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A HISTÓRIA DESCONHECIDA DO CÔNSUL QUE DESAFIOU SALAZAR

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1284 . 12/10 A 18/10/2017 . CONT. E ILHAS: €3,20 . SEMANAL INVESTIGAÇÃO

TRÁFICO DE ESTEROIDES NOS GINÁSIOS “MONSANTO PAPERS”

GLIFOSATO SOB SUSPEITA

A DEVOÇÃO À IRMÃ LÚCIA A AMANTE FRANCESA E A FILHA

BASTARDA O ENCONTRO COM EINSTEIN OS FILHOS QUE COMBATERAM

NA II GUERRA MUNDIAL

A HISTÓRIA DESCONHECIDA DO CÔNSUL

QUE DESAFIOU SALAZAR

ARISTIDES DE SOUSA MENDES

NA INTIMIDADE

ROTEIRO DE MIMOS PARA CÃES

E GATOS

Aristides vestido de sultão, como o padrinho do seu 6º filho, em Zanzibar

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ARISTIDES

DE SOUSA MENDES

A “intervenção” da irmã Lúcia que, deixou escrito, lhe salvou uma filha. Os dois filhos que se alistaram no exército aliado,

com a sua colaboração, e combateram as tropas nazis.

O caso extraconjugal em França, de que nasceu uma menina.

A ligação umbilical ao irmão gémeo, César, também diplomata.

São as revelações que faltavam sobre o corajoso cônsul de Bordéus que, desobedecendo a Salazar, salvou dezenas

de milhares de vidas do Holocausto da II Guerra Mundial

J . P L Á C I D O J Ú N I O R

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Aprumo

O jovem cônsul em traje de gala no início da carreira, em 1910

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Em 1927, o jovem diplomata Aristides de Sousa Mendes, então com 42 anos, era bem visto pela ditadura militar que governava o País. Fora nomeado cônsul em Vigo, cidade portuária à época de importância crescente em Espanha e na Europa, devido à locali- zação geográfica e ao desenvolvimento de indústrias, sobretudo a pesqueira, de grande potencial para atrair tra- balhadores portugueses. Em resumo, Aristides via a indicação para Vigo, um posto de confiança do Governo, como um sinal de que a sua carreira seguia um auspicioso caminho.

A vida decorria sem percalços quan- do, num dia de 1928, o cônsul foi chamado a Lisboa, para tratar de um assunto “discreto e delicado”. Adivi- nhava-se uma qualquer “missão se- creta”, mas nada que impedisse que a família acompanhasse Aristides, como sempre acontecera. À partida, num carro espaçoso e resistente, lá se enfiaram todos dentro do automóvel, o cônsul e a mulher, Maria Angelina, ou Gigi, os 11 filhos que na altura já tinham e “a Borges”, fiel empregada. Aristides e Maria Angelina conheciam-se desde pequenos. Cedo se apaixonaram e logo se casaram, em 1908. Ele tinha 23 anos e ela apenas 20, e eram duplamente primos em primeiro grau. Ou seja, ambos os sogros de Aristides eram irmãos dos seus pais. Em 1933, o casal chegou aos 14 filhos – nove rapazes e cinco raparigas.

Por agora, estamos com 11 deles, encafuados num automóvel, e os mais velhos a especularem em sussurros sobre o motivo da imprevista viagem a Lisboa. Mas nem a mais fértil ima-

um neto (ed. Desassossego, 348 págs.,

€17,70), que chega amanhã, sexta-fei- ra, 13, às livrarias. Um dos 39 netos de Aristides e Gigi, Moncada de Sousa Mendes decidiu relatar a intimidade da família, das alegrias às tragédias, num livro cheio de revelações, algumas das quais a VISÃO aqui antecipa em pri- meira mão – numa obra que é também uma homenagem sentida ao corajoso cônsul de Bordéus, que, na II Guerra Mundial, pagou o seu humanitarismo com a perseguição pelo Estado Novo salazarista até à morte.

“Conforta-me saber”, explica o au- tor na introdução ao livro, “que o homem que salvou tantas vidas, com ginação anteciparia a “missão secreta”

em que depois participaram. Ainda pernoitaram na moradia da família, a Casa do Passal, na aldeia de Cabanas de Viriato, em Carregal do Sal (Viseu).

