• Nenhum resultado encontrado

PROCESSOS DE CANONIZAÇÃO E RELATOS HAGIOGRÁFICOS DOS SANTOS MENDICANTES (SÉCULOS XIII E XIV): UM ESFORÇO DE SÍNTESE E UM FOCO DE ANÁLISE

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "PROCESSOS DE CANONIZAÇÃO E RELATOS HAGIOGRÁFICOS DOS SANTOS MENDICANTES (SÉCULOS XIII E XIV): UM ESFORÇO DE SÍNTESE E UM FOCO DE ANÁLISE"

Copied!
19
0
0

Texto

(1)

215

PROCESSOS DE CANONIZAÇÃO E RELATOS

HAGIOGRÁFICOS DOS SANTOS MENDICANTES (SÉCULOS

XIII E XIV): UM ESFORÇO DE SÍNTESE E UM FOCO DE

ANÁLISE

CANONIZATION PROCESSES AND HAGIOGRAPHIC TEXTS OF THE

MENDICANT SAINTS (13TH AND 14TH CENTURIES): A SYNTHESIS

EFFORT AND A FOCUS OF ANALYSIS

Igor Salomão Teixeira

UFRGS/Bolsa Produtividade CNPq Presidente da ABREM teixeira.igor@gmail.com

Resumo: Neste texto proponho uma análise

ampliada sobre a santidade oficial na Europa entre 1226-1378. A documentação utilizada neste artigo é composta por processos de canonização e relatos hagiográficos de santos e santas de Ordens mendicantes. A hipótese consiste em investigar se o conceito de Tempo de Santidade é uma ferramenta útil para a análise de diferentes causas de canonização que passavam a ter a produção das vidas de santos em concomitância com os processsos jurídicos de verificação dos milagres. A metodologia consiste em identificar, na construção da santidade, as inserções de hagiógrafos nos textos que produziram e a menção ao desenvolvimento das investigações. Para isso, memória institucional, repertório, demarcação e monumentalização foram termos instrumentalizados na análise. As conclusões apontam que o conceito tem validade por colocar diferentes casos em perspectiva comparada.

Palavras-chave: Tempo de Santidade; Processos de Canonização; Hagiografias

Abstract: The text proposes an extended

analysis about official sanctity in Europe between 1226-1378. The sources included canonization process and hagiographics texts of saints of mendicants orders. The hypothesis consists to investigate if the concept of Time of Sanctity is an useful tool to analyse differents canonizations cause that started to produce the lives of saints concomitantly with legal miracle verification processes. The method consists to indentify refferences of hagiographers in the texts they produced and mention of the development of investigated actions. Institutional memory, repertoire, demarcation and monumentalization were terms used in the analysis. The conclusions pointed out that the concept is valid for placing different cases in a comparative perspective.

Keywords: Time of Sanctity; Canonization

(2)

216

Introdução1

O título deste artigo está diretamente relacionado ao projeto de pesquisa “Os tempos da santidade: processos de canonização e relatos hagiográficos de santos das Ordens Mendicantes”, registrado na UFRGS entre 2011-2016. O principal objetivo era colocar a minha tese de doutorado em xeque. Ao estudar o processo de canonização de Tomás de Aquino, elaborei o conceito de tempo de santidade.2 Na

ocasião da defesa a banca de avaliação me instigou a pensar e problematizar se o tal conceito servia para analisar apenas o caso de Tomás de Aquino ou se teria aplicabilidade para outras situações. Então, o que apresento aqui é um esforço de síntese e um recorte analítico como resultados parciais dessa investigação. As reflexões mais aprofundadas podem ser lidas no livro Os tempos da santidade, publicado em 2020.3

Tomás de Aquino faleceu em 1274 com cerca de 45 anos. Em 1317 a Ordem dos Pregadores aprovou o início das investigações prévias sobre a fama sanctitatis do teólogo visando instrumentalizar um possível processo de canonização. Processo este autorizado por João XXII em 1318, inciado em 1319 com os primeiros interrogatórios; a segunda fase de depoimentos ocorreu em 1321. A canonização foi realizada em 1323. Portanto, o que chamo de Tempo de Santidade são os 49 anos entre a morte e a canonização.4 E, além disso, temos também o tempo do processo,

que foi cerca de 4-5 anos após a decisão papal pela abertura.

Essas informações não estão necessariamente em um campo da

1 Gostaria de deixar evidente que este é um dos momentos mais importantes na minha carreira como docente do ensino superior. A ABREM, o EIEM e a Signum não são decisivos ou marcantes só na minha trajetória. Há inúmeros colegas, amigos (as), estudantes de modo geral, que se formaram e se formam medievalistas a partir do que a Associação, o Encontro e a Revista representam e propõem. Essas palavras resumem os agradecimentos que foram lidos na Conferência ministrada durante o XIII Encontro Internacional de Estudos Medievais, em Salvador/2019, e que este artigo se propõe a sistematizar.

2 TEIXEIRA, I. S. Como se constrói um santo: a canonização de Tomás de Aquino. Curitiba: Prismas, 2014.

3 Idem. Os tempos da santidade: Processos de canonização e relatos hagiográficos de santos mendicantes (séculos XIII e XIV). Vitória: Milfontes, 2020.

4 Idem. O tempo da santidade: reflexões sobre um conceito. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 32, n. 63, p. 207-223, 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid= S0102-01882012000100010&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: mai. 2020. <https://doi.org/10.1590/S0102-01882012000100010>.

(3)

217

excepcionalidade. A questão é que, a historiografia, principalmente considerando a tese de André Vauchez, da década de 1980, me fornecia basicamente duas categorias para pensar a temporalidade dos processos de canonização: santos antigos e santos modernos. Os antigos seriam os com tempo entre a canonização e morte com mais de cem anos; os modernos, com menos de cem anos.5

O que intrigava nessa caracterização de Vauchez é a anulação de tempos intermediários ou destoantes dentro desses blocos. E, por isso, precisava de uma categoria que me permitisse pensar os processos tanto separadamente quanto em cruzamento. Esse ponto de partida revelou que, em um determinado período da história da sandiade oficial, o processo de Tomás de Aquino, sim, poderia fornecer elementos que destoavam dos seus contemporâneos ou de “mesmo tipo”. Quando falo de processos contemporâneos ou de mesmo tipo refiro-me aos processos de canonização dos santos e das santas mendicantes em um período desde a canonização do primeiro mendicante – Francisco de Assis – aos santos canonizados no “bloco” cronológico do papado de Avignon. (1228-1378)

A partir dos dados levantados durante a pesquisa identificamos tempos curtos (menores ou iguais a um ano – Antônio de Pádua e Pedro de Verona – até 4 anos – Francisco e Clara de Assis; Elisabete da Hungria) médios (13 a 20 anos – Domingos de Calaruega, Luis de Anjou) longo (49 anos – Tomás de Aquino). Além disso, se considerarmos santos que foram alvo de processos nos séculos XIII e XIV e foram canonizados após o recorte cronológico desta pesquisa, temos tempos longuíssimos (considerando a partir de Nicolas de Tolentino, 141 anos; Clara de Montefalco, 573 anos). Isso, embora possa ser enquadrado na categoria de santidade “moderna” de André Vauchez, mascara ou coloca no mesmo “bloco” tempos muito distintos.

