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UM MUSEU A CÉU ABERtO: A PRAçA DOS EX-COMBAtENtES DO MUNICíPIO DE SÃO GONçALO

Michele de Barcelos Agostinho*

RESUMO

Este trabalho trata da construção da Praça dos Ex-Combatentes do município de São Gonçalo, Rio de Janeiro, e analisa os elementos que a compõem, buscando compreender os usos e os sentidos a ela atribuídos naquele espaço urbano. Erguida durante a ditadura militar, em 1970, portanto vinte e cinco anos após o retorno dos expedicionários, a construção da referida praça contou com o apoio dos governos estadual e municipal, da sociedade e, obviamente, dos militares, os quais cederam as peças que fizeram da praça um monumento aos heróis da Segunda Guerra Mundial. A edificação de imaginárias urbanas em memória dos ex-combatentes foi uma prática comum em diversas cidades do Brasil. A praça em questão, entretanto, possui a particularidade de apresentar aos transeuntes objetos usados durante o conflito, transformando-a em um museu a céu aberto e em um lugar de memória. Além disso, nela encontramos valorados elementos da educação cívica e militar, tais como o apelo ao patriotismo, à ordem e ao trabalho.

Palavras-chave: Ex-Combatentes. Segunda Guerra Mundial. Imagens urbanas. Memória. an open air museum: the sQuare of eX-comBatants in sÃo GonÇalo city ABStRACt

This paper analyze the construction of the Square of Ex-Combatants in São Gonçalo, Rio de Janeiro, and analyzes the elements that composed it. Besides, this work tries to understand some uses and meanings related to that urban space. The Square of Ex-Combatants was built during the military dictatorship in 1970; thus, twenty-five years after back the Brazilian combatants of the expedition. The construction of that square were support by the state government of Rio de Janeiro, the city of São Gonçalo (RJ), the society, and, of course, the Brazilian militaries, whom provided the pieces, necessaries to the construction of square, a monument to the heroes of World War II. The construction of urban imaginary in memory of ex-combatants was a common practice in many cities in Brazil. The square of Ex-Combatants, however, has the particularity to present to the local people some objects, used during the conflict, which turn it into an open air museum and a place of memory. Moreover, we found valued elements of civic education and military, such as the appeal to patriotism, order and work.

Keywords: Ex-Combatants. Second World War. Urban imaginary. Memory. ____________________

* Doutoranda em História Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Técnica em Assuntos Educacionais do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ. Professora de História da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro. Contato: <michelebarcelos@mn.ufrj.br>

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um museo a cielo aBierto: la plaZa de los eX-comBatientes de la ciudad de sÃo GonÇalo

RESUMEN

En este trabajo se ocupa de la construcción de la Plaza de los Ex Combatientes de São Gonçalo, Rio de Janeiro, y analizalos elementos que la componen, tratando de comprenderlos usos y significados asignados a ella que el espacio urbano. Erigido durante la dictadura militar en 1970, por lo que veinte cinco años después del regreso de la expedición, la construcción de esta plaza tenía el apoyo de los gobiernos estatales y locales, la sociedad y, por supuesto, los militares, que dio las piezas hicieron la plaza un monumento a los héroes de la Segunda Guerra Mundial. La construcción del imaginario urbano en la memoria de los ex combatientes era una práctica común en muchas ciudades de Brasil. La plaza en cuestión, sin embargo, tiene la particularidad de presentar a los transeúntes objetos utilizados durante El conflicto, convirtiendo la en un museo al aire libre y un lugar de memoria. Por otra parte, encontramos los elementos valiosos de la educación cívica y militar, como la apelación al patriotismo, el orden y el trabajo.

Palabras clave: Ex combatientes. II Guerra Mundial. Imaginario urbano. Memoria. 1 INtRODUçÃO

A memória, onde cresce a história, que, por sua vez, a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens. (LE GOFF, 1984, p. 24).

Em outubro de 1970, no município de São Gonçalo, Estado do Rio de Janeiro, foi inaugurada a praça em memória aos ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial. Construída durante o governo do prefeito Osmar Leitão Rosa filiado à Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e inaugurada no governo de José Alves Barbosa – substituto de Osmar, que estava em campanha política –, a Praça dos Ex-Combatentes consistiu num projeto que contou com o apoio do governo estadual, da prefeitura municipal e da Associação dos Ex-Combatentes fundada em 1968 naquela cidade.