E, manhã cedo, arrancaram (todos…) para a capital. Em Lisboa, no Ministé- rio dos Negócios Estrangeiros (MNE), Aristides de Sousa Mendes, profunda- mente religioso, recebeu com satisfa- ção a incumbência “discreta e delicada”.

Mas manteve os filhos na ignorância até ao último minuto.

UM SUSTO DO DIABO

No regresso à Galiza, o resistente au- tomóvel saiu da estrada principal para entrar em Coimbra. O cônsul condu- ziu-o em direção ao Convento das Carmelitas, e aí entrou no carro a irmã Lúcia, a mais velha dos três pas- torinhos de Fátima, que precisava de ser transportada para o Convento das Doroteias, em Tui. Estava explicado o melindre do assunto. Os filhos mais velhos do casal logo reconheceram Lú- cia e trataram de passar o segredo aos mais novos. Um alvoroço. “As crianças cantaram, riram, dormiram e ousa- ram mesmo falar com a irmã Lúcia”, escreve António Moncada de Sousa Mendes, 68 anos, na sua obra Aristi- des de Sousa Mendes – Memórias de

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a sua assinatura em vistos para quem tentava desesperadamente escapar à morte decretada pelo horror nazi, pôs o seu nome no meu ‘visto para a vida’”(leia-se certidão de nascimento no Registo Civil).

Regressemos ao transporte da irmã Lúcia para Tui, no lotado automóvel.

O cônsul calculou a viagem em sete ou oito horas. Tudo correu bem até quase

saúde.” No interior do automóvel, os filhos do cônsul viraram-se para a

“santa”, como lhe chamavam: “Milagre, milagre”, exclamavam. “Tinham aca- bado de assistir a um acontecimento com algo de mágico, de inexplicável, e do qual se iriam lembrar para o resto da vida e transmitir à descendência.”

Retomada a rota em direção à fron- teira, a noite já havia caído, cerra- da. Às tantas, todos ouvem ao longe um comboio, e Aristides, em vez de abrandar, decidiu acelerar, de modo a atravessar a passagem de nível antes da composição, para não perder mais tempo. Quando entraram na rampa de acesso, porém, a cancela da passagem de nível desabou com força mesmo em frente do motor do automóvel, imobilizando-o. Ruídos de ferros e metais sugeriam estragos na dianteira do carro. O cônsul saiu do automóvel, embrenhado em preocupações. O que diria a polícia espanhola na fronteira, alguns metros mais à frente, ao ver chegar um carro do corpo consular a abarrotar de pessoas e sem luzes?

Quem seria o irresponsável condu- tor? O silêncio glacial instalou-se, outra vez, no interior do carro, com os filhos de Aristides e Gigi a olharem fixamente uma muda e queda irmã Lúcia. O cônsul verificou, abismado, à fronteira luso-galega. Aí, já a escure-

cer, a “boa estrada” começou a faltar.

Sem sinalização adequada, o fatigado condutor perdeu-se e entrou por um caminho de cabras. E, ao virar numa curva estreita, colidiu com um enorme rebanho. Ovelhas voaram pelos ares, balindo alto, os cães ladraram, o pas- tor protestou, indignado. Dentro do automóvel gritava-se “ai, meu Deus!”.

Recuperado o sangue-frio, Aristides abriu a porta para ver os estragos e quantos animais teriam sido atrope- lados e mortos. Pensava nos danos que causara ao pastor, em quem iria pagar a indemnização, se teria de dar conhecimento do incidente ao MNE, se arriscava alguma advertência por condução perigosa.

MAGIA INEXPLICÁVEL

Dentro do carro, já o silêncio era sepul- cral, e as crianças olhavam em súplica para a irmã Lúcia. “E eis que de repente (…) há uma coisa qualquer que começa a mexer no meio daqueles cadáve- res todos espalhados pelo caminho”, descreve Moncada de Sousa Mendes.

“Sim, há uma ovelha que está viva (pelo menos uma), levanta-se e corre para o pastor, depois mais uma, e mais outra, e outra… (...) Acabaram por se levantar todas. Estavam todas vivas e de boa

Um homem de família Com o irmão gémeo, César, mantinha uma relação umbilical.

Com Gigi teria 14 filhos, que o seguiam para todo o lado: da Guiana a Bordéus

Devoção A família conheceu a mais velha dos pastorinhos de Fátima em 1928 e tratava-a por “santa”

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que os para-choques, os farolins e o motor pareciam estar no lugar. Pediu à mulher que acendesse os faróis – que deram luz. “Foi como se nada tivesse acontecido”, relata Moncada de Sousa Mendes. “Afinal, iriam poder pros- seguir viagem até Tui. Não iria haver mais nenhum problema, apenas seria necessário conduzir com prudência até ao Convento das Doroteias. E de- pois: casa!” Mas todos levaram muito que pensar.

