R E G I S T R O D E C A S O S
RINOLIQUORRÉIA E HIDROCEFALIA POR GLIOSE DO AQUEDUTO
CEREBRAL
WALTER C . PEREIRA*; A . XAVIER DE L I M A N E T O * * ;
ROLANDO A . T E N U T O * * *
As fístulas de líquido cefalorraqueano não relacionadas a traumatismos
craniencefálicos ocorrem raramente. Suas causas mais comuns são
inter-venções neurocirúrgicas ou erosões ósseas determinadas por neoplasia ou
processo inflamatório crônico
6-
7; menos freqüentemente são conseqüentes a
malformações congênitas
5-
6.
7.
8. A ventriculostomia espontânea, em casos
extremos de hidrocefalia, é também relatada excepcionalmente 9. w
. N ã o
en-contramos, no entanto, nenhuma referência na literatura à ocorrência de
fístula de líquido cefalorraqueano, secundária à erosão óssea determinada
por hipertensão e dilatação do sistema ventricular, em casos de gliose do
aqueduto cerebral. Este fato justifica o registro de um caso que tivemos
o ensejo de observar.
J.R.J., 15 a n o s de i d a d e , s e x o m a s c u l i n o , c ô r b r a n c a , r e g i s t r o H . C . 759.406. I n -t e r n a d o e m 1-7-66. H i s -t ó r i a c l í n i c a i n i c i a d a 4 a n o s a n -t e s da i n -t e r n a ç ã o c o m fra-q u e z a nos m e m b r o s i n f e r i o r e s e, u m m ê s após, i n c a p a c i d a d e p a r a d e a m b u l a r s e m a p o i o . A o m e s m o t e m p o os f a m i l i a r e s n o t a r a m q u e o p a c i e n t e c o m e ç o u a a p r e -s e n t a r c r e -s c i m e n t o e x c e -s -s i v o da c a b e ç a , q u e d a a c e n t u a d a d a a t i v i d a d e i n t e l e c t u a l e a l t e r a ç õ e s do c o m p o r t a m e n t o . N o s ú l t i m o s d o i s a n o s t i v e r a d u a s crises c o n v u l s i v a s g e n e r a l i z a d a s . D e s d e o i n í c i o d o q u a d r o e n g o r d a r a e x c e s s i v a m e n t e . D o i s meses a n -tes d o i n g r e s s o n o h o s p i t a l c o m e ç o u a p e r d e r l í q u i d o i n c o l o r p e l a n a r i n a d i r e i t a , o q u e f o i i n t e r p r e t a d o c o m o " r e s f r i a d o " ; q u a n d o e m d e c ú b i t o d o r s a l o l í q u i d o e r a d e g l u t i d o , r e f e r i n d o o p a c i e n t e s a b o r d i s c r e t a m e n t e s a l g a d o . D e s d e e n t ã o o d é f i c i t m o t o r dos m e m b r o s i n f e r i o r e s se a t e n u o u , e o d o e n t e r e c o m e ç o u a d e a m b u l a r s e m a p o i o , e m b o r a c o m d i f i c u l d a d e . Antecedentes — D e s e n v o l v i m e n t o m o t o r a p a r e n t e -m e n t e n o r -m a l a t é os 11 a n o s de i d a d e ; q u a n t o a o p s i q u i s -m o , o p a c i e n t e c o n s e g u i r a , a t é a q u e l a i d a d e , c u r s a r os t r ê s p r i m e i r o s a n o s d o c u r s o e l e m e n t a r , s e n d o r e p r o v a d o d u a s v e z e s . Exame cllnico-neurológico — P a c i e n t e o b e s o e c o m h i p o d e s e n v o l v i m e n t o dos ó r g ã o s g e n i t a i s e x t e r n o s ; d i s t r i b u i ç ã o d a g o r d u r a e dos p ê l o s p u b i a n o s d o t i p o f e m i n i n o . M a c r o c e f a l i a a c e n t u a d a : p e r í m e t r o c r a n i a n o d e 63 c m . S o m d e " p o t e r a c h a d o " à p e r c u s s ã o do c r â n i o . P e r d a de l í q u i d o l í m p i d o e i n c o l o r p e l a n a r i n a d i r e i t a nas p o s i ç õ e s o r t o s t á t i c a , s e n t a d a e e m d e c ú b i t o l a t e r a l d i r e i t o . R e b a i x a -T r a b a l h o d a C l í n i c a N e u r o l ó g i c a da F a c u l d a d e d e M e d i c i n a da U n i v e r s i d a d e de S ã o P a u l o ( P r o f . A d h e r b a l T o l o s a ) : * N e u r o c i r u r g i ã o ; ** M é d i c o - e s t a g i á r i o ; *** N e u r o c i r u r g i ã o - c h e f e .m e n t o p s í q u i c o e v i d e n t e , c o m d é f i c i t m a i s a c e n t u a d o da m e m ó r i a de f i x a ç ã o e d o r a c i o c í n i o ; a g r e s s i v i d a d e e m r e l a ç ã o a o s f a m i l i a r e s e c o m p a n h e i r o s d e e n f e r m a r i a . D i f i c u l d a d e à m a r c h a , c a m i n h a n d o c o m passos c u r t o s e i n d e c i s o s ; p a r a p a r e s i a c r u r a l m o t o r a ; sinal d e B a b i n s k i à e s q u e r d a ; a t r o f i a e d i s c r e t a h i p e r t o n i a e m e x t e n s ã o dos m e m b r o s i n f e r i o r e s . F u n d o s o c u l a r e s n o r m a i s . N o r e s t a n t e o e x a m e n e u r o l ó -g i c o se m o s t r a v a s e m a l t e r a ç õ e s .
Exames complementares — Craniograma: m a c r o c e f a l i a ; a u m e n t o d a s i m p r e s
-sões d i g i t i f o r m e s e a l t e r a ç õ e s s e l a r e s c o n s e q ü e n t e s à h i p e r t e n s ã o i n t r a c r a n i a n a .
hlletrencefalograma: o n d a s l e n t a s d e 3 a 4 c / s e g , q u a s e c o n t í n u a s , difusas, p r e d o
-m i n a n d o n a s r e g i õ e s f r o n t a i s . Líquido cefalorraqueano (SOD): p r e s s ã o i n i c i a l d e 11 c m d e á g u a ( m a n ó m e t r o de C l a u d e ) ; a s p e c t o l í m p i d o e i n c o l o r ; 4 l e u c ó c i t o s p o r m m1; 47 m g d e p r o t e í n a s p o r 100 m l ( V D R L ) ; 700 m g d e c l o r e t o s p o r 100 m l ; 74 m g de g l i c o s e p o r 100 m l ; P a n d y e N o n n e o p a l e s c e n t e s ; T a k a t a - A r a n e g a t i v o .
Angiografia pela artéria carótida direita: sinais i n d i r e t o s d e d i l a t a ç ã o v e n t r i c u l a r . lodoventriculografia: b l o q u e i o d o s i s t e m a v e n t r i c u l a r a o n í v e l da t r a n s i ç ã o 3» v e n -t r í c u l o - a q u e d u -t o c e r e b r a l ; p r e s e n ç a d e l i p i o d o l n o i n -t e r i o r d o s e i o e s f e n o i d a l e das fossas n a s a i s ( f i g u r a 1 ) . E m 4866 o p a c i e n t e f o i s u b m e t i d o ã d e r i v a ç ã o v e n t r í c u l o p e r i t o n e a l , c o m i n -t e r p o s i ç ã o d e v á l v u l a d e H o l -t e r , p a r a e v i -t a r q u e o u l -t e r i o r -t a m p o n a m e n -t o d a fís-t u l a p r o v o c a s s e r e c i d i v a da h i p e r fís-t e n s ã o d o s i s fís-t e m a v e n fís-t r i c u l a r a m o n fís-t a n fís-t e d o b l o q u e i o . E m 10866 f o i f e i t a c r a n i o t o m i a f r o n t a l d i r e i t a p a r a c o r r e ç ã o da c o m u n i c a ç ã o a n ô m a l a da sela t u r c a c o m o s e i o e s f e n o i d a l , o b s e r v a d a na i o d o v e n t r i c u l o g r a f i a . F o i e n c o n t r a d a , d u r a n t e o a t o c i r ú r g i c o , f r a n c a c o m u n i c a ç ã o e n t r e o a s -s o a l h o d o 3v v e n t r í c u l o , p r o v a v e l m e n t e o rece-s-so -s u p r a - ó p t i c o , c o m a p a r t e p o -s t e r i o r d o s e i o e s f e n o i d a l , m e d i a n t e l a r g a e r o s ã o d a sela t u r c a . A s a d e r ê n c i a s e n t r e e s t a s d u a s e s t r u t u r a s , q u e f o r m a v a m o t r a j e t o f i s t u l o s o , f o r a m d e s f e i t a s , s e n d o a f a l h a óssea b l o q u e a d a c o m f r a g m e n t o s do m ú s c u l o t e m p o r a l . O p ó s - o p e r a t ó r i o d e c o r r e u s e m i n c i d e n t e s , c e s s a n d o i n t e i r a m e n t e a r i n o l i q u o r r é i a . O p a c i e n t e t e v e a l t a 10 d i a s a p ó s a s e g u n d a i n t e r v e n ç ã o c i r ú r g i c a , e c o n t i n u a s e n d o a c o m p a n h a d o n o a m -b u l a t ó r i o , s e m r e c i d i v a da fístula. C O M E N T Á R I O S
O aparecimento de hidrocefalia tardiamente, em adolescentes ou
adul-tos jovens, é uma das características da gliose do aqueduto cerebral n
.
