• Nenhum resultado encontrado

Palavras-chave: Resistência cultural; Música; História das Américas.

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Palavras-chave: Resistência cultural; Música; História das Américas."

Copied!
13
0
0

Texto

(1)

A MÚSICA COMO FERRAMENTA DE RESISTÊNCIA NAS COLÔNIAS ESPANHOLAS E INGLESAS

Giovana Eloá Mantovani Mulza Mestranda em História Política Universidade Estadual de Maringá (UEM) gio_mantovani@hotmail.com Resumo: As formas de resistência à dominação europeia assumiram formas variadas nas Américas espanhola e inglesa. Apesar das distinções estruturais nos sistemas coloniais implantados no vasto continente americano – especialmente devido às distintas realidades existentes na Espanha e na Inglaterra a partir dos séculos XV e XVI –, a escravidão foi uma importante forma de mão de obra na produção e extração de bens e gêneros naturais. Seja através dos povos nativos secularmente presentes naqueles territórios ou através de comunidades trazidas do continente africano, o não-europeu era concebido como criatura inferior e, portanto, apta aos trabalhos ditos como vulgares. No decorrer do período que compôs a escravidão nas Américas – tradicionalmente entre o quinhentos e o oitocentos –, povos indígenas e comunidades africanas encontraram formas de resistência que se manifestaram frequentemente de forma implícita, assumindo a forma de uma resistência camuflada. Nesse trabalho, buscaremos compreender o papel da música como uma ferramenta de resistência nas Américas, empregando os conceitos de infrapolítica e de “tática” de Michel de Certeau (1998). Entre os indígenas submetidos compulsoriamente ao sistema representativo espanhol, as canções permaneciam ditadas em dialetos nativos e eram compostas por elementos da cultura local. As músicas, portanto, acabavam por desempenhar a função de preservação, constituindo em uma forma de resistência diante das tentativas de imposição de modelos religiosos e comportamentais pelos europeus. No que se refere aos africanos, deslocados do continente-mãe e trazidos com destaque às Américas inglesas, os spirituals estiveram presentes nas lavouras, sendo cantados na língua inglesa e repleta de heranças do cristianismo europeu. Desde já, podemos destacar que as canções dos povos indígenas subordinados à Coroa espanhola e as músicas dos negros submetidos ao regime escravocrata inglês consistiram em formas importantes de resistência frente à dominação europeia.

Palavras-chave: Resistência cultural; Música; História das Américas.

Introdução

A história dos mecanismos de conquista e colonização do amplo continente americano suscitou debates seculares nas instituições produtoras de conhecimento. Fosse sob o discurso de um “imperialismo ecológico” (CROSBY, 2011) ou de um “determinismo geográfico” (DIAMOND, 2018), a dominação europeia nesse novo continente – protagonizada sobretudo pelos reinos da Espanha e da Inglaterra – constituiu

(2)

um tema muito discutido desde o século XV. A multiplicidade dos sistemas políticos e econômicos ali implantados acabou por dotar a história americana de pluralidades, aquando da própria historiografia falar da existência de Américas, no plural, em detrimento de uma realidade uniforme e homogênea. No entanto, fosse sob o aspecto de uma extensão do reino metropolitano ou como um refúgio de outsiders europeus – suscitando o termo de Norbert Elias (2000) –, a colonização das Américas contou com a mão de obra escrava, ora fornecida pelos habitantes locais, ora “importada” do continente africano.

Os contínuos mecanismos de dominação de um “outro” não-europeu, inferiorizado cultural e fisicamente por teorias da filosofia natural como a Cadeia do Ser (SANTOS, CAMPOS, 2014) ou através da racionalidade médica com os princípios da craniometria (GOULD, 1991), eram cotidianos e foram institucionalizados pelos impérios europeus a fim de legitimar a captura, comércio e uso da mão de obra escrava. Embora muito tenha sido escrito sobre uma “hegemonia política e cultural europeia”, os debates interdisciplinares oriundos de uma mudança historiográfica do século XX apontam para uma renovação na escrita da história americana. O novo arcabouço teórico-metodológico inaugurado por Marc Bloch e Lucien Febvre – tema muito debatido por historiadores de notório renome acadêmico como Peter Burke (1991) – foi de extrema valia e preeminência para legitimar a ascensão de uma nova perspectiva sobre o processo de conquista e colonização das Américas, a partir do qual uma nova categoria social seria de fato analisada: os escravos.

