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De Honório a Archanjo : Jorge Amado, questão racial e formação nacional

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Carla de Fátima Cordeiro

De Honório a Archanjo:

Jorge Amado, questão racial e formação nacional

Campinas

2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Instituto de Filosofia Ciências e Letras

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado composta pelos professores doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em de março de 2017, considerou a candidata Carla de Fátima Cordeiro aprovada.

Profa. Élide Rugai Bastos-UNICAMP Profa. Dra. Eliane Veras Soares – UFPE

Profa. Dra. Maria Fernanda Lombardi Fernandes- Unifesp

Prof. Dr. Marcelo Siqueira Ridenti- UNICAMP

Profa. Dr. Mario Augusto Medeiros da Silva -UNICAMP

A Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

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Agradecimentos

Ao longo desses cinco anos este trabalho não teria se realizado sem o apoio de pessoas e instituições.

Agradeço especialmente à Élide Rugai Bastos pela acolhida e por mostrar outros caminhos possíveis. À Célia Tolentino, com quem tudo começou e não teria chegado até aqui sem seu entusiasmo e provocações. A Andreas Hofbauer e Claude Lepine (em memória) por me incentivar a estudar a questão racial no Brasil. À Rita Chaves, Tania Macedo e Eliane Veras pelas orientações de pesquisa sobre Moçambique. À Gilda Portugal Gouveia, cujas discussões em suas aulas geraram bons frutos.

Agradeço à Capes pelos quarenta e oito meses de bolsa, auxílio imprescindível para que eu realizasse a pesquisa. Ao programa PDSE/Capes (Programa Doutorado Sanduíche no Exterior), que tornou realidade a pesquisa em Moçambique, como também a prestatividade de seus técnicos em sanar dificuldades e dúvidas.

Aos funcionários do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), em especial Sonia Cardoso e Daniel Cardoso da seção de pós-graduação, pela pronta atenção dispensada no auxílio de assuntos burocráticos e aos funcionários da biblioteca.

À Escola Estadual Toufic Joulian, cuja gestação e execução deste trabalho foi concomitante ao meu ingresso na escola, pelo apoio dos funcionários, amizades e várias formas de incentivo. Em especial a Nice Mota, pela amizade e disposição em ajudar nas solicitações mais absurdas, Ieda Lopes, Cleuza Borges, Jonas Ferreira, Wagner Santos, Débora Bueno, Ruth Oliveira e Robson Andrade pela amizade e generosidade. Também agradeço aos alunos queridos, que serviram de inspiração e força.

Aos grupos de estudos NUPE (Núcleo Negro da Unesp para Pesquisa e Extensão) e Baleia na Rede, que foram de fundamental importância para o desenvolvimento desta pesquisa e nos quais cumplicidades foram construídas.

À Fundação Casa de Jorge Amado pela atenção e empenho para que a pesquisa se realizasse em seu acervo, com destaque para a presteza e o profissionalismo de Bruno Fraga, Marina Amorim, Karina Barbosa e Liliam Leal no auxílio na coleta de informações. Aos funcionários do AHM (Arquivo Histórico de Moçambique) pela disposição em ajudar, em especial a Antonio Sopa.

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A Mario Augusto Medeiros da Silva e ao Marcelo Ridenti pela atenta leitura e elucidação de caminhos apresentados no exame de qualificação. À Eliane Veras e à Maria Fernanda Lombardi Fernandes por terem aceito o convite para compor a banca de defesa e as valiosas sugestões.

À Moçambique que me deu tanto. Ao professor Francisco Noa pelo seu apoio e por ter acreditado na possibilidade dessa pesquisa mesmo em condições adversas. A Aureo Cuna e a Nataniel Ngomane pelas valiosas dicas.

À Aissa Mithà Issak por quem a ideia das entrevistas se concretizou. Em especial à Dona Evangelina Medeiros (em memória), que abriu as portas de sua casa, a Carlos Carvalho, pela generosidade de apresentar seus amigos, que me receberam prontamente, e a Mota Lopes, pela disponibilidade e o auxílio em buscar fontes.

