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"O Urso" de Faulkner

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Academic year: 2021

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(1)

O Urso – William Faulkner (1942) O Urso – William Faulkner (1942)

Tinha dez anos. Mas aquilo j

Tinha dez anos. Mas aquilo j

áá

 come come

çç

ara antes, muito antes do dia em que – afinal – escreveu aara antes, muito antes do dia em que – afinal – escreveu a idade com dois algarismos e viu pela primeira vez o campo de ca

idade com dois algarismos e viu pela primeira vez o campo de ca

çç

a onde seu pai, o Major Spain, oa onde seu pai, o Major Spain, o velho General Compson e os outros passavam duas semanas todo m

velho General Compson e os outros passavam duas semanas todo m

êê

s de s de novenovembro e outras duasmbro e outras duas todo m

todo m

êê

s de junho.s de junho. Ent

Ent

ãã

o, o, jj

áá

 herdara deles – sem nunca o ter visto sequer – o medonho urso da pata aleijada numa herdara deles – sem nunca o ter visto sequer – o medonho urso da pata aleijada numa armadilha. O urso que, numa

armadilha. O urso que, numa

áá

rea de quase cento e cinquenta quilrea de quase cento e cinquenta quil

ôô

metros de circunfermetros de circunfer

êê

ncia,ncia, ganhara direito a um nome, a um tratamento, como um homem.

ganhara direito a um nome, a um tratamento, como um homem. H

H

áá

 muitos anos que ele ouvia a hist muitos anos que ele ouvia a hist

óó

ria, a lenda dos celeiros roubados, de leitria, a lenda dos celeiros roubados, de leit

õõ

es e cevados, dees e cevados, de vitelos levados inteiros para a floresta e devorados; de armadilhas e fossos desfeitos e c vitelos levados inteiros para a floresta e devorados; de armadilhas e fossos desfeitos e c

ãã

eses mutilados ou mortos; de

mutilados ou mortos; de chumbadas de cachumbadas de ca

çç

adeiras e atadeiras e at

éé

 de carabinas atiradas quase de carabinas atiradas quase

àà

 queima-roupa queima-roupa com menos resultado do que se fosse um punhado de ervilhas atirado por uma crian

com menos resultado do que se fosse um punhado de ervilhas atirado por uma crian

çç

a. Hista. Hist

óó

rias derias de um corredor de ru

um corredor de ru

í í 

na e destruina e destrui

çã

çã

o, que comeo, que come

çç

ava antes do seu nascimento e atravava antes do seu nascimento e atrav

éé

s do qual corria,s do qual corria, n

n

ãã

o muito depressa mas com a deliberao muito depressa mas com a delibera

çã

çã

o implaco implac

áá

vel e irresistvel e irresist

í í 

vel de uma locomotiva, o vultovel de uma locomotiva, o vulto hirsuto e medonho. O urso.

hirsuto e medonho. O urso.

JJ

áá

 antes de ver o urso ele lhe surgia tal como era, especialmente nos sonhos. Muito antes de ter antes de ver o urso ele lhe surgia tal como era, especialmente nos sonhos. Muito antes de ter sequer avistado os bosques onde o animal deixava a sua pegada torta, era capaz de descrev sequer avistado os bosques onde o animal deixava a sua pegada torta, era capaz de descrev

êê

-lo,-lo, felpudo, enorme, de olhos vermelhos, antes grande do que maldoso, grande demais para os c

felpudo, enorme, de olhos vermelhos, antes grande do que maldoso, grande demais para os c

ãã

es quees que tentavam acoss

tentavam acoss

áá

-lo, para os cavalos que tentavam derrub-lo, para os cavalos que tentavam derrub

áá

-lo, para os homens e as balas que o-lo, para os homens e as balas que o perseguiam, grande demais para a pr

perseguiam, grande demais para a pr

óó

pria regipria regi

ãã

o a que estava limitado. Parecia vo a que estava limitado. Parecia v

êê

-lo inteiro, muito-lo inteiro, muito antes de ter visto a solid

antes de ter visto a solid

ãã

o selvagem e condenada, de orlas o selvagem e condenada, de orlas constantemente e covardemente cortadasconstantemente e covardemente cortadas e ro

e ro

í í 

das por homens com machados e arados, que tinham medo dela por ser selvagem, homens quedas por homens com machados e arados, que tinham medo dela por ser selvagem, homens que sem conta e sem nome uns para os outros na regi

sem conta e sem nome uns para os outros na regi

ãã

o onde o pro onde o pr

óó

prio urso ganhara um nome. Viu-o,prio urso ganhara um nome. Viu-o, mesmo, muito antes de imaginar a regi

mesmo, muito antes de imaginar a regi

ãã

o atravo atrav

éé

s da qual corria ns da qual corria n

ãã

o o ss

óó

 um animal mortal mas um um animal mortal mas um sabe Deus o qu

sabe Deus o qu

êê

, indom, indom

áá

vel e invencvel e invenc

í í 

vel, vindo de um tempo jvel, vindo de um tempo j

áá

 morto; um fantasma, ep morto; um fantasma, ep

í í 

tome etome e apoteose daquela vida selvagem que o enxame de homens covardes lacerava numa f 

apoteose daquela vida selvagem que o enxame de homens covardes lacerava numa f 

úú

ria deria de

óó

dio edio e de terror, como pigmeus em torno das patas de um elefante sonolento, e sobre o velho urso solit de terror, como pigmeus em torno das patas de um elefante sonolento, e sobre o velho urso solit

áá

rio,rio, indom

indom

áá

vel e svel e s

óó

, vi, vi

úú

vo sem filhos e svo sem filhos e s

óó

, absolvido da mortalidade e s, absolvido da mortalidade e s

óó

..