Vinculada a mecanismos institucionais ou culturais, a dominação de povos e o trabalho escravo integrou a história americana. Embora remeta ao ínterim pré-colombiano e anteceda o contato intercontinental, a escravidão foi maximizada e teve seus impactos amplificados a partir dos séculos XV e XVI, tornando-se a principal força de trabalho em grande parte do continente e modelando as relações sociais, econômicas e culturais. A escravidão, portanto, consistiu em uma instituição integrante da história americana, cujo estudo se torna preeminente nas análises acerca da conquista e colonização do Novo Mundo. Tal constatação perdura mesmo diante dos múltiplos sistemas políticos implantados pelas distintas metrópoles europeias, historicamente diversas em suas constituições culturais.

(3)

A América, secularmente isolada do restante do globo, havia tido uma história distinta e livre de grandes influências externas. Assim, foi uma complexa interação de fatores internos que, no alvorecer do século XVI, deu muitas formas às diversas sociedades indígenas: estados altamente estruturados, senhorias mais ou menos estáveis, tribos e grupos seminômades ou nômades (WACHTEL, 2018). Seria nesse mundo notoriamente autossuficiente que um amplo impacto brutal e sem precedentes ocorreria a partir da invasão dos homens europeus – os quais comungavam de uma realidade profundamente diferente. No que concerne ao processo de conquista e colonização espanhola, a reação dos americanos nativos diante da invasão hispânica teria variado consideravelmente: de ofertas de aliança a uma colaboração parcialmente forçada, de uma resistência passiva a uma hostilidade permanente – como apontam as obras de Bartolomé de Las Casas (BRUIT, 1995). No entanto, em toda parte, a chegada desses homens causaria um amplo impacto e espanto, não menos intenso entre os próprios conquistadores: “ambos os lados estavam descobrindo uma nova raça de homem de cuja existência jamais haviam suspeitado.” (WACHTEL, 2018, p. 195).

Embora muito se discorreu sobre o trauma da conquista espanhola – fosse ressaltando sua importância para homologar uma efetiva mundialização do globo (MARKS, 2007) ou para a criação de uma rede econômico-cultural concreta (MCNEILL, MCNEILL, 2010) –, fato é que a chegada do europeu nos impérios pré-colombianos causou uma desestruturação no modelo político, religioso e cultural daqueles povos. Afinal, o governo espanhol, ao mesmo tempo em que fazia uso das instituições nativas, realizava sua desintegração, deixando apenas estruturas parciais que sobreviveriam fora do contexto coerente que lhes havia dado sentido. Assim, “As consequências destrutivas da conquista afetaram as sociedades nativas em todos os níveis: demográfico, econômico, social e ideológico.” (WATCHEL, 2018, p. 200). No plano eclesiástico, por exemplo, muitas discussões foram feitas para compreender a compatibilidade da “descoberta” do Novo Mundo com as palavras bíblicas (SANTOS, NETO, 2011). Muitos dos interesses dos invasores consistiam na extração de minérios, especialmente a prata e o ouro, muito apreciados na Europa e na China. Para tanto, a mão de obra indígena desempenhou um importante papel na economia extrativa implantada pela Coroa espanhola, ao longo de

(4)

todo o período colonial e ainda no alvorecer dos primeiros Estados Nacionais do século XIX.