A Luís Bernardo Honwana, José Pinto de Sá, Luís Carlos Patraquim, Antonio Sopa, Calane da Silva, Mia Couto, Sergio Vieira, Filomone Meigos, Marcelo Panguana, Ungulani Ba Ka Kosa, Joaquim Salvador e José Luis Cabaço, meu muito obrigado, reconhecimento e gratidão pelas memórias e reflexões compartilhadas.

Aos amigos de hoje e sempre, de longe e de perto.

À Rose Cerqueira, Lucia Helena Guerra, Farana Daud pelo apoio no cotidiano em Maputo. À Bruna Triana e Yssyssay Rodrigues por levar um pouquinho de Brasil para Moçambique. À Carmem Zimba e Lara Samuel por me fazer um pouco moçambicana. À Yara Ngomane pela recepção inicial. A Milton Papadakis pelo apoio além-mar. A César Santos, Nafissa Ismael, Fauzia Salimo, Romão Cossa, Denise Costa, Gabriela Almeida, Anna Persdotter, Fabio Provenzano e Lakshmi Resende pela companhia sempre agradável.

Aos companheiros de jornada, que estão comigo desde Marilia, Erica Magi, Silvana Benevenuto, Alexandro Paixão, Natércia Silvestre e Odirlei Pereira (em memória). Em especial à Elisangela Santos (Lica) pela acolhedora amizade e cumplicidade; à Juliana Nicolau pelo companheirismo de sempre; à Silvana Ferreira Lima, pelo otimismo e perseverança que serviram de incentivo.

Aos colegas de Unicamp Fernando Matias, Nara Roberta, Daniel Martins, Camila Teixeira pela amizade além dos estudos. Lidiane Maciel e Danilo Arnaut pelas dicas e orientações e à querida Vera Ceccarelo presente nas alegrias e nas preocupações.

À Patricia Meira e Denise Meira pela acolhida soteropolitna. Ao bloco das crioulas, Jacqueline Jaceguai e Juliana Virgínio, pela força em todos os momentos. Às meninas Kelly Oliveira, Lu Babinski, Vanda Carvalho, Liliani Ferreira, Ana Paula Carvalho e Nalva Santana

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pelas risadas diárias. Aos profissionais, Elizabeth, Maira e Alexandre dos Santos – como diz o ditado “corpo são, mente sã”.

Para encerrar e primordialmente, a todos da minha família que me incentivaram em cada momento por mais difíceis que fossem, especialmente minha mãe, Heloisa, que nunca mediu esforços para que meus sonhos se realizassem, além de uma grande incentivadora da leitura e da escrita. Agradeço também ao meu pai Antonio Cordeiro e a minha irmã Patricia Cordeiro, principalmente porque que fizeram que a execução deste trabalho fosse minha única preocupação durante estadia em Maputo; minha irmã, além de tudo, foi uma leitora atenta deste trabalho. Lembro também dos meus tios Elizabeth, Roseli e Roberto Justiniano, exemplos de perseverança, e carinhosamente da minha avó Maria Basília Justiniano, a quem devo a existência de tudo.

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O que está em causa é o Homem. O Homem, as suas preocupações, as suas reivindicações e os seus ideais. Postos de que forma? Uns põem no gatilho, outros põe no papel. O poeta e o homem constituem uma

unidade. Não há Homem político e o Homem poeta. (José Craveirinha)

Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado. (Guimarães Rosa)

O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro. (Mia Couto)

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Resumo

Esta tese se propõe observar a questão racial no escritor Jorge Amado (1912-2001) por meio da relação entre trajetória, ambiência intelectual, circulação e texto literário e do estudo da recepção dos seus escritos pelos intelectuais de Moçambique com base no período entre a década de 1930 e meados de 1970. Um dos escritores mais famosos e amplamente divulgado no Brasil e no mundo, Amado, que tinha como objetivo fazer uma literatura popular, é notadamente conhecido como divulgador de uma interpretação da formação brasileira calcada na mestiçagem. Em um primeiro momento, é observado o contexto de produção de ideias e os diálogos travados pelo romancista referente à questão racial. Em seguida, observa-se suas criações literárias e o que essas dizem a respeito dos personagens negros, na tentativa de relacionar texto e contexto como uma unidade para apreender sua observação sobre essa questão. Em Moçambique, foi observada a recepção dos romances de Amado durante o período de atuação do movimento de resistência ao colonialismo português.

