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Desigualdades urbanas e políticas habitacionais

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Academic year: 2021

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Desigualdades urbanas e políticas habitacionais

Adauto Lucio Cardoso (Professor IPPUR/UFRJ – Observatório IPPUR/UFRJ-FASE)

É sabido e reconhecido, mesmo pelos próceres do Plano Real, que o Brasil apresenta uma situação de extrema desigualdade em relação ao panorama internacional, aproximando nossos indicadores daqueles apresentados pelos países de mais baixo índice de desenvolvimento no mundo. Como discutido por outros artigos nesta publicação, essas desigualdades assumem várias dimensões, desde a mais conhecida (e reconhecida) – a da renda – até outras menos aceitas, como a cor, a etnia e o gênero. O debate recente vem trazendo à luz o passivo de desigualdades que, durante muito tempo, foi obscurecido pelas visões idílicas do “homem cordial”1 e da “sociedade mestiça”2.

Um outro aspecto das nossas desigualdades, extremamente relevante, é o que diz respeito aos problemas gerados pelas diferenças nas formas de produção e apropriação da moradia e do ambiente urbano pelos diferentes grupos sociais.

Em primeiro lugar é importante que se considere que a sobrevivência na cidade depende fundamentalmente do acesso à moradia. Além da saúde, da renda e da educação, a habitação é também um elemento básico que constitui um “mínimo social”, que habilita os indivíduos e os grupos sociais a fazerem outras escolhas ou a desenvolver suas capacidades. Assim definida, a habitação é um direito básico de cidadania. Essa perspectiva já encontra respaldo no debate internacional, desde a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, até a Declaração de Istambul sobre Assentamentos Humanos, de 1996, que reafirmou o compromisso dos governos nacionais com “a completa e progressiva realização do direito à moradia adequada” e estabeleceu como um objetivo universal que se assegure “abrigo adequado para todos e que se façam os assentamentos humanos mais seguros, mais saudáveis e mais agradáveis, eqüitativos, sustentáveis e produtivos”. No Brasil, o direito à moradia foi reconhecido mediante a Emenda Constitucional 26/2000, que altera o art. 6º da Constituição Federal, fazendo constar a moradia entre os direitos sociais.

O exercício deste direito, no entanto, tem como pressuposto o possibilidade de acesso ao solo urbano, que é regulado, juridicamente, pelo direito de propriedade. O solo urbano, por sua vez, deve ser compreendido como um bem de caráter social, e, tal como a habitação, uma condição básica e indispensável para a sobrevivência. Essa afirmação ganha maior relevo quando se verifica que o acesso à terra implica o acesso a um conjunto de equipamentos e

1 Conforme a obra clássica de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil.

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serviços que lhe são próximos, física e socialmente. Entende-se a moradia, portanto, de uma forma ampliada, como a habitação em si e também como o solo e o conjunto de equipamentos, serviços e amenidades, cuja acessibilidade ela possibilita.

Por outro lado, a habitação é, direta ou indiretamente, fruto de um processo de produção capitalista. Este processo de produção, diferentemente de outros setores econômicos, tem como base de sua lucratividade a apropriação dos benefícios gerados pela extrema diferenciação do espaço urbano em termos de equipamentos, serviços e amenidades, diferenças que são reproduzidas e aprofundadas pelo processo de produção. Tendo em vista o histórico déficit na oferta de serviços públicos urbanos que marca nossas cidades, os processos privados de produção habitacional tenderão a adotar um comportamento especulativo, retendo a terra na espera da valorização e apostando sempre na elevação dos preços relativos. O resultado deste processo é que a produção privada atinge apenas um pequeno grupo social, formado pelas camadas de renda alta ou média-alta que se apropriam dos terrenos que apresentam melhores condições de acessibilidade às áreas centrais, melhores ofertas de infra-estrutura e maior nível de amenidades.