Apesar do descenso demográfico dos indígenas ocasionado pela invasão e colonização espanhola – as estimativas apontam para uma redução de 90% da população nativa ainda no século XVI (WATCHEL, 2018) –, o trabalho escravo na América espanhola foi composto majoritariamente pelos povos locais. O frade dominicano Bartolomé de Las Casas (1484-1566) dedicou diversas obras ao comportamento dos indígenas diante da conquista espanhola e suas observações podem ser estendidas para grande parte do período de existência da escravização dos nativos (BRUIT, 1995). Sob uma aparente insolência e preguiça, os nativos submetidos ao sistema escravista buscavam formas de resistência aos mecanismos institucionais de dominação que frequentemente se manifestavam de forma mascarada e implícita. Dentre os modelos de resistência adotados pelos indígenas foi a tentativa de manutenção dos códigos linguísticos e culturais frente às imposições homogeneizantes da Coroa espanhola. Além da comunicação em dialetos locais, muitos dos povos buscavam perpetuar seus costumes e valores através de ritos ou canções, todos mascarados e infiltrados no sistema colonial. A música como subterfúgio de resistência não se restringiu aos indígenas da América espanhola. Embora com significados e contextos distintos, a música como instrumento de resistência política e cultural esteve presente em outra porção do continente americano: aquela dominada pela Inglaterra. É um consenso que a mão de obra indígena desempenhou um papel menos determinante na economia agrícola implantada nas chamadas Treze Colônias Inglesas – localizadas no leste do atual território dos Estados Unidos –, onde o trabalho africano seria de maior predominância. Os negros “importados” do continente africano teriam sido levados majoritariamente à porção sul da área das Treze Colônias, sendo complementares à mão de obra servil e livre. Para esses povos, submetidos ao tráfico intercontinental de escravos, a língua e a cultura inglesa foram de maior receptividade quando comparadas à adoção do espanhol pelos indígenas nas colônias hispânicas. Não deve nos surpreender que as músicas cantadas pelos escravos africanos no território inglês incorporassem elementos da religião cristã e fossem cantadas na língua inglesa. Nesse contexto, os spirituals desempenharam um importante papel, não somente por constituir um meio de expressão, mas sobretudo por

(5)

seu conteúdo servir de esperança aos negros e inspirá-los a uma resistência frente à dominação.

O presente trabalho visará discorrer acerca da importância das músicas na escravidão indígena nas colônias espanholas e na escravidão africana nas colônias inglesas, destacando-as como mecanismos de resistência cultural e política. O texto está estruturado em um tópico central responsável por aprofundar o debate, assim como de uma conclusão.

A música, os índios, os negros e a resistência nas colônias espanhola e inglesa

Em A invenção do cotidiano (1998), Michel de Certeau conceituou o binômio estratégia-tática, cujos significados, apesar de complementares, se contrapõe. Segundo o autor, “O que distingue estas daquelas são os tipos de operações nesses espaços que as estratégias são capazes de produzir, mapear e impor, ao passo que as táticas só podem utilizá-los, manipular e alterar.” (CERTEAU, 1998, p. 92). Diante de uma produção racionalizada e expansionista feita pelas estratégias institucionais, posta-se uma produção totalmente diversa e astuta, caracterizada sob o conceito de “consumo”, a qual é parte das táticas. As táticas, portanto, constituem na arte de utilizar aquilo que é imposto, atuando como uma espécie de resistência inconsciente diante dos mecanismos institucionais de dominação. Muitos desses comportamentos de resistência fazem parte do campo da infrapolítica, visto que integram uma porção não-institucional do sistema político. Tomando como parâmetro os conceitos desenvolvidos por Michel de Certeau (1998) e o campo da infrapolítica, podemos compreender a música indígena e a música negra enquanto táticas de resistência frente os mecanismos institucionais de dominação impostos pelas Coroas europeias. Tanto os nativos americanos quanto os negros africanos empregaram as canções como ferramentas de resistência, ora tentando preservar a cultura tradicional, ora oferecendo esperança e incitando a revoltas.

A música enquanto fonte para o conhecimento histórico não foi objeto de estudo entre os historiadores há tanto tempo. Foi sobretudo através da Nova História que se passou a cogitar o uso das canções para “pensar a sociedade e a história.” (NAPOLITANO, 2002, p. 08). Além do estudo de sua própria musicalidade, o historiador conta com um suporte metodológico para pensar através da música. Nessa parte do

(6)

trabalho, iremos buscar analisar o papel das músicas na sociedade colonial da América espanhola e inglesa, mapeando sobretudo seus significados no sistema escravista. Comecemos com as colônias hispânicas. Devido à multiplicidade de tradições nativas existentes no território americano, iremos enfocar a cultura uitoto, comungada pelos povos originários da região amazônica peruana e colombiana, secularmente dominada pela Coroa espanhola.

O estudo das culturas indígenas foi muito prejudicado por uma tradicional hierarquia existente entre escrita e oralidade. De fato, essa circunscrição do fenômeno cultural à uma escrita alfabética acaba tendo como resultado uma invisibilidade das diversas outras formas de escrita que não se manifestam unicamente em uma página, mas através de suportes acústicos, visuais e táteis. Essa nova maneira de estudar as tradições indígenas acaba por reconhecer a importância da oralidade e da verbalização das culturas originárias, permitindo ao historiador ampliar seu campo de fontes e adentrar no universo das músicas. É a partir desse arcabouço que podemos analisar os cantos ritualísticos uitotos, grupo assentado na região colombiana do Gran Caquetá (ALCOCER, 2015). As músicas entre os indígenas não devem ser vistas apenas como elementos da tradição nativa, mas necessita ser estudada enquanto uma reflexão em torno da experiência histórica desse povo aquando do contato com os europeus. É evidente que o quadro das relações interétnicas entre europeus e americanos que está imbrincado na vida dos uitotos alcança a realidade de outros povos originários da América.

