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As lagoas costeiras de Morro dos Conventos

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5 8 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 5 • n º 2 0 9

P R I M E I R A

LI N H A

PRIMEIRA

LINHA

LIMNOLOGIA

Estudo revela características de corpos d’água do litoral de Santa Catarina

As lagoas costeiras

de Morro dos Conventos

ocupação e o uso desordenados do solo pela po-pulação humana ameaçam, em todo o mundo,

A

as grandes extensões de praias, dunas, lagoas e ba-nhados existentes em regiões costeiras. Diversos ecossistemas aquáticos e terrestres – e sua flora e fauna – vêm desaparecendo diante da implantação acelerada de loteamentos em áreas litorâneas e da extração de areia para construções. Esse processo ameaça as lagoas costeiras, permanentes ou não, encontradas ao longo do litoral brasileiro.

Abundantes em várias regiões do país, tais lagoas variam de pequenas depressões preenchidas com água da chuva e/ou do mar, de caráter temporário, a corpos d’água permanentes de grande extensão, como a lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul. Embo-ra as lagoas temporárias (que apresentam um perío-do seco, de duração variável) sejam comuns no Bra-sil, são escassos os estudos ecológicos sobre tais ecossistemas.

Até o momento, não são conhecidos trabalhos sobre ecologia das lagoas temporárias da região de dunas de Morro dos Conventos, no município de

As pequenas lagoas que surgem entre dunas, em muitos trechos do litoral brasileiro, são

ecossiste-mas peculiares e pouco estudados. Para ajudar a preencher essa lacuna, estudos sobre o processo

de formação e as características desses corpos d’água – em geral temporários – vêm sendo realizados

no extremo sul de Santa Catarina. Por

Marcelo Luiz Martins Pompêo e Viviane Moschini-Carlos,

do Departamento de Ecologia (Instituto de Biologia) da Universidade de São Paulo.

Araranguá, no extremo sul de Santa Catarina (figu-ra 1). Essa lacuna vem sendo preenchida por pes-quisas dos autores na região – com o apoio da biólo-ga Vanilde Citadini-Zanette, da Universidade do Ex-tremo Sul Catarinense, situada em Criciúma.

O local do estudo

O litoral sul brasileiro – do cabo de Santa Marta (SC) até o riacho Chuí (RS) – apresenta uma linha de cos-ta quase retilínea e sucessivos cordões litorâneos (depósitos de sedimentos trazidos pelo mar e por rios), recobertos em muitos pontos por campos de dunas, onde se formam inúmeras lagunas. No muni-cípio de Araranguá (figura 2), o clima é mesotérmi-co (mesotérmi-com temperaturas medianas) e úmido (mesotérmi-com alto índice de chuvas). Não há estação seca, os verões são quentes e as médias anuais são de 19,2°C, para a temperatura, e de 1.200 mm, para a precipitação. O governo catarinense considera esse município um importante pólo turístico, e as principais atrações da região são o Morro dos Conventos, o farol ali si-tuado, as dunas e praias (figura 3).

Figura 1 As pequenas lagoas que ocorrem entre as dunas em Morro dos Conventos (SC) secam rapidamente em períodos sem chuvas

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LI N H A

O Morro dos Conventos, ao sul da foz do rio Araranguá, é um ta-buleiro formado por camadas sedimentares de arenitos averme-lhados, argilas e xistos argilosos escuros. Do lado do mar, o tabu-leiro apresenta um paredão de 70 a 80 m de altura. Ao pé desse paredão estende-se uma série de dunas e, mais à frente, uma larga e extensa praia. Ao sopé do mor-ro são observadas dunas de quase 20 m de altura, algumas fixadas por vegetação e outras móveis, que se espalham até as margens do rio Araranguá.

Na região, os ventos dominan-tes do nordeste arrastam a areia da praia ou de dunas móveis, cri-ando novas dunas que se agrupam

pelos participantes dos ralis, torna urgente a adoção de medidas para disciplinar o uso da área, visando preservar a integridade do ecossistema. Além do impacto potencial do turismo, a flora e fauna local vêm sendo afetadas pela implantação acelerada de loteamentos e pela extração de areia.

Lagoas entre dunas

Em Morro dos Conventos há lagoas durante quase todo o ano, mas sua quantidade é maior após fortes chuvas. No início de março de 2001 existiam na região cerca de 20 pequenos corpos d’água rasos (fi-gura 4). Chuvas mais intensas elevam o nível da água e fazem com que várias dessas lagoas se unam. As menores podem secar por completo em três sema-nas, como ocorreu em agosto de 2001, e muitas per-manecem isoladas, sem vegetação marginal, cerca-das apenas por areia, como inúmeras existentes na região dos Lençóis Maranhenses (MA). Algumas la-nos trechos altos da praia. O acúmulo de água doce

ou salobra nas depressões formadas entre as dunas forma pequenas lagoas e alagados, em cujas mar-gens crescem plantas herbáceas adaptadas ao ambi-ente úmido, em contraste com as plantas adaptadas a solos arenosos e tolerantes ao sal encontradas na outra vertente das dunas, junto à praia. Tais plantas, capazes de crescer rapidamente (nos sentidos ver-tical e horizontal) à medida que são soterradas, atuam como obstáculos ao transporte da areia pelo vento, iniciando a formação e fixação das dunas.