Palavras-chave: Jorge Amado; pensamento social; literatura e sociedade; questão racial;

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Abstract

The present study proposes to observe the racial question in the work of the writer Jorge Amado (1912-2001) through the relation among trajectory, intellectual ambience, circulation and literary text and the study of the reception of his writings by the intellectuals of Mozambique in the 1930s and mid-1970s. One of the most famous writers and widely circulated in Brazil and around the world, Amado, whose aim was to make a popular literature, is well-known as a promoter of an interpretation of the Brazilian formation based on miscegenation. At first, the context of the production of his ideas and the dialogues concerning the racial question is observed. Then is noticed his literary creations and what they say about black characters, in an attempt to relate text and context as a unit to apprehend their observation on this question. In Mozambique, the reception of Amado's novels was observed during the period of resistance movement to Portuguese colonialism.

Key-words: Jorge Amado; social thought; literature and society; racial-issue; anticolonialism;

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 14

Parte I- Desvendando contextos ... 21

CAPITULO I – Os encontros dos anos 1930 ... 22

De menino grapiúna ao rebelde dos anos 1930: primeiros passos ... 22

O negro na formação da nação ... 28

O país do carnaval: uma percepção da formação nacional ... 31

Década de 1930: novos encontros e reconhecimento como romancista ... 37

Encontro com o PCB e romance social ... 37

Encontro com a questão racial ... 45

Questão de raça, questão de classe... ... 49

CAPITULO II – Antifascismo e olhar para o patriarcado ... 63

Prestes e Castro Alves: biografar para não esquecer ... 63

Antifascismo e democracia racial ... 66

Questão de raça, questão de classe: uma tensão ... 70

CAPITULO III – Bahia, régua e compasso: Brasil-Bahia-África ... 76

Materialismo que não se limita: afastamento do PCB ... 76

Amado com cravo e canela: pós-Gabriela ... 82

O nacional desenvolvimentismo e ditadura militar ... 86

África, anticolonialismo e o futuro do socialismo ... 91

“Baiano é um estado de espirito” ... 94

Questão de raça, um ideal de nação... ... 104

Equilíbrio entre opostos? Gilberto Freyre e Jorge Amado... 112

Parte II – Entre Honório e Arcanjo: ... 120

O negro nas narrativas de Jorge Amado ... 120

CAPÍTULO IV- Um olhar para a nação grapiúna: obras do ciclo do cacau ... 121

Encontro da arte com o proletário: Cacau ... 121

Sinhô Badaró: saga das roças de cacau ... 127

O camarada Honório: Cacau ... 136

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Os filhos da terra em São Jorge dos Ilhéus: Antonio Vitor, Raimunda e Joaquim

... 149

A mulher e o homem negro rural ... 153

CAPITULO V- Entre putas e vagabundos: romances sobre o povo ... 157

O encontro com e negro e o proletário ... 157

Crônica de uma cidade do interior ... 161

Uma tese em forma de romance ... 170

Ser negro ser proletário: Jubiabá ... 175

“Eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim”: Gabriela, cravo e canela ... 183

“Todos pobres, pardos e paisanos” em Tenda dos milagres ... 192

“Há de nascer, de crescer e se misturar...” ... 199

Parte III- Jorge Amado, um espelho ... 203

CAPITULO VI – Jorge Amado: Recepção em Moçambique ... 204

Literatura e formação nacional ... 206

A história que nos une: diálogos Brasil-Moçambique ... 216

Balduíno vive aqui! ... 222

Brasil, pra mim... ... 232

Entre ser a-racial e a democracia racial ... 237

Jorge Amado, nação e utopia ... 241

CONCLUSÃO ... 246

Das três a uma: Jorge Amado, personagens negros e um território que queria ser nação ... 246