Ao menos desde o século XVII, os povos que atualmente habitam a Amazônia colombo-peruana inseriram-se em relações comerciais que acabam por vinculá-los ao capital mercantil, participando de diversas maneiras na economia extrativa dedicada ao Ocidente. De fato, desde o intercâmbio de bens de manufatura ocidental até as grandes escravistas para fornecer mão de obra para as colônias espanhola, holandesa, inglesa e francesa, os sucessivos auges econômicos dos uitotos estiveram associados ao advento de epidemias de varíola, gripe e sarampo – quadro compartilhado pelos povos situados por todo o território americano (ALCOCER, 2015). E mais: a cultura uitoto convivia com intensa violência do exercício do controle social e territorial, o que contribuiu para dizimar severamente os povos originários da região. Além do massacre demográfico, as armas e os germes acabaram por auxiliar no desaparecimento de aspectos da cultura e dos

(7)

conhecimentos locais. Essa situação deve ser relembrada quando nos propomos a estudar as músicas ritualísticas dos uitotos.

Atualmente, se reconhece como etnia uitoto cerca de 6 mil povos ameríndios localizados na Amazônia colombo-peruana. As incursões dos conquistadores europeus ocasionaram uma certa dispersão inicial. Segundo Paulina Alcocer (2015), os principais assentamentos atuais se localizam nos rios Igarapaná, Caraparaná, no meio do Caquetá e em algumas localidades do Peru. No entanto, apesar da dispersão espacial e da heterogeneidade linguística que os compõe, os povos uitotos conformam uma mesma sociedade, compartilhando um mesmo complexo cerimonial organizado em torno do consumo ritualístico da coca e do tabaco. Apesar do notório etnocídio que acarretou no declínio da memória ritual e cultural do grupo, houve uma tentativa em preservar os dialetos nativos e a estrutura de clãs. Nesse ponto, um importante papel seria desempenhado pelas músicas, responsáveis por convergir aspectos da cultura uitoto e cantadas na língua tradicional.

Muito do que a historiografia conhece sobre as músicas uitotos são resultado de esforços de compiladores europeus – especialmente dos antropólogos. As primeiras tentativas vieram do etnólogo alemão Konrad Theodor Preuss (1869-1938), cujos livros acerca das canções e danças dos uitotos apareceram na Alemanha na década de 1920 em dois volumes. Mas será somente na década de 1990 que as obras de Preuss serão traduzidas ao espanhol, as quais coincidem com o advento dos trabalhos de Fernando Urbina Rangel (1992; 2011) e Juan Álvaro Echeverri (1997). Esses textos tentaram fixar as tradições culturais dos uitotos em uma escrita alfabética, visando transcrever o que até então havia subsistido na sabedoria dos anciãos. Ao relatar o papel da coca entre esses nativos, Rangel (2011) relata uma conversa que teve com o Abuelo José García, no qual o indígena colombiano relembra a secular tradição de cultivar a planta com as músicas: “Al sembrar se canta, se silba para que la coca se ponga contenta. Al cantar se pone feliz porque presiente que se va a hacer baile. Y así crece rápido. Esos cantos son las oraciones. ¡Como antiguamente todo se hacía coqueando!” (GARCÍA apud RANGEL, 2011, p. 201).

Através das comunidades sobreviventes, os historiadores, antropólogos e etnólogos conseguem acessar – mesmo que parcialmente – uma tradição cultural também

(8)

sobrevivente do processo de conquista europeia. São principalmente os vestígios dos rituais que aparecem nos textos entonados pelos indígenas, que ganham uma musicalidade proveniente de instrumentos locais (ALCOCER, 2015). O cultivo e uso ritualístico da coca é o principal tema das canções. De fato, a manutenção desse conhecimento mesmo depois de tantos séculos de contato com uma cultura de imposições sociais e políticas é um fenômeno que não deixa de surpreender aos pesquisadores. Mostra, como bem ressalta uma historiografia de revisão, que os ameríndios não foram simples agentes passivos do processo de dominação europeia, o que nos leva a contestar o próprio uso do termo “aculturação”. Apesar de se referirem ao início da conquista europeia, os relatos escritos pelo próprio Bartolomé de Las Casas evidenciam a ausência de passividade entre os povos nativos, os quais acabavam por mascarar sua resistência até mesmo através da preservação de sua língua ancestral. Era uma resistência manifesta na conservação, muitas vezes vista como idolatria – como aponta Clementina Battcock (2015) em seu estudo sobre os costumes de indígenas bolivianos.