Perguntamos: a demora para canonizar mulheres, como Clara de Montefalco, assim o foi por que era mulher? Isso não se aplicaria, por exemplo, aos casos de Elisabete da Hungria e Clara de Assis. A canonização de Clara foi rápida por que era franciscana? E Raimundo de Peñafort, demorou para ser canonizado por que era 5 VAUCHEZ, A. La sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Age: d’après les procès de canonisation et les documents hagiographiques. 2ª ed. Roma: EFR, 1981.

(4)

218

dominicano? Essas questões ficam mais complexas na medida em que Pedro de Verona era dominicano e foi canonizado em menos de ano após ser assassinado e a mesma rapidez que vemos em Clara de Assis não se verifica para o também franciscano Boaventura de Bagnoregio.

A partir dessa constatação, elaboramos algumas perguntas:

1. As canonizações assim se desenrolaram por causa dos grupos envolvidos? 2. Quem e quais eram esses grupos?

3. Além de grupos (nomes e filiações religiosas, cargos, regiões de origem), quais questões defendidas por eles poderiam atrapalhar e/ou acelerar as causas de canonização?

O recorte proposto neste artigo não responde a todas essas perguntas. Propomos pensar como e porque os hagiógrafos construíam suas narrativas e, com isso, inseriam-se nos relatos. Além disso, analisamos como as falas de homens e mulheres, nos processos de canonização, estavam entrelaçadas com as narrativas hagiográficas.

Trabalhamos com quatro termos. Memória institucional pode auxiliar seja pelo uso em separado de cada uma dessas palavras, seja pelo entendimento da expressão. Repertório, pois, uma das principais funções dos relatos hagiográficos era fornecer material para a elaboração de sermões. Demarcação. O sentido usado para este termo, nesta pesquisa, é demarcação espacial. Espaço este que pode ser simbólico: a cristandade; pode ser institucional: santos dominicanos, santos franciscanos; pode ser geográfico: Antônio de Pádua ou, de modo mais amplo, o recurso que diferentes lugares e de diferentes escalas farão dos santos padroeiros ou dinásticos, como Luis de Anjou ou de Toulouse. Monumentalização, pois a própria seleção de alguns casos em detrimento de outros, ou a dedicação de um texto a apenas uma pessoa e a inserção de textos sobre outras pessoas em uma espécie de “hagiografia coletiva” revelam essa operação realizada pelos hagiógrafos.

Gerardo de Frachet, que, entre 1250-1260, compôs a obra Vitae Fratrum, dedicou um capítulo para tratar da morte de frei Guilherme e de frei Bernardo, ambos de Roquefort; de Garcia de Aura, Estevão e Ramom Carbonerio. Estes homens foram martirizados em Avignon em 1242.6 O capítulo seguinte, da mesma obra,

(5)

219

dedica mais tinta e linhas a Pedro de Verona, assassinado dez anos depois, em 1252, na região de Como, próxima a Milão. Comparando esses dois capítulos na mesma obra, por exemplo, o martírio de 1242 é composto por nomes, personagens, local e algumas “maravilhas” decorrentes dele. Sobre Pedro, conhece-se que era de uma família de hereges e que com o fervor de suas palavras provocava confusão mental. Confusão esta que, ao mesmo tempo, gerou a ruptura com a família e que o levou a combater as heresias; também sabemos da recorrência multiespacial de seus prodígios. Anos depois, na Legenda aurea, os mártires de 1242 desaparecem e resta apenas Pedro Mártir. Neste capítulo, por exemplo, Jacopo de Varazze optou por basicamente transcrever a bula de canonização e não escrever algo aos moldes de seu predecessor, Gerardo de Frachet.7

Os santos mendicantes e suas hagiografias: entrelaçamentos entre o que “pode ser provado” e narrativa edificante

Como afirmado, na primeira parte do recorte escolhido, interessa como e porque os hagiógrafos apresentavam suas narrativas e inseriam-se nas mesmas revelando suas habilidades e dificuldades para estabelecer seus textos.

No prólogo da compilação anônima, produzida na Ordem dos Frades Menores na década de 1240. A obra cujo título é Dialogus de vitis sanctorum fratrum

minorum apresenta um importante panorama para o entendimento da noção de

“hagiografia coletiva”, da qual falamos anteriormente. É possível ler no texto: “Títulos antigos dignos de memória nos anais da religião muito utilizados para oferecer aos fieis”.8 A passagem inicial faz menção à necessidade de tratar dos

frades e seus feitos dignos de memória de modo que esses feitos sejam úteis. VISTO POR SUS CONTEMPORÂNEOS. Madri: BAC, 1947.

7 BOUREAU, A. “La patine hagiographique: Saint Pierre Martyr dans la Légende Dorée”. In: RENARD, E.; TRIGALET, M; HERMAND, X.; BERTRAND, P. (Org.). Scribere Sanctorum gesta: Recueil d’études

d’hagiographie médiéval offert à Guy Phillipart. Turnhout: BREPOLS, 2005. p. 359-366. É também de

Alain Boureau o termo que tomamos de empréstimo para “hagiografias coletivas”. Cf: IDEM.

L’événement sans fin: Récit et christianisme au Moyen Âge. Paris: Les Belles Lettres, 1993.

8 DIALOGUS DE VITIS SANCTORUM FRATRUM MINORUM. Apud: Fragmenta Franciscana. Roma: Tipografia Salustiniana, 1902. Disponível em: <https://archive.org/details/DialogusDeVitis>. Consultado em: fev. 2017. Tradução livre: “Venerabilium gesta patrum dignosque memoria titulos

antiquorum studio pietatis annalibus commendare fractum utilitatis plurimae posteriati fidelium consuevit afferre.