Devido ao valor de conforto (prazer e satisfação de um ambiente limpo) e ao valor cênico, a região de dunas ao pé do paredão de Morro dos Conventos é muito visitada por turistas para a prática de sandboard (um tipo de esqui na areia), além de ca-minhadas, ralis com jipes e motos, alpinismo e paragleider (um tipo de pára-quedas). A escolha indiscriminada das trilhas sobre as dunas e lagoas,

Figura 2 O estudo sobre as lagoas costeiras de Morro dos Conventos foi realizado no município de Araranguá, no litoral sul de Santa Catarina

Figura 3. Morro dos Conventos forma um paredão, separado do mar por um campo de dunas, e está localizado perto da foz do rio Araranguá

Figura 4. As lagoas temporárias encontradas na região de Morro dos Conventos são formadas entre as dunas pelas chuvas



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goas têm, como vegetação marginal, gramíneas (ca-pins), ciperáceas (plantas que se assemelham aos capins) e outras espécies herbáceas.

A análise morfométrica constatou que as lagoas têm formato variado e dimensões, volume de água e profundidade pequenos (figura 5), o que sugere ele-vado dinamismo (surgem, desaparecem e têm suas características alteradas rapidamente) e grande in-fluência das condições ambientais externas.

A maior lagoa da região (aqui chamada de lagoa 1) está localizada entre as dunas e o paredão rochoso vertical de Morro dos Conventos, e provavelmente é a única que jamais seca (figura 6). Estreita, com cer-ca de 15 m de largura e mais de 200 m de compri-mento, apresenta exuberante vegetação arbórea na margem próxima ao paredão. Na margem oposta, junto às dunas, e ao longo do espelho d’água são ob-servadas macrófitas aquáticas (enraizadas ou flu-tuantes) e espécies terrestres herbáceas. Suas águas têm cor amarelada, devido provavelmente à presen-ça de ácidos húmicos.

Em geral, as lagoas de Morro dos Conventos (exceto a lagoa 1) têm características físico-quími-cas parecidas: pH ligeiramente ácido, alta condu-tividade elétrica (embora essa variável seja menor em algumas), teores de oxigênio dissolvido ligeira-mente elevados (sem saturação) e baixos teores de materiais em suspensão, amônia e nitrito – quanto à presença de nutrientes, mostram baixos teores de fosfato inorgânico dissolvido e valores maiores de

fósforo total (figura 7). Os teores de clorofila a, prin-cipal pigmento responsável pela fotossíntese em al-gas, medidos em diferentes épocas do ano, são bai-xos (em geral, ficam abaixo do limite de detecção do método de medição utilizado – extração a quente com etanol) e não mostram variações definidas. O valor máximo obtido atingiu 17,4 microgramas por litro (µg/l). Quanto às variações no tempo desses parâmetros, estudo intensivo realizado em três la-goas, entre agosto e setembro de 2001, constatou padrões semelhantes no caso da temperatura da água, mas diferentes para o pH, a condutividade elétrica e o oxigênio dissolvido (figura 8).

Quanto à comunidade biótica, observou-se uma massa viscosa de algas no fundo de algumas lagoas. O levantamento da comunidade de algas do fundo e da coluna d’água em quatro lagoas da região, em maio de 2001, identificou 48 táxons diferentes, mui-tos presentes em mais de uma lagoa, distribuídos entre as classes Zygnemaphyceae (21 espécies), Cyanophyceae (nove), Chlorophytaceae (oito), Bacillariophyceae (sete) e Oedogonophyceae, Ulothricophyceae e Dinophyceae (um táxon cada).

Ambiente de extremos

As lagoas de dunas são em geral pequenas e rasas, com penetração de luz até o fundo e grandes varia-ções de área, volume e profundidade, e muitas desa-parecem na época da estiagem, como ocorre na re-gião de Morro dos Conventos. As lagoas existentes na foz do rio Araranguá são, em sua maioria, forma-das pelas chuvas, e podem secar – às vezes em cerca de três semanas – na época de menor precipitação. A maior delas (lagoa 1) provavelmente é a única decorrente do afloramento do lençol freático.

Constatou-se que essas lagoas, assim como as es-tudadas pelos autores na região de dunas dos Len-çóis Maranhenses, mostram baixos valores de sóli-dos em suspensão. A avaliação do seu estado trófico

VARIÁVEIS LAGOA 2 LAGOA 3 LAGOA 4 LAGOA 5 LAGOA 6 LAGOA 7

Comprimento(m) 46,8 10 57 33 45 7,2 Largura(m) 9 4,7 5,7 4 9 4,3 Profund. max. (m) 0,32 0,3 0,2 0,2 0,28 0,18 Perímetro (m) 98,6 25,0 86,7 68 97 19 Volume (m3) 7.310 175 2.757 142 13.750 86 Área (m2) 73,2 12,3 75,1 42 98,4 7,9

Figura 6. A maior lagoa de Morro dos Conventos, situada entre o paredão rochoso e as dunas, parece ser a única permanente

VARIÁVEIS LAGOA 1 LAGOA 2 LAGOA 3 LAGOA 4

Hora da leitura 11:15 10:38 10:15 9:10

Temperatura (0C) 20 20 20 20

Potencial hidrogeniônico (pH) 6,8 6,9 6,8 6,8

Condutividade elétrica (microssiemens/cm) 258 136,2 58,5 125,1

Oxigênio dissolvido (miligramas/litro) 6,1 8,9 7,1 7,5

Saturação de oxigênio (%) 67,2 98 78,2 82,5

Material em suspensão (miligramas/litro) 5,4 1 2,8 0,5

Nitrito (microgramas/litro) 1,51 2,59 0,7 0,22

Amônio (microgramas/litro) 21,5 (-) 8,55 (-)