CURA DA NOITE PARA O DIA

Na Galiza, Aristides e Gigi decidiram residir em Tui. A cidade era tranquila e havia a prestigiada escola ligada às Irmãs Doroteias, na qual inscreveram as filhas Clotilde, Isabel e Joana. Além do mais, às raparigas era permitido um contacto próximo e frequente com freiras que ensinavam e viviam no convento.

Mas, também em 1928, a filha mais nova do casal, com três anos, Teresinha do Menino Jesus (nome que homena- Aristides de Sousa Mendes convidou o cientista para jantar

na sua residência consular, em Lovaina. Falaram de uma “velha Europa doente”

Estamos em 1933. Hitler já havia tomado o poder em Berlim e os ventos agoirentos, prenunciadores da II Guerra Mundial, sopravam fortes. O cientista alemão Albert Einstein abandonara o seu país e passava uma temporada na Bélgica, a caminho dos EUA.

Aristides de Sousa Mendes, além de cônsul de Portugal em Antuérpia, era o decano do corpo diplomático nessa cidade. A isso se deveu a visita que recebeu de Einstein. Convidou-o logo para jantar e para um serão de troca de impressões, na sua residência consular, em Lovaina.

O cientista fugia de um louco – Hitler. E preparava-se para deixar aquilo a que chamava a “velha Europa doente”. Foi esse o principal tema da conversa entre Aristides de Sousa Mendes e Albert Einstein.

Por acaso, estava em Lovaina José

Paulo de Sousa Mendes, irmão do cônsul e comandante da marinha de guerra portuguesa. Mas José Paulo era, sobretudo, um estudioso incansável de História, Matemática e temas científicos. E participou no jantar e na conversa com Einstein.

Moncada de Sousa Mendes, autor do livro Aristides de Sousa Mendes – Memórias de um neto, agora publicado, conta na obra que foi “longa a conversa sobre Matemática que houve entre o tio Zé Paulo e este prémio Nobel que lhe abriu os olhos, mostrando-lhe como tudo é tão relativo…”

A verdade, acrescenta, é que o Nobel da Física já se encontrava nas mãos de Einstein desde 1921

“e o nosso ‘tio navegador’ apenas olhava com espanto e de boca aberta para o génio que estava à sua frente”. O episódio tornou-se numa recorrente piada de família.

Embasbacado

No encontro entre Aristides de Sousa Mendes e Einstein também participou um boquiaberto irmão do cônsul, José Paulo

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tanto a tinham apoquentado, ficámos deveras atónitos! A Teresinha então já se ria e dizia que queria ir para o chão, que estava melhor!” O médico foi ver a menina e “ficou na maior das estu- pefações”. Para o cônsul, “houve outra medicina a ocupar-se” da pequena: “a proteção de Nossa Senhora e de Santa Teresinha do Menino Jesus”. Em nome da família, agradeceu às Irmãs Doro- teias. “Creio que foram elas que tudo conseguiram com as suas orações.” Por sigilo profissional, Aristides não referiu a “intervenção” da irmã Lúcia, da qual estava absolutamente convicto.

BATIZADO NO PALÁCIO DO SULTÃO O grande amparo de Aristides sempre foi o seu irmão gémeo, César, meia hora mais velho. E vice-versa. Filhos de um circunspecto juiz, José de Sousa Mendes, e de uma aristocrata liberal, Maria Angelina do Amaral e Abran- ches, ambos de famílias enraizadas na Beira, reuniam todas as características que, ainda hoje, a ciência não consegue explicar. Tinham um entendimento completo em tudo, além da grande parecença física. Adivinhavam o que o outro dizia ou fazia, ainda que hou- vesse oceanos entre eles. Admiravam os mesmos santos (São Francisco, Santo António e Santo Agostinho) e até “gostavam dos mesmos doces”, nota Moncada de Sousa Mendes, neto dos gémeos: o seu pai, Geraldo, era filho de Aristides, e a mãe, Maria Luísa, filha de César.