At

At

éé

 os dez anos de  os dez anos de idade, quando chegava o midade, quando chegava o m

êê

s de novembro, o rapaz via o carros de novembro, o rapaz via o carro

çã

çã

o com os co com os c

ãã

es,es, as camas, a comida, as armas, o pai, o negro Jim da Tennie e o

as camas, a comida, as armas, o pai, o negro Jim da Tennie e o

í í 

ndio Sam Fathers (filho de umandio Sam Fathers (filho de uma escrava e de um chefe de

escrava e de um chefe de

í í 

ndios Chicksaw), todos partindo pela estrada para a vila, para Jefferson,ndios Chicksaw), todos partindo pela estrada para a vila, para Jefferson, onde o Major e os outros se

onde o Major e os outros se reuniam. No entender do rapaz, aos sete, oito e nove anos, eles nreuniam. No entender do rapaz, aos sete, oito e nove anos, eles n

ãã

o iamo iam ao Vale Fundo para ca

ao Vale Fundo para ca

çç

ar ursos ou veados. Iam para ter um encontro com o urso, que nem sequerar ursos ou veados. Iam para ter um encontro com o urso, que nem sequer pensavam em matar. Tanto

pensavam em matar. Tanto

éé

 que voltavam ap que voltavam ap

óó

s duas semanas de cas duas semanas de ca

çç

a, sem trof a, sem trof 

éé

us, sem peles nemus, sem peles nem cabe

cabe

çç

as. Nem ele esperava por elas. Nem temia que o carroas. Nem ele esperava por elas. Nem temia que o carro

çã

çã

o trouxesse alguma coisa. Acreditavao trouxesse alguma coisa. Acreditava que quando fizesse dez anos e o pai o levasse tamb

que quando fizesse dez anos e o pai o levasse tamb

éé

mm

àà

 ca ca

çç

a nas duas semanas de novembro, elea nas duas semanas de novembro, ele seria apenas um dos participantes, com o pai, o Major e o General Compson, com os outros, com os seria apenas um dos participantes, com o pai, o Major e o General Compson, com os outros, com os cc

ãã

es que tinham medo de o acossar e as caes que tinham medo de o acossar e as ca

çç

adeiras que nem sangue lhe faziam: seria mais um noadeiras que nem sangue lhe faziam: seria mais um no cortejo anual de

cortejo anual de homenagemhomenagem

àà

 imortalidade do velho urso. imortalidade do velho urso. At

At

éé

 que ouviu os c que ouviu os c

ãã

es. Foi na segunda semana da sua primeira caes. Foi na segunda semana da sua primeira ca

çç

ada. Ficou parado ouvindo, comada. Ficou parado ouvindo, com o Sam Fathers, de encontro a um enorme carvalho, ao lado do cruzamento que vigiava j

o Sam Fathers, de encontro a um enorme carvalho, ao lado do cruzamento que vigiava j

áá

 por nove por nove manh

manh

ãã

s. Ouvira-os js. Ouvira-os j

áá

  uma vez antes disso, numa das manh  uma vez antes disso, numa das manh

ãã

s da semana anterior. Ouvira ums da semana anterior. Ouvira um murm

murm

úú

rio rio que que ececoavoava a pelpelos os bosbosqueques s molmolhadhados, os, crecrescescendo ndo em em vozvozes es seseparparadaadas, s, posposss

í í 

veiveis s dede reconhecer e chamar pelo nome. Levantou a arma com o dedo no c

(2)

de novo ficou im

ó

vel, enquanto o alarido, a corrida invis

í 

vel, se aproximava, passava, morria ao longe. Quase lhe parecia ver o veado macho, fulvo, cor de fumo, retesado pela velocidade, voando, desaparecendo, os bosques, a solid

ã

o cinzenta ainda a vibrar mesmo depois da algazarra dos c

ã

es ter desaparecido.

– Agora solte o c

ã

o – disse Sam.

– Voc

ê

 j

á

 sabia que eles n

ã

o vinham pra´qui.

– Sabia. Quero que aprenda o que deve fazer quando n

ã

o disparar.

É

  depois que se perde a oportunidade de atirar que acontecem desastres aos homens e aos c

ã

es. Seja como for – disse depois – n

ã

o passava de um veado.

E agora, na d

é

cima manh

ã

, ouviu outra vez os c

ã

es. Aprontou a espingarda comprida e pesada – como Sam ensinara – ainda antes que o

í 

ndio desse ordem. Mas desta vez n

ã

o havia veado, nem coro de c

ã

es a correr sobre um rastro f 

á

cil. Era um latir fatigante, uma oitava acima, com qualquer coisa de indeciso e at

é

 de abjeto; que parecia n

ã

o se mover e levava tempo enorme para ficar longe do alcance do ouvido. E que ent

ã

o deixava no ar um eco agudo, levemente hist

é

rico, quase lamentoso, humano. Aquilo n

ã

o podia ser a persegui

çã

o a qualquer animal fugitivo, cor de fumo, herb

í 

voro. E o Sam, que lhe ensinara a armar a espingarda antes de mais nada, a tomar posi

çã

o de onde pudesse ver tudo e depois n

ã

o se mexer nem bulir na espingarda, viera para o lado dele. O rapaz ouvia o

í 

ndio respirando sobre o seu ombro e via a curva arqueada das narinas do velho.

– Ah – disse Sam – nem se d

á

 ao trabalho de correr. Vem andando.

É

 o velho Ben – a voz do rapaz estava excitada. – Mas t

ã

o aqui em cima?

– Faz isso todos os anos – disse o

í 

ndio. – Uma vez. Provavelmente para ver quem veio este ano, se

é

 gente que sabe atirar ou n

ã

o. Para ver se j

á

 temos o c

ã

o capaz de acoss

á

-lo e meter-lhe os dentes. Vai levar os c

ã

es todos ao rio e depois mand

á

-los para tr

á

s.

O menino ficou ouvindo. Sam disse vamos voltar e depois disse, mais para si pr

ó

prio: – Vai ver o aspecto deles, quando chegarem de volta ao acampamento.

Quando chegaram ao acampamento os c

ã

es j

á

 estavam l

á

, dez deles, encolhidos atr

á

s da cozinha. O rapaz e o

í 

ndio acocoraram-se para espreitar na escurid

ã

o onde estavam amontoados, silenciosos, de olhos reluzentes que acendiam e apagavam. E nem um

ú

nico som. S

ó

 aquele pressentimento de qualquer coisa mais forte do que um c

ã

o e n

ã

o apenas um animal ou fera. Nada houvera diante daquele latir abjeto e quase doloroso sen

ã

o a solid

ã

o selvagem.

