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Cidadania ante a sociodinâmica da desigualdade : um estudo com moradores e “albergados” da Vila Areal

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Academic year: 2021

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Universidade de Brasília – UnB

Instituto de Ciências Sociais – ICS

Programa de Pós-Graduação em Sociologia – PPG-SOL

CIDADANIA ANTE A SOCIODINÂMICA DA

DESIGUALDADE: UM ESTUDO COM MORADORES E

“ALBERGADOS” DA VILA AREAL.

TAYNARA CANDIDA LOPES CANÇADO

Brasília/ DF

2017

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TAYNARA CANDIDA LOPES CANÇADO

CIDADANIA ANTE A SOCIODINÂMICA DA

DESIGUALDADE: UM ESTUDO COM MORADORES E

“ALBERGADOS” DA VILA AREAL.

Orientadora: Prof.ª. Drª. Débora Messenberg Guimarães.

Brasília/ DF

2017

Dissertação apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Sociologia/

PPG-Sol da Universidade de Brasília

(UnB) como pré-requisito para a

obtenção do título de mestre em

sociologia.

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Universidade de Brasília – UnB

Instituto de Ciências Sociais – ICS

Programa de Pós-Graduação em Sociologia – PPG-SOL

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

CIDADANIA ANTE A SOCIODINÂMICA DA DESIGUALDADE: UM

ESTUDO COM MORADORES E “ALBERGADOS” DA VILA AREAL.

Autora: Taynara Candida Lopes Cançado

Orientadora: Prof.ª. Drª. Débora Messenberg Guimarães.

Banca examinadora:

Prof.ª. Drª. Débora Messenberg Guimarães.

(Departamento de Sociologia – UnB)

Prof. Dr. Sérgio Barreira de Faria Tavolaro

(Departamento de Sociologia – UnB)

Prf.ª Drª. Camila Potyara Pererira

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TAYNARA CANDIDA LOPES CANÇADO

CANDIDA, TAYNARA LOPES CANÇADO

Cidadania ante a sociodinâmica das desigualdades: um estudo com

moradores e “albergados” da Vila Areal.

Taynara Candida Lopes Cançado – Brasília, Distrito Federal, UnB

2016, pag. 147

Dissertação de Mestrado em Sociologia

1. Desigualdade 2. Cidadania 3.Sociodinâmica

4. Unidade de acolhimento 5. UNAF 6. Areal

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Aos meus pais,

Cláudia e Valdecy.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (PPG-Sol/UnB) pela oportunidade de estudar em uma instituição pública, gratuita e de excelência.

À Prof.ª. Débora Messenberg, pelas orientações e pelo seu exemplo de competência profissional.

À banca examinadora, Prof. Sérgio Tavolaro e Prof.ª Camila Potyara, pela leitura cuidadosa do trabalho e pelas sugestões, que também inspiram e norteiam estudos futuros.

Aos professores Edson Farias, Stefan Klein, Sérgio Tavolaro e Débora Messenberg, por ministrarem com diligência as disciplinas que cursei no período do mestrado.

Ao Prof. Stefan Klein, por apoiar a criação e coordenar o grupo de estudos e pesquisa Desigualdade e Crítica no Brasil Contemporâneo (Describra); e à todos os membros do grupo, que muito me ensinaram no período em que fui membro.

À equipe da secretaria do PPG/SOL/UnB, Ana Paula, Patrícia, Leonardo e Gabriela, pela presteza do trabalho e pelo apoio com os assuntos burocráticos enquanto estive na representação discente.

Aos amigos do curso, Berchman Alfonso, Matheus da Costa, Vanessa Machado, Tiago Lorenzo, Mauro Callai, Isabela Goeller, Gabriel Soares e Fernando Franciosi, por todos os momentos que compartilhamos nos últimos anos.

Aos amigos, Lucas Facó, Stephanie Burille, Tahiza Falcão, Pedro Calil, Edi Alves, Bruno Gontyjo, Igor Mello, Jéssica Albuquerque, Lídia Dias, Benara Barbosa, Mario Machel, João P. Veiga e Vinicius Lima. Sua amizade e companheirismo foram imprescindíveis para que eu pudesse tocar em frente o projeto do mestrado.

De modo especial, agradeço à Tamille Dias e Cecília Villas-Boas pela paciência com que têm me aturado, a lealdade, o zelo, a partilha diária. Falo dos bastidores que viabilizaram minha permanência no curso e em Brasília. Não sairia uma página sem elas. À Tamille, agradeço também pela leitura do trabalho e apontamentos pertinentes.

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Aos meus pais, Cláudia e Valdecy, pelo apoio incondicional, amor e confiança. Reconheço, ainda, que esse trabalho foi viabilizado pelo apoio institucional e financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Muito obrigada.

À Subsecretaria de Assistência Social (SUBSAS) do Governo do Distrito Federal, por autorizar a realização da pesquisa.

Aos funcionários da UNAF, que contribuíram enormemente com a investigação, sempre muito prestativos e atenciosos.

Finalmente, meus sinceros agradecimentos aos acolhidos da UNAF e aos moradores da Vila Areal, pelo tempo dedicado às entrevistas, a confiança depositada na pesquisa e por cada história compartilhada.

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“O humano é um escândalo no ser”. (Levinas, 2003, p. 157).

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RESUMO

O presente trabalho retoma a questão das desigualdades autorreproduzidas a fim de evidenciar ambivalências do ideal moderno de cidadania. A discussão se desenvolve a partir de um estudo de caso realizado na Vila Areal, onde está localizado o principal Albergue público destinado a atender a população em situação de rua do Distrito Federal, a UNAF1. Propõe-se analisar uma sociodinâmica operante das desigualdades naquele

meio, observando, para tanto, seus mecanismos socioculturais e psicossociais de atuação. Moradores da Vila reivindicam constantemente a remoção do abrigo para regiões afastadas do perímetro urbano. O conflito exposto evidencia o caráter paradoxal de uma concepção restritiva de cidadania, que ratifica desigualdades na medida em que permite discriminar pessoas entre mais ou menos dignas de respeito e direitos. Mais além, o estudo esclarece a íntima relação entre configurações valorativas, sociais e disposições individuais. Desse modo, permite visualizar diferentes facetas do sectarismo no cenário urbano e seu corolário no caso analisado. O trabalho chama a atenção para os processos sociais formadores da desigual (in) adaptação para o mercado de trabalho, (des)

classificação social e autorrelação prática dos sujeitos. A interdependência desses fatores

constitui a sociodinâmica das desigualdades analisada. A investigação contou com entrevistas semi-estruturadas, observação participante e pesquisa documental.

Palavras chave: Desigualdade; Cidadania; Sociodinâmica; Unidade de

acolhimento; UNAF; Areal.

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ABSTRACT

This dissertation takes back the questions of self-reproduced inequalities to evidence ambivalence of the modern ideal of citizenship via a case study. It proposes to analyze an operative sociodynamic of the inequalities, observing, therefore, their sociocultural and psychosocial mechanisms of action. It evidenced the paradoxical relationship of this dynamic with the principle of equality. The problematic is observed in Vila Areal, where is located the main public shelter destined to receive homeless population of Distrito Federal, the UNAF. The local population rejects the shelter and claims its removal to distant regions of the urban perimeter. In the light of a figurational approach, it is evident the interdependence of the positions that cofigures the microcosm investigated, as well as the infra conscious co-participation of the agentes in the sociodynamic of the inquired inequalities. It seeks to draw attention to the social process that forms the unequal (in)adaptation to the job market, social (un)classification and the self-relation praxis between the sheltered people and the residentes of Vila Areal. This process reinforces the unequal structure of power of the microcosmo observed. Finally, the study accuses the distortion of the citizenship in the locus of its promotion.