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INTRODUÇÃO

Durante o tempo dedicado ao estudo da questão racial e do pensamento social na literatura1, muitas vezes me foi sugerido que olhasse atentamente para Jorge Amado, pois havia

a sugestão de serem as narrativas do escritor baiano um espaço em que o negro ganhava uma percepção diferente, com maior destaque do que normalmente é dado na literatura e opiniões que variam entre positivação e esteriotipação. Dado que o escritor foi um destacado militante comunista e possui uma extensa obra com números superlativos de vendagem e popularidade2, logo apareciam questões, como: “Até onde a compreensão marxista influenciou seus romances?”; “Existem rupturas ou linearidades sobre a percepção do negro?”; “Quem foram os seus interlocutores?”; “Quais eram suas preocupações ao tratar da questão racial?”; “Quem é o narrador amadiano?”; “Como Jorge Amado se tornou uma referência de um pensamento sobre o Brasil destacando a mestiçagem?”; entre tantas outras questões. Motivada por essas sugestões e questões, a tese De Honório a Archanjo: Jorge Amado, questão racial e formação nacional propõe apontar contextos intelectuais e processos sociais a respeito da discussão sobre a questão racial na obra do escritor e desdobra-se no estudo sobre a recepção dos escritos do romancista baiano pelos intelectuais de Moçambique no contexto de movimento anticolonial.

Pretende-se, assim, desvendar o percurso do pensamento de Jorge Amado sobre a questão racial, por meio da relação entre trajetória, ambiência intelectual, circulação e texto literário. A orientação metodológica exige a reconstrução de parte do debate intelectual no qual se insere o objeto textual e da trajetória do autor no processo social mais amplo. Para observar a recepção e a circulação dos romances de Amado durante o período de atuação do movimento de resistência ao colonialismo português em Moçambique, foram considerados como fonte arquivos de jornais e revistas da época, entrevistas e depoimentos de intelectuais que atuaram no período entre 1945 e 1975.

1 Desde a iniciação cientifica, quando meu objeto de estudo era o escritor Jose Lins do Rego, Jorge Amado me era

apresentado como uma contraposição ao escritor paraibano no tratamento da questão racial. A proposta inicial era fazer um estudo comparativo entre os dois escritores, mas devido a extensão da produção de Amado e a riqueza que apresentou as discussões detive somente nele.

2 O escritor é o um dos que mais vendeu livros no Brasil, é difícil calcular o número de livros vendidos segundo o

editor, Alfredo Machado, até 1977 eram 4 milhões de exemplares no Brasil e 10 milhões no exterior, em 2001 segundo o jornal Folha de São Paulo eram 20,7 milhões de exemplares vendidos no país, sendo Capitães de areia o líder de vendas até hoje, segundo a Companhia das letras, a edição bolso tem 284.839 exemplares vendidos e a edição “normal” tem 628.519 exemplares circulando desde 2008, somando no total mais de cinco milhões de exemplares vendidos . Foram 45 livros, traduzidos para 49 idiomas, existindo também exemplares em braile e em formato de áudio livro. Em 2009, o projeto Conexões Itaú Cultural organizou o Mapeamento da Literatura

Brasileira no Exterior com a pergunta: Quem são os autores nacionais mais lidos no exterior?, sendo Amado o

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Ao propor nesta pesquisa observar como a questão racial é abordada em Jorge Amado, temos ciência que se trata de um tema caro e amplamente debatido e estudado pelos meios acadêmicos no Brasil, chamando inclusive a atenção de estrangeiros3. O que é digno de nota é serem poucos os trabalhos que se dedicam a observar essa temática desde o romance de estreia de Amado, O país do carnaval (1931), até Subterrâneos da Liberdade (1954)4. O mais

comum é encontrar estudos que abordam uma visão do negro/mestiço na extensão da obra do escritor, com enfoque especialmente na chamada segunda fase, que se inicia em 1958 com

Gabriela, cravo e canela, quando o negro apreendido como mestiço vira protagonista da sua

produção.