Ortofosfato (microgramas/litro) 3,91 1,48 2,48 3,3

Fósforo total (microgramas/litro) 87,03 9,55 16,83 7,16

Figura 5 Dimensões de algumas das pequenas lagoas estudadas no campo de dunas do município de Araranguá Figura 7 Variáveis físicas e químicas da água de algumas lagoas presentes entre as dunas da região de Morro dos Conventos (coletas em 22 de maio de 2001)

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apresentar valores mais elevados, por causa da re-dução do volume de água pela evaporação (o que concentra os nutrientes). Entretanto, esse efeito (nu-trientes mais concentrados, levando a maior condu-tividade elétrica) não foi constatado pelos autores nem nas lagoas dos Lençóis Maranhenses, nem nas de Morro dos Conventos, embora os dados indiquem variações no espaço e no tempo.

Por ser um ambiente de extremos, a dinâmica do sistema, a riqueza e densidade de organismos, a pro-dutividade primária e outros aspectos podem ser explicados pela ampla variação dos teores de nutri-entes e da temperatura, pela alta intensidade lumi-nosa em toda a coluna d’água e pela variação das dimensões das lagoas. Os dados obtidos até agora

sugerem que as lagoas da região de Morro dos Con-ventos são polimíticas, ou seja, suas águas são total-mente misturadas periodicatotal-mente. Diferentetotal-mente do que se constatou nos Lençóis Maranhenses, as lagoas de Morro dos Conventos não apresentam um ciclo regular de seca e cheia. Exceto a ‘lagoa 1’, as demais são formadas quando ocorrem chuvas, ou seja, podem surgir inúmeras vezes ao longo do ano. A movimentação da areia das dunas também altera as dimensões dessas lagoas durante o ano (figura 9). A composição de algas nesses corpos d’água é tí-pica de água doce. No sedimento arenoso do fundo há uma fina camada de algas aderidas, que se des-prendem quando o vento agita a água. Tais algas pas-sam parte do ciclo de vida na coluna d’água, na for-ma planctônica. Essa flora é dominada por desmídeas e algas filamentosas verdes. Os autores também cons-tataram uma expressiva freqüência e densidade des-sas algas nas lagoas dos Lençóis Maranhenses. A or-dem Desmidiales abrange cerca de 30 gêneros e cin-co mil espécies. Tais algas, típicas de águas cin-com pH baixo (de 4 a 7), baixa alcalinidade e pobres em nutrientes, também ocorrem em lagos pequenos de águas ácidas, com areia ou pedras como sedimento de fundo, como nas lagoas de Morro dos Conventos. O estudo das lagoas costeiras – como as das áreas de dunas do litoral sul de Santa Catarina – permite conhecer melhor esses ecossistemas temporários, que dependem das condições ambientais (como o transporte de areia pelo vento e as chuvas). Segundo o limnólogo Francisco Esteves, tais lagoas têm uma grande importância, pois são regiões de interface entre zonas litorâneas, águas interiores e águas ma-rinhas. Assim, compreender o processo de forma-ção das mesmas, suas características e sua diver-sidade biológica será de grande valia para a defini-ção e a adodefini-ção de programas de conservadefini-ção e uso racional dos ecossistemas costeiros, um dos

princi-pais recursos turísticos do Brasil. ■

Figura 8 Alterações das variáveis físicas e químicas da água de três pequenas lagoas da região de Morro dos Conventos entre meados de agosto e início de setembro de 2001

(ou nutricional), de acordo com o teor de fósforo total, permite classificá-las de

oligotróficas (menos de 10 mg/l) a

eutró-ficas (de 30 a 100 mg/l – caso da lagoa 1,

no período estudado). No entanto, os da-dos obtida-dos sugerem que o estado trófico altera-se rapidamente, dependendo do local e da época da avaliação – isso ocor-re principalmente nas lagoas menoocor-res, dificultando (junto com o fato de tais la-goas serem temporárias) o estabelecimen-to de organismos vivos.

Em corpos d’água temporários, segun-do estusegun-dos em outros países, a concentra-ção de substâncias dissolvidas é bem maior que em águas permanentes, e a condutividade elétrica também pode

Figura 9 Lagoas costeiras, como as de Morro dos Conventos, são importantes ecossistemas, situados na área de transição entre o ambiente marinho e as águas interiores

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ZOOLOGIA

Medidas simples podem minimizar ataques de pumas a rebanhos

Selvageria ou carência

nutricional?

aparecimento em fazendas no interior do Bra-sil, nos últimos anos, de ovelhas e cabras

mor-O

tas, com perfurações no pescoço e ‘sem sangue’, ge-rou especulações sobre a causa dessas mortes. Ali-mentar-se de sangue, porém, é um hábito comum em algumas espécies de animais silvestres, incluin-do os felinos, que às vezes apenas lambem o sangue de suas presas e abandonam as carcaças pratica-mente intactas. Nesses casos, invariavelpratica-mente, o método adotado para eliminar o problema é o abate do predador, principalmente quando este é o puma. O puma (Puma concolor), segundo maior felino das Américas (o maior é a onça-pintada, Panthera

Os pumas – onças-pardas – vêm atacando rebanhos de ovelhas no sul do país, levando os criadores

a caçar e matar esses felinos. Mas a solução para o problema poderia ser outra: a adoção de medidas

que minimizassem os ataques, com base em estudos sobre os hábitos do animal. Conhecer melhor

o puma pode ser o caminho para a sua sobrevivência e para a convivência pacífica com as populações

rurais. Por

Maurício E. Graipel, do Departamento de Ecologia e Zoologia (Centro de Ciências Biológicas)

da Universidade Federal de Santa Catarina, Ivo R. Ghizoni Jr. e Marcelo Mazzolli, do Projeto Puma.