E quando o und

é

cimo c

ã

o chegou, ao meio-dia, todos olharam, at

é

 o velho tio Ash – que se dizia cozinheiro antes de mais nada. E Sam tratou-o com terebentina e massa de untar os eixos, passando m

ã

os cheias na orelha em tiras e na esp

á

dua. E para o rapaz, o autor de tudo aquilo continuou a ser a solid

ã

o selvagem que castigara com uma pancada leve a temeridade do c

ã

o. Aquilo n

ã

o parecia obra de uma criatura viva, mortal.

– Tal e qual um homem – disse Sam. – Tal e qual. Foi demorando, demorando o mais poss

í 

vel, adiando a ocasi

ã

o de ter coragem, sabendo perfeitamente que mais tarde ou mais cedo teria de ganhar coragem para poder continuar merecendo o nome de c

ã

o; e sabendo antecipadamente o que lhe aconteceria, quando a coragem chegasse.

Nessa tarde, montado na mula caolha do carro

çã

o, que n

ã

o se importava com o cheiro de sangue (nem, como lhe contaram, com o dos ursos), e com Sam ao lado montado na outra, cavalgaram durante mais de tr

ê

s horas naquele dia de inverno. N

ã

o seguiram nenhuma senda, nenhum atalho

(3)

que ele percebesse. Em pouco tempo estavam num lugar desconhecido para eles. Ent

ã

o, compreendeu porque

é

 que Sam lhe dera a mula menos espantadi

ç

a. A outra parou, tentou voltar a fugir. Mesmo quando o

í 

ndio desceu e agarrou as r

é

deas, bem curto, ela continuou bufando, puxando, querendo voltar. Sam incitava a mula a correr, gritando com ela, porque n

ã

o queria arriscar amarr

á

-la. Finalmente, ela avan

ç

ou, bufando sempre. O rapaz n

ã

o teve dificuldade com a sua, mas tamb

é

m desceu e segurou as r

é

deas, curto.

De p

é

, ao lado de Sam, no escuro da tarde que morria, olhos no tronco apodrecido e virado, estripado e riscado de marcas de garras, o rapaz viu na terra molhada, ao lado, a pegada da enorme pata de dois dedos, torta. Agora sabia que cheiro sentira quando fora olhar os c

ã

es encolhidos debaixo da cozinha. Pela primeira vez compreendeu que o urso que via antes, que aparecia nos seus sonhos desde que se conhecia como gente e que devia ter existido antes nos sonhos do pai, do Major e at

é

 do velho General Compson, que esse urso era um animal mortal. E que – pensou – se eles tinham partido todos os anos no m

ê

s de novembro para a ca

ç

ada sem esperan

ç

as de voltar com o trof 

é

u, n

ã

o era porque este n

ã

o pudesse ser abatido, mas porque at

é

 aqui eles n

ã

o tiveram ainda verdadeiras esperan

ç

as de ca

çá

-lo.

– Amanh

ã

 – disse ele.

– Tentaremos amanh

ã

 – emendou Sam. – Mas ainda n

ã

o temos c

ã

o. – Temos onze. Contamos esta manh

ã

.

S

ó é

 preciso um. Mas n

ã

o est

á

 aqui. Talvez n

ã

o esteja em parte alguma. A

ú

nica maneira

é

 ele dar de cara, por acidente, com algu

é

m que esteja armado.

– N

ã

o seria comigo. Seria o Walter, ou o Major, ou…

– Podia ser – disse o

í 

ndio. – Amanh

ã

 tenha muito cuidado. Porque ele

é

 matreiro.

É

 por isso que ainda n

ã

o morreu. Se estiver cercado e tiver de escolher algu

é

m a quem atacar, escolher

á

 voc

ê

. – Por qu

ê

? – perguntou o rapaz.

– Como

é

 que ele vai saber… Voc

ê

 quer dizer que ele j

á

 me conhece, sabe que

é

 a primeira vez que venho, que ainda n

ã

o tive tempo de… – parou novamente e olhou para Sam bem nos olhos. O rosto do velho nada revelava, a n

ã

o ser quando sorria. Depois disse humildemente, sem espanto algum: – Foi a mim que ele veio observar. E n

ã

o foi preciso vir aqui mais de uma vez, n

ã

o

é

?

Na madrugada seguinte sa

í 

ram do acampamento tr

ê

s horas antes de amanhecer o dia. Desta vez foram montados, porque era muito longe para ir a p

é

. At

é

 os c

ã

es foram na carripana. Mais uma vez o nascer do dia cinzento o surpreendeu em um lugar que nunca vira antes. Sam indicou o lugar onde devia ficar, e depois o deixou. Com a espingarda na m

ã

o – a espingarda que era grande demais para ele porque n

ã

o era dele e sim do Major, e que apenas disparara uma vez, num cepo, no primeiro dia, para conhecer o coice e aprender a carreg

á

-la – encostou-se a uma

á

rvore-de-borracha, ao lado de um riacho cuja

á

gua negra e tranquila escorria sem ru

í 

do atrav

é

s de um canavial, atravessava uma aberta e se metia outra vez entre as canas onde, invis

í 

vel, um p

á

ssaro (o enorme pica-pau que os negros chamam senhor-pra-deus) matraqueava num tronco morto.

Era um posto como qualquer outro, apenas incidentalmente diferente do que ocupara todas as manh

ã

s durante dez dias. Um territ

ó

rio novo para ele e, no entanto, t

ã

o estranho quanto esse outro que, ao fim de duas semanas come

ç

ara a acreditar que conhecia ligeiramente. O mesmo isolamento, a mesma solid

ã

o que seres humanos apenas atravessaram sem alterar, sem deixar marcas, nem cicatrizes, que se mantinha exatamente como a devia ter encontrado no primeiros dos antepassados

(4)

punho. Diferente apenas porque, acocorado ao p

é

 da cozinha, sentira o cheiro dos c

ã

es encolhidos e acovardados diante dela. E porque vira em tiras a esp

á

dua e a orelha do que fora obrigado a ter coragem para merecer (segundo Sam) o nome de c

ã

o. E porque, na v

é

spera, vira na terra

ú

mida ao lado do tronco riscado, a marca da pata.