Além do grupo de empresas voltado para a produção do parque imobiliário, existe ainda um conjunto de capitais cujo objeto específico de valorização consiste na produção e reprodução do ambiente construído. Estas empresas produzem, em geral sob a encomenda do Estado, toda a infra-estrutura urbana – sistema viário, redes de abastecimento de energia, água, coleta de esgotos etc. A agenda de contratação de obras públicas pelo Estado responderá, então, entre outros fatores, aos interesses econômicos específicos das empreiteiras. Além destas empresas, existem outras voltadas para a exploração de determinados serviços de interesse público, sob a forma de concessões. Neste caso, é importante destacar o setor de transportes, responsável pelo atendimento a necessidades essenciais das populações urbanas, e onde o interesse público freqüentemente se choca com as necessidades de rentabilização do capital, seja na fixação do valor das tarifas, seja no estabelecimento de rotas e percursos.

O espaço da cidade, além de ser objeto dos interesses econômicos acima descritos3 é também disputado por grupos sociais, já que o acesso diferenciado a determinados bens, serviços, equipamentos ou amenidades permite o aumento da renda real via valorização do patrimônio imobiliário, assim como maior conforto material e, também, a reprodução material e simbólica de situações de distinção social. Isso gera a identificação de determinados espaços

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da cidade com certos grupos sociais dominantes, e a exclusão de outras parcelas da população da utilização destes bens.

Podemos então caracterizar o espaço urbano como uma arena onde se defrontam interesses diferenciados em luta pela apropriação de benefícios em termos de geração de rendas e obtenção de lucros, por um lado, e em termos de melhores condições materiais e simbólicas de vida, por outro. Nesta luta pelo espaço, podemos identificar os interesses dos grupos econômicos acima descritos, ligados aos processos de acumulação urbana, as camadas médias e, defrontando-se com estes agentes, as camadas populares, que guardam na sua origem uma desigualdade oriunda da sua inserção no processo de produção e distribuição da riqueza social. Suas estratégias de sobrevivência no espaço urbano têm se materializado nos processos de favelização, encortiçamento e periferização, onde prevalecem a irregularidade e a ilegalidade do acesso à terra e precárias condições de sobrevivência, pela carência quantitativa e qualitativa dos equipamentos e serviços urbanos, e por grandes dificuldades de acesso ao sistema de transportes, impedindo assim sua mobilidade plena no espaço da cidade. A desigualdade de condições urbanas de vida expressa-se ainda como desigualdade ambiental, se consideramos que estas populações tendem a localizar-se em áreas de maior exposição a situações insalubres (contaminação da água, do solo e do ar) e inseguras (riscos de acidentes de diversos tipos).

Mantendo-se, portanto, os mecanismos de apropriação privada da terra e da moradia, o exercício deste direito básico, garantido pela legislação nacional e internacional, dependerá, necessariamente de políticas públicas que permitam, através da oferta de financiamento, da oferta de terra, da universalização da infra-estrutura e dos serviços urbanos, do controle dos processos de especulação imobiliária e do controle e correção dos processos de poluição, reduzir o impacto das desigualdades urbanas e ambientais sobre as condições de vida da população.

A política habitacional no Brasil, no entanto, nunca foi capaz de enfrentar este desafio de forma adequada. No período getulista, os Institutos de Aposentadoria e Pensão limitavam-se a atender os trabalhadores inlimitavam-seridos no mercado formal e, mesmo assim, de forma incompleta. Além disso, a postura de privilegiar a saúde financeira dos fundos levou os burocratas dos IAPs a priorizar os empréstimos habitacionais para o mercado médio, estabelecendo uma redistribuição às avessas, em que os recursos dos trabalhadores financiavam as camadas de melhor renda. Esse fato voltou a acontecer durante o período autoritário, quando o Banco Nacional de Habitação, ao garantir as cadernetas de poupanças privadas tendo como lastro os recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) desviou recursos destinados às camadas de baixa renda para os grupos de renda média. A