(6)

220

Escrita pouco tempo depois do Dialogus, a obra de Gerardo de Frachet apresenta outros elementos que nos auxiliam a pensar no porquê esse tipo de obra pode ser lida como uma memória institucional, para repertório, consequente monumentalização e também de demarcação. Escreveu o frade:

Reuniremos, pois, em um volume, para utilidade dos que leem, todos os exemplos e feitos memoráveis de nossos frades. Desses,

sob cujo esforço e suor, nasceu e cresceu a Ordem e através de seus méritos ela permanece. Esses que vieram para a nossa Ordem ou fora dela, ou que foram atribuídos a ela, podem ser considerados

verdadeiros e dignos de memória. Isso é importante para que

considerem, os que vierem depois, a excelência de sua Ordem e para que observem claramente com quanta perfeição caminharam os primeiros frades, nossos pais, e saboreiem a verdade. E, por isso, se guardem de ser indignos da santidade e fervor dos primeiros padres e envergonhem-se de suas negligências.

[...]

Além disso, muitos frades muito devotos nos pediram que não tivéssemos preguiça de compilar por escrito essas coisas antes que o esquecimento, que já apagara muitas do coração dos frades, enterrasse-as para sempre.9

Essas passagens expõem os objetivos da compilação – a utilidade, o não esquecimento, a afirmação de uma Ordem e a monumentalização dos feitos mais dignos dos primeiros frades e de outros que os seguiram realizando feitos igualmente notáveis.

Gerardo de Frachet invocou o Espírito Santo para receber o estilo para escrever sobre feitos tão dignos e não os deixar cair em esquecimento.10 A mesma

9 FRATRIS GERARDI DE FRACHETO, O.P. Vitae fratrum ordinis praedicatorum: necnon Cronica ordinis ab anno MCCIII usque ad MCCLIV. MOFPH. Leuven: Typis E. charpentier & J. Schoonjans. 1896. p.

02-04. Disponível em: <https://archive.org/details/fratrisgerardide01domi>. Consultado em: fev. 2017. Tradução livre: “Colligemus ergo in unum volumen ad utilitatem legentium omnia exempla et illustria

facta fratrum nostrorum, quorum laboribus et quorum sudoribus Ordo incoepit, et crevit, et quorum meritis perseverat, que in nostro Ordine vel extra de ipso Ordine acciderunt, vel quae anexxa fuerunt Ordini, de quibus potest haberi veritas et recordatio digna; ut dicant posteri et sui Ordinis dignitatem, necnon manifeste attendant in quanta perfectione ambulaverunt priores Fratres, patres nostri; et sapere pro veritate; ac si per hoc caveant a sanctitate et fervore priorum Patrum esse degeneres, ac pudeat eos suae negligentiae et torporis. […] Sollicitaverunt insuper nos fratres multi Deo devoti, ut super huiusmodi scripto compilando curam aliquam nos apponere non pigeret, antequam oblívio, que iam plurima de cordibus fratrum tulerat, omnia sepeliret. (Grifos nossos)”.

10 Na mesma passagem do texto, lê-se: “Por conseguinte, invoquemos ao Espírito Santo, hóspede daqueles que foram descritos neste livro, para que Ele, que lhes concedeu a realização de virtuosos exemplos, nos outorgue tomar a pena e dedicar a eles por escrito para a utilidade de muitos.”.

(7)

221

humildade e a busca por uma autoridade que legitime o texto pode ser encontrada, por exemplo, na Vita Prima, de Tomás de Celano, quando escreveu, entre 1228-1229:

Quero contar a vida e os feitos de nosso bem-aventurado Pai Francisco. Quero fazê-lo com devoção, guiado pela verdade e em ordem, porque ninguém se lembra completamente de tudo que ele fez e ensinou. Procurei apresentar pelo menos o que ouvi de sua própria boca, ou soube por testemunhas de confiança. Fiz isso por ordem do glorioso Papa Gregório, conforme consegui, embora em linguagem simples. Tomara que eu tenha conseguido aprender com ele, que sempre evitou o estilo floreado e desconheceo os rodeios de palavras11

Nesta passagem, o autor, que (re)escreveria, complementaria e reduziria, no mínimo, outras três vidas de Francisco também faz menção ao esquecimento como algo que motivou a realização da obra. Aqui, no entanto, diferente do que foi invocado por Gerardo de Frachet, o franciscano afirmou obedecer ordens do papa e que sua linguagem humilde, que inicialmente poderia ser um problema, o tornava ainda mais próximo de Francisco de Assis, também adepto a uma linguagem mais simples.

A atividade constante de reescritura das vidas de Francisco e a leitura dos prólogos também revela o caráter institucional pelo qual cada atividade passava. Exemplos de como o hagiógrafo recebia demandas para refazer seu trabalho revelam controvérsias. Ao menos é isso que podemos inferir a partir da Carta de Tomás de Celano a Frei Elias, que dá início ao texto Vita Brevior. Tomás de Celano reclama que a vita escrita anteriormente foi considerada prolixa por alguns e que isso gerou críticas “sobre sua abundância”. Por isso, então, tomou “o cuidado de

Tradução livre de: Igitur Sanctum Spiritum, habitatorem eorum, qui in hoc libro conscripti sunt, invocemus, ut qui eis dedit exempla virtuosa perficere, det nobis incoepto stylo ad utilitatem multorum scripto redigere.

11 B. THOMA DE CELANO. S. Francisci Asisiensis: Vita Prima. Roma: Tipografia Della Pace, 1880. p.12. Tradução da edição brasileira TOMÁS DE CELANO. Vida de São Francisco de Assis. Petrópolis: Vozes, 1982. p. 17 e cotejamento com a edição francesa dirigida por DALARUN, J. François d’Assise: Écrits,

viés, témoinages. Édition du VIIIe centenaire. Paris: CERF-Éditions Franciscaines, 2010, vol.1, p.

457-458): “Decus, et vitam beatissimi patris nostri Francisci pia devotione, veritate sempre praevia, et

magistral seriatim cupiens enarrare, quia omnia, quae fecit, et docuit, nullorum ad plenum tenet memoria, ea saltem, quase ex ipsius ore audivi, vel a fidelibus, et probatis testibus intellexi, jubente domino et glorioso Papa Gregorio, prout potui, verbis licet imperitis studui explicare. Sed utinam ejus merear esse discipulus, qui sempre locutionum vitavit aenigmata, et verborum falleras ignoravit!”