O então governador Geremias de Mattos Fontes, também partidário da ARENA e ex-prefeito de São Gonçalo, a pedido do prefeito Osmar, apoiou a iniciativa de construção da praça, cedendo o terreno para construí-la. Curiosamente, o terreno cedido pelo Estado inicialmente pertencia à Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE), mas encontrava-se em desuso quando fora entregue pelo governador à prefeitura para o erguimento da praça, segundo depoimentos de antigos moradores da cidade (SILVA, 2003). Não sabemos se houve acordos entre o governo e a CEDAE para a cessão da propriedade.

Situado no bairro do Patronato, entre a rua principal e a linha férrea, principais vias de acesso ao centro da cidade, o terreno destinado à futura praça

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certamente favorecia a revitalização da área. À prefeitura coube o custeio das despesas decorrentes da obra. Já a obtenção das peças a serem expostas ficou a cargo da Associação dos Ex-Combatentes, cujos membros negociaram com as Forças Armadas a doação dos objetos. Infelizmente, desconhecemos se há dados sobre tais negociações ou sobre a seleção das peças. Certamente, esses dados forneceriam importantes informações sobre a idealização, interesses e motivações dos agentes envolvidos no projeto.

Entendemos que a ocupação de um terreno em desuso, situado numa área de importante acesso ao centro da cidade, visava atender algumas demandas: o embelezamento urbano, a criação de um novo espaço de lazer para os citadinos e a preservação da memória da guerra, tida como justa, merecida e legítima, tendo em vista que vários moradores da cidade participaram do conflito. Assim, consideramos a Praça um projeto urbanístico de revitalização caracterizada pela inscrição da memória de um fato histórico no espaço público.

fotografia 1- praça dos ex-combatentes. patronato, são gonçalo, rJ. década de 1970.

Fonte: Acervo Sociedade de Artes e Letras de São Gonçalo. Disponível em:

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Na Praça dos Ex-Combatentes de São Gonçalo, temos expostos armamentos e artefatos utilizados na guerra, tais como um canhão antiaéreo, uma mina marítima, uma carga de profundidade (antissubmarino), um lança morteiros, um tanque de guerra, uma âncora e uma hélice de avião. Na parte central da praça, temos três mastros, que correspondem às bandeiras municipal, estadual e nacional, o brasão e o mapa do Brasil. Junto ao morteiro há a seguinte inscrição: “Na guerra e na paz, a grandeza da nação repousa no trabalho ordeiro e fecundo do seu povo e na unidade patriótica das suas classes armadas. Eternas guardiãs das liberdades democráticas e da integridade Pátria.” E junto à hélice de avião lemos “Força Aérea Brasileira (FAB), orgulho da nação heróica na guerra e gloriosa na paz”. Há ainda outra inscrição, agora junto ao mapa do Brasil: “como eles... amem e defendam esta terra”.

fotografia 2 - praça dos ex-combatentes vista pelos dois lados. Patronato, São Gonçalo, Rj. 2014

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2 MEMÓRIA DA GUERRA: LUGARES, OBjEtOS, NARRAtIVAS E IDENtIDADES

A construção de lugares de memória dedicados aos feitos da Força Expedicionária Brasileira no Rio de Janeiro teve início após o seu retorno da guerra. A entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial ocorreu em 1942 quando, em agosto daquele ano, o então presidente Getúlio Vargas declarou guerra ao Eixo. O ataque aos navios mercantes brasileiros na costa nordeste do país, levando à morte centenas de brasileiros, foi o estopim para que a opinião pública manifestasse seu apoio à participação do Brasil no conflito. Em 1943, teve início o recrutamento dos expedicionários que, em 1944, foram enviados à Europa, sob o comando do marechal Mascarenhas de Moraes (FERRAZ, 2005).