onca), também é conhecido no Brasil como onça-parda, leão-baio, leão-da-montanha e suçuarana, e na América do Norte como mountain lion, cougar e panther. Não deve ser considerado muito perigoso para o homem, mas trata-se de um animal extrema-mente curioso: são comuns relatos de pessoas segui-das em caminhos ou estrasegui-das dentro de florestas e que só notam essa ‘companhia’ ao retornar pelo mesmo caminho e encontrar os rastros do animal. Os ataques a humanos limitam-se a poucos casos, principalmente na América do Norte.

Esse felino tem distribuição original extensa e contínua nas Américas e é capaz de viver em am-bientes variados, mas suas exi-gências de área e alimentação são um fator de restrição à sua sobre-vivência. O puma ocorre em todo o Brasil, mas a pressão de caça e o desmatamento vêm restringindo seu território às áreas menos po-pulosas. Estudos feitos pela ONG catarinense Projeto Puma no sul do Brasil, principalmente em

FOTO DE BENJAMIN FARIAS

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O puma ataca animais de criação mais vulneráveis, como ovinos e caprinos criados de maneira extensiva, e geralmente consome só os órgãos internos se apenas uma presa (na imagem, uma ovelha) é abatida

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espécie com atividades pecuárias é possível, desde que sejam adotadas técnicas adequadas de manejo dos rebanhos. Isso também pode ser conseguido em áreas de exploração florestal manejada – estas são importantes para a conservação da fauna, com um papel complementar ao das reservas oficiais do Sis-tema Nacional de Unidades de Conservação (ver “Bases biológicas para a reserva legal”, em CH n° 183). Exceto talvez na Amazônia, as reservas ofi-ciais, por si só, são insuficientes para garantir a so-brevivência de espécies com grande demanda de território, como o puma.

Os estudos do Projeto Puma mostraram que o puma exibe alguns padrões bem definidos de abate de animais de criação:

1) Quando mata uma ou duas ovelhas (ou cabras), o felino prefere consumir vísceras, como coração e fígado, e, às vezes, o quarto dianteiro e costelas.

2) Em abates múltiplos (em alguns casos até 20 ovelhas ou cabras, em poucos dias), observam-se evi-dências de consumo de sangue, e pouco ou nenhum consumo de carne. Isso sugere que o puma, quando dispõe de suficiente quantidade de sangue, costuma ignorar a carne e as vísceras. As presas ficam prati-camente intactas, com apenas as perfurações na gar-ganta. Os estudos não determinaram a quantidade de sangue consumido de cada animal pelo puma, mas os pecuaristas costumam dizer que o felino dei-xou as ovelhas e cabras ‘sem sangue’ – essa idéia vem do contraste entre o corte do pescoço de um animal doméstico pelos próprios pecuaristas, quan-do o sangue ‘jorra longe’, e a ausência visível de manchas de sangue, no chão ou no próprio animal abatido, nos casos de ataque por puma.

3) As carcaças são em geral abandonadas no cam-po logo após o abate. Em algumas situações, cam-porém, apenas uma carcaça, entre várias, é arrastada por vários metros, até algum local abrigado na vegeta-ção próxima, e coberta com terra e folhiço, hábito considerado comum no caso desse felino.

Santa Catarina, entre 1988 e 1995, constataram que as reta-liações de pecuaristas aos pumas, após ataques aos rebanhos, foram provavelmente a principal causa de mortalidade da espécie. Ata-ques de outros predadores, como,

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O puma ou onça-parda (Puma

concolor) é pouco conhecido dos brasileiros, embora ocorra em todo o território nacional – ataques desse felino (imagem obtida por armadilha fotográfica) a humanos são extremamente raros

FOTO DE MARCELO MAZZOLLI

por exemplo, cachorros domésticos, costumam ser tão danosos quanto os do puma, mas nem por isso todos os cães são exterminados.

A retaliação deve-se ao temor de predadores sil-vestres de grande porte, muitas vezes vistos com maus olhos pela população rural. É preciso, porém, compreender que esses animais têm grande impor-tância ecológica: situados no topo da cadeia alimen-tar, são considerados espécies-chave, conceito que atribui a algumas espécies maior influência do que outras na sobrevivência e diversidade da comunida-de silvestre. Em Barro Colorado, no Panamá, a au-sência de predadores de grande porte foi apontada como causa da redução da diversidade de pássaros e da flora, devido ao aumento das populações de pre-dadores médios, como o quati, e de herbívoros. A ausência de grandes predadores pode ainda afetar, indiretamente, a abundância de roedores, que em grande densidade podem ser danosos à agricultura e à saúde humana. Além disso, algumas medidas de prevenção contra ataques de predadores podem ser menos dispendiosas que o controle populacional de pragas mais comuns na agropecuária.

A discriminação dos criadores em relação ao pu-ma deve-se, principalmente, ao comportamento de ataque do animal. Desde o século passado o felino é descrito, por pesquisadores sul-americanos, como um animal de grande ferocidade, um predador que mata ‘por passatempo’, fazendo mais vítimas do que o necessário para se manter, e que, às vezes, apenas lambe o sangue da presa. Sem dúvida, o hábito de abater mais presas do que pode consumir faz com que os pecuaristas atribuam ao puma requintes de selvageria e crueldade, justificando assim a caça da espécie.