Keywords: Inequality; Citizenship; Sociodynamic; Homeless Shelter;

UNAF; Areal

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SUMÁRIO

IINTRODUÇÃO...13

Procedimentos metodológicos ...18

1. CIDADANIA AMBIVALENTE ...21

1.1. O princípio da igualdade como propulsor da ampliação de direitos...21

1.2. Cidadania e desigualdade: uma aparente contradição...23

1.3. Instituições e imaginários em prol das desigualdades “autorreproduzidas” ...26

2. O ALBERGUE NA VILA AREAL...32

2.1. A Unidade de Acolhimento para Adultos e Famílias do Distrito Federal (UNAF)...33

2.2. O cenário conflituoso entre moradores e “albergados” ...35

2.3. A Vila Areal ...39

2.4. O pedido de remoção: argumentos e perfis...45

2.5. Cidadania restritiva: o produto e a promotora de uma ordem desigual...51

3. CONFIGURAÇÕES VALORATIAVS, DESFIUGRAÇÕES SOCIAIS...61

3.1. Dignidade privada...61

3.2. De acolhidos a Albergados ...76

3.2.1. O processo de estigmatização...79

3.2.2. Práticas de apartação e distanciamento...87

3.2.3. Entraves ao acesso a estrutura de oportunidades...90

3.2.4. Efeitos “internos” da estigmatização...94

3.3. Albergado em um corpo situado...96

3.3.1. Autorresponsabilidade...96

3.3.2. Realidade e Preconceito...100

3.3.3. Percepções e usos do tempo...101

3.3.4. Efeitos coercitivos da configuração...106

4. O SOCIAL NO SUJEITO...115 4.2. Família...117 4.2. Entretenimento ...129 4.3. Religião...133 4.3. Associações...137 4.4. Trabalho e formação...141 CONSIDERAÇÕES FINAIS...145 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA...155 ANEXOS...158

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Introdução

Resultado de uma síntese progressiva de aprendizados históricos, a cidadania emerge como um importante passo, ou uma sequência de passos, rumo à justiça social. O grande feito dessa noção foi apresentar a igualdade de status legal entre membros de uma mesma comunidade política, e deles perante o Estado, como uma condição possível. Permitiu, assim, a incorporação de setores antes marginalizados no escopo de “sujeitos de direito”. Todavia, cidadania mantém uma relação paradoxal com a estratificação social. Observa-se que o status igualitário disObserva-seminado pela proposta cidadã comumente favorece à legitimação de desigualdades excessivas e permanentes. Ora, determinados níveis de desigualdade não apenas são aceitáveis, como indispensáveis ao bom funcionamento do capitalismo. Concebidas por níveis diferenciais de desempenho individual, as desigualdades são justificadas e naturalizadas.

A perpetuação naturalizada de desigualdades tem servido a eternização de uma grande massa de brasileiros na condição de subcidadania. Múltiplas hierarquias são ativadas incessantemente a fim de discriminar cidadãos entre mais ou menos dignos de respeito e direitos. Tal classificação fere o princípio da igualdade pressuposto na cidadania porque afeta diretamente as chances de determinados indivíduos e grupos em acessar estruturas de oportunidades, conforme seu status social. O pano de fundo moral que permite legitimar essa classificação é especialmente forte por estar ancorado nas principais instituições modernas: mercado e estado (SOUZA, 2003). A ideologia do desempenho patrocinada por essas instituições tem por efeito legitimar privilégios e culpabilizar indivíduos e grupos precarizados por sua condição. O sistema de premiações por mérito oculta todas as pré-condições sociais, emocionais e culturais que efetivamente diferenciam os agentes em suas chances de êxito no mundo competitivo.

A abordagem crítica da cidadania, acolhida no presente trabalho, aponta limites ao princípio da igualdade, evidenciando desigualdades concretas de capacidades de mobilidade oriundas da própria dinâmica social. Acusa-se também os efeitos danosos de uma concepção restritiva de cidadania, circunscrita, na prática, àqueles capazes de atender aos imperativos modernos de autodisciplina, autocontrole e pensamento prospectivo; preferencialmente inseridos no mercado de trabalho e em redes sociais coesas, como família e religião. Ainda, tangencia essa discussão, os dilemas de uma cidadania

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deturpada por demandas restritas à segurança pessoal e à segurança da propriedade privada, portanto, distanciada do sentido de bem público e espaço público.

Busca-se chamar a atenção para a existência de desigualdades excessivas e permanentes alimentadas pela ambivalência da cidadania, isto é, que contrariam o princípio da igualdade, embora nele se sustente. São desigualdades geradas pela desigual capacidade dos cidadãos em competirem por melhores condições de vida e acessar estruturas de oportunidades. Sem perder de vista que essas estruturas são fluidas e, por si mesmas apontam questões de justiça social, é sugerido um direcionamento do olhar para a dimensão sociocultural e psicossocial da desigualdades de capacidades de acesso e seu efeito dinâmico em um microcosmo social. A proposta se justifica pela constatação de que dilemas de justiça social extrapolam medidas governamentais e regulamentações do direito, exigindo atenção aos contextos.

O problema das desigualdades “autorreproduzidas” (MARSHALL, 1967) – que trata da desigual capacitação dos indivíduos em acessar oportunidades e de participarem de um mundo competitivo, sob condições muito dispares de vida - vai de encontro ao cenário observado na Vila Areal. Observou-se ali que a desigual (in)adaptação de moradores e acolhidos aos imperativos do mercado caminham de mãos dadas à (des)

classificação social desses indivíduos, e esta, por sua vez, a sua autorrelação prática. A

interdependência dessas três dimensões caracterizam a sociodinâmica das desigualdades que se busca apresentar.

A questão que inspirou o presente trabalho nasceu de uma pesquisa de iniciação científica, sobre imaginários urbanos, realizada em 2012 na Vila Areal – DF, onde está localizado o principal centro de acolhimento para a população em situação de rua do Distrito Federal: a Unidade de Acolhimento para Adultos e Famílias (UNAF). À época, chamou a atenção da pesquisadora a unanimidade e radicalidade das reclamações contrárias ao abrigo na região. Segundo os moradores, os albergados incomodavam a população local pedindo dinheiro, ameaçando, roubando e transitando pela cidade sob o efeito de álcool e outras drogas. Alegavam também que a presença do abrigo na região gerava insegurança e desprestígio para a comunidade local. Do ponto de vista dos moradores, o albergue era descrito como um antro de desordem e imoralidade. A população local não apenas pedia a remoção da unidade para regiões afastadas da cidade,

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mas, em muitos casos, se contrapunha a própria existência desse tipo de instituição, “que acolhe vagabundo”.

Em 2013, foi realizada uma investigação na Vila Areal com o intuito de observar processos de reprodução da vulnerabilidade social no contexto metropolitano de Brasília (CANDIDA, 2013). Já naquela ocasião foram identificadas as vantagens analíticas de se ultrapassar as expressões mais visíveis da vulnerabilidade de moradores e acolhidos, a fim de pensar, de forma articulada, seus processos de formação. No entanto, a referida pesquisa mirava mais aspectos da segregação socioespacial. Dentre outros fatores – como a especulação imobiliária, gentrificação e peculiar estruturação do mercado de trabalho -, foi identificada a coparticipação dos agentes na segregação socioespacial observada. De um lado, preconceito e marginalização, de outro, hábitos degradantes e práticas transgressoras.

A constatação instigou a problematização, no presente trabalho, da coparticipação infra consciente dos sujeitos na sociodinâmica das desigualdades observada. Foi evidenciado que muitos acolhidos na UNAF possuem dificuldades semelhantes de autonomização. Embora se trate de um grupo heterogêneo e móvel, é recorrente apresentarem trajetórias de vida marcadas pela condição continuada de miséria. As estatísticas da unidade mostram que o número de readmitidos é quase sempre superior ao número de admitidos. Longe de ser uma saída eficaz para o ciclo de vulnerabilização que acomete esses indivíduos, o serviço de acolhimento frequentemente o reforça; por exemplo, em decorrência dos efeitos da estigmatização dos “albergados” na região.