N

ã

o ouviu os c

ã

es. N

ã

o chegou a ouvir o latido deles. Ouviu apenas o matraquear do pica-pau parar de repente. E soube que o urso estava olhando para ele. N

ã

o chegou a v

ê

-lo. N

ã

o podia saber se ele estava

à

 sua frente ou nas costas. N

ã

o se mexeu. Nas m

ã

os a in

ú

til espingarda, que nem sequer armara e que agora n

ã

o valia a pena armar, sentindo na saliva aquele travo met

á

lico que conhecia agora porque sentira o cheiro do urso quando espreitara os c

ã

es encolhidos debaixo da cozinha. Depois, foi-se embora. T

ã

o repentinamente como se interrompera, o martelar seco e mon

ó

tono do pica-pau recome

ç

ou. E depois de algum tempo o rapaz pensou que ouvia os c

ã

es, mas s

ó

 pensou, sem ouvir. Vinha da floresta um murm

ú

rio, quase que nenhum ru

í 

do, mas de repente aquele ru

í 

do encheu a floresta at

é

 o alcance do ouvido do rapaz e de novo se afastou, morrendo ao longe.

N

ã

o se aproximaram dele. Se era um urso o que perseguiam, seria outro urso.

Sam saiu do canavial e atravessou o riacho, seguido pelo c

ã

o ferido na v

é

spera. O bicho vinha sem fazer barulho, quase rastejando, como um perdigueiro. Veio e agachou-se junto

à

 perna de Sam, tremendo, os olhos bem abertos para o canavial.

– N

ã

o o vi. – disse o rapaz; e repetiu – n

ã

o o vi, Sam.

Sua voz n

ã

o tremia, mas havia um tom estranho, emocionado. Sam respondeu, calmo:

– Eu sei. Quem veio aqui foi ele mesmo. E voc

ê

 nem pode dizer de que lado ele veio, n

ã

o

é

? – N

ã

o, eu…

– Ele

é

 matreiro – explicou Sam – matreiro demais.

Olhou para o c

ã

o, que tremia fraca e continuamente junto ao joelho do rapaz. Da esp

á

dua retalhada escorriam algumas gotas de sangue fresco. Tornou a falar:

É

 grande demais. Ainda n

ã

o temos c

ã

o para ele. Talvez um dia, e n

ã

o acredito que seja ainda na pr

ó

xima primavera. Mas um dia…

Ent

ã

o, tenho de ver esse bicho, tenho de v

ê

-lo, pensou o rapaz.

Se, pelo menos, visse o urso… Porque se n

ã

o visse, parecia a ele que aquilo continuaria sempre como continuara com o pai e o Major (que era mais velho do que o pai), e at

é

 com o velho General Compson (que em 1865 j

á

 tinha idade suficiente para comandar uma brigada). Se n

ã

o o visse agora, aquilo continuaria sempre da mesma maneira, na pr

ó

xima vez e na seguinte, e depois, e depois, e depois. N

ã

o queria admitir ele pr

ó

prio e o urso mergulhados no limbo de onde emergia o tempo, tornando-se eles pr

ó

prios tempo: o velho urso, absolvido da mortalidade, e ele, partilhando um pouco, bastante, dessa absolvi

çã

o. E agora sabia qual era aquele cheiro dos c

ã

es encolhidos e aquele travo na saliva. Reconhecia o medo. Tenho de ver esse bicho, tenho de ver, pensou de novo. Sem medo mas sem muita esperan

ç

a.

Foi em julho do ano seguinte. Tinha onze anos. Estavam outra vez no acampamento, festejando os anivers

á

rios do Major e do General Compson. Embora o primeiro tivesse nascido em setembro e o outro pertinho do inverno e dez anos depois, encontravam-se sempre durante duas semanas para pescar, atirar aos esquilos e ao peru selvagem e perseguir com os c

ã

es,

à

 noite, os texugos e os gatos bravos. Isto

é

: o rapaz, mais Boon Hogganbeck e os negros

é

 que faziam isso; n

ã

o s

ó

 o Major e o

(5)

General (que passavam as duas semanas sentados numa cadeira de balan

ç

o, diante de uma enorme panela de ferro, mexendo e provando e discutindo com o velho Ash a melhor maneira de fazer a panelada, e vendo o Jim da Tennie passando aguardente do garraf 

ã

o para a caneca de lata e da caneca de lata para o est

ô

mago), mas at

é

 o pai e o Walter Ewell, que ainda eram bastante mo

ç

os, desdenhavam esses passatempos e apenas atiravam aos perus selvagens para fazer apostas de pontaria.

Ou, pelo menos, o pai e os outros julgavam que ele ia

à

 ca

ç

a dos esquilos. At

é

 o terceiro dia pensou que o Sam Fathers tamb

é

m o julgava. Sa

í 

a do acampamento todas as manh

ã

s logo depois do almo

ç

o, agora, com a sua pr

ó

pria espingarda, presente de Natal. Voltou

à á

rvore da beira do riacho, onde estivera naquela manh

ã

. Olhando a b

ú

ssola que o velho General Compson lhe dera, partiu deste ponto, em c

í 

rculos. Sem saber, estava aprendendo a ser um batedor melhor do que o vulgar. No segundo dia encontrou at

é

 o tronco gadanhado onde vira pela primeira vez a pegada torta. A madeira estava agora quase completamente desfeita. E voltara com inacredit

á

vel rapidez e um abandono apaixonado e quase vis

í 

vel para a terra que dera origem

à á

rvore.