(8)

222

escrever em um discurso sucinto e resumido os pontos essenciais e úteis, omitindo o desnecessário”. No entanto, finaliza: “A obediência suplicante, espero, receberá o fruto de sua devoção tanto na prolixidade quanto na brevidade, pois, conforme a fé e o teor da história, ela segue em tudo a linha da verdade”.12

Quase vinte anos após os textos de Tomás de Celano, Boaventura de Bagnoregio ascendeu ao generalato da Ordem dos Frades Menores (1257, Capítulo Geral em Roma). Pouco tempo depois apresentou a Legenda Maior e também uma

abbreviatio desta, a Legenda Menor. No prólogo do primeiro texto, Boaventura

afirma:

Por sentir que sou indigno e absolutamente incapaz de escrever

a vida de tão venerável homem, não me atreveria a isso não fosse a

incitação fervorosa dos frades e a instância do Capítulo Geral, e

também pela devoção que tenho pelo santo pai, pois eu, ainda menino – conservo isso muito bem na memória – fui salvo da morte por

seus méritos. Seria ingratidão de minha parte me esquivar de

escrever sobre ele. Por isso aceitei esse trabalho: reconhecer que por meio de sua intercessão e de seus méritos Deus me conservou vivo, corpo e alma. Então, como testemunha viva de seu poder, também

reuni informações sobre sua vida e virtudes, atos e palavras que estavam dispersos ou negligenciados para que não fossem esquecidos quando morrerem os servos de Deus.13

12 BNF, NAL3245, 69r. Disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b10516082m/f137. item.r=nal%203245>. Consultado em: out. 2019. Transcrição em THOME CELANENSIS. Vita Beati

Patris Nostri Francisci (Vita Brevior). Présentation et édition critique par Jacques Dalarun. Analecta bollandiana, 133 (2015), p. 23-86. Citação, p. 35. Tradução nossa a partir da publicação pela UFRGS

em 2016 (DALARUN, J. A Vida Descoberta de Francisco de Assis... Op. Cit., p. 32-33): “Percipiet, ut spero,

supplex obedientia in prolixitate et brevitate fructum sue devotionis, cum hystorie fidem tenoremque secuta, teneat ubique lineam veritatis”.

13 BONAVENTURA. Legenda Major Sancti Francisci. Opusculum Primum. Prologus. Disponível em:

<http://www.documentacatholicaomnia.eu/03d/1221-1274,_Bonaventura,_Legenda_Major_Sancti_Francisci,_LT.pdf>. Consultado em: fev. 2017. Tradução livre com auxílio da edição franciscana, em Português (Disponível em <www.editorialfranciscana.org;files;5707_1_S_Boaventura_Legenda_Maior_(LM)_4af84ffa4a4a6.pdf >. Consultado em: fev. 2017) e com a edição em: DALARUN, J. François d’Assise: Écrits, viés,

témoinages... Op. Cit., vol. 2, p. 2238) “1 Ad huius tam venerabilis viri vitam omni imitatione dignissimam describendam indignum et insufficientem me sentiens, id nullatenus attentassem, nisi me fratrum fervens incitasset affectus, 2 generalis quoque Capituli concors induxisset instantia, et ea quam ad sanctum patrem habere teneor devotio compulisset, 3 utpote qui per ipsius invocationem et merita in puerili aetate, sicut recenti memoria teneo, a mortis faucibus erutus, si praeconia laudis eius tacuero, timeo sceleris argui ut ingratus. 4 Et haec penes me causa praecipua hunc assumendi laborem, ut ego, qui vitam corporis et animae a Deo mihi conservatam recognosco per ipsum et virtutem eius in me ipso expertus agnovi, 5 vitae illius virtutes, actus et verba quasi fragmenta quaedam, partim neglecta partimque dispersa, quamquam plene non possem, utcumque colligerem, ne, morientibus his qui cum famulo Dei convixerant, deperirent (cfr. Ioa 6,12)”.

(9)

223

Nesta passagem Boaventura informa sobre uma decisão da instância legislativa da Ordem: o Capítulo Geral. E, de certa forma, procura legitimar a veracidade de seu texto na autoridade do próprio fundador e da relação específica do hagiógrafo com o hagiografado: o santo intercedeu em favor de Boaventura. Ao final do excerto também é possível identificar o objetivo principal da elaboração do texto: reunir fragmentos dispersos ou negligenciados de modo a perpetuar os feitos “para que não fossem esquecidos”. Nesta passagem podemos ainda perceber a invocação da memória do hagiógrafo como autoridade para a escrita, pois, ele afirma lembrar de fatos de quando era criança, ao mesmo tempo que outros fatos podiam ser esquecidos por outras pessoas. O recurso da incapacidade para a escrita também não é exclusivo do texto de Boaventura.

Essas características podem ser encontradas em hagiografias posteriores. Fazemos menção específica ao texto que Raimundo de Cápua escreveu sobre Catarina de Siena. Desde o prólogo da obra o dominicano justifica a realização do texto para que os feitos da santa não caiam em esquecimento. Além disso, há uma relação direta entre o que está escrito com a verdade - “sem nenhuma ficção, nenhuma invenção, nenhum erro substancial”. Raimundo de Cápua, em todos os capítulos da hagiografia, faz a referência às suas fontes (orais, escritas, oculares), considerando sua própria personagem e a si mesmo como tal. A obra é repleta desses marcadores de verificação:

Tudo o que eu relatei neste capítulo é conhecido por quase toda cidade ou pela maioria das pessoas. As demais informações eu peguei seja com nossa santa virgem, seja com Lapa, sua mãe, seja com muitos outros religiosos e seculares, vizinhos, conhecidos ou parentes de Tiago [pai de Catarina].14

A relação próxima entre Raimundo e Catarina extrapola a relação de “fonte de informação”. Raimundo de Cápua afirma que em vários momentos era como se

14 RAIMUNDO DE CÁPUA. Vie de sainte Catherine de Sienne. Paris: Téqui, 2000. p. 21. Tradução livre de: “Tout ce que j’ai rapporté dans ce chapitre est connu de presque toute la ville ou de sa plus grande

partie. J’ai appris le reste soit de notre sainte vierge elle-même, soit de Lapa as mère, soit de plusieurs religieux et séculiers, voisins, connaissances ou parents de Jacques”.