Passados quatro anos da pesquisa monográfica, uma das principais reivindicações da associação de moradores continua sendo a remoção do abrigo. Em Junho de 2016, o debate voltou a pauta na reunião “Câmara em Movimento2”, organizada pelo Governo do

Distrito Federal na Vila Areal. Ali o pedido de remoção da UNAF foi aprovado por todos os segmentos da população, contando também com o apoio de representantes do governo. Para esses moradores e deputados o albergue é responsável por grande parte dos problemas da comunidade: a insegurança, a “má aparência” do bairro, o descrédito dos moradores e a desvalorização dos imóveis. Sem negar ou deslegitimar as demandas dessa população, verdadeiramente vulnerabilizada pela violência local, debilidade do

2 Câmara em Movimento é um projeto que leva sessões ordinárias da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDDF) às regiões administrativas do DF.

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sistema educacional e de saúde - dentre outros fatores-, busca-se problematizar sua relação conflituosa com o “Albergue”.

O presente trabalho sugere um amadurecimento da problemática apresentada na pesquisa de 2013. Entendendo os processos vulnerabilizantes que acometem moradores e acolhidos da Vila Areal como parte de uma dinâmica mais abrangente de reprodução de desigualdades no meio urbano, busca-se revelar os mecanismos socioculturais e psicossociais de sua atuação; isto é, as engrenagens que levam os indivíduos a cooperarem com esta dinâmica por suas disposições de comportamento e pensamento. Acolhendo uma perspectiva sociológica sintética, entende-se que o princípio das práticas deve ser buscado, mais além das escolhas conscientes, em sistemas de preferências herdados ou adquiridos (BOURDIEU, 2009). Ainda, à luz de uma abordagem figuracional (ELIAS, 2000), revela-se a indissociabilidade dos grupos que compõem a configuração observada e a relacionalidade de suas estratégias. Lembrando que se propõe um direcionamento do olhar que não dispensa a problematização futura dos fatores macro políticos e econômicos que influenciam a conjuntura observada.

Tendo em vista analisar uma sociodinâmica operante das desigualdades na Vila Areal, serão observados os processos sociais formadores da (in) adaptação para o mercado de trabalho, da (des) classificação social e da autorrelação prática de moradores e “albergados”. Como objetivos específicos, se propõe apresentar algumas das pré-condições da desigualdade social entre moradores e acolhidos, em distintas esferas de socialização, além de coerções da configuração social analisada sobre cada grupo. O trabalho tenciona, enfim, esclarecer a relação de cumplicidade dos agentes investigados com a estrutura de poder vigente naquela conjuntura. Acusa-se, desse modo, a ambivalência da cidadania face a uma sociodinâmica das desigualdades no microcosmo observado.

O primeiro capítulo apresenta o caráter ambivalente da cidadania. Se, por um lado, o princípio da igualdade inerente a essa noção motivou uma ampliação progressiva de direitos - em termos de conteúdo e alcance social -, por outro lado, a conquista de status igualitário tem servido à legitimação de desigualdades excessivas e permanentes. Isso ocorre na medida em que a suposta igualdade, articulada à ideologia do desempenho, serve aos interesses do sistema capitalista. Observa-se que instituições e imaginários modernos cooperam por uma reprodução naturalizada de desigualdades. A última parte

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do capítulo retoma determinados aspectos da cidadania no Brasil esclarecedores da naturalização mencionada.

O segundo capítulo expõe a configuração social analisada. São apresentados traços gerais e peculiaridades da unidade de acolhimento e da Vila Areal, bem como a relação conflituosa entre eles. Destacam-se os diferentes argumentos favoráveis à remoção do abrigo e os diferentes perfis de moradores entrevistados. Foram identificados quatro perfis segundo seu posicionamento em relação a UNAF: radicais, contrários ao abrigo, favoráveis ao abrigo que vivem em condomínios fechados e favoráveis ao abrigo defensores dos acolhidos. Observa-se que opinião dos moradores em relação ao abrigo está intimamente vinculada à determinadas condições de vida na Vila Areal – embora essa relação não possa ser pensada de forma determinista. O capítulo aponta, enfim, para uma concepção restritiva de cidadania que é, a um só tempo, produto e promotora da estrutura desigual de poder na Vila Areal.

No terceiro capítulo é apresentada uma configuração de valores reconstruída a partir das falas de moradores e acolhidos, com o propósito de demonstrar o conteúdo das expectativas morais dos membros de cada grupo, isto é, a substância da sua expectativa por dignidade. A pintura desse quadro moral permite observar de que modo os valores vigentes naquela conjuntura têm sido articulados para discriminar moradores e acolhidos em grupos de status superior e inferior, mais ou menos dignos de confiança e direitos. Evidencia-se a vinculação estreita de configurações valorativas e sociais. A segunda parte do capítulo trata dos impactos da desclassificação social sobre os acolhidos. Observa-se que a estigmatização do grupo na Vila Areal tem sido importante entrave às suas chances de autonomização O capítulo aborda, enfim, a indissociabilidade de preconceito e

realidade na conformação de uma sociodinâmica das desigualdades. Destaca-se a relação

provável entre “desvios de conduta” recorrentes entre os acolhidos e peculiaridades de sua condição social.

O quarto e último capítulo chama a atenção para a desigualdade de moradores e acolhidos em termos de formação de um aparato sociocognitivo mais ou menos adaptados à inserção social e produtiva. Para tanto, são apresentadas comparativamente algumas pré-condições sociais de sua formação, como a vinculação familiar, escolar, religiosa, entretenimento e a vida associativa de membros dos dois grupos. Observa-se que no curso de suas vidas esses indivíduos foram, e permanecem sendo, diferentemente preparados

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para internalizar e incorporar valores caros ao mundo competitivo, tais como disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo.

Procedimentos metodológicos

A Unidade de Acolhimento para Adultos e Famílias (UNAF) é uma instituição, vinculada à Secretaria Adjunta de Desenvolvimento Social do Governo do Distrito Federal, que presta serviços de acolhimento de caráter provisório para a população em situação de vulnerabilidade social: pessoas em situação de rua, desabrigo, sem condições de auto sustento, vítimas de ameaça, calamidade pública, refugiados, erradicados de áreas irregulares e migrantes. Atualmente a instituição dispõe de cento e cinquenta leitos. O serviço é voltado predominantemente para homens adultos e solteiros, e inclui acolhimento provisório, alimentação, local para repouso e material de higiene pessoal. O período máximo de estadia é de noventa dias, podendo ser prolongado conforme a demanda.

No presente estudo foram investigados moradores da Vila Areal, acolhidos da UNAF e funcionários dessa instituição. Em um primeiro momento o projeto de pesquisa passou pela avaliação da Secretaria Adjunta de Desenvolvimento Social. Nesse ínterim, foram elaborados os roteiros de entrevista. Após o consentimento do órgão, foi iniciada a pesquisa de campo. A investigação foi realizada em setembro e outubro de 2016 e contou com entrevistas semi-estruturadas, observação participante e pesquisa documental. Foram analisadas as sinopses estatísticas da UNAF, bem como documentos históricos, registros fotográficos e cartográficos da Vila. Na UNAF foram observadas oficinas de boas-vindas e o dia a dia da Unidade. Entre uma entrevista e outra a pesquisadora pôde conversar informalmente e jogar damas com alguns acolhidos.

Foram realizadas, no total, vinte e nove entrevistas com duração média de uma hora: nove funcionários, dez moradores e dez acolhidos. Todas as entrevistas foram realizadas presencialmente, gravadas e transcritas na íntegra pela pesquisadora. A quantidade de entrevistas por visita de campo variou significativamente segundo a disponibilidade dos entrevistados. Foram realizadas em média duas entrevistas por visita de campo. Houve muitas negativas por parte dos moradores, sobretudo comerciantes da região. Algumas entrevistas de moradores e funcionários precisaram ser agendadas com

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antecedência. O local das entrevistas variou conforme o grupo. Funcionários e acolhidos foram entrevistados na própria unidade de acolhimento. Já os moradores preferiam ser entrevistados em seu ambiente de trabalho ou em suas casas.