Percorria agora os bosques de ver

ã

o, verdes e frondosos (se havia diferen

ç

a era por causa da obscuridade maior do que a nebulosidade cinzenta de novembro). O sol, mesmo quando estava a pino, apenas salpicava a terra aqui e ali, que nunca secava por completo e por isso vivia coberta de serpentes: cobras-d´

á

gua, mocassins, cascav

é

is, todas da cor da sombra malhada e que portanto ele nem sempre via, a n

ã

o ser quando se moviam, se se moviam. E cada vez ele voltou mais tarde. No terceiro dia, ao passar ao crep

ú

sculo pela pequena estacaria que cercava o est

á

bulo de madeira onde Sam dava guarda aos cavalos, preparando-os para a noite, o

í 

ndio disse:

– Ainda n

ã

o procurou como deve ser.

Parou. Durante um momento n

ã

o respondeu. Depois, calmamente, cedendo pacificamente como aquelas represas em miniatura que as crian

ç

as fazem nos riachos, disse:

– Fui at

é

 a

á

rvore. Cheguei a encontrar outra vez aquele tronco. Eu…

– Acho que fez bem. Se calhar, ele tem at

é

 andado a espi

á

-lo. N

ã

o viu a pegada dele? – N

ã

o – confessou o rapaz – n

ã

o vi. N

ã

o pensei…

É

 a arma – explicou Sam.

Parou ao lado da sebe; im

ó

vel, o velho, o

í 

ndio de ganga desbotada e pu

í 

da e com o chap

é

u de palha de cinco c

ê

ntimos que fora a marca da escravid

ã

o da ra

ç

a negra e agora era a ins

í 

gnia de sua liberdade, estava olhando firme. O acampamento, o terreno desbravado, a casa, o barrac

ã

o, e o seu pequeno equipamento com que o Major esgravatava de leve a solid

ã

o selvagem, tudo se dissolvia no crep

ú

sculo, voltando

à

 escurid

ã

o imemorial da floresta.

A arma, a arma – pensou o rapaz.

– Assuste-se – disse o

í 

ndio. – Isso n

ã

o se pode evitar. Mas n

ã

o tenha medo. N

ã

o h

á

 bicho nenhum na floresta que nos possa fazer mal, desde que n

ã

o esteja cercado ou que n

ã

o fareje que estamos com medo. Um urso ou um veado, tal qual como um homem corajoso, precisam do medo dos covardes.

A arma, a arma – pensou o rapaz. – Voc

ê

 tem de escolher – disse Sam.

Deixou o acampamento antes de nascer o dia, muito antes de tio Ash acordar nos seus cobertores do ch

ã

o da cozinha e acender o fogo para fazer o almo

ç

o. Levou s

ó

a b

ú

ssola e a vara para as serpentes. Sabia o caminho at

é

 um quil

ô

metro antes de precisar da b

ú

ssola. Sentou-se num cepo,

(6)

com a invis

í 

vel b

ú

ssola na m

ã

o (tamb

é

m ainda invis

í 

vel), enquanto os ru

í 

dos secretos da noite – interrompidos com os seus movimentos – de novo se esgueiravam e se interrompiam de vez. E os mochos se calaram para dar lugar ao despertar dos p

á

ssaros da manh

ã

. Ah, j

á

  vi a b

ú

ssola. Continuou r

á

pida e silenciosamente a caminhada. Conhecia cada vez melhor a floresta, mas n

ã

o tinha consci

ê

ncia disso.

Ao nascer, o sol levantou um veado e a f 

ê

mea, fazendo-os sair da cama. Ficaram a uma dist

â

ncia curta, e ele viu bem at

é

 o reflexo nos olhos deles, e ouviu o barulho que os rabinhos brancos faziam batendo no mato. Depois viu a f 

ê

mea saltar e o veado saltar atr

á

s dela mais velozmente do que  julgara poss

í 

vel. Batia a floresta na dire

çã

o devida, contra o vento, como Sam ensinara. N

ã

o era que isto agora tivesse alguma import

â

ncia. Abandonara a espingarda. De sua pr

ó

pria vontade e resolu

çã

o n

ã

o aceitaria compromissos, escolhas, mas sim uma condi

çã

o em que tinham sido anulados n

ã

o s

ó

 o at

é

 agora inviol

á

vel anonimato do urso como todas as antigas regras e vantagens do ca

ç

ador e da presa.

N

ã

o teria medo, nem mesmo no momento em que o terror o tomasse por completo, sangue, pele, entranhas, ossos, mem

ó

ria da eternidade antes de se tornar mem

ó

ria sua – tudo, menos a lucidez aguda, clara, imortal, que o distinguia daquele urso e de todos os outros ursos e veados que havia de matar com a humildade e o orgulho da sua per

í 

cia e resist

ê

ncia. A lucidez a que Sam se dirigira quando se encostara

à

 estacaria, na v

é

spera,

à

 boca da noite.

Ao meio-dia ultrapassara de muito o pequeno riacho. Nunca penetrara at

é

 t

ã

o longe na regi

ã

o nova e desconhecida. J

á

 n

ã

o caminhava s

ó

 pelo velho rel

ó

gio de prata, pesado, volumoso, que pertencera ao av

ô

. Quando finalmente parou, foi a primeira vez que o fez depois de se ter levantado, de madrugada, do tronco em que estivera sentado quando consultara a b

ú

ssola. Estava bastante longe. Sa

í 

ra do acampamento fazia nove horas. Dali a nove horas a noite teria ca

í 

do h

á

 uma hora. Mas n

ã

o pensava nisso. Pensou: “Bom; est

á

 bem; mas ent

ã

o?” E parou durante um momento, parecendo estranho e min

ú

sculo no meio da solid

ã

o verde e sobranceira, respondendo

à

 pr

ó

pria pergunta antes de ela se ter formulado e terminado. Era o rel

ó

gio, a b

ú

ssola, a vara – os tr

ê

s aparelhos inanimados que durante nove horas ele usara contra a solid

ã

o selvagem. Pendurou cuidadosamente o rel

ó

gio e a b

ú

ssola num arbusto, encostou o pau ao lado deles e entregou-se completamente a ela.