(10)

224

Catarina aparecesse para ele e ditasse o que ele escrevia. É possível perceber que o autor lança mão da noção de fama publica. Em capítulo no qual narra a entrada de Catarina para o braço feminino da Ordem dos Pregadores, Raimundo de Cápua encerra com a seguinte afirmação: “…o recebimento do hábito por Catarina é um fato notório para todos aqueles que a conheceram e não há necessidade de provar através de algum testemunho em particular”.15 O autor apresenta também, na

terceira parte da obra, pequenas biografias de suas principais fontes: Alexia de Siena, Françoise de Siena e Lisa (“conhecida em toda a cidade de Roma, mas, principalmente, na vizinhança do bairro onde vive” e cunhada de Catarina de Siena); Frei Santo, o florentino Barduccio, Estevão Maconi, de Siena, Rainério de Pagla de Siena. Os três últimos foram “secretários aos quais Catarina ditou suas cartas e seu livro”.16

Esta passagem na qual o hagiógrafo informa que Catarina “ditou” coloca a pesquisa que realisamos em contato com a temática das “margens” deste dossiê e também de temáticas relacionadas à palavra das mulheres na Idade Média.17

A santidade, as mulheres, as ordens mendicantes

Ana Benvenuti Papi ao escrever sobre “a santidade no feminino”, em texto publicado em 1991, falou de uma heterogeneidade social.18 Esta heterogeneidade

pode ser exemplificada nos casos de Clara de Assis – de família nobre e que passa a perder poderes na fase comunal da história de Assis – e Catarina de Siena – filha de um tintureiro e que pertencia aos popolani. Segundo a autora, as tensões sociais na Itália comunal também passaram a refletir nas formas de vida das mulheres que entravam para a vida religiosa. Um caso similar aos de Clara e de Catarina é o de Margarida da Hungria (1242-1270, canonizada em 1943).

15 Idem. Ibidem. p. 73. Tradução livre de: “D’ailleurs, la réception de Catherine à l’habit est um fait notoire pour tous ceux qui l’ont connue, et n’a besoin d’être prouvée par aucun témoignage particulier”. 16 Idem. Ibidem. p. 337-341.

17 BROCHADO, Claudia C.; DEPLAGNE, Luciana C. (Org.). Vozes de mulheres da Idade Média. João Pessoa: UFPB, 2018.; GARÍ, Blanca. (Org). Redes femeninas de promoción espiritual en los Reinos

Peninsulares (s.XIII-XVI). Roma: Viella, 2013.

18 BENVENUTI PAPI, Ana. “La santità al femminile : funzioni e rappresentazioni tra medioevo ed età moderna”. In: LES FONCTIONS DES SAINTS DANS LE MONDE OCCIDENTAL (IIIE-XIIIE SIÈCLE). Actes du colloque de Rome (27-29 octobre 1988) Roma: École Française de Rome, 1991. p. 467-488.

(11)

225

Estamos diante de um tempo de santidade extremamente longo (673 anos). Embora a canonização não tenha ocorrido entre os séculos XIII e XIV, há, desse período, uma extensa produção hagiográfica e as atas sobre a fama publica. Segundo Viktória Hedvig Deák, “santa Margarida foi a primeira religiosa dominicana que a ordem reconheceu como ‘sua’” ao ponto de fazer “grandes esforços” para a sua canonização.19 A autora analisou os relatos sobre santos escritos por dominicanos e

a relação entre esses escritos e a “santidade no feminino”. Para Deák há uma diferença entre as empreitadas hagiográficas sobre Domingos, Pedro e Tomás e hagiografias sobre as religiosas da ordem. Deák defendeu que, para entender a atuação dos dominicanos nas causas dessas religiosas, é preciso compreender como a ordem atuava na cura mulierum. Segundo a autora, a produção hagiográfica, no caso dos homens canonizados, forma “uma espécie de anexo aos materiais reunidos nos processos”. A tese defendida por Déak é que, para as religiosas, por mais que textos tenham sido escritos com a mesma função, os processos não foram bem sucedidos à época porque os homens da Ordem não tinham pelas monjas a mesma consideração que tinham pelos confrades.20

As reflexões de Deák dizem respeito ao tempo após a morte de Margarida da Hungria, ou seja, após 1270. Para um período anterior, as historiadoras brasileiras Carolina Coelho Fortes e Andreia Cristina Lopes Frazão da Silva desenvolveram uma análise que complementa e reforça o argumento de Deák. No texto “A vida religiosa feminina e as relações de poder na Ordem dos Pregadores”, as autoras utilizaram cartas escritas entre 1221 e 1236 pelo então Mestre Geral Jordão da Saxônia a, dentre outras pessoas, Diana de Andaló, monja do mosteiro de Santa Inês em Bolonha.21 A partir das análises feitas , é possível inferir que a relação que os homens

da Ordem dos Pregadores estabeleciam ou procuravam estabelecer com as

19 DEÁK, Viktória. H. La légende de sainte Marguerite de Hongrie et l’hagiographie dominicaine. Paris: Cerf, 2013. p.13.

20 Idem. Ibidem. p. 120-168.

21 FORTES, Carolina. C; SILVA, Andreia. C. L. F. “A vida religiosa feminina e as relações de poder na Ordem dos Pregadores: reflexões a partir do epistolário de Jordão da Saxônia”. Horizonte, Belo Horizonte, v. 15, n. 48, out./dez. 2017. p. 1233. Disponível em:

(12)

226

mulheres que se associavam às formas de religiosidade feminina institucionalizada e tutelada por eles gerou um conjunto de discussões que estava além do âmbito da santidade das vidas das monjas. As questões eram de ordem espiritual, jurídica e monetária. Isso certamente auxilia na compreensão do argumento de Viktória Deák sobre Margarida da Hungria.

Margarida da Hungria foi alvo de uma investigação quase imediatamente após sua morte. Segundo Deák, essa empreitada foi ordenada por seu irmão, o rei Estevão V, em 1271. Em 1276 o papa dominicano Inocêncio V reabriu o inquérito.22

Os dados que sobreviveram desse processo revelam ao menos 110 testemunhas entre elas 38 monjas dominicanas, 6 frades dominicanos, incluindo o confessor de Margarida, Marcel, 6 beguinas, 6 mulheres nobres, 10 mulheres não nobres, 5 padres ou clérigos, 5 monges dominicanos, 2 homens nobres, 1 médico, 3 burgueses, 19 homens não nobres e 3 personagens não identificáveis.23

A partir do que analisou Deák, há uma divisão significativa entre o que responderam as 38 religiosas e os demais interrogados. Principalmente pelo fato delas terem convivido com Margarida. A autora apontou que, para os leigos e leigas, Margarida era uma santa com características taumatúrgicas tradicionais (cura de doenças). Diferentemente, para as religiosas, os milagres operados por Margarida ainda em vida eram de outra natureza: profecias, fenômenos de ordem mística e um milagre punitivo. Para a historiadora húngara, o processo de canonização de Margarida, realizado no século XIII, está no “meio do caminho” entre o processo de Clara de Assis – desenvolvido rapidamente, com poucas testemunhas interrogadas – e outro processo, mais longo, a saber o de Clara de Montefalco (Tempo de Santidade 573 anos), analisado a seguir.