Buscou-se criar uma amostra representativa englobando diferentes perfis de cada grupo. No grupo de acolhidos foram então incluídos, além de homens adultos e solteiros, mulheres que acompanhavam seus respectivos parceiros, idosos e aqueles que por motivos de trabalho não ficavam na Unidade no horário comum das visitas de campo. Dos funcionários foram entrevistados: diretora, coordenadora, assistentes sociais, psicóloga, vigilantes, psiquiatra, e agentes sociais. A amostra de moradores engloba: líderes comunitários, comerciantes, trabalhadores assalariados e estudantes. Dentre eles haviam pioneiros, moradores antigos, moradores novos e habitantes dos condomínios fechados.

Foi elaborado um roteiro de entrevista para cada grupo investigado: acolhidos, moradores e funcionários. Adaptações foram feitas apenas nos questionários dos funcionários a fim de adequar as perguntas ao cargo. Os roteiros de moradores e acolhidos se assemelham em sua estrutura e são divididos em três blocos de perguntas. O primeiro deles objetiva traçar o perfil socioeconômico dos entrevistados e apreender informações sobre suas condições de vida na Vila Areal ou UNAF. Ainda, procura-se apreender a percepção do entrevistado em relação aos membros do outro grupo. O segundo bloco é voltado a identificar a rotina, hábitos e vínculos sociais dos entrevistados. São feitas questões sobre: jornada diária, hábitos, trabalho, formação, saúde e religião. O terceiro bloco de questões aborda esquemas avaliativos. Suas questões englobam: trajetória de vida, avaliações diversas (qualidade de vida, modos de agir e pensar) e a relação imaginária e prática dos entrevistados com o futuro.

O primeiro bloco de questões possibilitou traçar a posição dos entrevistados naquela configuração pelos dados de sua origem e situação atual. O segundo bloco de questões viabilizou identificar mais cuidadosamente as condições objetivas de vida dos entrevistados paralelamente a seus hábitos, visões de mundo e auto percepção. Permitiu, assim, observar as pré-condições sociais da (in)adaptação de moradores e acolhidos a inserção produtiva e social segundo parâmetros vigentes no mundo moderno, qual seja, imperativos de autodisciplina, autocontrole e pensamento prospectivo. O terceiro bloco permitiu identifica, pelas hierarquias avaliativas dos entrevistados, suas expectativas

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morais de reconhecimento, suas diferentes percepções e relações com o tempo, bem como diferentes formas de introjeção de valores, como autorresponsabilidade.

No roteiro dos funcionários continham questões a respeito das funções da Unidade, trajetória profissional do servidor, principais dificuldades do atendimento, principais dificuldades de autonomização do grupo de acolhidos, formas de intervenção, relação com os moradores da Vila e um panorama geral dos diferentes perfis de acolhidos, que tratava de suas demandas frequentes, problemas de saúde comuns, lugares que frequentam, religiosidade, família, etc. Na terceira fase da pesquisa todas as entrevistas foram transcritas e analisadas. Foi realizada uma análise de perspectivas e argumentos. Observou-se termos mais frequentes do terceiro bloco de questões com o intuito de realizar uma reconstrução das hierarquias de avaliações dos entrevistados.

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1. Cidadania ambivalente

1.1. O princípio da igualdade como propulsor da ampliação de direitos

Ao prescrever que todo agente racional é livre e igualmente apto a responder autonomamente sobre questões de ordem moral, as relações jurídicas modernas inovaram atribuindo ao reconhecimento jurídico um caráter universalista. Esse acontecimento histórico acompanhou a dissolução de antigas hierarquias por nascimento e de privilégios legais voltados aos mais ricos. O direito foi então desvinculado do status social, como fora em sociedades tradicionais, e passou a ser concedido a todo ser humano na qualidade de ser livre. Em tese, a origem social, o poder aquisitivo e as realizações pessoais deixaram de ser fatores decisivos a imputabilidade moral do sujeito de direito.

O princípio da igualdade universal, institucionalizado com o Estado de direito, possibilitou a compreensão de que membros de uma mesma coletividade política têm igual valor e devem, pois, ser equiparados em direitos e obrigações. Cidadania é o status concedido aos membros de uma comunidade política equiparando-os nesse sentido, entre si e perante o Estado (DOMINGUES, 2002). O princípio da igualdade firmado pela noção de cidadania se tornou um pilar da vida moderna. Como ideia força esse princípio motivou uma série de embates pela ampliação progressiva de direitos individuais e coletivos tendo em vista assegurar a igualdade de status entre os cidadãos.

Diferentes significados foram atribuídos ao princípio da igualdade ao longo da história, pois variou substancialmente, no tempo e no espaço, aquilo que se entende por

“sujeito apto a agir autonomamente e com discernimento racional”. Junto a

procedimentos racionais mais exigentes, houve uma extensão das propriedades universais da pessoa moralmente imputável. Sucessivas lutas por reconhecimento levaram a ampliação progressiva da noção “sujeitos de direito”, tanto em termos de conteúdo normativo, quanto em alcance social. O reconhecimento da “pessoa de direito” hoje significa mais do que podia significar no início do direito moderno, pois esta deve ser respeitada não apenas pela capacidade abstrata de poder se orientar por normas morais, mas também pela propriedade concreta de merecer o nível de vida necessário para isso (HONNETH, p.193).

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De acordo com T. H. Marshall (1996), o desenvolvimento da cidadania foi marcado pela conquista gradual de direitos civis, políticos e sociais. Em um primeiro momento, ao longo do século XVIII, movimentos anti-aristocráticos deram origem aos direitos civis, que são os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade e a igualdade dos cidadãos perante a lei. O reconhecimento desses direitos individuais acarretou uma mudança atitudinal de suma importância: as restrições e privilégios passaram a ser considerados uma ofensa à liberdade do cidadão e grave ameaça à prosperidade da nação (MARSHALL, 1967).

Porém, sem liberdade de participação política que permitisse aos cidadãos reivindicar melhores condições de vida, os direitos civis serviam tão somente para maquiar desigualdades acentuadas da estrutura social. A desigualdade de condições de vida impossibilitava o aproveitamento das liberdades individuais de forma igualitária. Por essa razão, em um segundo momento, ao longo do século XIX, foi reconhecida a necessidade de uma ampliação dos direitos políticos, que até então eram privilégio de um círculo restrito da população. Para Marshall (1967), a liberdade de associação e participação política foi um importante passo na constituição da cidadania, mas insuficiente. Restava ainda um abismo entre o direito de participar e a participação efetiva dos cidadãos na esfera pública.

Os direitos civis deram aos indivíduos poderes legais e os direitos políticos conferiram a eles poderes potenciais, contudo, nenhuma medida havia sido tomada até então no sentido de modificar desigualdades sociais permanentes e autorreproduzidas. Marshall (1967) explica que a desigualdade extrema de condições tende a reproduzir uma estrutura hierárquica injusta ao habilitar de forma diferenciada os cidadãos a participarem na vida pública e a atuar no mercado de trabalho. Novas medidas deveriam ser tomadas a fim de igualar os cidadãos em certo padrão básico de vida civilizada. “De nada serve

o direito à liberdade de palavra se não se tem nada a dizer devido à falta de educação”

(Marshall, 1967). Assim, surge ao longo do século XX uma série de direitos sociais: à assistência, educação, trabalho, salário justo, saúde, aposentadoria, etc.

Avanços na dimensão social da cidadania visam igualar o acesso à estrutura de oportunidades que viabilizam a mobilidade social dos cidadãos. Essa dimensão é bastante flexível. Não está claro sobre o que se legisla ao falar em direitos sociais. Diferentes medidas podem ser tomadas no sentido de minimizar excessos de desigualdade e garantir bem-estar. Ainda, dilemas qualitativos importantes envolvem a oferta de serviços

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socioassistenciais, como acerca do grau de universalidade dessas políticas e quanto a origem do provimento de bem-estar. Em última instância, o curso da cidadania social estará sempre intimamente vinculado às expectativas legitimadas em cada sociedade (DOMINGUES, 2002).