Em junho de 1945, a Força Expedicionária Brasileira (FEB) retornou ao Brasil, com baixa de 443 expedicionários. O relato de combates heróicos, principalmente daqueles ocorridos no Monte Castelo e em Montese, Itália, contra soldados alemães, coroou de glória os soldados brasileiros, transformados em símbolos contra a tirania e defensores da democracia e da pátria. A partir de então, teve início a produção de imaginárias urbanas com a temática da guerra, alocadas no Rio de Janeiro e em demais estados brasileiros. Por imaginárias urbanas constitui-se o conjunto de imagens cujos suportes materiais identificam o espaço público da cidade, tornando suas representações emblemáticas:

Elas instauram no plano simbólico a identidade urbana da cidade. Como metáforas de poder, as imagens urbanas se tornam instrumentos do poder simbólico, sacralizando e legitimando a ordem social vigente e as estruturas de poder da sociedade. A imaginária urbana afirma, então, a cidade como espaço de poder simbólico. (KNAUSS, 1998, p. 221-222).

Cabe mencionar, por exemplo, o Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, construído em junho de 1960 no Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro, na época capital federal. Ele apresenta um conjunto de alegorias: uma plataforma em concreto elevada a 31 metros de altura – elemento antifigurativo (MENESES, 2009), próprio das produções da segunda metade do século XX –, uma escultura em metal homenageando a Força Aérea Brasileira, uma escultura em granito homenageando os militares das três forças (Marinha, Exército e Aeronáutica), dois painéis em cerâmica que homenageiam os civis e militares mortos no mar, além do mausoléu, localizado no subsolo, que abriga os restos mortais dos combatentes brasileiros mortos na Itália. Tal monumento sacraliza os heróis nacionais, exemplos de:

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[...] sacrifício de vida pela Pátria, pela unidade, pela soberania nacional – não pessoal. [...] A morte, quando ocorre nestas condições, torna-se prova de cidadania, onde dispor da própria vida é um dever cívico, uma obrigação moral, fruto do sentimento de pertencimento a uma nação. (MAUAD; NUNES, 1999, p. 92).

Em Petrópolis, Município do Estado do Rio de Janeiro, temos o Monumento do Expedicionário Petropolitano com 5 metros de altura. Trata-se de uma coluna de granito, tendo no alto uma pira. Da base do monumento ergue-se uma figura de mulher em bronze, em tamanho natural. Na cidade de Campos, outro município do Rio de Janeiro, há o Monumento aos Expedicionários, o qual apresenta sete metros de altura. Nele, vemos a imagem de um soldado, um alto relevo alusivo ao embarque de voluntários para a Campanha da Itália, uma frase musical, em bronze, da marcha de Guerra “Brasil” e, na parte frontal, uma coroa de louros, em bronze, com a seguinte legenda: “Campos, à glória eterna dos que lutaram pela Pátria”. Em Bonsucesso, bairro do Rio, outro exemplo se situa na Praça das Nações, onde encontramos o busto do general Mascarenhas de Moraes, comandante da FEB. Notamos, portanto, o uso das imagens urbanas como recurso pedagógico do civismo, fruto de uma educação política conservadora. Contudo, no caso do monumento situado em São Gonçalo, ele:

[...] segue padrões próprios, apesar de possuir formas canônicas estabelecidas também em outras construções paralelas, como o obelisco, a placa e o marco, mas a característica de ser uma exposição ao ar livre dos objetos de guerra foge ao padrão dos demais monumentos. (SILVA, 2003, p. 17).

Diferentemente de muitas imaginárias em que as representações da guerra apresentam-se na forma de esculturas, em São Gonçalo os objetos que serviram à guerra são “distribuídos fora dos templos patrimoniais da lembrança e colocados à disposição dos habitantes [...]” (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996, p. 195), museificando a cidade, isto é, estendendo o museu para fora de seus muros. Segundo Michel de Certeau (1998), assim como as coleções museológicas retiram o objeto de seu contexto de uso e oferecem-no à informação, à curiosidade ou à análise de seus observadores, no espaço urbano igualmente ocorre esta operação na medida em que alguns objetos, espaços ou imóveis sofrem reapropriações, visando a novos usos.