Durante as

ú

ltimas duas ou tr

ê

s horas n

ã

o caminhara muito depressa. N

ã

o andava mais depressa agora, j

á

 que a dist

â

ncia n

ã

o tinha import

â

ncia. E estava tentando n

ã

o perder o rumo da

á

rvore em que deixara a b

ú

ssola, procurando descrever um c

í 

rculo que o fizesse voltar a ela ou, pelo menos, se interceptasse a si pr

ó

prio, j

á

 que a dire

çã

o n

ã

o tinha import

â

ncia agora. Mas n

ã

o encontrou a

á

rvore, e fez o que Sam lhe ensinara: descreveu novo c

í 

rculo na dire

çã

o oposta, para que os dois percursos se interceptassem mais longe. No entanto, n

ã

o cruzou as suas pr

ó

prias pegadas e acabou encontrando a

á

rvore mas num lugar errado, sem o arbusto, a b

ú

ssola, o rel

ó

gio; e nem a

á

rvore era a mesma, porque ao lado dela havia um cepo baixo. Fez o que Sam Fathers lhe ensinara a fazer em seguida e em

ú

ltimo lugar.

Ao sentar-se no cepo viu a pegada torta, o medonho corte aleijado que se enchia de

á

gua, mesmo diante dos seus olhos. Quando olhou para cima a solid

ã

o uniu-se, solidificou-se, e a clareira, a

á

rvore procurada, o arbusto, o rel

ó

gio, a b

ú

ssola, refulgiam batidos por um raio de sol. E viu ent

ã

o o urso.

N

ã

o apareceu de parte alguma: estava ali, simplesmente im

ó

vel, s

ó

lido, firmado nas manchas quentes da tarde verde e sem brisa, n

ã

o t

ã

o grande como o sonhara, mas t

ã

o grande como esperava, desmedido, recortado na obscuridade pintalgada, olhando para o rapaz que, sentado no cepo, lhe devolvia o olhar.

(7)

instantinho sob a luz crua do sol. Quando chegou ao outro lado parou outra vez e olhou-o por cima do ombro, enquanto o rapaz, no seu respirar tranquilo, inspirou e expirou tr

ê

s vezes.

E desapareceu.

N

ã

o caminhou para a floresta, para o mato. Desvaneceu-se, voltou a dissolver-se na solid

ã

o, como um peixinho que o rapaz vira um dia afundar-se e desaparecer na fundura negra da lagoa sem um

ú

nico movimento das barbatanas.

Ser

á

 no pr

ó

ximo outono – pensou.

Mas n

ã

o foi no pr

ó

ximo outono, nem no seguinte, nem no outro. Tinha ent

ã

o 14 anos. Matara o seu primeiro veado e Sam Fathers marcara-lhe a cara com o sangue; e no ano seguinte matou um urso. Mas j

á

 antes disso tornara-se t

ã

o competente na floresta como muitos adultos que tem experi

ê

ncia. Num raio de 50 quil

ô

metros, a partir do acampamento, n

ã

o havia territ

ó

rio que n

ã

o conhecesse, riacho, outeiro,

á

rvore ou atalho. Era capaz de conduzir qualquer pessoa a qualquer ponto sem hesita

çã

o, e traz

ê

-la de volta. Conhecia pistas de ca

ç

a que nem mesmo Sam Fathers conhecia. Aos 13 anos descobrira a cama de um veado,

à

s escondidas do pai pediu a carabina a Walter Ewell, deitou-se

à

 espera de o sol raiar e matou o veado quando ele voltava

à

 cama, pois Sam lhe contara como faziam os velhos

í 

ndios Chicksaw.

Mas n

ã

o o urso velho. Embora agora j

á

 lhe conhecesse melhor as pegadas do que as suas pr

ó

prias, e n

ã

o s

ó

  a pegada da pata aleijada. Quando via uma das outras tr

ê

s era capaz de reconhec

ê

-la imediatamente. N

ã

o s

ó

 pelo tamanho – havia outros ursos dentro desses 50 quil

ô

metros, capazes de deixar marcas t

ã

o grandes – era mais do que isso.

Se Sam Fathers fora o seu aio e os coelhos e esquilos do quintal da casa o seu jardim de inf 

â

ncia, ent

ã

o a solid

ã

o selvagem percorrida pelo velho urso era para ele o col

é

gio e o pr

ó

prio urso velho, h

á

tanto tempo vi

ú

vo e sem filhos que se tornara o ing

ê

nito pai dele pr

ó

prio, a sua universidade. Mas nunca mais vira o urso.

Sabia agora encontrar a pegada torta quase sempre que bem entendesse, a vinte, quinze ou dez quil

ô

metros, e por vezes nesses tr

ê

s anos, enquanto esperava, ouvira os c

ã

es na pista do urso, por acaso. Na segunda vez pareceram seguir a pista, ladrando alto, abjetamente, quase humanos de histerismo, como naquela primeira manh

ã

 de dois anos atr

á

s. Mas nunca o urso. Lembrava-se daquela tarde de tr

ê

s anos atr

á

s, a clareira, ele, o urso, im

ó

veis na terra pintalgada e quieta; e parecia-lhe que aquilo nunca acontecera, que tamb

é

m aquilo fora sonho. Mas tinha acontecido. Tinham-se olhado, emergidos daquela solid

ã

o velha como a terra, sincronizados naquele instante por qualquer coisa mais forte do que a carne e os ossos que os envolviam. E tinham tocado, afian

ç

ado e afirmado qualquer coisa mais duradoura do que a fr

á

gil teia de ossos e carne que um breve acidente podia destruir.

At

é

 que tornou a v

ê

-lo.

Precisamente pelo fato de n

ã

o pensar noutra coisa, j

á

 se esquecera de procurar por ele. Andava ainda com a carabina de Walter Ewell: viu o urso atravessar o fundo de um comprido t

ú

nel, corredor que um tornado varrera, atravessando mais por entre a rede de troncos e ramos do que correndo sobre eles, como faria uma locomotiva, correndo com uma rapidez de que nunca o julgara capaz, quase t

ã

o depressa como um gamo, porque um gamo passaria a maior parte daquele tempo no ar; mais r

á

pido do que faz uma pessoa para acertar as miras da carabina. E compreendeu ent

ã

o qual fora o seu erro durante aqueles tr

ê

s anos. Sentou-se num cepo, vacilante e tr

ê

mulo, como se

(8)

nunca tivesse visto a floresta, nem o que havia dentro dela, perguntando a si mesmo, com um espanto incr

é

dulo, como pudera ter esquecido o que o velho

í 

ndio lhe dissera e o urso confirmara no dia seguinte e voltara a reafirmar agora, depois de passados tr

ê

s anos.

