passados trê
s anos.Agora sim, compreendia o que lhe disseram Sam Fathers a respeito do c
ã
o necessá
rio, de um cã
o em que a importâ
ncia nã
o estava no tamanho. E quando sozinho em abril (nã
o havia escola nessa altura: os filhos dos lavradores trabalhavam no cultivo da terra e o pai dera-lhe, finalmente, licenç
a, com a condiçã
o de voltar em quatro dias), quando voltou, tinha o cã
o. Era dele o animal, um rafeiro da espé
cie que os negros chamavam fyce, caç
ador de ratos, ele pró
prio nã
o muito maior do que um rato e possuidor daquela valentia que há
muito tempo deixara de ser coragem para ser temeridade. Nã
o precisou de quatro dias. De novo sozinho encontrou a pista, na primeira manhã
. Nã
o era uma cilada; antes uma emboscada. Contou o tempo do encontro quase como se se tratasse de um compromisso com um ser humano. Na madrugada seguinte foramà
pista, contra o vento; ele agarrando no rafeiro amordaç
ado com uma saca e o Sam Fathers com dois cã
es amarrados por um bocado de corda. Chegaram tã
o perto dele que o urso voltou sem correr – como se estivesse surpreendido pelo alarido agudo e frené
tico do rafeiro solto – voltando-se em defensiva, encostado ao tronco de umaá
rvore, plantado sobre as patas traseiras. O rapaz pensou que ele nunca mais acabaria de se erguer, de tã
o alto. E até
os dois cã
es pareceram ganhar uma coragem desesperada ao acompanharem o rafeiro que ia na corrida.S
ó
aí
o rapaz compreendeu que o cã
o nã
o ia parar. Saltou, atirou fora a arma e correu. Quando alcanç
ou e agarrou o rafeiro, que rodopiava freneticamente tentando escapar, pareceu-lhe que estava debaixo dos pé
s do urso. Sentia o cheiro muito forte, quente, espesso, do urso. Agachado, levantou os olhos para o vulto que se elevava sobre ele, alto, forte e pesado como uma carga de chuva e escuro como uma trovoada, familiar, tranquila e até
lucidamente familiar; até
que se lembrou: fora assim que sempre sonhara com ele.Depois, desapareceu. N
ã
o o viu desaparecer. Ajoelhou-se agarrando com as mã
os o rafeiro frené
tico, ouvindo o vergonhoso latir dos cã
es a afastar-se ao longe. Até
que Sam veio para perto dele.– Esta
é
a segunda vez que o urso vê
você
com uma espingarda na mã
o. Desta vez nã
o podia ter falhado o tiro.O rapaz levantou-se, ainda agarrando o rafeiro. Mesmo nos seus bra
ç
os e longe do chã
o o animal gania furiosamente, aos puxõ
es e repelõ
es para seguir o alarido longí
nquo dos dois cã
es, como um feixe de molas de aç
o. O rapaz ofegava ligeiramente, mas desta vez nã
o vacilava nem tremia.– E n
ã
o disparaste – disse o pai, espantado. – A que distâ
ncia estavas?– N
ã
o sei, pai. Vi uma grande cicatriz na perna direta do bicho. Isso vi. Mas entã
o nã
o tinha a espingarda.– E quando tinhas a espingarda tamb
é
m nã
o fizeste fogo. Por quê
?Mas o rapaz n
ã
o respondeu. E o pai nã
o esperou que ele respondesse. Atravessou o quarto por cima da pele do urso que o filho matara há
dois anos e da pele do outro maior que ele pró
prio matara antes de o seu filho ter nascido; atravessou o quarto e foi em direçã
oà
estante que ficava por baixo da cabeç
a embalsamada do primeiro veado que o moç
o abatera. O pai chamava aquele quarto de escritó
rio e era ali que tratava todos os negó
cios da plantaçã
o. Fora ali que o rapaz, aos 14 anos de idade, ouvira as mais interessantes de todas as conversas. O Major ia lá
eà
s vezes o velho General Compson també
m; e Walter Ewell, Boon Hogganback, Sam Fathers e o Jim da Tennie, que eram caç
adores, conheciam os bosques e toda a caç
a que havia neles.O rapaz ouvia a conversa, sem falar nem um pouquinho, mas
à
escuta. E a conversa era a solidã
o selvagem, a enorme floresta, maior e mais velha do que qualquer documento dos brancos, convencidos vaidosamente de que tinham comprado parte dela, maior e mais velha do que qualquer documento dosí
ndios, inflexivelmente convencidos de que alguma vez tinham transmitido parte dela. Mas a floresta pertencia aos homens, nã
o brancos nem negros ou vermelhos, mas simplesmente aos homens, aos caç
adores com vontade e audá
cia para resistir e a humildade para sobreviver; e aos cã
es e aos ursos e aos veados justapostos e aliados contra ela, ordenados e impelidos pela solidã
o, na luta antiquí
ssima e inadiá
vel regida por antiquí
ssimas e inatingí
veis regras que anulavam o remorso e nã
o permitiam quartel. As vozes eram tranquilas, graves, deliberadas pela retrospecçã
o, pela recordaçã
o, pela lembranç
a exata, enquanto ele se acocorava ao pé
do fogo com o Jim da Tennie, que só
se metia para jogar mais lenha e passar a garrafa de uns copos para os outros. Porque a garrafa estava sempre presente: o passado um bocado parecia-lhe que aqueles duros instantes deâ