Os gémeos tiraram o curso de Di- reito em Coimbra e, aos 25 anos, o

“charme” da carreira diplomática, que ambos escolheram, separou-os fisica- mente. A partir de maio de 1910, César

começou com missões em Inglaterra e Espanha. Quanto a Aristides, iniciou-se em Demerara, na “insalubre” Guiana Britânica, na América do Sul. Mas, em 1912, foi nomeado para o consulado de Zanzibar, na então África Oriental inglesa. Aí viveria dias felizes.

Embora fosse um protetorado bri- tânico, a ilha era governada por um sultão, o muçulmano Khalifa bin Ha- rub. Jovem e formado em Inglaterra, o sultão simpatizava com a comunidade portuguesa, constituída sobretudo por comerciantes, e depressa se tornou amigo da família de Aristides. Dis- ponibilizou-lhes, por exemplo, o seu estúdio fotográfico, onde o cônsul se fez fotografar com a indumentária da corte de Zanzibar. Depois, bin Harub manifestou o desejo de se unir à família através de um ato espiritual. Aristides e Gigi consultaram o bispo católico e o bispo anglicano daquela ilha, e de- pois dirigiram-se ao palácio do sultão para o convidarem a ser o padrinho da próxima criança que viesse. Passado pouco mais de um ano, na primavera de 1917, apareceu Geraldo, o sexto filho do casal, e que foi afilhado do sultão muçulmano e dos dois bispos cristãos.

O batizado, celebrado no palácio de bin Harub, “foi mais do que uma simples festa”, conta Moncada de Sousa Mendes sobre a celebração cujo epicentro esta- va naquele que viria a ser o seu pai. “Foi um símbolo da união e amizade entre várias culturas e religiões.” À criança seria posto o nome de Feliciano do Nascimento Artur Geraldo – Arthur pelo bispo católico francês, e Geraldo pelo bispo anglicano. A identificação muçulmana do sultão foi convenien- temente omitida…

A FRANCESA INOPORTUNA

Em 1934, quando Aristides está coloca- do em Antuérpia, na Bélgica, abatem- -se sobre a família duas tragédias de efeitos devastadores. Manuel Silvério, 23 anos, filho do casal, acabava de se licenciar em Ciências Políticas e Diplo- máticas, pela Universidade Católica de Lovaina (cidade onde os Sousa Mendes residiam), e pegou numa das suas ir- mãs nos braços, para festejar. Deu um tremendo mau jeito e ficou de cama dois dias. “Os meus avós chamaram o médico, que receitou uma injeção, cujo único resultado visível foi a sua morte, sem que nunca se soubesse porquê”, relata Moncada de Sousa Mendes. Me- geava Santa Teresinha), adoeceu grave-

mente. O que então de extraordinário aconteceu levou o cônsul a escrever um artigo para a revista Rosas de Santa Teresinha. Aqui se resume o que o cônsul descreveu. A 9 de janeiro, um furúnculo nasceu no lábio superior de Teresinha. E, ao cabo de meses, todo o corpo da menina estava pejado de tumores. A pequena “tinha sempre uma febre intensa com delírio, so- fria dores horríveis, não descansando nem de dia nem de noite”. O médico que a seguia não a operava, ou porque considerava não ser ainda a altura, ou porque saía da cidade para acorrer a outras emergências. Com a família em tremendo sofrimento, deu-se numa noite “um fenómeno inexplicável: (...) tudo desapareceu, a febre, o tumor, a inchação da perna!”, relatou Aristides.

“Quando, de manhã, vimos a nossa fi- lha, horas antes tão deformada e cheia de febre, sem vestígios de qualquer dos incómodos que durante três meses

Boas relações Em Zanzibar fez amizade com o sultão, que apadrinhou o seu 6º filho

O (auto)carro de família Os 14 filhos encaixavam-se na parte traseira, à frente viajava o casal e “Borges”, a empregada

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ses depois, a filha mais nova, Raquel Hermínia, bebé nascida em Lovaina há pouco mais de um ano, sucumbiu a uma meningite.

Embora muito abalado, Aristides torna-se, em 1936, no decano do cor- po diplomático em Antuérpia. Já fora condecorado duas vezes pelo rei dos belgas. Crente no valor dos serviços que prestara ao País, decidiu escre- ver a Salazar, Presidente do Conselho que acumulava a pasta dos Negócios Estrangeiros. Com fundamentos re- sumidos em sete pontos, solicitava ao ditador que o promovesse, colo- cando-o na China ou no Japão. Sem o dizer, queria pôr a família bem longe do conflito apocalíptico, na Europa e no mundo, que Hitler se preparava para iniciar.