No que concerne à colonização da Inglaterra nos territórios setentrionais do continente americano, vemos uma realidade distinta. O papel do indígena na constituição da cultura norte-americana permanece de menor proporção quando comparado aos atuais Estados da América Latina. A própria história dos EUA acaba por silenciar a presença dos nativos no território “descoberto” pelos europeus e sua importância na constituição do país. Embora não se possa desconsiderar o papel dos indígenas na construção da cultura estadunidense, os negros trazidos da África acabaram por possuir um maior destaque na literatura historiográfica. De fato, desde o começo de sua escravização, os africanos forçados a saírem de seu lar para o labor à serviço dos europeus na América inglesa estavam cientes das contradições inerentes a uma sociedade tão ardentemente comprometida com as ideias de uma irmandade cristã e liberdade e, ainda assim, tão envolvida na inumana e imoral instituição da escravatura. Mas, independentemente do quão confusos estivessem seus captores sobre os assuntos da liberdade, aqueles mantidos em cativeiro tinham clareza que seus direitos humanos à liberdade estavam sendo violados. Eles também tinham clareza que eles mesmos teriam de assegurar sua liberdade, uma vez que seus captores haviam miraculosamente conseguido excluir as pessoas de cor como membros da raça humana (JONES, 2005).

(9)

As formas de resistência haviam começado no próprio navio negreiro, onde os cativos africanos começaram sua luta ativa pela liberdade, expressa sobretudo em forma de revoltas, escape e suicídio. Em coerência com as tradições africanas, eles pontuavam suas ações com músicas – em que até mesmo as práticas de suicídio vinham acompanhadas de “canções de triunfo”. A luta pela liberdade nos afro-americanos se iniciava ainda no cativeiro africano, a partir de quando muitos escravos reconheciam a importância do divino para sua liberdade. Afinal, no seu quadro de referências derivado da África não havia nenhuma contradição entre esta fé absoluta no divino e a concomitante suposição de responsabilidade pelas ações individuais e coletivas (JONES, 2005). No decorrer do período da escravidão nas Treze Colônias e, posteriormente, no recém constituído território dos EUA, a luta pela liberdade tomava variadas formas: incêndios, insurreições, assassinatos, escapes, sobrevivências culturais, suicídios ou simplesmente a vontade férrea de viver. Combinando sua fé e esperança, aqueles ainda em cativeiro compuseram e adotaram canções rítmicas e alegres, cheias de antecipação de liberdade: os spirituals. Por exemplo, em uma de suas mais famosas canções, eles cantavam em júbilo:

O Senhor não libertou Daniel? Libertou Daniel, libertou Daniel? O Senhor não libertou Daniel?

Então porque não [libertar] todos os homens? Ele livrou Daniel da cova dos leões,

Jonas da barriga da baleia,

E os jovens hebreus da fornalha ardente, Então porque não [livrar] todos os homens? (apud JONES, 2005, p. 03)

Fica claro nos spirituals a importância da religião cristã no espírito libertários dos negros escravos, os quais viam seu futuro de liberdade como algo positivo. As histórias do Antigo Testamento tinham um papel especial nas letras das canções, posto que a história do povo hebreu havia se tornado sua história. Estas histórias serviram como fonte principal para os spirituals, sublinhando o fato de que os africanos escravizados não apenas desejavam liberdade, mas se identificavam mais fortemente com figuras ativamente envolvidas e no fim vencedoras nas batalhas por liberdade documentadas biblicamente. Além de fornecerem conforto e identificação coletiva, no entanto, as letras dos spirituals eram veículos espirituais através dos quais os africanos escravizados se transportavam para a efetiva experiência dos israelitas em cativeiro, utilizando relatos

(10)

bíblicos da vitória final para sustentar suas visões paralelas de vitória na América (JONES, 2005).