Russell9 descreve esta condição como sendo uma proliferação lenta e
pro-gressiva da glia subependimária que invade a luz do aqueduto
trabeculan-do-o e, por fim, obstruintrabeculan-do-o. O mesmo processo ocorre no restante do
sistema ventricular, porém, em virtude da maior amplitude de sua luz, não
determina qualquer sintomatologia. A referida autora julga tratar-se de
processo de natureza inflamatória, embora outros autores admitam também
origem congênita ou neoplásicaa. N o caso que relatamos, o aparecimento
da hidrocefalia foi tardio, assim como a evidente descompensação da
hiper-tensão intracraniana após os 11 anos de idade. Tais fatos nos levaram a
admitir tratar-se de um caso de gliose do aqueduto. A iodoventriculografia
reforçou bastante essa hipótese, demonstrando imagem fortemente sugestiva
dessa afecção ^ fl. 1 2
.
O aspecto insólito da nossa observação foi a ocorrência de
rinoliquor-réia, determinada pela comunicação do 3.° ventrículo com o seio esfenoidal.
Tal fato pode ser explicado admitindo-se que a pronunciada compressão
da sela turca, pelo 3.° ventrículo dilatado e hipertenso, determinou solução
de continuidade do assoalho selar. A o mesmo tempo houve rotura da
pa-rede ventricular, estabelecendo-se a fístula. Ventriculostomias espontâneas
têm sido relatadas por outros autores como conseqüência de graus extremos
de hidrocefalia 9. l n
. Meyer (citado por Russell9) descreve um caso de
rino-liquorréia intermitente, determinada por tumor da glândula pineal, no qual
houve perfuração do seio frontal e rotura do corno frontal do ventrículo
lateral. Este caso parece-nos ser o único registrado na literatura que, em
alguns aspectos, se assemelha com o que relatamos. Outro pormenor
inte-ressante é o da localização da fístula por meio da iodoventriculografia.
O contraste positivo tem sido empregado por vários autores para a
locali-zação exata de fístulas de líquido cefalorraqueano
2-
4.
7-
8-
1 1. '-. Este
aspec-to é de grande importância prática para a planificação segura do aaspec-to
cirúr-gico, visando a correção de tais fístulas.
R E S U M O
É relatado um caso de hidrocefalia tardia, determinada por gliose do
aqueduto cerebral, complicada com rinoliquorréia. A fístula do líquido
ce-falorraqueano se estabeleceu em conseqüência da erosão da sela turca pelo
assoalho do 3.° ventriculo hipertenso e dilatado, determinando comunicação
entre a cavidade ventricular e o seio esfenoidal. O paciente foi operado,
tendo a fístula sido ocluída satisfatoriamente; previamente foi feita
deriva-ção ventrículo-peritoneal para evitar recidiva da hipertensão do sistema
ventricular.