nimo, esperteza, coragem, astú
cia, rapidez, se concentravam naquele lí
quido escuro que as mulheres, os rapazes, as crianç
as nã
o bebiam, só
os caç
adores, bebendo nele o sangue derramado, mas uma condenaçã
o do espí
rito mortal e ardente, bebendo-o moderada, humildemente até
, nã
o com a baixa esperanç
a do pagã
o de obter as virtudes da astú
cia, da forç
a e da velocidade, mas em saudaçã
o a elas.O pai voltou com o livro, sentou-se de novo, come
ç
ou a abrir as pá
ginas.– Escuta. – disse ele. Leu alto as cinco est
â
ncias, com a sua voz calma e ponderada, enchendo o quarto em que nã
o havia fogo porque era primavera. Depois levantou os olhos. O rapaz observava. – Bem. – disse o pai – escuta.Tornou a ler, mas desta vez s
ó
a segunda estrofe, até
o fim, até
aos doisú
ltimos versos. E fechou o livro, colocando-o a seu lado, na mesa.– “Ela n
ã
o pode morrer, embora tu nã
o consigas ser feliz como pretendes; eternamente a amará
s e ela será
bela” – repetiu.– Ele fala de uma mo
ç
a – disse o rapaz.– De alguma coisa tinha de falar – respondeu o pai. E acrescentou: – Falava da verdade. A verdade
é
eterna. A verdadeé
só
uma. Abrange todas as coisas sobre a terra. A honra, o orgulho, a piedade, a justiç
a, a coragem, o amor. Compreendes agora?O rapaz n
ã
o sabia bem. Talvez tudo fosse mais simples do que aquilo. Havia um velho urso, duro e implacá
vel, nã
o apenas para continuar a viver, mas com o feroz orgulho da liberdade e da independê
ncia, suficientemente orgulhoso para nã
o sentir medo ou alarma ao vê
-las ameaç
adas. Mais: que “algumas vezes, parecia até
arriscar deliberadamente essa liberdade e independê
ncia para melhor saborear, para incitar os seus fortes e velhos ossos e a carne a manterem-seá
geis e capazes de as defender e conservar”.Havia um velho, filho de uma escrava negra e de um rei
í
ndio, herdeiro, por um lado, de um povo que aprendera a humildade no sofrimento e a dignidade nessa resistê
ncia que sobrevive ao sofrimento eà
injustiç
a; e, pelo outro lado, da histó
ria de outro povo, mais antigo sobre aquela terra do que o primeiro, mas que já
nã
o existia sobre ela senã
o na fraternidade solitá
ria do sangue estranho de um negro e do espí
rito selvagem e invencí
vel de um urso velho.Havia um rapaz que queria aprender a humildade e o orgulho para poder tornar-se destro e digno da floresta, mas que estava-se adestrando t
ã
o rapidamente que temia nã
o chegar nunca a tornar-se digno, por nã
o ter aprendido essa humildade e orgulho (embora tivesse tentado aprender), até
que um dia, de repente, descobriu que um velho incapaz de definir qualquer das duas coisas o levara pela mã
oà
quele ponto em que o urso velho e um cã
ozinho lhe haviam revelado que, possuindooutra, possuiria ambas.
E havia um c
ã
ozinho, anô
nimo, sem raç
a, filho de todos, adulto mas com menos de dois quilos e meio de peso, como que dizendo para si: “Nã
o posso ser perigoso, porque nada há
muito mais pequeno do que eu; nã
o posso mostrar fú
ria porque diriam queé
um ruí
do sem importâ
ncia; nã
o posso ser humilde porque já
estou demasiadamente pró
ximo do chã
o para poder ajoelhar; nã
o posso ser orgulhoso, porque estaria demasiadamente longe dele para ser possí
vel ver quem produzia a sombra; e nem sequer sei que nã
o vou para o cé
u, porque já
está
decidido que a minha alma nã
oé
imortal. Só
me resta, portanto, ter coragem. Mas está
bem. Terei coragem, mesmo que digam queé
um ruí
do sem importâ
ncia”.E pronto. Era simples, muito mais simples do que um homem, num livro, falar da juventude de uma mo
ç
a por quem nunca precisaria se afligir, porque nunca lhe seria possí
vel aproximar-se mais dela, ou necessá
rio afastar-se. Ouvira falar de um urso, acabara por ter idade para perseguir o urso e por fim, com uma espingarda nas mã
os, encontrara o velho urso e nã
o disparara.Porque um c
ã
ozinho… Mas podia ter disparado muito antes de o cã
ozinho ter corrido os trinta metros até
ao urso que esperava; e o Sam Fathers podia ter disparado em qualquer momento durante aquele interminá
vel instante em que o velho Ben estivera em cima deles, de pé
nas patas traseiras. Interrompeu-se. O pai observava-o gravemente atravé
s do maduro crepú
sculo primaveril do quarto. Quando falou, as palavras foram tã
o calmas como o crepú
sculo; nã
o muito altas, porque seriam duradouras.– Coragem, honra, dignidade – disse o pai – piedade, amor da justi
ç
a e da liberdade. Tudo isso toca o coraçã
o; e o que o coraçã
o aceita torna-se verdade até
ondeé
possí
vel conhecê
-la. Compreendes agora?O Sam, o velho Ben e o Nip, pensou o rapaz. E ele pr
ó
prio també
m tivera razã
o – o pai assim o dissera.– Sim, pai. – disse ele. ***