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política desenvolvida pelo BNH também revelou-se incapaz de atender os setores mais carentes (a faixa de população de renda até 3 salários mínimos), além de ter sido responsável por uma brutal remoção de população favelada para conjuntos mal equipados na periferia da cidade, com graves conseqüências sociais. Os investimentos sociais do BNH, no entanto tiveram algum impacto quantitativo sobre a população na faixa de 3 a 10 salários mínimos4 e sobre a ampliação da oferta de serviços de saneamento básico, principalmente de abastecimento de água, o que contribuiu para reduzir, relativamente, as desigualdades espaciais nas cidades.

Com o fim do BNH, em 1986, os recursos do FGTS passam a ser crescentemente objeto de disputa entre os grupos que compunham o governo federal, oscilando entre as tendências a submetê-lo às diretrizes de política econômica e as tendências a utilizá-lo como moeda de troca nas negociações clientelistas para a manutenção da coalizão que dava suporte político à Nova República. O auge do descalabro ocorreu durante o período Collor, quando o Fundo foi dilapidado, em troca de apoio (mal sucedido) contra o processo de impeachment do Presidente. Com o advento da Era FHC, os recursos do Fundo (sempre vistos como o principal instrumento de financiamento à política habitacional) passaram a sofrer um controle mais rígido, do ponto de vista financeiro, restringindo-se o acesso aos Estados ou Municípios que não apresentassem capacidade de endividamento. Apesar desta restrição, várias administrações municipais puderam potencializar os esforços que já vinham empreendendo para desenvolver programas habitacionais para a população de baixa renda, utilizando-se destes recursos. No entanto, após a crise de 1998, o acesso ao FGTS foi restrito para qualquer órgão governamental, por exigência do acordo com o FMI. A resposta do governo federal foi o Programa de Arrendamento Residencial que, como mostram as análises recentes (OLIVEIRA, 2000), vem atendendo apenas às camadas na franja superior do limite de renda permitido pelo Programa, não se configurando, pois, como um instrumento adequado para o enfrentamento das desigualdades habitacionais e urbanas. Tornaram-se também extraordinariamente escassos os recursos para investimento em saneamento e infra-estrutura, passando os governos estaduais e municipais a depender exclusivamente de seus recursos próprios (já comprimidos pela crise fiscal) ou do financiamentos de organismos internacionais como o BID e o Banco Mundial.

O vazio institucional na esfera federal e a incapacidade financeira dos governos estaduais gerou um processo de descentralização perversa. Se, por um lado, observa-se que as administrações locais assumem, com maior vigor, a responsabilidade pelo desenvolvimento

4 Embora a solução adotada nos conjuntos habitacionais construídos deixasse muito a desejar em termos de

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de uma política habitacional municipal, por outro lado, observa-se que as enormes desigualdades regional e inter-municipal manifestam-se através de um diferencial significativo na performance dos governos municipais, aprofundando portanto as desigualdades já existentes. Estes elementos mostram-se tanto na comparação entre municípios do Sudeste e do Norte-Nordeste, ou entre capital e interior, quanto entre municípios centrais e periféricos das Regiões Metropolitanas. Além das conseqüências sobre as desigualdades sociais e interurbanas, este processo acirra a competição e o conflito federativo, contribuindo para um processo de fragmentação nacional e para a dificuldade, cada vez maior, de construção de um projeto nacional.

Tendo em vista o quadro acima esboçado, deve-se considerar que as alternativas para a construção de uma nova política habitacional e urbana, que contribua significativamente para a redução das desigualdades urbanas e para a garantia do exercício do direito à moradia, previsto pela Constituição, deve passar pelos seguintes pontos:

1. Recuperação da capacidade de investimento social em todos os níveis de governo, a partir da revisão dos mecanismos de pagamento da dívida externa e da garantia de recursos orçamentários expressivos para possibilitar uma política de subsídio aos setores de menor renda e um financiamento de longo prazo para o acesso à moradia.