S U M M A R Y
Cerebrospinal fluid rhinorrhea and hydrocephalus due to gliosis of the
cerebral aqueduct. Report of a case
A case of late hydrocephalus due to gliosis of the cerebral aqueduct,
complicated with cerebrospinal fluid rhinorrhea, is reported. The fistula
was formed by a large communication between the very dilated 3r d ventricle
and the sphenoidal sinus, in consequence to a erosin of the sellar floor.
The patient was operated on and the fistula satisfactority blocked;
previous-ly was made a ventriculo-peritoneal shunt to avoid the recurrence of the
ventricular hypertension.
R E F E R Ê N C I A S 1. E L V I D G E , A . R . — T r e a t m e n t o f o b s t r u c t i v e lesions o f t h e a q u e d u c t o f S y l v i u s a n d t h e f o u r t h v e n t r i c l e by i n t e r v e n t r i c u l o s t o m y . J. N e u r o s u r g . 24:11-23, 1966. 2 . G H O U R A L A L , S.; M Y E R S , P . W . & C A M P B E L L , E. — P e r s i s t e n t c e r e b r o s p i n a l r h i n o r r h e a o r i g i n a t i n g in f r a c t u r e t h r o u g h p e t r o u s b o n e and c u r e d by m u s c l e g r a f t : r e p o r t o f a case. J. N e u r o s u r g . 13:205-207, 1956. 3 . I N G R A H A M , F . D . & M A T S O N , D . D . — N e u r o s u r g e r y o f I n f a n c y a n d C h i l d -h o o d . C -h a r l e s C. T -h o m a s , S p r i n g f i e l d , 1954, p á g s . 121-122. 4 . J U N G M A N N , A . & P E Y S E R , E. — R o e n t g e n v i s u a l i z a t i o n o f c e r e b r o s p i n a l f l u i d fistula w i t h c o n t r a s t m e d i u m . R a d i o l o g y 80:92-95, 1963.5 . K L I N E , O . R . — S p o n t a n e o u s c e r e b r o s p i n a l o t o r r h e a . A r c h . O t o l a r y n g . 18: 34-39, 1933. 6. N E N Z E L I U S , C. — On s p o n t a n e o u s c e r e b r o s p i n a l o t o r r h e a d u e t o c o n g e n i t a l m a l f o r m a t i o n s . A c t a O t o l a r y n g . 39:314-328, 1951. 7 . P R I B A M , H . F . W . ; H A S S , A . C. & N I S H I O K A , H . — R a d i o g r a p h i c l o c a l i z a t i o n of a s p o n t a n e o u s c e r e b r o s p i n a l fluid f i s t u l a . C a s e r e p o r t . J. N e u r o s u r g . 24: 1031-1033, 1966. 8. R O C K E T T , F . X . ; W I T T E N B O R G , M . H . ; S H I L L I T O , J. Jr. & M A T S O N , D . D . — P a n t o p a q u e v i s u a l i z a t i o n o f a c o n g e n i t a l d u r a l d e f e c t o f a i n t e r n a l a u d i t o r y m e a t u s c a u s i n g r h i n o r r h e a . R e p o r t o f a case. A m e r . J. R o e n t g e n o l . 91:640-646, 1964. 9 . R U S S E L L , D . S. — O b s e r v a t i o n s on t h e P a t h o l o g y o f H y d r o c e p h a l u s . P r i v y C o u n c i l . M e d i c a l R e s e a r c h C o u n c i l S p e c i a l S e r i e s , L o n d r e s , 1949, p á g s . 41-50. 10. S W E E T , W . H . — S p o n t a n e o u s c e r e b r a l v e n t r i c u l o s t o m i u m . A r c h . N e u r o l . P s y ¬ c h i a t . 44:532-540, 1940. 1 1 . T E N G , P . & E D A L A T P O U R , N . — C e r e b r o s p i n a l f l u i d r h i n o r r h e a w i t h d e m o n s -t r a -t i o n o f c r a n i o n a s a l f i s -t u l a w i -t h p a n -t o p a q u e . R a d i o l o g y 81:802-806, 1963. 12. T U R N B U L L , I . M . & D R A K E , C. G. — M e m b r a n o u s o c c l u s i o n o f t h e a q u e d u c t of S y l v i u s . J. N e u r o s u r g . 24:24-33, 1966.
Clínica Neurológica — Hospital das Clínicas da Fac. Med. da Univ. de São Paulo Caixa Postal 3461 — São Paulo, SP — Brasil.