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Diferenças entre dois confessionários jesuíticos em tupi em relação à forma de traduzir os pecados da carne (séculos XVI e XVIII) 1

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Academic year: 2021

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Diferenças entre dois confessionários jesuíticos em tupi em relação à forma de traduzir os pecados da carne (séculos XVI e XVIII)1

Cândida Barros (MPEG), Ruth Monserrat (UFRJ), Jaqueline Mota (PCI/MCT-MPEG)

Dois confessionários tupi, um de São Paulo, do século XVI, e o outro do Pará, do século XVIII possuem distintas estratégias na forma de interrogar o penitente sobre os pecados contra o Sexto Mandamento da Lei de Deus (castidade). O texto tupi quinhentista, identificado como sendo de José de Anchieta (1992), esquadrinhava os pecados,

perguntando os detalhes sobre as circunstâncias dos atos, enquanto o documento anônimo setecentista usa de uma linguagem evasiva e sintética. Desse último documento, há motivos para afirmar ser uma obra também jesuítica pela várias citações de teólogos dessa Ordem, tais como Diego Alvarez de Paz (1560-1620), Enrique Henríquez (1536-1608) e Antonio Possevinus (1533-1611).

Os missionários não deixaram tradução em português para os dois confessionários. As traduções que utilizamos são contemporâneas. A versão em português do texto tupi de Anchieta é da autoria de Armando Cardoso, seu editor. O confessionário de 1751 possui uma versão em português provisória (Barros, Monserrat e Mota s.d), estabelecida com apoio de dicionários tupi coloniais e análises gramaticais do tupi (Barbosa 1956, Monserrat 2000, Rodrigues 1986).

A proposta da pesquisa será apresentar os resultados preliminares de uma comparação entre os dois textos em relação à maneira que eles traduzem para o tupi as modalidades de pecados contra a castidade segundo a classificação da Igreja tridentina (fornicação simples, adultério, rapto, estupro, incesto, sacrilégio e pecados contra a natureza). Essa classificação era importante para o confessor porque funcionavam como casos paradigmáticos para o julgamento da pena para o penitente. Cada pergunta do missionário na confissão do Sexto Mandamento deveria contemplar uma ou múltiplas dessas sete modalidades de ações sexuais.

1 Trabalho apresentado na XXVI Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de

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Os dois confessionários, distantes no tempo cerca de dois séculos, possuem semelhanças lexicais em tupi na forma de traduzir algumas modalidades de pecado. Essas semelhanças indicariam que eles foram elaborados como parte de uma mesma tradição institucional, a dos jesuítas. Porém, há inúmeros casos de flutuação na tradução das mesmas categorias de pecados contra a castidade. A atenção da análise dos dois confessionários estará voltada para as diferenças ao em vez de se ater às semelhanças lingüísticas entre eles. Essa é uma sugestão metodológica de Estenssoro (2003), que estudou as variações missionárias na tradução da terminologia cristã colonial em quéchua como resultado de diferentes políticas missionárias. O estudo da flutuação da linguagem missionária para o historiador é também um caminho para mostrar a ausência de

homogeneidade na recepção da religião católica por parte dos índios.

As diferenças nas traduções a serem consideradas são aquelas que remetem para escolhas dos missionários. Não nos deteremos nos casos de variações que apontam para diferenças dialetais do tupi em regiões e em períodos distintos. A tradução representaria uma escolha do missionário sempre quando o sistema da língua ofereceria mais de uma possibilidade de expressão, e o missionário fez uso de uma das opções, devido a suas representações sobre como deveria ser o diálogo com o penitente. Na categoria estilo estaria incluído, por exemplo, as decisões dos missionários em relação usar termos mais ou menos populares para denominar a cópula, ou elaborar um enunciado mais ou menos descritivo, ou ainda de evitação ou não de denominar certas categorias de léxico, como a das partes genitais do corpo.

Um exemplo da diferença nas escolhas dos missionários de diferentes épocas pode ser acompanhado em relação à sodomia, classificado nos dicionários europeus como pecado que não se define, ou seja, "nefando" ("Sodomia. peccado, por antonomásia,

nefando, por conseqüência indigno de definição de sua torpeza" ;Bluteau 1712). Diante das restrições cristãs para expressá-lo, como os missionários o traduziriam na confissão dos índios?

A tradução do ato de conjunção sexual anal em Anchieta contem o termo tewira, que significa nádegas ( "Ereikope tebira amo rese? Estiveste atrás de alguém?" (Tradução de Cardoso,1992 ). Jean de Lery menciona que tebira era a forma que os índios se referiam ao sodomita passivo ( Fernandes 1963:160).

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Na versão setecentista do confessionário tupi, não há menção a tebira, apesar de que o dicionários tupi que acompanha o mesmo códice possuía o verbete "nefando" com a tradução em tupi tibira. Não apenas não tem menção a esse termo no confessionário de 1751 como não estão mencionadas outras partes do corpo que eram denominadas explicitamente em Anchieta. O jesuíta do século XVI havia usado tapope (vagina) e

tacoanha (pênis) para perguntar sobre atos de masturbação. Já a escolha do missionário

setecentista para perguntar sobre essa mesma modalidade de pecado da carne foi evitar denominar essas partes do corpo substituindo-as por "coisa" (mbaé).