Muitos spirituals, ademais, foram usados como códigos secretos de comunicação para planos de escape, revoltas e protestos. Uma das canções mais representativas disso era “Go Down, Moses”:

“Assim falou o Senhor,” disse o corajoso Moisés, Deixe meu povo ir;

Se não, Eu irei ferir de morte seu primogênito, Deixe meu povo ir.

Vá, Moisés,

Desça a terra do Egito. Diga ao velho Faraó, Deixe meu povo ir!

Fuja furtivamente, fuja furtivamente, fuja furtivamente pra Jesus! Fuja furtivamente, fuja furtivamente para o lar

Não tenho tempo pra ficar aqui! Meu Senhor me chama,

Ele me chama através do trovão; A trombeta soa dentro da minha alma, Não tenho tempo pra ficar aqui! (apud JONES, 2005, p. 05-06)

Ainda que seja impossível determinar com qualquer certeza as datas de composição de qualquer canção específica, não há questionamentos de que os spirituals e outras canções eram usadas frequentemente como comunicação secreta entre companheiros cativos ou entre cativos e pessoas da comunidade livre [engajadas em movimentos abolicionistas] servindo para facilitar fugas ou revoltas. Algumas canções chegavam a servir como mapas, apontando o caminho para rotas que levavam a liberdade e segurança. A mais bem conhecida destas canções é “Follow the Drinking Gourd”, que direcionava escravos fugitivos a continuarem viajando em direção ao Big Dipper – nome dado ao conjunto formado pelas sete estrelas mais brilhantes da constelação de Ursa Maior, que foi reconhecido por várias civilizações diferentes:

Siga a cabaça! Siga a cabaça,

Pois o velho homem está sempre esperando para carregar-te a liberdade, Se você seguir a cabaça.

Quando o sol voltar e as primeiras codornas chamarem, Siga a cabaça,

Pois o velho homem está sempre esperando para carregar-te a liberdade, Se você seguir a cabaça.

(11)

Claramente, africanos escravizados empregavam spirituals e outras canções populares como comunicação codificada secreta anunciando planos de escape, revoltas e reuniões clandestinas, ou torcendo por seus companheiros em batalha. Mas seria um erro concluir que tal comunicação secreta fosse o único propósito da maioria dos spirituals ou que a necessidade de comunicação secreta serviu de principal motivação para suas criações. Canções como “Follow the Drinking Gourd” podem ter servido ao objetivo primário de facilitar fugas seguras para os fugitivos. No entanto, é provável que na grande maioria dos casos em que se empregavam os spirituals instrumentalmente para propósitos políticos se tratasse de uma improvisação sobre uma forma de arte já existente, não do objetivo primário de sua composição inicial. É notável que “Follow the Drinking Gourd” e outras canções similares tenham tido uma relativamente pequena vida ativa para além da circunstância histórica da escravidão. É provável que tenha havido muitas canções como esta utilizadas para comunicação secreta, mas a maior parte destas canções não sobreviveu para que pudéssemos analisa-las. Spirituals profundamente religiosos, como “Go Down, Moses”, continuam, mais de 130 anos após a emancipação, capturando o interesse e a atenção das pessoas por todo o mundo. Claro, uma razão para a sobrevivência destes spirituals sobre as canções mais esotéricas é que a natureza secreta de certas canções impedia que seus sentidos fossem revelados a coletores e observadores, por motivos óbvios. É impossível determinar a extensão do quanto este fenômeno esteve presente no desaparecimento destas canções do repertório da história oral. A despeito disso, podemos acreditar que uma razão adicional pela qual muitos spirituals sobreviveram seria porque as inspirações originais por trás de suas criações derivavam de experiências humanas profundamente significativas arquetipicamente, relevantes não apenas para a específica circunstância da escravidão, mas também para mulheres e homens lutando em questões de justiça, liberdade e integridade espiritual em todos os tempos e lugares.

Considerações Finais

Ao longo desse trabalho, traçamos um estudo do papel das músicas em dois contextos muitos distintos: nas colônias espanholas e inglesas. Apesar das distinções culturais historicamente características destas duas realidades, a escravidão enquanto

(12)

importante forma de mão de obra foi um fenômeno característico na história do continente americano. Fosse através do uso da mão de obra indígena ou dos negros africanos, o trabalho escravo foi a base das plantações e das empresas extrativas nas economias europeias implantadas no Novo Mundo. Nesse trabalho, buscamos mostrar que, além das formas convencionais de resistência à escravidão, a música atuou como um importante instrumento de resistência, sobretudo em seu aspecto cultural, ora contribuindo na preservação da cultura dos povos nativos, ora como esperança espiritual para os negros africanos.