Para análise, foram priorizadas as narrativas: Cacau (1933), Jubiabá (1935), Terras

do sem fim (1943), São Jorge dos Ilhéus (1944), Gabriela, cravo e canela (1958) e Tenda dos Milagres (1968), como também a atuação do escritor nas questões relativas à problemática

racial, levando em consideração prioritariamente como fontes de pesquisa reportagens, entrevistas, depoimentos, discursos e algumas cartas5. No decorrer da trajetória do escritor baiano, notadamente ao chegar na fortuna crítica de Jubiabá, é recorrente a afirmação de pesquisadores, com destaque para Rita Chaves e Tânia Macedo6, sobre a influência que Jorge Amado em autores de países africanos no contexto do movimento anticolonial. Este fato implicou em um período de pesquisa em Moçambique, na capital Maputo. Esta parte da pesquisa não repousou na análise de romances, pois, como será demonstrado, a leitura de Jorge Amado funcionou no sentido de fomentar um ideal de país, influência muito maior que de ordem estética7. Assim, não encontramos somente escritores, mas uma geração de intelectuais

3 Entre outros lembro do italiano Giorgio Marotti (1975), o americano Gregory Rabassa (1965) e o inglês David

Brookshaw (1983). No Brasil, Gustavo Rossi (2004) abordou essa questão nos romances da década de 1930 e Teófilo Queiroz (1975) trouxe uma interpretação da mulata nos romances amadianos. Komoe Gaston (1996) em sua dissertação abordou os elementos da África presentes nos textos de Jorge Amado.

4 Com exceção do Jubiabá que foi amplamente estudado devido as particularidades temáticas que serão abordadas

no decorrer deste trabalho.

5 Como afirmou Antonio Dimas, Jorge Amado era um homem epistolar. No acervo da Fundação Casa de Jorge

Amado existem mais de 50 mil correspondências do escritor que começaram a ser catalogadas, muitas delas com duas ou mais versões. Segundo a arquivista da Fundação, o escritor era muito cuidadoso com suas correspondências, que muitas vezes demandavam um longo processo, as cartas primeiro escritas manualmente, depois de datilografadas voltavam para as mãos do escritor com algumas sendo corrigidas novamente, datilografas e enfim enviadas para o destinatário. Ainda segundo funcionários da FCJA, o escritor vetou a publicação de suas correspondências, mas ao final da vida teria comentado com Myriam Fraga, ex-presidente da Fundação, falecida esse ano, que estas poderiam ser publicadas 50 anos após a sua morte. Quando perguntados sobre pesquisadores que tiveram acesso a algumas correspondências, esses funcionários afirmaram que suas pesquisas foram realizadas quando Amado e Zélia Gattai eram vivos e provavelmente autorizaram o acesso.

6 Dentre outros lembro de Carmem Secco, Edvaldo Bergamo, Cremilda de Araújo Medina e o escritor

moçambicano Mia Couto.

7 Conforme me alertou o professor Aureo Cuna, características de Capitães de Areia estão presentes no conto Nós matamos o cão tinhoso (1964), obra inaugural da prosa moçambicana, escrita por Luís Bernardo Honwana, pela

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formada na sua maioria por filhos de colonos portugueses, como também, mestiços e assimilados que reivindicavam uma nacionalidade moçambicana inspirados pelos livros mais engajados do escritor.

A proposta é conjugar narrativas, sua circulação e debates intelectuais referentes ao período que compreende desde a década de 1930 até meados da 1970. Diferentemente de boa parte dos trabalhos, o intuito é observar amplamente o desenvolvimento da temática sobre a questão racial nas obras do escritor considerado uma das maiores referências sobre o Brasil no exterior e que tomou para si a bandeira de luta contra o racismo. Outro objetivo é elucidar aspectos da circulação de ideias de esquerda em um nível transnacional em um país pouco estudado como Moçambique em um contexto de regime totalitário de direita, o salazarismo.

A tese foi estruturada em três partes. Na primeira, aborda o contexto de produção e atuação do escritor, partindo, no primeiro capítulo, dos primórdios com a Academia dos Rebeldes, seu diálogo com a “escola baiana” de estudos raciais e a preocupação em fazer uma literatura que fosse expressão do proletariado. O segundo capítulo, passa pelo auge da militância no PCB, militância antifascista, exílio na antiga URSS, momento em que o Brasil se apresenta como “solução” para o problema das raças pela UNESCO e quando o romancista apresenta uma percepção próxima da que o tornará famoso. Já o terceiro capitulo, foca no Jorge Amado mais famoso, sucesso de vendas, divulgador da Bahia no Brasil e do Brasil no exterior, ganhando status de intérprete da nacionalidade mestiça ao lado de Gilberto Freyre, mas, diferente deste, um ferrenho anticolonialista, influente politicamente e que volta seu olhar para África.