Abstendo-se de explicações, o di- tador recusou o pedido do cônsul e mandou-o para Bordéus – um posto como o precedente, senão inferior.

Com um núcleo familiar mais reduzi- do, Aristides chegou à cidade francesa 11 meses antes do começo da II Guerra Mundial, que eclodiu em setembro de 1939, quando a Alemanha nazi invadiu a Europa.

Em Bordéus, no início de janeiro de 1940, fez um estranho pedido ao filho Pedro Nuno, que Moncada de Sousa Mendes reproduz. “Há uma senhora que encontrei há dias e que começou a falar muito comigo ‘sobre tudo e mais alguma coisa’, e agora quer ir ao cine- ma… Imagina!”, dizia Aristides. “Mas ela é muito mais nova do que eu, deve ter uns 30 anos, portanto, pela idade é muito mais próxima de ti”, continuava.

“Tens de ajudar-me. Vai encontrá-la tu, diz-lhe que estou muito ocupado, mas que tu tens tempo e podes acom- panhá-la ao cinema. Chama-se Andrée Cibial.” Pedro Nuno foi ao encontro da mulher francesa, como previsto.

Contudo, explicou-lhe apenas que o pai não podia ir com ela ao cinema.

E não se ofereceu para a acompanhar.

Alguns familiares voltariam a ter notícias de Andrée Cibial, em outubro do mesmo ano. A 19 desse mês, deu à luz uma menina, a que chamou Ma- rie-Rose, na Maternidade Alfredo da CARREIRA

Aos 55 anos, quando Salazar o afastou, Aristides de Sousa Mendes já contava com um percurso diplomático de três

décadas, a exercer funções em quatro continentes, ao

serviço do último rei de Portugal, D. Manuel II, dos sete primeiros Presidentes da República, da ditadura militar, entre 1926 e 1932, e, por fim, ao longo do Estado Novo até

1940.

DESOBEDIÊNCIA Após a invasão de França pelas forças do III Reich, em

1940, o cônsul em Bordéus recusou-se a cumprir a ordem

de Salazar, que proibia os diplomatas de emitirem vistos

“aos judeus expulsos”. Todos fugiam do horror nazi e dos

campos de concentração.

“Não participo em chacinas”, justificou Aristides.

RECONHECIMENTO Em 1966, o Yad Vashem, autoridade judaica para a Memória do Holocausto, nomeia os primeiros Justos Entre as Nações. Há, então, apenas dois diplomatas:

Aristides de Sousa Mendes e o sueco Raoul Wallenberg.

Ao cônsul português é atribuída a salvação de 30

mil pessoas, dez mil das quais judias.

ATRASO

Só a 18 de março de 1988, a Assembleia da República, reunida em sessão especial, aprovou, por unanimidade e aclamação, a reintegração na

carreira diplomática, a título póstumo, de Aristides de Sousa Mendes, com promoção

ao grau de embaixador. Em 1995, Mário Soares agraciou

postumamente o cônsul com a Grã-Cruz da Ordem de

Cristo, e, em 2017, Marcelo Rebelo de Sousa distinguiu-o com a Grã-Cruz da Ordem da

Liberdade.

'Gigi' e Aristides Ela tinha 20 anos e ele 23 quando casaram.

A morte separou-os no dia em que ela cumpria 60 anos

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Advogados, Aristides encarregou-se de defender a causa em tribunal – e ganhou. No verão de 1945, deu-se o feliz reencontro dos “americanos” com os seus. Tinham combatido do “Dia D”

(desembarque na Normandia, em 1944) até ao “Dia V” (da vitória sobre Hitler, em maio de 1945), e saído imaculados da carnificina.

UMA ‘PENUCHA’ EM CABANAS A 30 de agosto de 1948, Gigi morreu na sequência de uma trombose. Nesse dia cumpria 60 anos. Após o falecimento da mulher, Aristides, que sofrera um AVC que lhe paralisou a mão direita, pediu a um padre que lhe encontrasse Andrée Cibial e a sua filha francesa. Os filhos emigravam uns atrás dos outros – a carga do apelido era demasiado pesada para conseguirem fazer vida em Portugal. A “francesa” foi des- coberta e casou-se, em fins de 1949, com Aristides. Buscava um impossível fausto, pelo que vendeu o que pôde do recheio da Casa do Passal. Anticorpos na família não lhe faltavam.