Clara morreu em 17 de agosto de 1308 com quarenta anos no mosteiro de Santa Croce da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho. Era filha de Damião e de

22 Os originais foram perdidos e, além disso, foram traduzidos do idioma original para o latim antes de serem enviados ao papa. O texto foi descoberto em 1641 quando uma nova tentativa para canonizar Margarida foi iniciada. Esse texto foi copiado pelos dominicanos em 1729 e pelo bispo da Transilvânia em 1780. O “original” do século XVII foi perdido e apenas a cópia da Transilvânia é conhecida atualmente a partir de uma publicação de 1896.

(13)

227

Giacoma, que foi também a segunda abadessa daquele mosteiro. Imediatamente após sua morte seu corpo foi aberto e, segundo narram as fontes jurídicas e hagiográficas, no seu coração foram encontrados símbolos da paixão de Cristo, como, dentre outras coisas, o crucifixo, o flagelo e a coroa de espinhos. Segundo Menestó, o primeiro sinal da excepcionalidade de Clara foi devidamente registrado em presença de autoridades civis e eclesiásticas. Dez meses após, em 18 de junho de 1309, o legado do bispo de Spoleto, Berengário, obteve do bispo Pedro Paulo Trinci a missão para iniciar uma investigação sobre os fatos relacionados à vida e morte de Clara. Esta primeira investigação durou até abril de 1310 e teve outras fases até 1315. Neste momento a Sé apostólica – já em Avignon – estava vacante (Clemente V morreu em 1314 e João XXII foi eleito em 1316). Portanto, foi necessário esperar a entronização do novo papa. Dessas pesquisas foram registrados doze depoimentos pelo cardeal Napoleão Orsini, que desempenhou importante função nesse processo. Os interrogatórios ocorreram no mosteiro de Santa Croce até o mês de julho de 1319. Os inquisidores dispunham de 315 artigos para o interrogatório e foram coletados ao menos 486 depoimentos. As atas foram enviadas ao papa João XXII, que determinou aos cardeais Nicolau Alberti de Prato, Vital de Furno e Napoleão Orsini que examinassem os registros e emitissem um parecer em consistório. Em dez anos, a comissão foi modificada devido a morte de Nicolau, em 1321; Vital foi substituído por outro motivo – o qual Menestó não esclarece. Os primeiros substitutos morreram em 1323 e 1325. A comissão que redigiu o documento conhecido como

Relatório dos três cardeais foi formada, então, por Napoleão Orsini, Pedro de

Arreblayo e Bertrando de Turre. O relatório é dividido em vida e milagres. Os milagres são classificados em milagres em vida, na pessoa de Clara, e pós-morte. Mesmo com todo este trabalho e durante o pontificado do papa que autorizou a abertura, o processo não teve prosseguimento.24

A documentação do século XIV chegou a nós de forma fragmentária e incompleta, pois, das 486 testemunhas interrogadas entre 1318-1319, sobreviveram apenas 238 depoimentos. Porém, é possível reconstituir o nome de 24 MENESTÓ, E. Introduzione. In: Idem. (Ed.). Il processo di canonizzazione di Chiara da Montefalco. Spoleto: CISAM, 1991. p. XXIII-XXXVII.

(14)

228

quase todas as pessoas interrogadas a partir do cruzamento com o Relatório dos três cardeais. Menestò, além de fornecer todos os nomes, informa que dos 315 articuli

interrogatorii temos a lista de pouco mais de 200 questões (do 13 ao 221). Segundo

o autor, o dossiê completo deveria ter ao menos seis volumes: 1) Documentos de autorização do processo, instituição dos legados papais e os artigos do interrogatório; 2) os depoimentos de Joana de Egidio de Montefalco e da segunda interrogada, Illuminata; 3) os depoimentos das testemunhas 3 a 37; 4) testemunhas 38-66; 5) testemunhas 67-238 e, por fim, 6) testemunhas 239-486. Deveria, ainda, ser completado com outro documento contendo os testemunhos do processo instituído na Cúria romana pelo cardeal Orsini. Neste último caso, Menestò refere-se ao Ms. ASV, Arch. Congr. SS. Rituum, Proc. 695 que, no fólio 7v, aprerefere-senta a seguinte inscrição: “Libro VIIº. Et prime inquisitions facte in curia, dominus Angelus testis secundus super VIº capitulo…”.25

O corpus documental dos interrogatórios: sobre gênero e identidades atribuídas

Na lista oferecida por Menestò é possível identificar o seguinte panorama: 486 testemunhas (69 não identificadas/417 identificadas = 85,8%/251 mulheres = 60,19% do total de pessoas identificadas/15 irmãs/6 monjas/136 mulheres acompanhadas de epítetos masculinos e/ou status social, como mãe, esposa…/44 só com indicação do nome/1 como Domina sem associação com epítetos ou funções). Porém, desse total de 486 testemunhas sobreviveram parcial ou integralmente os registros dos depoimentos de: 04 irmãs (Testemunhas 1, 38, 39 e 67); 123 do total de mulheres cuja identificação é acompanhada de epítetos masculinos e/ou status social; 04 só com indicação do nome. Neste sentido, o corpus de depoimentos de mulheres neste processo e que sobreviveu até os nossos dias é formado por um total de 131 dos 238 depoimentos sobreviventes, o que corresponde a 55,04%.

Na tabela é possível perceber alguns elementos que revelam tanto o funcionamento do processo quanto como a fala das mulheres foi acessada para a

(15)

229

reconstituição de alguns fatos investigados. Dentre os artigos do interrogatório com o maior número de respostas anotadas, entre o LXXXVI e o LXXXVII há quase a repetição das mesmas testemunhas. Das cinco respostas, 04 são mulheres (1, 38, 39 e 67) e 02 homens (testemunha 45 para o artigo LXXXVI e testemunha 82 no artrigo seguinte). Nesses dois artigos as falas das mulheres correspondem a 80% das anotações. O artigo com a maior proporção de respostas de mulheres é o CXXVII. As sete respostas são de mulheres (1, 38, 39, 46, 215, 216 e 234). O bloco dos artigos finais (CCCX-CCCXV), que são os com o maior número de respostas, é, ao mesmo tempo, o bloco no qual não existem falas de mulheres registradas.