1.2. Cidadania e desigualdade: uma aparente contradição

Marshall (1967) esclarece que o objetivo da cidadania não é o de eliminar por completo as desigualdades sociais, que são toleradas desde que legitimadas em termos de justiça social. “Nossa sociedade de hoje admite que os dois (igualdade básica e

desigualdade de classes) são compatíveis, tanto assim que a cidadania em si mesma se tem tornado, sob certos aspectos, no arcabouço da desigualdade social legitimizada”.

(MARSHALL, 1967 p.62). No entanto, desigualdades excessivas representam uma verdadeira ameaça à cidadania, pois prepara diferenciadamente os cidadãos a acessar a estrutura de oportunidades vigente3. Sob condições de vida altamente desiguais os indivíduos são habilitados de maneira diferente a competir por melhores condições de vida e posições no mercado de trabalho. A grande ameaça reside no fato de que desigualdades excessivas se tornam autorreproduzidas.

Mas a relação de contrariedade entre desigualdades e cidadania não é tão óbvia. Desde sua origem, a cidadania mantém uma relação tensa com a estratificação social. Segundo Marshall (1967) ela ofereceu o fundamento da igualdade sobre o qual uma estrutura de desigualdades pôde ser edificada. O status de pessoas livres e iguais legitima a economia competitiva de mercado competitivo sem que os cidadãos estejam efetivamente preparados a competir de igual para igual. Ancorado nos direitos civis o mercado cria disparidades de riqueza que são úteis ao sistema (ROBERTS, 1997). Portanto, certo nível de desigualdade é não apenas aceitável, como também indispensável ao funcionamento do capitalismo competitivo. O nível aceitável de desigualdades em

3 Embora o presente trabalho problematize a desigualdade de capacidades de acesso a estrutura de

oportunidade, é indispensável considerar que essa própria estrutura é desigual e injusta. Estudos futuros deverão problematizar sua má distribuição - naquele conjuntura e em tantas outras - segundo recortes de classe, raça e gênero, por exemplo.

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uma democracia dependerá das expectativas reconhecidas como legítimas em cada sociedade.

A desigualdade de capacidades que habilita diferenciadamente os agentes a acessar a estrutura de oportunidades e competir por recursos escassos não deve ser reduzida apenas a níveis diferenciais de formação escolar. Implica antes, toda uma série de desigualdades de aptidões e disposições, que tornam os indivíduos mais ou menos adaptados ao sistema. A preparação vem desde o berço. Antes da escola, a transmissão de disposições de comportamento, pensamento e aptidões caros ao bom desempenho escolar são transmitidas por uma pedagogia sutil na esfera de socialização primária. São, portanto, as pré-condições socioculturais e psicossociais de formação das capacidades o que efetivamente diferencia os agentes no mundo competitivo e solapa a igualdade de acesso à estrutura de oportunidades sugerida pelo ideal da cidadania (SOUZA, 2009).

Souza (2009) esclarece que a desigualdade de renda é melhor compreendida como efeito e não como a causa das verdadeiras desigualdades que respondem pela estrutura de classes. Essas derivam da herança imaterial de valores, padrões de comportamento e disposições caros à ascensão social dos indivíduos. No mundo moderno, uma “economia afetiva adequada” envolve disposições de disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo. A adaptação ou inadaptação dos indivíduos e grupos nesse sentido circunscreve, de forma mais ou menos segura suas possibilidades e limites de ascensão (SOUZA, 2003). Portanto, compreender a sociodinâmica das desigualdades exige ultrapassar suas expressões mais visíveis e considerar aspectos socioculturais e psicossociais de sua reprodução.

Para além de certo nivelamento das capacidades, a efetivação da cidadania exige, ainda, que o princípio da igualdade se realize na dinâmica social. Não se trata da superficialidade de uma exigência pela igualdade de tratamento interpessoal. É necessário que haja um efetivo acordo interclassista acerca do igual valor humano dos agentes sociais, como cidadãos igualmente dignos de acessar estruturas de oportunidades. Apenas um consenso dessa ordem permitiria a efetivação do princípio da igualdade, isto é, a equiparação de chances concretas em termos de acesso a bens e serviços (SOUZA, 2009). Este acordo, contudo, é de difícil operacionalização. Na vida cotidiana, inúmeras hierarquias são ativadas a fim de discriminar as pessoas em termos de valor humano.

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A desclassificação social tem sido um importante entrave a efetivação da cidadania. Ela se realiza em meio a ambivalência de dinâmicas sociais que proclamam o princípio da igualdade ao mesmo tempo em que manipulam uma série de hierarquias avaliativas a fim de discriminar os cidadãos entre mais ou menos dignos de respeito e direitos, cidadãos e subcidadãos (SOUZA, 2003). Sempre houve hierarquias avaliativas que permitissem discriminar uma pessoa nesse sentido, contudo, na contemporaneidade, um complexo mecanismo opera no sentido de ocultar essas hierarquias. Por seu intermédio, desigualdades sociais são transfiguradas em diferenças individuais e essas, por sua vez, naturalizadas enquanto evidencias sensíveis de um mundo “natural” (TELLES, 2001).

Para Souza (2003), a chave para se compreender a naturalização das desigualdades sociais no mundo moderno é a ideologia do desempenho. Ela é introjetada nos sujeitos pela transmissão intergeracional de valores e pela atuação das principais instituições modernas: Estado e Mercado. Essa ideologia apresenta o mérito pessoal como critério único de avaliação das desigualdades. Parte-se do pressuposto da liberdade igualitária dos cidadãos na busca por oportunidades de ascensão e depreende-se daí que diferenciais de renda, qualificação e posições de prestígio resultam do desempenho de cada um. O lado perverso dessa ideologia reside na legitimação de privilégios sob a aparência do mérito pessoal e na culpabilização dos indivíduos mais precarizados por sua condição, quando se associa miséria a fracasso pessoal.

De acordo com Souza (2003), essa ideologia se sustenta sobre uma cegueira programada acerca das pré-condições sociais e psíquicas que efetivamente diferenciam os cidadãos em chances de êxito no mundo competitivo. A naturalização das desigualdades por ela patrocinada pressupõe dissociar a ação e a experiência humana da moldura contextual que lhe confere compreensibilidade (TAYLOR, apud SOUZA, 2003). Deixam-se de lado os fatores materiais, cognitivos, emocionais e sociais que favorecem ou impossibilitam o desempenho individual. A abordagem crítica da cidadania, sugerida por Souza (2003), e acolhida no presente trabalho, busca evidenciar desigualdades mascaradas pelo ideal da liberdade igualitária, bem como seus determinantes sociais.

A “cegueira” generalizada quanto aos processos socioculturais e psicossociais da reprodução de desigualdades tem servido à eternização de uma gigantesca massa de

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brasileiros desclassificados e inadaptados. Provocativamente, Souza denomina esse grupo de Ralé brasileira, com o objetivo de chamar atenção para o abandono social e político continuado, e consentido pela sociedade, de toda uma classe de indivíduos na situação de precariedade. A esse grupo faltam não apenas capital econômico e cultural, mas também as precondições sociais, emocionais e psíquicas necessárias a sua aquisição (Souza, 2009).

1.3. Instituições e imaginários em prol das desigualdades “autorreproduzidas”

A experiência democrática brasileira, que permitiu naturalizar o fenômeno da Ralé estrutural, deve ser observada com bastante atenção. Nesse país, a ordem lógica e cronológica da conquista dos direitos de cidadania apresentada por Marshall não se verifica. Mas não é esse o fato que deveria gerar inquietação. O modelo Marshalliano tem sido amplamente refutado, pois o percurso descrito pelo autor não se verifica em países periféricos, tampouco se realizou plenamente nas ditas sociedades centrais (TAVOLARO, 2010). Ainda assim, tem sido utilizado como parâmetro para avaliar a qualidade da cidadania em diferentes conjunturas.