Agora sim, compreendia o que lhe disseram Sam Fathers a respeito do c

ã

o necess

á

rio, de um c

ã

o em que a import

â

ncia n

ã

o estava no tamanho. E quando sozinho em abril (n

ã

o havia escola nessa altura: os filhos dos lavradores trabalhavam no cultivo da terra e o pai dera-lhe, finalmente, licen

ç

a, com a condi

çã

o de voltar em quatro dias), quando voltou, tinha o c

ã

o. Era dele o animal, um rafeiro da esp

é

cie que os negros chamavam fyce, ca

ç

ador de ratos, ele pr

ó

prio n

ã

o muito maior do que um rato e possuidor daquela valentia que h

á

 muito tempo deixara de ser coragem para ser temeridade. N

ã

o precisou de quatro dias. De novo sozinho encontrou a pista, na primeira manh

ã

. N

ã

o era uma cilada; antes uma emboscada. Contou o tempo do encontro quase como se se tratasse de um compromisso com um ser humano. Na madrugada seguinte foram

à

 pista, contra o vento; ele agarrando no rafeiro amorda

ç

ado com uma saca e o Sam Fathers com dois c

ã

es amarrados por um bocado de corda. Chegaram t

ã

o perto dele que o urso voltou sem correr – como se estivesse surpreendido pelo alarido agudo e fren

é

tico do rafeiro solto – voltando-se em defensiva, encostado ao tronco de uma

á

rvore, plantado sobre as patas traseiras. O rapaz pensou que ele nunca mais acabaria de se erguer, de t

ã

o alto. E at

é

 os dois c

ã

es pareceram ganhar uma coragem desesperada ao acompanharem o rafeiro que ia na corrida.

S

ó

a

í 

 o rapaz compreendeu que o c

ã

o n

ã

o ia parar. Saltou, atirou fora a arma e correu. Quando alcan

ç

ou e agarrou o rafeiro, que rodopiava freneticamente tentando escapar, pareceu-lhe que estava debaixo dos p

é

s do urso. Sentia o cheiro muito forte, quente, espesso, do urso. Agachado, levantou os olhos para o vulto que se elevava sobre ele, alto, forte e pesado como uma carga de chuva e escuro como uma trovoada, familiar, tranquila e at

é

 lucidamente familiar; at

é

 que se lembrou: fora assim que sempre sonhara com ele.

Depois, desapareceu. N

ã

o o viu desaparecer. Ajoelhou-se agarrando com as m

ã

os o rafeiro fren

é

tico, ouvindo o vergonhoso latir dos c

ã

es a afastar-se ao longe. At

é

 que Sam veio para perto dele.

– Esta

é

 a segunda vez que o urso v

ê

 voc

ê

 com uma espingarda na m

ã

o. Desta vez n

ã

o podia ter falhado o tiro.

O rapaz levantou-se, ainda agarrando o rafeiro. Mesmo nos seus bra

ç

os e longe do ch

ã

o o animal gania furiosamente, aos pux

õ

es e repel

õ

es para seguir o alarido long

í 

nquo dos dois c

ã

es, como um feixe de molas de a

ç

o. O rapaz ofegava ligeiramente, mas desta vez n

ã

o vacilava nem tremia.

– E n

ã

o disparaste – disse o pai, espantado. – A que dist

â

ncia estavas?

– N

ã

o sei, pai. Vi uma grande cicatriz na perna direta do bicho. Isso vi. Mas ent

ã

o n

ã

o tinha a espingarda.

– E quando tinhas a espingarda tamb

é

m n

ã

o fizeste fogo. Por qu

ê

?

Mas o rapaz n

ã

o respondeu. E o pai n

ã

o esperou que ele respondesse. Atravessou o quarto por cima da pele do urso que o filho matara h

á

 dois anos e da pele do outro maior que ele pr

ó

prio matara antes de o seu filho ter nascido; atravessou o quarto e foi em dire

çã

o

à

 estante que ficava por baixo da cabe

ç

a embalsamada do primeiro veado que o mo

ç

o abatera. O pai chamava aquele quarto de escrit

ó

rio e era ali que tratava todos os neg

ó

cios da planta

çã

o. Fora ali que o rapaz, aos 14 anos de idade, ouvira as mais interessantes de todas as conversas. O Major ia l

á

 e

à

s vezes o velho General Compson tamb

é

m; e Walter Ewell, Boon Hogganback, Sam Fathers e o Jim da Tennie, que eram ca

ç

adores, conheciam os bosques e toda a ca

ç

a que havia neles.

(9)

O rapaz ouvia a conversa, sem falar nem um pouquinho, mas

à

 escuta. E a conversa era a solid

ã

o selvagem, a enorme floresta, maior e mais velha do que qualquer documento dos brancos, convencidos vaidosamente de que tinham comprado parte dela, maior e mais velha do que qualquer documento dos

í 

ndios, inflexivelmente convencidos de que alguma vez tinham transmitido parte dela. Mas a floresta pertencia aos homens, n

ã

o brancos nem negros ou vermelhos, mas simplesmente aos homens, aos ca

ç

adores com vontade e aud

á

cia para resistir e a humildade para sobreviver; e aos c

ã

es e aos ursos e aos veados justapostos e aliados contra ela, ordenados e impelidos pela solid

ã

o, na luta antiqu

í 

ssima e inadi

á

vel regida por antiqu

í 

ssimas e inating

í 

veis regras que anulavam o remorso e n

ã

o permitiam quartel. As vozes eram tranquilas, graves, deliberadas pela retrospec

çã

o, pela recorda

çã

o, pela lembran

ç

a exata, enquanto ele se acocorava ao p

é

 do fogo com o Jim da Tennie, que s

ó

 se metia para jogar mais lenha e passar a garrafa de uns copos para os outros. Porque a garrafa estava sempre presente: o passado um bocado parecia-lhe que aqueles duros instantes de

â

nimo, esperteza, coragem, ast

ú

cia, rapidez, se concentravam naquele l

í 

quido escuro que as mulheres, os rapazes, as crian

ç

as n

ã

o bebiam, s

ó

  os ca

ç

adores, bebendo nele o sangue derramado, mas uma condena

çã

o do esp

í 

rito mortal e ardente, bebendo-o moderada, humildemente at

é

, n

ã

o com a baixa esperan

ç

a do pag

ã

o de obter as virtudes da ast

ú

cia, da for

ç

a e da velocidade, mas em sauda

çã

o a elas.