Esse modo de pensar, no entanto, decorre da falta de conhecimento sobre as necessidades metabóli-cas do puma e os fatores que tornam os rebanhos domésticos mais vulneráveis e atrativos que presas silvestres. Há evidências de que a convivência da

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4) São menos freqüentes os ataques a animais de grande porte, como bois e cavalos. Nesses casos, em geral, só um indivíduo é morto e apenas as vísceras são consumidas, ou as presas conseguem fugir, com alguns ferimentos ou machucados no pescoço e no focinho.

Para entender esses padrões, é preciso considerar alguns aspectos da dieta e das necessidades nu-tricionais do puma. Em primeiro lugar, esse felino é estritamente carnívoro: depende, portanto, de um grande consumo de proteínas animais para suprir suas necessidades energéticas. Além disso, os gran-des felinos adultos alimentam-se continuamente se há fartura de presas, pois podem estocar o excesso de alimento (em forma de gordura) e permanecer lon-gos períodos sem comer. Finalmente, esses predado-res tendem a selecionar os itens de sua dieta (seja em relação às espécies predadas ou às partes do corpo consumidas) quando as presas são abundantes.

Assim, o consumo apenas de vísceras e sangue está certamente relacionado à preferência do puma por alimentos com maior valor nutritivo e energéti-co. Os felinos são incapazes de converter betaca-roteno (existente em alimentos de origem vegetal)

em vitamina A. Assim, têm que obtê-la diretamente de suas presas, pois a carência dessa vitamina preju-dica seus processos reprodutivos. A vitamina A nor-malmente está presente, nas presas, apenas no fíga-do, nos pulmões, nas glândulas adrenais e nos rins, com freqüência os primeiros tecidos consumidos pelo puma. Se consumirem apenas músculos (ca-rentes em cálcio, iodo e vitamina A) no período de crescimento, os felinos apresentarão mais tarde gra-ves deformidades na estrutura óssea.

Já o sangue, que transporta nutrientes para as células e é de fácil absorção pelo organismo dos pre-dadores, é rico em proteínas, lipídios, glicose, vita-minas, ácidos, sais e outros compostos, ou seja, é altamente nutritivo e energético. Para satisfazer um puma, porém, pode ser necessário o sangue de vá-rios animais de pequeno porte, como ovelhas e cabras: há registros de estômagos contendo até 8 kg de alimento.

Sem o sangue e as vísceras, as presas provavel-mente têm sua decomposição retardada, o que as preserva para uma ‘refeição’ posterior do puma. O abandono das carcaças talvez se deva, na área estu-dada, à proximidade das residências humanas, ou seja, parece estar ligado ao risco de exposição do pu-ma a seu pu-mais importante inimigo e à abundância de presas (os rebanhos domésticos). A presença de cães no entorno das residências nem sempre impe-de os ataques, mas em geral incomoda o predador.

A seleção das presas, pelo puma, é influenciada por sua disponibilidade e por sua vulnerabilidade.

FOTO DE MAURÍCIO E. GRAIPEL

O abandono das carcaças abatidas pelos pumas no campo é um hábito comum dos criadores – no caso registrado na imagem, o animal carregou uma ovelha para um abrigo no interior de um bosque, distante 300 m do local onde estavam os restos das outras presas Os ataques a animais de maior porte nem sempre são eficientes: o bezerro da imagem, atacado em cinco diferentes ocasiões, apresenta várias seqüelas, como a perfuração junto ao olho direito (resultado de um dos primeiros ataques), e teve seu desenvolvimento atrasado em função de infecções causadas pelos ferimentos

Assim, o modelo de criação ex-tensiva (com as ovelhas e cabras soltas no campo durante o dia e a noite) utilizado em Santa Cata-rina mostrou-se uma das princi-pais causas do grande número de

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animais abatidos a cada ata-que. A maioria dos ataques ocorreu em propriedades pró-ximas de matas, em geral com relevo irregular, situadas aci-ma de 800 m de altitude e que não recolhiam os animais para abrigos, à noite, e não tinham cães de guarda. As-sim, um grande número de animais domésticos (mais vul-neráveis que espécies silves-tres de tamanho similar exis-tentes na área, como porcos-do-mato, capivaras, veados e outros) foi posto à disposi-ção de um predador altamen-te eficienaltamen-te.

Ataques a rebanhos acon-tecem principalmente nas noites mais escuras do inver-no e/ou quando as condições

vastas áreas onde hoje é en-contrado. Um modo de rever-ter esse processo é criar me-canismos para manter suas populações em áreas rurais, minimizando os ataques a rebanhos.

Os estudos do Projeto Puma visam contribuir para a infor-mação de pecuaristas quanto ao manejo de seus rebanhos, de modo a evitar ataques do felino, ajudando a proteger essa espécie. A caça aos pu-mas devido à ‘crueldade’ er-roneamente atribuída a estes não se justifica. O animal

O porte esguio garante ao puma uma excepcional agilidade para capturar e abater suas presas

do tempo (chuva, neblina etc.) tornam os pumas me-nos expostos aos humame-nos. Assim, o manejo adequa-do adequa-dos rebanhos, ao menos sob essas condições, po-deria minimizar os ataques. Bovinos são menos vul-neráveis a ataques de puma que animais de menor porte, como ovinos e caprinos. De fato, a maioria das fazendas com rebanhos bovinos na área estudada não sofreu ataques. O puma não costuma atacar bois, embora seja capaz disso, e quando o faz prefere be-zerros, mais vulneráveis que animais adultos. Nes-ses casos, certamente por ser um recurso mais difí-cil de obter, apenas um bezerro é abatido e o desper-dício é menor: o felino come as vísceras ou arrasta a presa para consumo posterior.