Na segunda parte, chega-se às narrativas de Amado e sua recepção. Dentre a série de classificações pela crítica, na tentativa de encontrar coesão e unidade na obra do escritor baiano, a mais comum é a divisão em primeira e segunda fases: a primeira é marcada por um período de militância político-partidária no PCB, que se reflete diretamente na literatura; a segunda, no período pós-1958, tem como marco a publicação de Gabriela, cravo e canela, que narra a vida cotidiana do povo baiano. Existem outras divisões possíveis, mas a maioria delas assenta suas referências em um período de engajamento político-partidário e depois em um suposto descompromisso político do escritor. Neste trabalho, a divisão foi feita de um modo um pouco diferente do habitual.

foi Mota Lopes, pelo fato que a leitura do romance e a escrita do texto terem acontecido praticamente no mesmo momento.

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Os romances tomados para análise foram alocados em dois capítulos. No quarto capítulo, Cacau, Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus, que são livros em que o autor se dedica a narrar o chamado “ciclo do cacau”, das origens até a decadência. Em Cacau, Jorge Amado afirma na epigrafe: “Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário?8”. No encerramento do ciclo, escreve:

Em verdade este romance e o anterior, Terras do sem-fim, formam uma única história: a das terras do cacau no sul da Bahia. Nesses dois livros tentei fixar, com imparcialidade e paixão, o drama da economia cacaueira, a conquista da terra pelos coronéis feudais no princípio do século, a passagem das terras para as mãos ávidas dos exportadores nos dias de ontem. E se o drama da conquista feudal é épico e o da conquista imperialista é apenas mesquinho, não cabe a culpa ao romancista [...] Como se dará conta também de que a última parte deste livro é o começo de um novo romance que os homens do cacau estão vivendo dramaticamente, e que eu não sei quem escreverá9.

No livro Cacau nos é apresentado Honório, que, como todos os personagens negros rurais da narrativa amadiana, tem uma noção intuitiva da opressão de classe e é incapaz de superar sua condição de explorado.

No quinto capítulo, são observados Jubiabá, Gabriela, cravo e canela e Tenda dos

Milagres, que podem ser chamados de romance de costumes, dedicados a descrever o povo

baiano, sua formação, origem e referências culturais. Nessas narrativas aparecem os famosos Antonio Balduíno, Gabriela e Pedro Archanjo, personagens citadinos. No primeiro momento da narrativa dessas obras, procura-se superar a dicotomia raça e classe; no segundo, as relações sociais tomam a frente do conflito de classe; e no terceiro, como síntese, as dicotomias de classe e raça, branco e negro, pobre e rico e conhecimento popular e erudito se fundem na figura de Archanjo.

Nesses dois agrupamentos de romances, temos duas visões sobre a questão racial no Brasil. No primeiro momento, quando a história do ciclo monocultor cacaueiro é narrada, a questão racial muitas vezes se funde e confunde com a questão de classe, acreditando que sem a tomada de consciência social e sem explicitar o conflito a exploração social/racial não tem solução. No segundo momento, considerando Jubiabá como obra de transição, Amado passa para outra perspectiva do tema, tomando a cultura negra como centro e dando cada vez mais espaço para o mestiço, como eixo para a compreensão da questão. Não há conflito, nem superação, mas conciliação entre as partes representadas pela mestiçagem.

8 AMADO, Jorge. Cacau. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 10. 9 AMADO, Jorge. Terras do sem fim. São Paulo: Martins, 19__, p. 11.

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Assim, Honório e Archanjo representam de certa forma a temporalidade que abarca este trabalho, como também a evolução, as contradições e as percepções sobre a questão racial presentes.