Segundo Tavolaro (2010), essa comparação é inconsistente e prejudicial, pois leva a interpretar como excepcionalidade toda e qualquer experiência normativa que fuja à regra dos países que compõem o núcleo dinâmico da modernidade. Por essa razão, a experiência democrática brasileira comumente tem aparecido sob o signo do desvio. Deixa-se de perceber, assim, que toda ordem normativa é contingente (TAVOLARO, 2010). Dilemas da democracia brasileira não devem, pois, ser pensados como sinal de desvio ou atraso, especialmente porque se encontram intimamente vinculados às principais instituições e imperativos modernos.

Carvalho (2002) observa que não há um único caminho para a cidadania, porém, destaca que diferentes caminhos afetam o produto final. No Brasil os direitos sociais precederam os demais, tendo sido implementados justamente em um momento em que direitos políticos e civis eram suprimidos. Um efeito perverso do modelo de “cidadania regulada” implementado na primeira república, reside na formação de um imaginário tutelar e assistencialista que desfigurou a noção moderna de direitos e a própria concepção de cidadania entre o povo brasileiro. Sem que tenha se formado uma sociedade civil forte

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e participativa, os direitos sociais no Brasil são sistematicamente confundidos com mera proteção de um Estado benevolente (TELLES, 2001).

A introdução de direitos sociais na primeira república seguiu uma lógica corporativista que deixou marcas profundas na cultura do povo brasileiro. Sendo a conquista de direitos condicionada às relações contratuais de trabalho, desenvolveu-se o entendimento generalizado de que a dignidade da pessoa humana depende de sua inserção no mundo do trabalho. Esse modelo restritivo de cidadania patrocina a incivilidade no plano das relações sociais, pois condiciona a imputabilidade moral dos sujeitos à sua vinculação empregatícia, fazendo com que se diferencie também na vida cotidiana sujeitos mais ou menos dignos de respeito. Para Telles (2001), a cidadania no Brasil instaura direitos, ao mesmo tempo em que desfaz sua eficácia nas relações de classe.

Souza (2009) explica que existe no Brasil um pano de fundo moral responsável por discriminar cidadãos de primeira e segunda classe, isto é, cidadãos e subcidadãos. Não que a subcidadania inexista nas ditas sociedades centrais, contudo, no Brasil, adquire a proporção de um fenômeno de massa. Esse fenômeno não deve ser entendido como uma experiência desviante de democracia liberal ou resquício da arbitrariedade de tempos remotos, senão como a face mais perversa do bom funcionamento de uma democracia liberal. Longe de fugir a uma proposta modernizante, a subcidadania é por ela patrocinada. As sociedades modernas se legitimam pela ilusão de uma igualdade que horizontaliza as classes em dignidade e liberdade igualitária, quando, na realidade, serve de suporte a perpetuação consentida da desigualdade.

Segundo Telles (2001), a efetivação da cidadania aposta na existência de uma ordem legal capaz de garantir as reciprocidades que a noção de igualdade supõe. No Brasil, contudo, as tramas institucionais cooperam com o imaginário social no sentido de disseminar uma concepção restrita e discriminatória de cidadania. O princípio da igualdade nunca se universalizou efetivamente entre o povo brasileiro (SOUZA, 2009). Ao contrário, nesse país, a igualdade é sistematicamente refutada, tanto no imaginário social, quanto nas tramas institucionais. Hierarquias de diversas ordens são ativadas a fim de discriminar os cidadãos entre mais ou menos dignos de direitos e respeito. As esferas institucionais, que em tese deveriam resguardar o princípio da igualdade, reforçam as discriminações na forma como a lei tipifica serviços e prescreve as condições de acesso aos direitos. O caráter focalizado dos direitos e políticas sociais tem como efeito limitar

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a própria compreensão de sujeitos de direitos e, com ela, a percepção da dignidade na vida cotidiana (TELLES, 2001).

Em tese a efetivação da cidadania também conta com uma noção generalizada de civismo que vincula a participação cidadã ao interesse público. Observamos, contudo, que persiste entre o povo brasileiro um modelo privado de cidadania voltado à defesa de interesses particulares na esfera pública. Carentes de referências reais e simbólicas que leve a uma compreensão ampliada da cidadania, a participação civil em nosso país frequentemente entra em cena quando pela defesa de interesses privados ou a fim de restabelecer uma ordem social definida por categorias morais da vida privada (TELLES, 2001).

A debilidade da cidadania brasileira é fortalecida pelo tratamento deturpado das questões de desigualdade no país, que oscilam entre uma pseudocrítica liberal-conservadora e uma corrente “politicamente correta” (SOUZA, 2009). No primeiro caso, êxitos e fracassos são encarados como empreendimentos individuais, de modo a responsabilizar as vítimas da desigualdade por seu próprio infortúnio. O equívoco dessa perspectiva, travestida de justa e igualitária, consiste em generalizar a imagem do homo

economicus a todos os membros da sociedade. Deixa-se de perceber que essa figura

racional, disciplinada, autocontrolada e calculista é moldada por uma pré-socialização específica, geralmente vinculada a uma série de privilégios em termos de segurança existencial, estabilidade financeira e capacidade de projeção. Oculta-se que a formação de uma economia afetiva própria ao homo economicus é circunstancial e não generalizável. Souza (2009) observa que os defensores dessa pseudocrítica liberal-conservadora, comumente manipulam a ideologia do desempenho e do mérito a fim de justificar seus próprios privilégios, se auto afirmando merecedores ou mais merecedores.

Já a leitura “politicamente correta” das desigualdades no Brasil se equivoca por apresentar uma visão romantizada e condescendente da pobreza. Seus defensores se mostram atentos à opressão dos mais necessitados, porém se eximem de problematizar as estruturas profundas da dominação social. Frequentemente apontam como responsáveis pelo cenário injusto da pobreza extrema, algum agente exógeno, abstrato ou indeterminado, como o Estado ou “elites más”. Passa despercebido a seus defensores que, ao insistir sobre as virtudes presentes na condição de pobreza - herança cristã de uma teodiceia do sofrimento -, essa perspectiva ratifica as desigualdades sociais, pois

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promove o conformismo das classes dominadas. Neste sentido, a visão “politicamente correta” é também politicamente inócua (SOUZA, 2009).

As percepções hegemônicas da desigualdade de classes no Brasil, portanto, oscilam entre a culpabilização e a idealização da vítima (SOUZA, 2009). Em todo caso, a pobreza aparece como uma patologia sem autores, a ser tratada, ora pela filantropia, ora pela repressão; capaz de gerar desconforto e compaixão, todavia não incita responsabilidades individuais e coletivas (TELLES, 2001). Para Telles (2001) a filantropia ganha força justamente quando as noções de responsabilidade pública e de bem público se definham enquanto possibilidades de tratamento das mazelas sociais.

Souza (2003) ensina que uma interpretação adequada da realidade é indispensável ao enfrentamento dos problemas sociais gerados pela extrema desigualdade. Essa interpretação deve considerar aspectos socioculturais e psicossociais de reprodução de desigualdades.

O que é preciso perceber é que a invisibilidade da classe social, compreendida não no seu mero resultado econômico, mas no seu processo obscurecido de construção sociocultural, é o fundamento tanto da ‘culpabilização da vítima’ entre nós quanto da ‘idealização do oprimido (SOUZA, 2009, p.99).