O pai voltou com o livro, sentou-se de novo, come

ç

ou a abrir as p

á

ginas.

– Escuta. – disse ele. Leu alto as cinco est

â

ncias, com a sua voz calma e ponderada, enchendo o quarto em que n

ã

o havia fogo porque era primavera. Depois levantou os olhos. O rapaz observava. – Bem. – disse o pai – escuta.

Tornou a ler, mas desta vez s

ó

 a segunda estrofe, at

é

 o fim, at

é

 aos dois

ú

ltimos versos. E fechou o livro, colocando-o a seu lado, na mesa.

– “Ela n

ã

o pode morrer, embora tu n

ã

o consigas ser feliz como pretendes; eternamente a amar

á

s e ela ser

á

 bela” – repetiu.

– Ele fala de uma mo

ç

a – disse o rapaz.

– De alguma coisa tinha de falar – respondeu o pai. E acrescentou: – Falava da verdade. A verdade

é

 eterna. A verdade

é

 s

ó

 uma. Abrange todas as coisas sobre a terra. A honra, o orgulho, a piedade, a justi

ç

a, a coragem, o amor. Compreendes agora?

O rapaz n

ã

o sabia bem. Talvez tudo fosse mais simples do que aquilo. Havia um velho urso, duro e implac

á

vel, n

ã

o apenas para continuar a viver, mas com o feroz orgulho da liberdade e da independ

ê

ncia, suficientemente orgulhoso para n

ã

o sentir medo ou alarma ao v

ê

-las amea

ç

adas. Mais: que “algumas vezes, parecia at

é

 arriscar deliberadamente essa liberdade e independ

ê

ncia para melhor saborear, para incitar os seus fortes e velhos ossos e a carne a manterem-se

á

geis e capazes de as defender e conservar”.

Havia um velho, filho de uma escrava negra e de um rei

í 

ndio, herdeiro, por um lado, de um povo que aprendera a humildade no sofrimento e a dignidade nessa resist

ê

ncia que sobrevive ao sofrimento e

à

 injusti

ç

a; e, pelo outro lado, da hist

ó

ria de outro povo, mais antigo sobre aquela terra do que o primeiro, mas que j

á

n

ã

o existia sobre ela sen

ã

o na fraternidade solit

á

ria do sangue estranho de um negro e do esp

í 

rito selvagem e invenc

í 

vel de um urso velho.

Havia um rapaz que queria aprender a humildade e o orgulho para poder tornar-se destro e digno da floresta, mas que estava-se adestrando t

ã

o rapidamente que temia n

ã

o chegar nunca a tornar-se digno, por n

ã

o ter aprendido essa humildade e orgulho (embora tivesse tentado aprender), at

é

 que um dia, de repente, descobriu que um velho incapaz de definir qualquer das duas coisas o levara pela m

ã

o

à

quele ponto em que o urso velho e um c

ã

ozinho lhe haviam revelado que, possuindo

(10)

outra, possuiria ambas.

E havia um c

ã

ozinho, an

ô

nimo, sem ra

ç

a, filho de todos, adulto mas com menos de dois quilos e meio de peso, como que dizendo para si: “N

ã

o posso ser perigoso, porque nada h

á

 muito mais pequeno do que eu; n

ã

o posso mostrar f 

ú

ria porque diriam que

é

 um ru

í 

do sem import

â

ncia; n

ã

o posso ser humilde porque j

á

 estou demasiadamente pr

ó

ximo do ch

ã

o para poder ajoelhar; n

ã

o posso ser orgulhoso, porque estaria demasiadamente longe dele para ser poss

í 

vel ver quem produzia a sombra; e nem sequer sei que n

ã

o vou para o c

é

u, porque j

á

 est

á

 decidido que a minha alma n

ã

o

é

imortal. S

ó

 me resta, portanto, ter coragem. Mas est

á

 bem. Terei coragem, mesmo que digam que

é

um ru

í 

do sem import

â

ncia”.

E pronto. Era simples, muito mais simples do que um homem, num livro, falar da juventude de uma mo

ç

a por quem nunca precisaria se afligir, porque nunca lhe seria poss

í 

vel aproximar-se mais dela, ou necess

á

rio afastar-se. Ouvira falar de um urso, acabara por ter idade para perseguir o urso e por fim, com uma espingarda nas m

ã

os, encontrara o velho urso e n

ã

o disparara.

Porque um c

ã

ozinho… Mas podia ter disparado muito antes de o c

ã

ozinho ter corrido os trinta metros at

é

 ao urso que esperava; e o Sam Fathers podia ter disparado em qualquer momento durante aquele intermin

á

vel instante em que o velho Ben estivera em cima deles, de p

é

 nas patas traseiras. Interrompeu-se. O pai observava-o gravemente atrav

é

s do maduro crep

ú

sculo primaveril do quarto. Quando falou, as palavras foram t

ã

o calmas como o crep

ú

sculo; n

ã

o muito altas, porque seriam duradouras.

– Coragem, honra, dignidade – disse o pai – piedade, amor da justi

ç

a e da liberdade. Tudo isso toca o cora

çã

o; e o que o cora

çã

o aceita torna-se verdade at

é

 onde

é

 poss

í 

vel conhec

ê

-la. Compreendes agora?

O Sam, o velho Ben e o Nip, pensou o rapaz. E ele pr

ó

prio tamb

é

m tivera raz

ã

o – o pai assim o dissera.

– Sim, pai. – disse ele. ***

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