Certeau (1998) afirma que tais objetos criam narrativas e estas narrativas são necessárias para tornar o lugar habitável, sem estranheza. Para todo espaço há relatos. E são os relatos que constroem identidades e formam sintaxes espaciais, vinculando o morador ao lugar que ocupa. Os objetos que compõem

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o imaginário urbano são mudos e, em razão disso, permitem que falem de si, ou seja, por pertencerem ao passado e, por isso, perderem a sua função na atualidade, transformam-se em patrimônio de acordo com as necessidades do presente. As narrativas construídas a partir deles consistem em:

[...] histórias corrompidas pelo tempo [...] educadas no presente. [...] elas devem ao mesmo tempo preservar e civilizar o antigo; tornar novo o que era velho. [...] As ‘velhas pedras’ renovadas se tornam lugares de trânsito entre os fantasmas do passado e os imperativos do presente. São passagens sobre múltiplas fronteiras que separam épocas, os grupos e as práticas. (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996, p. 194).

A esta operação o autor chama de bricolagem. Isso porque as narrativas são inventadas a partir de resíduos do mundo que, quando justapostos, dão forma homogênea ao relato, inventando um conjunto simbólico capaz de instaurar uma presença na ausência, visível nos espaços onde se instala a lembrança. Os lugares são, portanto, “histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados roubados à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar, mas que estão ali antes como histórias a espera e permanecem no estado de quebra-cabeças [...]”. (CERTEAU, 1998, p. 189).

No caso da praça em análise, a narrativa da guerra é marcante. Mas, além de preservar no espaço público a lembrança daquele episódio, a exibição das peças e dos textos escritos, numa relação recíproca de complementaridade, homenageia os combatentes e presta reconhecimento à ação das Forças Armadas do Brasil, o que naquele momento legitimava o governo da época – 1970, ano de inauguração da Praça, é caracterizado como os “anos de chumbo” do regime de exceção. O discurso cívico-patriótico ali embutido exalta a atuação militar e convoca os citadinos a seguirem seu exemplo. Pedagogia e memória cruzam-se naquele lugar:

Ao venerar o fato do passado e o personagem sacraliza-se a própria ordem social presacraliza-sente, articulando os tempos a partir da história do Estado. Aos povos cabe agradecer [...] esse princípio de gratidão instaura as bases da relação da Sociedade com o Estado a partir da construção de uma memória acerca do passado histórico que afirma a vontade geral como medida da unidade nacional. (KNAUSS, 1998, p. 81).

Para análise de narrativas, vale mencionar o trabalho Vera Casa Nova, que analisou os almanaques de farmácia da primeira metade do século XX. Embora o

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objeto de estudo da autora seja, na sua materialidade e forma, muito distinto do nosso, Casa Nova apresentou quatro elementos presentes na retórica do discurso, que nos são úteis para entender igualmente as narrativas da guerra. São eles: a persuasão, a fala direta, a narração e as provas que, articulados, tornam o que é dito verossímil e imitativo. Para convencer o outro a aceitar o que é dito, é preciso fazê-lo sentir ser o receptor da narrativa e provar-lhe que há evidências que tornam o discurso legítimo.

Aquele que faz o anúncio deseja que seus leitores acreditem que ele diz a verdade e que ele está ligado a uma determinada realidade social em que vive o leitor. Sentimentos e provas colocam em jogo, dentro do recurso retórico, a dialética do verossímil, de base popular, cujo raciocínio se constitui basicamente de um outro jogo: o da identificação e imitação. (CASANOVA, 2010, p. 81).

Esta imitação é fundada na analogia, que permite a relação entre identidade e semelhança possível através dos signos. Daí decorre a adesão, na qual o sujeito se reconhece no outro. No processo de identificação se estabelece um elo emocional com o outro, “elo de afeto que transforma o sujeito, segundo o modelo do outro. Seja por empatia, simpatia, projeção, imitam-se, consciente ou inconscientemente, assimilam-se ou interiorizam-se modelos.” (CASA NOVA, 2010, p. 82). Neste caso, a figura exemplar é imprescindível à retórica, pois ela consiste no modelo a ser seguido, que tem sua origem na imago, responsável por criar visões de mundo e “cujo radical está ligado ao verbo latino imitari e ao grego mimeomai, eu imito.” (CASA NOVA, 2010, p. 84).