Morder na região da garganta/pescoço talvez seja um comportamento de ataque inato para o puma. A mordida obstrui a traquéia, matando a presa por sufocamento. Pumas com dificuldades para caçar – doentes, velhos e jovens sem experiência – são os que mais tendem a atacar rebanhos domésticos. Além disso, os filhotes aprendem estratégias de ata-que e de escolha das presas observando as mães. Quando adultos, procurarão essas mesmas presas. Se os rebanhos domésticos estiverem nessa ‘lista’, é grande a chance desses jovens felinos não sobrevive-rem até a fase de reprodução.

Os criadores geralmente se organizam para ma-tar o puma ou pagam caçadores para isso. Depen-dendo da região, o animal tem pouca chance de so-breviver a uma caçada, até porque, quando per-seguido por cães, costuma procurar abrigo no alto das árvores ou entre rochas, tornando-se um alvo fácil. Embora não corra risco iminente de extinção como espécie, o puma está sujeito a desaparecer de

mata mais do que consome devido às inadequadas práticas de criação, que deixa os animais domésti-cos vulneráveis a esse predador, cuja preferência ali-mentar é motivada por necessidades nutricionais.

Um agravante é a falta de uma política pública para enfrentar o problema dos ataques a rebanhos. Os pecuaristas esperam das autoridades a indeniza-ção de suas perdas ou, no mínimo, a transferência do predador para outras áreas. No primeiro caso, os criadores poderiam não mais adotar medidas de con-trole de ataques e, no segundo caso, o problema ria apenas levado para outra região. Uma opção se-ria cobrir apenas parte das perdas, desde que o ma-nejo do rebanho fosse adequado.

Observa-se, em muitas situações, que a caça ao puma, após ataque a rebanhos, é tolerada por autori-dades ambientais, basicamente porque ainda não foi definido um procedimento padrão para lidar com o problema. A solução depende sobretudo de uma política sólida de extensão rural construída pelo poder público e por organizações não-governamen-tais (ONGs), com procedimentos claros e objetivos, que possam ser executados de modo padronizado pela fiscalização. O primeiro passo seria regula-rizar um registro oficial de ataques e monitorar as áreas de conflito.

Apesar dessas dificuldades, observa-se um au-mento do número de profissionais preocupados em mudar essa situação. Em conjunto, eles buscam for-mas de mudar esse panorama e contribuir para desmentir a imagem de fera sanguinária associada ao puma e instituir medidas que contribuam para a preservação do Puma concolor em nossas florestas

e campos. ■

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ECOLOGIA

Aves de rapina sofrem com desmatamento, caça e poluição no noroeste do Paraná

Ameaças aos senhores do ar

degradação e a destrui-ção de hábitats, em

espe-A

cial a fragmentação de flores-tas tropicais, a caça e o uso indiscriminado de substâncias tóxicas, podem provocar, dire-ta ou indiredire-tamente, o desapa-recimento de muitas espécies de aves de rapina, tanto as de hábitos diurnos (águias, gaviões

amplo e variado leque de animais, e outras são es-pecialistas, restringindo os ataques (até 90% des-tes, em alguns casos) a apenas uma espécie de pre-sa. Além disso, essas aves comumente estabelecem e defendem extensos territórios (às vezes

superio-res a 50 km2), apresentando, assim, baixa

densida-de (poucos indivíduos por unidadensida-de densida-de área). O Brasil é um dos países mais ricos em espé-cies de aves de rapina diurnas, com 66 espéespé-cies registradas (divididas em três famílias). Há, inclu-sive, casos de espécies endêmicas em nosso país, como o gavião-pombo (Leucopternis polionota) e o gavião-pombo-pequeno (L. lacernulata), ambas

Gavião-pernilongo (acima) e águia-pescadora, esta uma espécie migratória (ao lado)

e falcões) como as ativas à noite (corujas). Embora essas últimas também sejam importantes e sofram com os mesmos problemas, este artigo tratará ape-nas de espécies diurape-nas (sobre as corujas, ver ‘As corujas e o homem’, em CH nº 156).

Qual é o papel ecológico, ou seja, a ‘importân-cia’ das aves de rapina? Entre outras coisas, elas são notórios predadores aéreos, atuando como regula-dores das populações de diferentes espécies de pre-sas. Sua dieta pode ser a mais variada possível, incluindo desde pequenos insetos até animais de grande porte, como serpentes, preguiças e macacos (ver ‘UTI para aves de rapina’, em CH nº 166). Al-gumas são generalistas, alimentando-se de um

ILUSTRAÇÕES DE P. BARRUEL, IN H. SICK, 1985

Ao longo da história, a exploração intensiva e desordenada dos recursos naturais tem provocado a

derrubada e a fragmentação de muitas florestas brasileiras, comprometendo o bem-estar e a própria

sobrevivência de inúmeros organismos. Os senhores do ar – águias, gaviões e falcões – estão gradativa

e silenciosamente desaparecendo de nossas florestas. Esse triste destino se avizinha para muitas

dessas imponentes e importantes espécies de aves, caso a degradação e a perda de hábitats não sejam

reduzidos nos próximos anos. Por

Alan Loures-Ribeiro, do Programa de Pós-graduação em Ecologia

de Ambientes Aquáticos Continentais, da Universidade Estadual de Maringá (PR), e Luiz dos Anjos,

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endêmicas da mata atlânti-ca (sobre espécies endêmi-cas, ver ‘Alerta para as aves da mata atlântica’, em CH nº 162). Também são obser-vadas no país pelo menos três espécies migratórias de longas distâncias.