2. Descontingenciamento dos recursos do FGTS e estabelecimento de critérios adequados de acessibilidade ao sistema, garantindo a saúde financeira do Fundo (patrimônio dos trabalhadores) mas evitando sua utilização segundo interesses empresariais e priorizando a finalidade social dos investimentos sobre quaisquer outros critérios.

3. Estabelecimento de um padrão claro de redistribuição de recursos e competências entre os diversos níveis de governo, de forma a que a política habitacional se desenvolva de forma descentralizada, porém garantindo aos municípios mais pobres complementações orçamentárias e capacitação técnica para que possam exercer adequadamente suas funções.

4. Recuperação e/ou constituição da capacidade administrativa e técnica dos órgãos habitacionais estaduais e/ou municipais, com investimento em treinamento e desenvolvimento institucional.

5. Estabelecimento de programas habitacionais de diversos tipos (oferta de unidades, oferta de lotes, financiamento, cestas de material de construção, urbanização de assentamentos, programas específicos para população residente em áreas de risco e programas de regularização fundiária e urbanística), articulados entre si e com as outras esferas de atuação dos governos municipais (uso do solo, educação, saúde, emprego e renda, saneamento, meio ambiente, transportes, etc.), visando a maximização da eficácia e

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eficiência da ação governamental. Nesse sentido, deve-se buscar a revisão e o aperfeiçoamento da legislação urbanística a nível municipal, buscando-se excluir os mecanismos que possam gerar redução da oferta de terra e/ou restrição de acesso por todos os grupos populacionais, sem, todavia, cair-se na armadilha da “flexibilização” da legislação, que só interessa, ao fim e ao cabo, ao capital imobiliário.

6. Estabelecimento de prioridades de investimento habitacional do ponto de vista dos grupos de mais baixa renda e em situações de maior carência material (famílias com crianças em estado de desnutrição, por exemplo), incorporando as perspectivas de gênero e cor e criando formas de acesso que tratem de forma adequada os deficientes de qualquer natureza.

7. Criação de sistemas de participação que articulem a participação direta da população atingida por programas específicos, a criação de conselhos para a discussão, deliberação e monitoramento dos programas específicos, a criação de conselhos gerais de política habitacional e urbana a nível municipal, estadual e federal e a realização de conferências de habitação em todos os níveis.

8. Utilização dos instrumentos previstos pelo Estatuto da Cidade, em sintonia com a política habitacional local, visando o exercício da função social da propriedade através da recuperação da valorização imobiliária e dos instrumentos que viabilizam o acesso à terra. Cabe, todavia, aliar a utilização destes instrumentos com procedimentos de monitoramento e avaliação de suas conseqüências, para a correção futura de algumas distorções presentes na formulação de alguns instrumentos (como as operações urbanas consorciadas e a outorga onerosa do direito de construir), buscando o seu aperfeiçoamento.

Bibliografia:

CARDOSO, Adauto Lucio; MELLO FILHO, Cleber Lago do Valle. Habitação e governança urbana: avaliação da experiência em dez cidades brasileiras. Cadernos Metrópole, n. 1. São Paulo, EDUC, 1999.

AZEVEDO, Sérgio de. Vinte e dois anos de política habitacional (1964-86): criação, trajetória e extinção do BNH. Revista de Administração Pública, vol. 22, no 4. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, out./dez. 1988, p. 107-120.

OLIVEIRA, Maria Cristina Bley da S. de. Política de Habitação Popular no Brasil: Passado

e Presente. Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional. Rio de

Janeiro: IPPUR/UFRJ, 2000.

Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal, IPPUR/UFRJ - FASE.

Municipalização das políticas habitacionais: uma avaliação da experiência recente (1993-1996). Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ - FASE, 2000.

Referências

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