Sem que haja um olhar atento às engrenagens silenciadas da reprodução de desigualdades excessivas, os remédios direcionados a esse problema tendem a ser superficiais ou agravantes. Uma interpretação adequada da reprodução de desigualdades é fundamental à elaboração de remédios eficientes. Fraser (2001) observa que desvantagens econômicas e desrespeitos culturais são conjurados em uma espécie de ciclo vicioso da subordinação. Para a autora, a superação de injustiças envolve redistribuição de riqueza e reconhecimento social. Os dois remédios parecem possuir fins contraditórios: a lógica da redistribuição é eliminar diferenças, já a lógica do reconhecimento é valorizar a diversidade. Por meio da redistribuição se promove igualdade, por meio do reconhecimento se promove a diferenciação. No mundo real, contudo, lidamos com coletividades ambivalentes, que demandam simultaneamente os dois remédios. Isoladamente, nenhum deles é capaz de atender a demanda por justiça.

Fraser (2001) distingue, ainda, remédios afirmativos de remédios transformativos. Os primeiros estão voltados para a correção de resultados indesejáveis dos arranjos sociais sem perturbar o arcabouço que os gera. Os remédios transformativos, por sua vez, estão orientados para a correção de resultados indesejáveis justamente a partir da

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reestruturação do arcabouço genérico que o produz (FRASER, 2001). Esse remédio visa mudanças estruturais de longo prazo. Para Fraser (2001), a combinação mais promissora para o enfrentamento de injustiças sociais seriam remédios transformativos, tanto no âmbito do reconhecimento quanto no da distribuição. Esse projeto objetiva modificar estruturas profundas da economia política e da cultura. A desvantagem dessa combinação, porém, está em exigir a renúncia de interesses imediatos (FRASER, 2001).

Para pessoas que vivem em situação de extrema vulnerabilidade, contudo, essa renúncia não é tão simples. É o caso dos acolhidos da UNAF, que será abordado no presente trabalho. São formulados para esse grupo de indivíduos remédios afirmativos voltados a correção superficial de injustiças econômicas. Essas medidas incluem programas de seguro social e de assistência pública. Longe de abolir as diferenças de classes, tais remédios muitas vezes lhes servem de suporte. Tenta-se superar a má distribuição de recursos, mantendo intacta a estrutura político-econômica subjacente4 (FRASER, 2001).

Frequentemente, medidas socioassistenciais paliativas e focalizadas têm como efeito gerar novas fissuras sociais, pois, direcionadas aos destituídos, são compreendidas como privilégio de um grupo. E, geralmente, um grupo taxado de “não merecedor”, como será mostrado no estudo de caso. Portanto, sua própria existência tem o poder de gerar estigmas que corrompem o objetivo inicial de superação de injustiças. Mas por serem imprescindíveis em um contexto de extrema desigualdade, os remédios afirmativos-paliativos perduram, bem como seus efeitos sectários.

O estudo de caso permite evidenciar os desdobramentos sectários de uma medida afirmativa nesse sentido. Embora o serviço de acolhimento tenha se tornado indispensável nos grandes centros urbanos, ele tem usualmente levado a armadilha que vincula os usuários em um cenário conflituoso. O caso da Vila Areal evidencia uma configuração social marcada pela desigualdade de poder entre dois grupos e a sociodinâmica de reprodução das desigualdades naquela conjuntura. Observa-se que a reprodução da subcidadania ali se realiza mecanismos indissociavelmente sociais, institucionais e

4 Durante a banca de defesa dessa dissertação a Prof.ª Camila Potyara chamou a atenção para o fato de as políticas sociais serem contraditórias e dialéticas, não podendo ser enquadradas, de forma maniqueísta, como boas ou ruins. De fato, os remédios afirmativos não alteram por si as estruturas sociais, contudo, se bem sucedidos, preparam os cidadãos para integrarem uma sociedade civil forte, participativa, apta a lutar por mudanças profundas na estrutura político-econômica vigente.

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“internos” aos albergados. Importa, por ora, sublinhar que a perpetuação de uma ralé estrutural conta com um dinamismo social complexo que vincula destituição material à inadaptação, à desclassificação social e a uma autorrelação negativa de membros do grupo.

A sociodinâmica das desigualdades para a qual se propõe chamar a atenção envolve indissociavelmente mecanismos de privação material, cultural, social e moral. É o dinamismo dessas vias, aquilo que faz com que desigualdades excessivas se tornem autorreproduzidas. Será evidenciado que o déficit interligado de atributos físicos, humanos e sociais opera no sentido da manutenção de posições sociais de subordinação. Em contrapartida, o acúmulo interdependente desses atributos opera no sentido oposto, qual seja, o de fortalecer posições de privilégio. Ainda que sejam inúmeras as forças contrárias a realização totalizadora desses ciclos na vida cotidiana, é possível pensá-los como modelosa fim de destacar a interdependência das esferas material, cultural, social e moral em uma sociodinâmica das desigualdades.

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2. O albergue na Vila Areal

Cidadania social é o conjunto de direitos e obrigações que visa igualar os membros de uma mesma comunidade nos seus padrões básicos de vida. Essa dimensão da cidadania envolve direitos à saúde, previdência e assistência, para que os cidadãos compartilhem minimamente da herança social e tenham acesso a uma “vida civilizada” segundo os padrões prevalecentes em sua sociedade. Seu objetivo, como foi apontado, não é o de igualar rendas ou eliminar a pobreza - o que compete às políticas econômicas - mas mitigar cisões no interior da sociedade e diminuir desigualdades exorbitantes de oportunidades. Ao fim e ao cabo a dimensão social da cidadania objetiva eliminar desigualdades autorreproduzidas. Como? Fortalecendo e dando assistência aos mais vulneráveis (ROBERTS, 1997).

Tal é o propósito do Sistema de Proteção Social brasileiro: garantir segurança de subsistência, convívio familiar e acolhida às pessoas ou grupos em situação de vulnerabilidade social. São indivíduos e grupos em situação de abandono, maus tratos físicos ou psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, trabalho infantil, dentre outros. (PNAS, 2004).

Os serviços desse sistema estão divididos por níveis de complexidade: proteção social básica e especial de média e alta complexidade. Suas linhas de atuação abrangem desde o provimento de serviços de apoio e sobrevivência até a inclusão em redes sociais de atendimento e solidariedade. Trata-se de um serviço polêmico, pois embora tenha se tornado indispensável a seguridade da população que vive sob condições de extrema vulnerabilidade no Brasil, suas medidas são paliativas.

A proteção social atua no suprimento de necessidades básicas, garantindo um mínimo de saúde física e autonomia aos usuários para que possam dar continuidade as suas vidas. O presente trabalho aborda um serviço do sistema de proteção especial de alta complexidade. Ele se distingue dos demais por atender precisamente os mais vulneráveis dentre os usuários, isto é, aqueles que vivenciam sua condição de vulnerabilidade distantes do seu núcleo de origem, sem referências, com vínculos familiares rompidos e muitas vezes em situação de ameaça. Essa modalidade conta com serviços de proteção integral (moradia, alimentação e higienização) em instituições de acolhimento como Albergues, Casas Lar, Repúblicas e Casas de Passagem (PNAS, 2004).

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32 2.1. A Unidade de Acolhimento para Adultos e Famílias do Distrito Federal

Em Brasília, a Unidade de Acolhimento para Adultos e Famílias (UNAF), vinculada à Secretaria Adjunta de Desenvolvimento Social do Governo do Distrito Federal, é a unidade responsável pela proteção de alta complexidade do grupo de homens adultos solteiros e famílias. Segundo a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, o acolhimento institucional voltado a esse público deve funcionar em unidades inseridas na comunidade, com características residenciais, ambiente acolhedor e estrutura física adequada. “As unidades devem estar distribuídas no espaço urbano de

forma democrática, respeitando o direito de permanência e usufruto da cidade com segurança, igualdade de condições e acesso aos serviços públicos” (Tipificação Nacional

dos Serviços Socioassistenciais, 2014, p.45).