Cada vez menos

florestas

Um exemplo da situação alarmante das florestas bra-sileiras pode ser observado no noroeste do Paraná, mais especificamente nas proxi-midades de Maringá, cidade que se destaca como pólo de referência regional. Essa re-gião de vocação agrícola, principalmente em função dos solos férteis e da boa adaptação de diferentes

cul-NOME CIENTÍFICO NOME POPULAR* REGISTROS

Família Accipitridae

Accipiter bicolor gavião-caçador A. poliogaster tauató-pintado

A. striatus gavião-miudinho ■

A. superciliosus gavião-passarinho

Busarellus nigricollis gavião-belo ■

Buteo albicaudatus gavião-de-rabo-branco B. albonotatus gavião-urubu

B. brachyurus gavião-de-rabo-curto ■

B. leucorrhous gavião-de-sobre-branco B. swainsoni gavião-papa-gafanhoto Buteogallus aequinoctialis gavião-caranguejeiro

B. meridionalis gavião-caboclo ■

B. urubitinga gavião-preto ■

Chondrohierax uncinatus caracoleiro

Circus buffoni gavião-do-banhado ●

C. cinereus gavião-cinzento-do-banhado Elanoides forficatus gavião-tesoura ●

Elanus leucurus gavião-peneira ■

Gampsonyx swainsonii gaviãozinho ●

Geranoaetus melanoleucus águia-chilena

Geranospiza caerulescens gavião-pernilongo ■

Harpagus diodon gavião-de-bombacha Harpia harpyja gavião-real

Harpyhaliaetus coronatus águia-cinzenta ●

Ictinia plumbea sovi

Leptodon cayanensis gavião-de-cabeça-cinza Leucopternis lacernulata gavião-pombo-pequeno L. polionota gavião-pombo

Morphnus guianensis falso-uiraçu Parabuteo unicinctus gavião-asa-de-telha

Rosthramus sociabilis gavião-caramujeiro ■

Rupornis magnirostris gavião-carijó ■

Spizaetus ornatus gavião-de-penacho S. tyrannus gavião-pega-macaco Spizastur melanoleucus gavião-pato

Família Falconidae

Caracara plancus carcará ■

Daptrius americanus caracará-preto

Falco deiroleucus falcão-de-peito-vermelho

F. femoralis falcão-de-coleira ■

F. peregrinus falcão-peregrino

F. rufigularis falcão-morcegueiro ■

F. sparverius falcão-quiriquiri ■

Herpetotheres cachinnans acauã ■

Micrastur ruficollis gavião-caburé ●

M. semitorquatus gavião-relógio ●

Milvago chimachima carrapateiro ■

M. chimango chimango

Família Pandionidae

Pandion haliaetus águia-pescadora ■

* OBS. FONTE DOS NOMES POPULARES: SCHERER-NETO & STRAUBE, 1995. Aves de rapina de hábitos diurnos registradas

no Paraná, em particular no noroeste do estado, durante a estação reprodutiva de 2001,

em observações dos autores () e em observações recentes de outros pesquisadores ()

Gavião-relógio

turas, foi intensamente desflorestada a partir da década de 1950. Hoje, quando se percorre a re-gião, raramente são vistos fragmentos florestais com mais de 300 hectares (ha). Para muitos, a visão característica é a de um verdadeiro ‘de-serto de lavouras’.

O Paraná, estado em que a mata atlântica foi, historicamente, o tipo de vegetação predominan-te, hoje apresenta apenas alguns poucos trechos mais ou menos protegidos, uns próximos ao li-toral norte e outros formando a paisagem do Parque Nacional de Foz do Iguaçu, no sudoeste do estado.

O estado abriga pelo menos 48 espécies de aves de rapina diurnas, segundo registros de vá-rios pesquisadores. No entanto, uma análise dos autores deste artigo, feita ao longo da estação reprodutiva (de agosto a dezembro) no noroeste paranaense, em 2001, utilizando um método rá-pido de avaliação da fauna, sugere a ocorrência de apenas metade do total de espécies já obser-vadas no estado (ver tabela). O método empre-gado não é comparável àqueles adotados em outros estudos, mas considera-se que tenha re-lativa eficácia para análises desse tipo, já que o

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Acauã

objetivo não foi realizar um cen-so das espécies, e sim avaliar, através de procedimento padro-nizado, a riqueza regional.

Algumas espécies migratórias podem não ter sido registradas por causa da época da avaliação, mas o número dessas espécies é muito baixo quando comparado ao das residentes (as que vivem naquela região durante todo o ano). Ainda assim, o período reprodutivo das espécies é exce-lente para a realização desse tipo

de estudo, pois já podem ser avistadas na região al-gumas espécies migratórias, como o sovi (Ictinia plumbea), o gavião-rabo-de-tesoura (Elanoides

forficatus) e a águia-pescadora(Pandion haliaetus).