A autora afirma que nas imagens e nos textos que compõem o discurso encontramos signos ideológicos, os quais são embasados em valores universais que acabam por conduzir à persuasão. No almanaque por ela analisado, temos a felicidade, a beleza e a saúde como valores-signos da publicidade. Quando inscritos no discurso, os signos ideológicos dão ao discurso um valor simbólico. Casa Nova (2010, p. 95) pondera que aí a “mensagem latente parece ser mais importante que a manifesta, pois seu conteúdo escapa ao controle do consciente.” No caso do estudo de Vera, por exemplo, para além do remédio, o receptor da mensagem publicitária adquiria o símbolo saúde.

A retórica da Praça dos Ex-Combatentes incide sobre valores-signos como: ordem, patriotismo, nacionalismo, civismo e trabalho. A exposição das peças prova a bravura e o heroísmo das forças militares e constroem uma narrativa da guerra. Inscrito no espaço público de livre circulação, o discurso ali presente visa à persuasão e à identificação dos olhantes e dirige-se diretamente a eles. Insere-se, naquele lugar, uma analogia entre povo ordeiro e classes armadas, ambas

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promotoras da grandeza nacional, seja pelo trabalho, seja pela defesa da ordem. Em um dos textos que compõem o cenário da praça, temos a comparação entre civis e militares, onde, pelo exemplo destes, aqueles são convidados a imitá-los: “como eles... amem e defendam esta terra.” Em outro texto igualmente inscrito no cenário da praça, o cidadão é persuadido a ser ordeiro na medida em que lhe é atribuído à responsabilidade, também partilhada pelos heroicos militares, de conduzir o futuro da pátria: “Na guerra e na paz, a grandeza da nação repousa no trabalho ordeiro e fecundo do seu povo e na unidade patriótica das suas classes armadas”.

A glorificação das Forças Armadas, a valorização da disciplina e a evocação do comportamento cívico-patriótico são fundamentadas no exemplo heróico dos combatentes. Isso porque a fabricação do herói e, consequentemente, sua mitificação, precisa responder às aspirações coletivas. Os heróis “[...] são, por isso, instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes políticos. [...] Herói que se preze tem de ter, de algum modo, a cara da nação.” (CARVALHO, 1990, p. 55).

Os expedicionários, considerados heróis nacionais, segundo seus contemporâneos tiveram justa e merecidamente o seu lugar de rememoração: os espaços públicos das suas cidades de origem, onde são expostos os restos de memória, ou seja, aqueles artifícios socialmente produzidos, cuja finalidade é manter viva a lembrança, materializando-a, para, então, superar o esquecimento. Esses artifícios são necessários quando não existe a memória espontânea. Daí a necessidade de tornar o passado presente através da construção dos lugares de memória.

Se habitássemos ainda nossa memória, não teríamos necessidade de lhe consagrar lugares. [...] Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais. [...] Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles [os lugares de memória] envolvem, eles seriam inúteis. (NORA, 1993, p. 8-13).

Segundo Nora (1993), os lugares de memória possuem atributos simultâneos: são materiais, simbólico e funcional. Material porque a memória precisa de suportes exteriores para se tornar perceptível. Simbólico porque carrega sentidos e representações. E finalmente funcional porque preserva as memórias coletivas. Assim, “a razão fundamental de ser de um lugar de memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial para [...] prender o máximo de sentido [...]” (NORA, 1993, p. 22).

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Mas, para haver os lugares de memória é preciso, antes, haver a vontade de memória. De acordo com Nora (1993), esses lugares são portadores de uma intencionalidade, consciente ou não, fruto do processo histórico. Cabe colocá-los sob a análise histórica a fim de se proceder a uma leitura dos significados que os monumentalizam. Isto porque “a memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta, e a torna sempre prosaica.” (NORA, 1993, p. 9).

A intencionalidade do monumento é corroborada por Todorov, que relaciona o processo de constituição da memória ao duplo movimento de lembrar/esquecer: “a memória não se opõe absolutamente ao esquecimento. Os dois termos que formam contraste são a supressão e a conservação; a memória é, sempre e necessariamente, uma interação dos dois.” (TODOROV, 2002, p. 149). E este processo que envolve, concomitantemente, a lembrança e o esquecimento, está subordinado a escolhas: “de todos os sinais deixados pelo passado, escolheremos só reter e só consignar alguns, julgando-os, por uma razão ou por outra, dignos de serem perpetuados.” (TODOROV, 2002, p. 143).