Artigo Total de Respostas Mulheres Testemunhas

LXXXVI 5 4 1, 38, 39 e 67 LXXXVII 5 4 1, 38, 39 e 67 CXIX 5 3 1, 38, 39 (215) CXXVII 7 7 1, 38, 39, 46, 215, 216, 234 CCXLIIII 7 5 40*,41*, 208, 209, 233 CCXLVI 7 1 (175)* CCCX 11 0 0 CCCXI 10 0 (215) CCCXII 11 0 (215) CCCXIII 11 0 (215) CCCXIIII 9 0 (215) CCCXV 10 0 (215)

Tabela 1: Artigos do Interrogatório sobre Clara de Montefalco e o gênero das testemunhas.

Legenda: * = sem identificação do artigo no depoimento. O conteúdo permite presumir a relação; (175)* = Menestò indica que a testemunha foi interrogada, porém, no texto da edição não consta nem o artigo anotado na resposta o que impossibilita também a identificação do artigo pelo conteúdo.; (215) = Menestò indica que a testemunha foi interrogada, porém, na edição não consta o registro.

O dia era 29 de junho de 1319. Cecchola (Testemunha 215) depõe sobre, ao que tudo indica, os momentos finais da vida de seu pai. Momentos os quais disse não se recordar bem porque era muito pequena. Portanto, sua memória daquela situação vinha apenas do que ouviu dizer sobre. Essas informações, além de remeter novamente à questão dos tempos do/no processo, à relação entre memória e esquecimento e à repetição de informações, devem ser cotejadas com o que outras

(16)

230

testemunhas disseram sobre o mesmo fato. E este caso é ainda mais significativo pois o artigo CXXVII é o que possui a totalidade de respostas de mulheres conforme indicado anteriormente. O assunto do artigo é um acidente no qual esteve envolvido o pai de Cecchola. Paganonius escavava perto do mosteiro, foi soterrado e perdeu a vida. Porém, ao ouvir que ele tinha falecido sem a confissão, Clara intercedeu pelo homem. O milagre investigado, portanto, é o da breve ressurreição de Paganonius, por intervenção de Clara, para que pudesse confessar. Feita a confissão, morreu.26

A rede de informações que compõe a reconstituição deste fato é formada por mulheres de diferentes status/funções sociais. Sobre Cecchola não há identificação para além do fato de ser filha de Paganonius. As demais mulheres assim estão identificadas: Irmã Marina [do] mestre Tiago de Monte Falco; Irmã Tomasa, filha do falecido mestre Angeli de Monte Falco; Senhora Agnes, esposa do mestre notário Tomás de Montefalco; Pasqueta, esposa de Andreuctii de Montefalco e Palmola, esposa de Fancioli e filha do falecido Riccarionis de Colle Ciocchi, districtus Montis Falchi. A partir desses epítetos, podemos afirmar que a identificação ou identidade atribuída a essas mulheres está sempre atrelada à forma de vida (religiosas, leigas) e à condição de filha ou esposa.

O que disseram essas mulheres sobre o artigo CXXVII? E, mais importante: em que as falas registradas auxiliam na compreensão da palavra das mulheres, seu cotidiano e suas especificidades?

Irmã Joana (t.1) informa que ouviu sobre o fato a partir de relatos das irmãs Illuminata (t.2) e Angelutia (t.8) e de “muitas outras pessoas fidedignas”. Além disso, disse que estava na hora do almoço e que Clara disse a ela: “Oh, Joana, que pecado e quão grave aquele pobre homem ter morrido trabalhando enquanto escavava e morreu sem confessar!…”.27 Joana segue a descrição das falas de Clara até chegar no

26 . "Item dicit et probare intendit quod unus homo nomine Paganonus, cavabat arenam in quadam fovea profunda prope monasterium, et grepum mangnum desuper cecidit super eum, et stetit sepultus sub terra diu. Et postea gentes venerunt et quesiverunt eum diu quia nesciebant bene in qua parte incerte. Set tamen post bonam horam invenerunt mum mortuum, et extraxerunt mum mortuum, et amici eius portaverunt eum, faciendo corottum, sicut pro mortuis feri consuevit. Et sancta Clara audiens quod ille homo erat mortuus totaliter et sine confessione, combassiebatur sibi, et rogavit Deum quod faceret gratiam illi homini quod posset confiteri. Et postea ille homo, operatione et virtute sancti Clare predicte, revixit et fuit confessus, et postea eodem die decessit postquam fuerat confessus”

(17)

231

milagre propriamente dito. Das testemunhas indicadas pela irmã, infelizmente, não existem registros. Irmã Marina afirma apenas que ouviu sobre o fato das irmãs do mosteiro. O depoimento de Irmã Tomasa revela outro aspecto:

Sobre o artigo CXXVII, que começa: Que um homem etc.[…] <interrogada> , respondeu e disse que ouviu dizer das irmãs Iluminata e Angeluctia, as quais estiveram <presentes> e viram o predito conforme relatou a dita testemunha. Interrogada sobre como poderiam estar presentes, pois, como religiosas do dito mosteiro elas não poderiam sair. Respondeu e disse que as ditas irmãs, mesmo sendo religiosas podiam sair diariamente do dito mosteiro, para mendigar e para fazer outras coisas necessárias às irmãs e ao mosteiro.28

O relato acima reenvia nossa análise a outros aspectos já trabalhados na historiografia: a saber, a relação entre a regulamentação da clausura e a mendicância das mulheres religiosas. Maria Filomena Coelho, ao analisar a regulamentação da clausura feminina nos mosteiros cistercienses em Leão e Castela no século XIII, defende que este tema – mais do que um mero repositório de normas que deviam ser cumpridas – revela elementos da cultura política na qual diferentes personagens estavam inseridos. Isso inclui homens e mulheres, religiosos (as) e leigos (as), monges e monjas, além daqueles que eram os responsáveis (ou responsabilizados) pela tutela das casas de mulheres que deveriam viver enclausuradas.29 Este

argumento é muito próximo do que foi defendido anos mais tarde por Fortes e Silva. A principal diferença entre os dois textos é que a mendicância não estava colocada para os cistercienses como estava no cerne da identidade dos dominicanos. Jacques Dalarun também abordou a circulação das mulheres em espaços extramuros

arenam et modo mortuus est in labore et sine confessione!…”.