Este trabalho termina com a observação sobre a recepção e a circulação da obra de Jorge Amado em Moçambique entre 1945, quando as primeiras obras do escritor chegam nesse território, até 1975, ano da independência do país. Com o objetivo de situar o leitor e elucidar algumas questões, essa parte inicia abordando a história da literatura moçambicana imbricada com a ideia de nação, observando também diálogos culturais e circulação de ideias entre Brasil e Moçambique naquele contexto, finalizando com observações sobre a relação entre Jorge Amado, mobilização anticolonial e formação nacional.

A hipótese inicial repousou no argumento de que Jorge Amado influenciou a percepção dos escritores de Moçambique no que diz respeito à questão racial, negritude, mestiçagem, como também em relação à militância de esquerda. Embora algumas análises indiquem a influência dos romances desse autor sobre os escritores moçambicanos, o material coletado aponta outra face da questão. Isto é, são as primeiras obras de Jorge Amado, correspondentes a sua ligação com o Partido Comunista, que motivaram os intelectuais atuantes no período pré-independência a vislumbrar um ideal de nação.

Devido a inúmeras referências a fatos históricos e um diálogo constante com as discussões no presente vivido, muitas vezes os romances de Jorge Amado são tomados como documento sociológico ou como testemunho da verdade. Ao contrário dessa perspectiva, esta proposta de análise entende que a realidade está contida na obra, mas como uma realidade autônoma, cujo valor está impresso na forma que obteve para colocar os elementos extraliterários. O romance sempre comunica uma visão da realidade, sendo assim, não resulta, necessariamente, de fatos concretos: “[...] o sentimento de realidade na ficção pressupõe o dado real, mas não depende dele. Depende de princípios mediadores, geralmente ocultos, que estruturam a obra e graças aos quais se tornam coerentes as duas séries, a real e a fictícia”10.

Desse modo, o trabalho literário tem uma realidade própria que é a realidade apreendida pelo romancista e o modo pela qual ele a representa.

Ao utilizar a obra literária como forma de compreender as questões de uma época, estamos lançando mão de um recurso metodológico que Lukács11 utilizou para analisar as obras de Thomas Mann. Assim temos a preocupação de compreender a relação entre forma acabada

10 CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993, p.46. 11 LUKÁCS, Georg. Thomas Mann. Barcelona/México: Grijalbo, 1969.

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na obra de arte e a realidade que lhe oferece plausibilidade, acreditando que o contexto em que as obras foram produzidas desvenda o ambiente social que serviu de base histórica para o autor expressar suas ideias e os textos literários em questão.

Cabe observar que a análise do Pensamento Social na literatura não deve se basear somente no léxico do texto literário, pois, ao se deter na relação autor/obra, esse só dará conta da unidade interna da obra, não da relação entre a obra e o homem que a criou. Como aponta Goldmann, a análise sociológica consegue "destrinçar os elos necessários, vinculando-os a unidades coletivas cuja estruturação é muito mais fácil de apurar e elucidar"12.

Também não é raro haver comentários a respeito da (falta de) qualidade literária em Jorge Amado, como forma de desqualificar uma possível análise dos romances em questão. Nesse sentido, Antonio Candido formula o conceito de “literatura empenhada” para descrever o caráter da literatura brasileira. Segundo sua observação da história literária brasileira, nossa literatura sempre foi profundamente empenhada na construção e na aquisição de uma consciência nacional, de forma que do ponto de vista histórico-sociológico é que indispensável seu estudo13. Mesmo não sendo de grande qualidade, é ela que nos exprime. As sociólogas Élide Rugai Bastos e Maria Arminda do Nascimento Arruda apontam que esse método analítico de Candido pode ser transferido para o estudo do pensamento social. Como afirma Bastos, frente ao questionamento de um estudioso estrangeiro: “Deixando de lado a sugestão, embutida no questionamento, sobre a ‘fraqueza teórica’ dos mesmos, o que ‘explicaria’ sua pouca importância, tentamos explicar-lhe que sem compreender tanto as ideias quanto o lugar desses intelectuais é impossível apreender o movimento geral da sociedade brasileira”14.