Referências Bibliográficas

ALCOCER, Paulina. Un siglo de estudios sobre la literatura y los cantos rituales uitotos. Latinoamérica, México, n. 02, 2015, p. 185-202.

BATTCOCK, Clementine. Para el fin que el demonio pretende: el baile y el temblor, un mal a erradicar en los Andes. Perspectivas Latinoamericanas, El Taki Onqoy, 2015.

BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales 1929-1989. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991.

BRUIT, Héctor. Bartolomé de Las Casas e a simulação dos vencidos. São Paulo: Iluminuras, 1995.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de Fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.

CROSBY, Alfred W. Imperialismo Ecológico: a expansão biológica da Europa – 900-1900. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011.

DIAMOND, Jared M. Armas, germes e aço: os destinos das sociedades humanas. 20ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2018.

ECHEVERRI, Juan Álvaro. The People of the Center of the World: A Study in Culture, History, and Orality in the Colombian Amazon (Estudo de Pós-doutorado). Nueva York New School for Social Research, 1997.

ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.

GOULD, Stepen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

JONES, Arthur C. Wade in the Water: the Wisdom of the Spirituals. Colorado: Leave a Little Room, 2005.

(13)

MARKS, Robert B. Los orígenes del mundo moderno. Una nueva visión. Barcelona: Crítica, 2007.

MCNEILL, William H., MCNEILL, J. R. Las redes humanas: Una historia global del mundo. Barcelona: Booket, 2010.

NAPOLITANO, Marcos. Música & História – história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

RANGEL, Fernando Urbina. La coca. Palabras-hoja para cuidar el mundo. Maguaré, v. 25, n. 02, 2011, p. 199-225.

RANGEL, Fernando Urbina. Las hojas del poder: relatos sobre la cosa entre los Uitotos y Muinanes de la Amazonia colombiana. Bogotá: Centro Editorial de la Universidad Nacional

de Colombia, 1992.

SANTOS, Christian Fausto Moraes dos; CAMPOS, Rafael Dias da Silva.

Apontamentos acerca da Cadeia do Ser e o lugar dos negros na filosofia natural na Europa setecentista. História, Ciências, Saúde – Maguinhos, Rio de Janeiro, v. 21, n. 04, out-dez, 2014, p. 1215-1234.

SANTOS, Christian Fausto Moraes dos; NETO, Juscelino Pereira. A Natureza

Americana nas obras Turris Babel e Arca Nöe do jesuíta Athanasius Kircher. Revista Brasileira de História das Religiões, ANPUH, ano IV, n. 10, Maio 2011.

WATCHEL, Nathan. Os Índios e a Conquista Espanhola. In: BETHELL, Leslie. História da América Latina. América Latina Colonial. São Paulo: Edusp, 2018.

Referências

Documentos relacionados

A determinação dos fatores de modificação para elementos estruturais de MLC produzidos com madeira classificada pelo sistema E-rated é similar à feita com a madeira

Mas o abandono precoce não significa que estudantes, ao deixaram logo o curso que nunca quiseram, deixem a própria Unifal-MG ou mesmo o ensino superior.. Conforme se

Figura 11- Representação gráfica da porcentagem média de espermatozóides com membrana plasmática lesada, acrossomo lesado e sem potencial mitocondrial (LLS) durante a

Aos dezoito de agosto de mil oitocentos e vinte e dois, nesta Capela Curada de Alegrete, feitas as três canônicas admoestações e não havendo impedimento algum

No Brasil, a ferrugem atinge todas regiões cafeeiras e quase todas variedades de café cultivadas são susceptíveis a esta doença, portanto o controle químico é

A atividade de financiamento hipotecário em Espanha limitou-se à gestão da carteira de crédito em balanço, para além da gestão dos imóveis adjudicados em reembolso de

O presente trabalho apresenta análises estatísticas baseadas nos ensaios de resistência à compressão do concreto utilizado na construção da laje de fundo do

Esta obra foi estreada en 1919, ano no que morre o seu pai, e é considerada hoxe como a obra cumio do pianismo de Falla e unha das máis importantes escritas en España para este