A memória é, portanto, uma encenação do passado, elaborada a partir de escolhas que servem às finalidades do presente. Ela estabelece verdades, sacraliza o passado e tem função militante na medida em que “luta pelas causas que considera justas, denuncia o que lhe parece intolerável, celebra o que lhe parece admirável, exprime convicções do cidadão.” (LABORIE, 2009, p. 86). As imaginárias urbanas constituem, deste modo, a materialização da memória que se quer instituir.

Jacqueline Wildi Lins (2010) destaca as diferentes temporalidades que residem nas imagens. A autora trabalha com o conceito de montagem, baseada nas considerações de Aby Warburg e de Didi-Huberman. A justaposição de tempos heterogêneos transforma os símbolos visuais num sintoma de memória, a qual não se trata de um depósito de tempos passados, mas de uma interpenetração entre passado e presente. Na imagem temos o elo entre os vários presentes que a memória perpassa. Assim, pensando na relação do agora com outrora, existe a busca e um possível caminho para pensar criticamente as imagens e/ou obras de arte. As impressões deixadas pelos artistas nas suas obras contam uma história. A obra é o lugar onde se definiram suas escolhas, as suas singularidades (LINS, 2010).

3 CONSIDERAçõES FINAIS

Longe de esclarecer todas as questões pertinentes ao tema, o presente texto buscou analisar os elementos que compõem a praça, considerando os usos e os sentidos a ela atribuídos. Desse modo, entendemos que a participação de políticos locais e dos ex-combatentes na edificação da praça buscava eternizar um passado memorável, homenagear os atores da guerra e glorificar as Forças Armadas que, naquele momento, tinham generais do exército na direção do país. Certamente, o discurso militar embutido na praça era bastante conveniente naquele contexto.

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Para aquele presente, o passado recente era digno de ser lembrado e perpetuado. O conjunto de objetos contribuía para conformar, no plano simbólico, uma relação entre cidadão e soldado com vistas ao sacrifício pela pátria em nome da ordem e da disciplina. Invadindo o espaço público, a memória dos combatentes da guerra legitimava a ordem política e quiçá suprimia os infortúnios do estado de exceção, tendo em vista que, para os realizadores da Praça dos Ex-Combatentes de São Gonçalo, eram as Forças Armadas, as “eternas guardiães das liberdades democráticas”, tal qual registrado na praça.

REFERÊNCIAS

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CASA NOVA, Vera. Comunicação, discurso e semiótica: dos almanaques a... Belo Horizonte: Veredas e Cenários, 2010.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 3. ed. Tradução Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998. v. 1.

CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: morar,

cozinhar. Tradução Ephraim Ferreira Alves e Lúcia Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 1996. v. 2. FERRAZ, Francisco César. Os brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

KNAUSS, Paulo. imagens urbanas e poder simbólico: esculturas e monumento Públicos nas cidades do Rio de Janeiro e de Niterói. Tese (Doutorado em História) Universidade Federal Fluminense, Niterói,1998.

LE GOFF, Jacques. Memória. In: ROMERO, Ruggiero. Enciclopédia Einaudi. Tradução Bernardo Leitão e Irena Ferreira. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984. v. 1.

LABORIE, Pierre. Memória e opinião. In: AZEVEDO, Cecília; et al. (Org). cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009.

LINS, Jacqueline Wildi. Arte, imagem e memória: reunindo as peças da inelutável cisão do ver. In: FLORES, Maria Bernadete Ramos; VILELA, Ana Lúcia (Org.). encantos da imagem: estâncias para a prática historiográfica entre história e arte. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2010.

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MAUAD, Ana Maria; NUNES, Daniela Ferreira. Discurso sobre a morte consumada. In: KNAUSS, Paulo (Coord.). cidade vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999. p. 92.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Cultura política e lugares de memória. In: AZEVEDO, Cecília et al. (Org). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009.

NORA, Pierre. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. projeto história: revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.

SILVA, Rogério Fernandes. a praça dos ex-combatentes: memória e esquecimento. 2003.50 f. Monografia (Licenciatura em História) - Faculdade de Formação de Professores, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2003.

TODOROV, Tzvetan. Memória do mal, tentação do bem: indagações sobre o século XX. Tradução de Joana Angélica D’Avila. São Paulo: Arx, 2002.

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