28 Tradução livre de: “Super CXXVII° articulo, qui incipit: Quod unus homo etc…<interrogata>, respondit et dixit quod audivit dici a sororibus Illuminata et Angeluctia, que fuerunt <presentes> et viderunt predicta, ut dicit ipsa testis quod retulerunt sibi. Interrogata quomodo potuerunt esse presentes, cum sint sorores dicit monasterii et sorores non consueverunt exire et predica fuerunt extra monasterium, respondit et dixit quia dicte sorores etsi sint sorores poterant exhire et cotidie exeunt monasterio, eo quod sint servitiales dicit monasterii, quibus licet exhire et exeunt cotidie ad mendicandum et ad alia necessaria faciendum sororibus et monasterio”. Grifos nossos.

29 COELHO, Maria. Filomena. Instituições, normas e monacato em Leão e Castela (séc.XIII). Anos 90,

v. 20, n. 38, dez/2013, p. 127-149. Disponível em:

(18)

232

conventuais quando analisou o processo de canonização de Clara de Assis. Porém, seus interesses nesta questão estavam mais relacionados à humildade de Clara que, mesmo na condição de abadessa, limpava os pés das irmãs, do que na regulamentação da entrada e/ou saída das monjas.30

A partir do que informou Tomasa e do que concluíram as historiadoras e o historiador mencionados acima, é possível inferir que os homens envolvidos na elaboração dos interrogatórios e no registro das atas do processo não estavam alheios a esses elementos registrados nos mais diferentes tipos de documentos (bulas, cânones conciliares, cartas etc).

Em relação às demais mulheres leigas interrogadas (t.46, 216) os depoimentos são similares ao de Cecchola. Curtos e apenas sobre o artigo CXXVII. A anotação do depoimento de Palmola, no entanto, difere sensivelmente. Anotado naquele mesmo 29 de junho, a interrogada, além de confirmar a fama do milagre relacionado à confissão de Paganonius após o soterramento e a interferência de Clara, revela que ela também recebeu uma graça: rogou a Clara – que havia morrido não muito tempo antes do ocorrido – para que a livrasse de uma dor no estômago. Porém, ao ser interrogada sobre o lugar e sobre quem esteve presente nesta situação, disse que foi na estrada próxima ao mosteiro de Santa Croce e que ninguém presenciou a oração. Seu sogro, Massius Venture, e outros da família viram-na doente, porém, estavam todos mortos.

Considerações finais

O primeiro elemento a ser considerado é que, em nível documental, é possível encontrar, no processo de canonização de Clara de Montefalco, diferentes informações sobre a vida das mulheres religiosas. Neste sentido, o depoimento de Irmã Tomasa é singular no que tange à circulação das mulheres extramuros. O fato de ter sido interrogada sobre a possibilidade das monjas terem presenciado o milagre relacionado ao homem soterrado é revelador do conhecimento que os homens responsáveis pelo inquérito tinham do estatuto jurídico da clausura e das

(19)

233

incongruências entre o que era declarado (mulheres fora do espaço permitido) e a norma. O segundo elemento é que o processo de Clara de Montefalco, mesmo sendo uma peça documental mais elaborada – considerando o argumento de Viktória Déak sobre o processo de Margarida da Hungria – não difere no que tange às identidades atribuídas. As mulheres seguem atreladas às condições de “filhas de”, “esposas de”. A identidade atribuída, no caso das que não são casadas, é restrita à vinculação paterna, portanto, pelo processo, desconhecemos as mães, mas sabemos, inclusive, se os pais estão mortos na ocasião do registro.

A análise do processo de canonização de Clara de Montefalco revela também que um único processo, como documento para a pesquisa histórica, fornece uma série de problemas para e de análise. Os diferentes tempos no processo devem ser considerados e sua relação com o Tempo de Santidade, do caso específico, foi perpassada por conflitos de ordem institucional – a vacância da Sé Apostólica –, por contingências inevitáveis – morte dos componentes das comissões – e/ou por (des)interesse daqueles que deveriam/poderiam conduzir o processo a um final favorável. Estas constatações reforçam, mais uma vez, que a santidade, nestes aspectos documentais, é uma construção, não um fenômeno dado.

Para concluir, o principal spoiler do livro não publicado é que, felizmente, sigo defendendo a aplicabilidade do conceito e que ele torna útil pensar o fenômeno da santidade entre os séculos XIII e XIV. Porém, diferentemente do que eu havia pensado na tese, o tempo da santidade, na verdade, é plural: são diferentes tempos envolvidos e que entre a morte e a canonização fazem a função de intermediários da memória e do esquecimento. A pensar no meu interesse sobre os grupos envolvidos, considerando suas idades, vínculos de pertencimento e diferentes espaços, é possível afirmar que o esquecimento era preenchido pela repetição de características esperadas e atribuídas para santos e santas.

Artigo recebido em 13.07.2020 Artigo aceito em 01.08.2020

Imagem

Tabela  1:  Artigos  do  Interrogatório  sobre  Clara  de  Montefalco  e  o  gênero  das  testemunhas

Referências

Documentos relacionados

Foram estudados os impactos das Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado (DRSAI) sobre a saúde e Sistema Único de Saúde no Brasil, a partir de três

After this matching phase, the displacements field between the two contours is simulated using the dynamic equilibrium equation that bal- ances the internal

Estaca de concreto moldada in loco, executada mediante a introdução no terreno, por rotação, de um trado helicoidal contínuo. A injeção de concreto é feita pela haste

A metodologia e os mecanismos de acompanhamento, controle, fiscalização e avaliação dos resultados obtidos com a execução dos serviços de ATER contratados devem

O emprego de um estimador robusto em variável que apresente valores discrepantes produz resultados adequados à avaliação e medição da variabilidade espacial de atributos de uma

O objetivo do curso foi oportunizar aos participantes, um contato direto com as plantas nativas do Cerrado para identificação de espécies com potencial

Neste artigo busco pensar Américo de Castro como empresário concessionário de companhias ferro carril e em outras atividades relacionadas à construção civil e que de- pendiam

Atualmente os currículos em ensino de ciências sinalizam que os conteúdos difundidos em sala de aula devem proporcionar ao educando o desenvolvimento de competências e habilidades