Os objetivos do acolhimento são: garantir proteção integral aos usuários; contribuir para a prevenção do agravamento de situações de negligência, violência e ruptura de vínculos; restabelecer vínculos familiares e/ou sociais; possibilitar a convivência comunitária; promover o acesso à rede socioassistencial, aos demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos e às demais políticas públicas setoriais; favorecer o surgimento e o desenvolvimento de aptidões, capacidades e oportunidades para que os indivíduos façam escolhas com autonomia; e promover o acesso a programações culturais, de lazer, de esporte e ocupacionais. A esses objetivos são acrescidos de modo particular o atendimento de adultos e famílias: o desenvolvimento de condições para a independência e o autocuidado, e a promoção do acesso à rede de qualificação e requalificação profissional com vistas à inclusão produtiva (Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, 2014).

A UNAF, popularmente conhecida como Albergue, presta serviços de acolhimento de caráter provisório à população em situação de extrema vulnerabilidade social: pessoas em situação de rua, desabrigo, sem condições de autosustento, vítimas de ameaça, calamidade pública, refugiados, erradicados de áreas irregulares e migrantes. Segundo D., funcionária da unidade, o serviço é de acolhimento, mas a demanda nunca é apenas o acolhimento. Geralmente os usuários buscam, por intermédio da unidade, uma oportunidade de trabalho, tratamento médico, tirar documentação, acompanhar tramites judiciais, dentre outros.

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Atualmente, a unidade contém cento e cinquenta leitos. O serviço é voltado predominantemente para homens adultos e solteiros. Mulheres podem ingressar desde que acompanhadas por seus respectivos parceiros. Cada quarto contém seis leitos, exceto aqueles reservados às famílias, cujo espaço é maior e restrito aos membros (independentemente da quantidade de filhos). Um quesito básico para a estadia é possuir a maior idade. Indivíduos menores de 18 anos devem estar acompanhados pelos pais. Atualmente, a demanda é feita por encaminhamento dos seguintes órgãos: CRAS, CREAS, SUAS 24h, CentroPop, Cidade acolhedora, Defensoria pública, Hospitais e centros de saúde, Casa Santo André e também por iniciativa própria.

Ao chegar no abrigo os acolhidos participam de uma oficina de boas-vindas onde recebem informações necessárias à sua estadia. O serviço inclui: acolhimento provisório, alimentação, local para repouso e material de higiene pessoal. Além disso cada acolhido tem acesso a um plano individual de atendimento (PIA) com profissionais especializados: assistentes sociais, educadores sociais, psicólogas e psiquiatra, quando necessário. A unidade conta também com três núcleos de atendimento (NANT, NAPS E NUCODH) voltados a instruir os acolhidos em sua busca por trabalho, tratamento de saúde e desenvolvimento humano. O período máximo da estadia é de noventa dias, porém, existe a possibilidade de prolongamento desse período a depender da demanda.

Na oficina de boas-vindas os acolhidos são orientados a seguir à risca os horários da unidade, de entrada, saída e refeições. Devem também cumprir as regras de conduta do local, sob o risco de sofrer suspensão ou mesmo desligamento, conforme a gravidade da falta ou sua reincidência. As funcionárias explicam que o ponto mais elementar a ser observado é o respeito, pois essa palavra sintetiza todos os outros deveres: de cuidar da higiene pessoal, limpar o quarto, tratar bem outros acolhidos e funcionários, não mexer nos bens alheio, etc. Em uma tonalidade que oscila entre a seriedade e a docilidade, elas buscam estimular os acolhidos a assumirem três posturas dali em diante: resiliência,

autocuidado e autonomia. Na apresentação, as funcionárias descrevem a vaga na unidade

como uma oportunidade preciosa, bastaria observar o número exorbitante de pessoas em situação de rua e, ao seu redor, quantas lograram ingressar no abrigo. “Vocês devem

aproveitar esse momento para pensar um novo projeto de vida... Às vezes alguns chegam aqui com baixo autoestima, por tudo que já passou na vida, mas é importante se amar, se cuidar... Isso é um momento. Vai passar” (P. Funcionária da UNAF).

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34 Foto: recepção UNAF. Fonte: Brasília Capital; Caderno Cidades:

http://www.bsbcapital.com.br/albergue-do-caos/

2.2. O cenário conflituoso entre moradores e “albergados”

Inaugurado em 1990, o abrigo foi construído à época em uma região afastada do perímetro urbano. Aos poucos, uma ocupação próxima ao edifício se expandiu formando o que é hoje a Vila Areal. Um conflito duradouro marca a relação da Vila com o abrigo. Moradores da região alegam que a unidade de acolhimento gera insegurança e desvaloriza os imóveis da região. Também manifestam reiterado incômodo pelo comportamento indevido dos acolhidos, que, em seu discurso, são inconvenientes, promíscuos, pedintes e drogados. Os moradores dão grande destaque ao caráter duvidoso dos “albergados”, que, na sua concepção, são desonestos e perigosos.

Acho que quem realmente quer, quem tá atrás de um tratamento,

não fica perambulando como eles ficam ali, incomodando. Um outro travesti, que é albergado, se depilando na porta do prédio... Inclusive, você poder ir lá na frente...tem mais de dez apartamentos para alugar. É um problema social gravíssimo, e ainda vem com o agravante do crack, né? (L. Morador da Vila Areal).

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Frequentemente, escândalos de violência no Areal minam a tolerância dos moradores com acolhidos, tornando a relação com a abrigo particularmente difícil. De fato, a violência é uma constante no Areal, acentuada muito em razão da presença marcante do tráfico de drogas na região. Mas, para muitos moradores da Vila toda a insegurança está associada, direta ou indiretamente, ao albergue. Inúmeras manifestações foram realizadas exigindo a remoção da UNAF: protestos, abaixo assinados, cartas de repúdio e convocação da imprensa local. O apogeu do conflito se deu em 2011, quando um ex-acolhido da unidade sequestrou e matou Beatriz, criança de nove anos que vivia no Areal. Despois disso, as reivindicações pela remoção do abrigo se intensificaram.

Isso foi a gota d’água. Nós descobrimos que foi um ex-albergado quem fez isso com a criança. Aí nós criamos o movimento pela remoção do albergue, fizemos várias manifestações, fechamos o Pistão, chamamos a imprensa. Inclusive, chegaram a derrubar parte do muro. Esse foi o estopim. Depois disso aí colocaram fogo num albergado, depois acho que o pessoal matou mais dois. Eu sou contra. Sempre fui pelas vias legais. Só que tem gente que pensa diferente, querem fazer mesmo uma limpeza. (L. Morador da Vila

Areal).

Nos anos que se seguiram ao escândalo Beatriz a discussão sobre a remoção do albergue ficou adormecida graças à deliberação da Câmara Legislativa do Distrito Federal em manter o abrigo no local sob o compromisso de realizar uma reforma notável na unidade e no serviço de acolhimento do DF como um todo. A intervenção na UNAF foi realizada no sentido de melhorar a infraestrutura do prédio, investir na formação dos funcionários, e diminuir o número de leitos. Já no serviço de proteção social do DF foram tomadas medidas como a inauguração de CentrosPop, CREAS e uma proposta, ainda em andamento, de descentralização do atendimento. Novas unidades seriam construídas em São Sebastião, Planaltina e Ceilândia.

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Fotos: Dormitórios a partir da calçada, blocos de dormitórios e área em reforma. Fotos da autora/ Nov. 2013.

Foto: dormitórios antigos à esquerda e dormitórios revitalizados à direita. Fotos da autora/ Out. 2016

Com a mudança, não mais se verifica o cenário caótico da instituição de anos atrás. Funcionários descrevem que houve um tempo em que o albergue comportou mais de mil acolhidos, em um ambiente insalubre e fora de controle. A título de comparação, o atual limite prescrito na Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (2014) é de 50 pessoas por unidade de acolhimento. Mesmo após as reformas, a UNAF ainda comporta três vezes mais que o limite recomendado pela Tipificação, mas para o porte dessa unidade, ampla em extensão e estrutura, o atual número de leitos é considerado adequado pelos funcionários da instituição. Ainda que as mudanças tenham amenizado o conflito com os moradores, o anseio da população em se livrar do abrigo permanece. Em seu discurso os problemas associados à unidade perduram ou são atualizados. “O que

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