Especialista em aves de rapina, o biólogo fran-cês Jean-Marc Thiollay, da Escola Normal Supe-rior, de Paris, sugere que apenas hábitats com pelo menos 1 milhão de ha de área ininterrupta seriam capazes de abrigar com segurança populações viá-veis de todas as espécies dessas aves em uma re-gião de floresta tropical. Quando essa extensão é comparada às áreas remanescentes de mata atlân-tica nos estados brasileiros, percebe-se a gravidade da situação. Para se ter uma idéia, a primeira posi-ção em áreas remanescentes de mata atlântica, no Brasil, em 2000, pertencia ao estado de Minas Ge-rais, que detinha cerca de 4,19 milhões de ha. Essa área total, porém, estava dividida em inúmeros frag-mentos florestais. No Paraná restam 3,92 milhões de ha, mas quanto às áreas ininterruptas a situação é considerada crítica: o Parque Nacional de Foz do Iguaçu, por exem-plo, um dos maiores remanescentes desse bioma, tem pouco mais de 180 mil ha, uma extensão muito inferior ao mínimo necessário para garantir com segurança a sobrevivência de todas as espé-cies de aves de rapina em es-cala regional.

Segundo estudos feitos em outras regiões, os primeiros organismos que desapare-cem quando começa o pro-cesso de fragmentação de uma floresta são os de gran-de porte, que precisam, para sobreviver, de áreas de vida grandes e pouco perturbadas. Em seguida, extinguem-se as espécies mais exigentes – com

re-lação, por exemplo, ao consumo de um determinado tipo de pre-sa (as especialistas). Esse pro-cesso continua até que na re-gião passam a predominar as es-pécies generalistas, típicas de áreas abertas e pouco exigentes em relação aos recursos alimen-tares que utilizam.

A caça e os

contaminantes

Outras ameaças pairam sobre as aves de rapina, como a caça e a contaminação do ambiente por poluentes (metais pesados e pesticidas entre outros).

Quando uma grande e exuberante ave de rapina é avistada, nem todos, infelizmente, se contentam em admirá-la viva em seu hábitat. Algumas pes-soas sentem prazer em caçar essas aves, obtendo com isso, antes de tudo, um verdadeiro ‘troféu de ignorância’. Na planície de inundação do alto rio Paraná, por exemplo, no Mato Grosso do Sul, rela-tos de moradores locais confirmam que as aves de rapina são costumeiramente caçadas, inclusive den-tro de unidades de conservação – no Parque Es-tadual do Ivinheima, em Mato Grosso do Sul, por exemplo. Essa prática tem efeitos negativos não apenas sobre as grandes águias e os gaviões, mas também sobre outras espécies vitimadas, como onças e jacarés.

Mais uma ameaça, muitas vezes imperceptível, pode agora estar afetando, diante de nossos olhos, as aves de rapina: a contaminação ambiental por poluentes, em especial os compostos químicos tóxicos presentes tanto em pes-ticidas usados indiscriminadamente nas plantações quanto em resíduos indus-triais lançados criminosamente nos rios. A contaminação de hábitats por essas substâncias, inclusive diversos metais pe-sados, pode provocar sérios danos a mui-tas espécies animais, inclusive a huma-na. Certos compostos, como por exemplo os organoclorados e organofosforados, têm alto poder cumulativo. Isso significa que, à medida que passam de um nível da cadeia alimentar para outro, as doses inge-ridas vão sendo acumuladas e ampliadas. Assim, um herbívoro que come a vegetação contaminada acumula quantidades seme-lhantes às presentes na planta, e quando um animal carnívoro se alimenta do herbívoro contaminado, a substância passa para os seus tecidos. Esse processo se repete a cada nível da cadeia alimentar. Em resumo, quanto

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maior o grau de contaminação, maior será a carga dessas substâncias em cada nível dessa cadeia nos ecossistemas da região afetada.

Quais os efeitos negativos da contaminação so-bre as aves de rapina? Quando não matam os indi-víduos diretamente, as substâncias tóxicas agem so-bre processos vitais: por exemplo, enfraquecem as cascas dos ovos, o que aumenta as chances de que estes se quebrem precocemente, ou provocam de-formações nos embriões em desenvolvimento. Por-tanto, esses compostos podem reduzir o efetivo populacional dessas espécies, bastante sensíveis à contaminação ambiental.

Na década de 1980, entidades de pesquisa nor-te-americanas passaram por uma dura experiência ao descobrir que os efeitos tóxicos de alguns conta-minantes ambientais estavam reduzindo dramati-camente as populações do falcão-peregrino (Falco peregrinus) – espécie migratória freqüentemente registrada também no Brasil. Felizmente, os esfor-ços de conservação dessa espécie foram bem-suce-didos. Mas as ameaças continuam: outros tipos de substâncias tóxicas têm sido utilizados na Europa e nos Estados Unidos, e substâncias mais potentes

e, portanto, potencialmente mais perigosas, têm sido desenvolvidas.

O noroeste do Paraná, além de intensamente de-vastado, é uma região de agricultura em larga es-cala, onde é generalizado o uso de pesticidas. Es-tudos iniciais indicam que algumas espécies de aves que ocorriam na região já desapareceram ou estão em vias de extinção local. Outras espécies vêm sendo registradas em baixas densidades, o que indica uma possível redução do número de in-divíduos por área amostrada e serve como um alerta regional. Finalmente, embora a ava-liação de campo relatada aqui seja preli-minar, pesquisas mais detalhadas são ne-cessárias para obter parâmetros ecológicos (o tamanho efetivo das populações, por exemplo) e toxicológicos (os níveis de metais pesados presentes no organismo dos indivíduos, por exemplo) mais refinados so-bre os senhores do ar que ainda teimam em voar pelos céus do

noroes-te paranaense. ■

Falcão-quiriquiri, macho (à direita) e fêmea

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