Na ausência do indicador tebira para identificar as perguntas direcionadas a

sodomia, interpretamos a pergunta direcionada ao homem: Nde suruca aba amo? como sua tradução. Algumas explicações sobre essa interpretação: Suruc tem o sentido de pilar, mas tinha referência sexual segundo um dos dicionários setecentistas que menciona que esta era a expressão popular para falar da copula (Anônimo 1771).

Apesar de ser a forma mais usual para falar do sexo, o missionário não faz uso dessa pergunta para tratar do principal tema do sexto mandamento, que são os intercursos sexuais. A presença desse verbo no texto de 1751 para as perguntas dirigidas ao homem ocorre apenas duas vezes.

O uso de suruc como "nde suruca" representa que "Nde" (segunda pessoa do singular) é o objeto da ação da cópula (suruca). A escolha do termo popular para suruc para referir a sodomia e evitado para denominar as demais ações sexuais representaria a forma de estabelecer sua gravidade em relação às demais práticas sexuais. Na fixação de um léxico cristão em tupi para denominar os atos proibidos pelo pecados contra a castidade se reservaria suruc para aqueles a quais se atribuíam penas mais pesadas.

Essas distintas escolhas dos missionários para traduzir os pecados entre os dois textos foram encontradas também na forma de perguntar sobre masturbação e estupro. As soluções que o missionário quinhentista fez foram baseadas na redundância ou na

descrição como recursos lingüísticos. O confessionário de 1751, por usa vez, opta por enunciados breves e elípticos.

Uma hipótese para explicar as diferenças entre uma linguagem explícita e detalhada a respeito das circunstâncias do ato sexual encontrada no texto de Anchieta e oposição a versão setecentista baseada no uso de expressões evasivas sobre o sexo é que os textos

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responderam a distintas tendências teológicas européias em relação a como tratar o sexo na confissão Foucault (2005) aponta para que houve uma mudança na história da sexualidade na Europa entre o século XVI e o XVII, quando teve início uma prática de repressão a falar sobre o sexo. A atitude quinhentista na confissão era de detalhar os pecados contra a castidade como necessários para julgar as circunstâncias e determinar a penitência. Posteriormente, essa postura foi considerada perniciosa nos séculos seguintes pelo perigo de insuflar desejos nos fiéis. O confessionário de 1751 responde a essa repressão de falar sobre o sexo. Dessa forma, as diferenças entre os dois textos refletiriam essas diferenças teológicas que os levou a diferentes escolhas lingüísticas em tupi.

Referências bibliográficas

ANCHIETA, José de. 1992. Doutrina cristã. Tomo 2: Doutrina autógrafa e confessionário. Obras Completas 10o vol. Introdução histórico-literária, tradução e notas do Pe. Armando Cardoso SJ. São Paulo. Edições Loyola.

ANÔNIMO.1751.Vocabulario de lingoa brasilica. Rio de Janeiro. Fundação Biblioteca Nacional.

ANÔNIMO. 1771.Diccionario da Lingua geral do Brasil que se falla em todas as villas, lugares e aldeas deste vastissimo Estado. Escrito na Cidade do Pará. Coimbra. Biblioteca da Universidade de Coimbra.

BARBOSA, Pe.A Lemos.1956.Curso de Tupi Antigo. Gramática, Exercício, Textos. Rio de Janeiro. Livraria São José.

BARROS, Cândida, MONSERRAT, Ruth, MOTA, Jaqueline. s.d.. Uma proposta de tradução do Sexto Mandamento de Deus em um confessionário tupi da Amazônia de 1751.

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CARDOSO, Pe. Armando. 1992. Introdução histórico-literária, tradução e notas. In Anchieta, José. Doutrina cristã. Tomo 2: Doutrina autógrafa e confessionário. Obras Completas 10o São Paulo. Edições Loyola.

Estenssoro, Juan Carlos. 2003. Del Paganismo a La santidad. La Incorporação de los

índios do Peru al catolicismo (1532-1750). Lima: IFEA.

Fernandes, Florestan. 1963.Organização social dos Tupinambá. 2o edição revista e ampliada. Difusão Européia. São Paulo.

FOUCAULT, Michel.1988.História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio. Edições Graal.

GRUZINSKI, Serge. 1989. Individualization and acculturation: confession among the Nahuas of Mexico from the Sixteenth to the eighteenth century. In Lavrin, Asunción (eds).

Sexuality and marriage in colonial Latin America. University of Nebraska Press. Lincoln

and London

MONSERRAT, Ruth Maria. 2000. O tupi do século XVIII (tupi-médio). In: Freire, José Ribamar Bessa e Rosa, Maria Carlota. Línguas Gerais. Política Lingüística na América do Sul no período colonial. Rio: Eduerj

RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. 1986. Línguas brasileiras. Para o conhecimento das línguas indígenas. São Paulo. Edições Loyola.

Referências

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