“A presença de Andrée em Cabanas de Viriato, e na região, foi uma espé- cie de ‘revolução francesa’”, descreve Moncada de Sousa Mendes. Vestia-se de forma nunca antes vista por aqueles lados, achavam-na estranha, bizarra.

Em resumo, uma mulher incompreen- sível para os cabanenses. Por vezes, provocava desacatos e discussões, era extravagante, fazia rir as pessoas por usar chapéus exuberantes, com plumas. “Deram-lhe mesmo uma al- cunha, por essa razão: ‘a penucha’.” Já agora, também arrancava gargalhadas a Aristides.

Em 1950, começou o processo de adoção de Marie-Rose, concluído dois anos depois. A rapariga ficou a viver em França, em casa de uns tios-avós. Aris- tides conseguiu que a polícia política lhe desse permissão para a conhecer e visitar, por quatro vezes. Foi imediata a empatia entre os dois.

Pelas quatro da tarde de um sábado, 3 de abril de 1954, Aristides de Sousa Mendes morreu, aos 68 anos, num quarto do Hospital da Ordem Terceira, em Lisboa, onde estava internado há três dias. “Talvez só, ou talvez na com- panhia de Andrée, nunca saberemos”, escreve Moncada de Sousa Mendes.

Salazar enviou um cartão de condo- lências. A família guardou-o, apesar do cinismo desmesurado. E o gémeo Cé- sar apenas sobreviveu um ano à morte do irmão. jjunior@visao.impresa.pt

Costa, em Lisboa, e disse que o pai da filha era o cônsul Aristides de Sousa Mendes. Um imbróglio e tanto.

RESILIENTE COMO POUCOS

Era preciso que Gigi não soubesse do affaire com a francesa e do nascimento da bebé. Disso trataram César, José Paulo, irmão mais novo dos gémeos, e um amigo da família. Tiraram An- drée Cibial e a filha da maternidade, pagaram a conta, e ao fim de algumas semanas a polícia política do regime, à época designada PVDE, pôs a “fran- cesa” na fronteira, interditando-lhe a entrada no País.

Aristides, 55 anos, aguardava então o “castigo” de Salazar. Quando as forças do III Reich invadiram França, em maio de 1940, o cônsul de Bordéus emitiu vistos que salvaram dezenas de milhares de pessoas, em fuga dos nazis e do hor- ror dos campos de concentração. Com os vistos, essas pessoas transitavam por Espanha e entravam em Portugal, onde, na maior parte dos casos, apanhavam um navio para os EUA. Em consciên- cia, Aristides ignorou uma ordem do ditador, inscrita na “Circular 14”, de 11 de novembro de 1939, que proibia os diplomatas portugueses de con- cederem vistos “aos estrangeiros que (...) apresentem nos seus passaportes a declaração ou qualquer sinal de não poderem regressar livremente ao país de onde provêm”, e “aos judeus expulsos dos países da sua nacionalidade ou de aqueles de onde provêm”. A defesa do cônsul era simples: “Não participo em chacinas, por isso desobedeço a Salazar.”

Acabou condenado a inatividade por um ano, com metade do vencimento da categoria, seguida da aposentação compulsiva, sanção esta que, à épo-

ca, não se encontrava prevista na lei…

E, sem qualquer justificação oficial, o gémeo César sofreu por tabela: esteve quase cinco anos inativo.

Em 1943, Sebastião, 20 anos, e Car- los Fernando, 21, os filhos “americanos”

de Aristides e Gigi, nascidos em São Francisco, quando o cônsul ocupava esse posto, conseguiram convencer os pais a deixá-los partir para a guerra.

Queriam reverter a má sorte de armas na mão, alistando-se nas forças aliadas que se concentravam em Inglaterra sob o comando do general americano Eisenhower. Mas havia um problema – as autoridades diziam que estavam em idade de cumprir o serviço mili- tar, e que a nacionalidade portuguesa prevalecia sobre a americana, que tam- bém tinham. A família engendrou um plano. Sebastião e Carlos pretendiam ir para Inglaterra prosseguir os estu- dos, e a sua primeira nacionalidade, a americana, tinha de ser reconhecida para o efeito. Inscrito na Ordem dos Moncada

de Sousa Mendes O neto demorou um ano a escrever as suas memórias do avô Aristides

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