Em Jorge Amado, procura-se observar o debate intelectual no qual ele se encontrava envolvido, como o negro é representado em seus romances, do início de sua carreira literária até o período que compreende seu auge como romancista, e sua repercussão em Moçambique durante o movimento de resistência ao colonialismo. Assim, na última parte, são observadas as condições sociais, ou seja, o contexto de circulação das obras naquele território, na tentativa de relacionar texto e contexto, pois o contexto demonstra o chão histórico que deve ser pensado em relação ao discurso, aos fatos políticos, às condições de sociabilidade, aos padrões de

12 GOLDMAN, Lucien. Sociologia do romance. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1967, p. 206.

13 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1750-1880). Rio de Janeiro: Ed.

Ouro Sobre Azul, 2007.

14 BASTOS, Elide Rugai. Pensamento social e escola sociológica paulista. In: MICELI, Sergio (org.). O que ler na ciência social brasileira, 1970-2002, São Paulo, Sumaré, 2002, p. 183. Nesse mesmo sentido afirma Arruda

(2004), “[...] a nossa cultura ‘nos exprime’ e, por isso, a sua revelação nos cabe e é a condição da nossa expressão, dos traços que nos especificam; a tarefa do intelectual brasileiro nutre-se do compromisso com a cultura do seu país, a despeito de reconhecer a sua dimensão acanhada” (p.108).

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comportamento e aos aspectos econômicos e culturais característicos de determinada época e local na tentativa de integrá-los como uma unidade para apreender sua influência naquele período15.

Considerando, assim, as ideias como forças sociais reflexivas, ou seja, formadas socialmente que têm repercussão na vida prática que, entre outras coisas, interferem e orientam condutas e a organização da vida social.

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CAPITULO I – Os encontros dos anos 1930

De menino grapiúna ao rebelde dos anos 1930: primeiros passos

Mesmo não sendo o objetivo principal deste trabalho a reconstrução biográfica de Jorge Amado e a obra O país do carnaval, anterior a Cacau (1933), tornam-se necessárias algumas observações para elucidar alguns elementos de uma produção que manteve relação imbricada com a memória e os debates intelectuais.

Jorge Amado de Faria nasceu em de 1912, em uma fazenda em Itabuna, estado da Bahia. Filho de um comerciante sergipano que se mudou para o território baiano e lá se tornou Coronel João Amado de Faria, promissor fazendeiro de cacau. Amado foi alfabetizado na fazenda de seu pai e, em busca de uma educação formal, se instala em 1927 em Salvador, quando começa sua inserção nos meios intelectuais da cidade.

Nesse ano publica seu primeiro texto, um poema, em uma revista importante da época, A Luva16, intitulado “Prosa ou Poesia”, que, segundo o próprio autor, era uma sátira a "um certo tipo de poesia modernista". Ainda em 1927, começou a trabalhar como repórter nos jornais Diário da Bahia (1927-1929) e O Imparcial (1927-1943)17. Esse ano é considerado decisivo pelo romancista, como ele mesmo afirmou em entrevista concedida a Antonio Espinosa em 1981: "[...] em 27 comecei a trabalhar em jornal e viver misturado com o povo da Bahia"18.

A crítica a "um certo tipo de poesia modernista" nos remete a Academia dos

Rebeldes, um breve movimento (1928-1930) que se opunha à Academia Baiana de Letras,

composto de jovens artistas soteropolitanos que “procuravam ignorar o modernismo de

importação da semana de Arte Moderna de São Paulo e suas ramificações e re-significações

16 Segundo Nelson Cadena (2012), a revista A Luva (1925-1931) de propriedade de Severo dos Anjos, era uma

publicação alinhada com o governo, tinha uma linha editorial voltada para repercutir o impacto da inauguração de obras públicas e outros atos oficiais envolvendo autoridades do Estado ou dos municípios. E contava com grandes colaboradores: Raimundo Aguiar e o aquarelista Mario Paraguassu no design; Carlos Chiaccio, Anisio Melhor e Afrânio Peixoto com artigos e conferências. Contava ainda com charges regulares de Quintino Barbosa, Luís Freitas e Fábio Torres.

17 Sua contribuição ao jornal O Imparcial não foi ininterupta nesse período, trabalhou como repórter entre

1927-1928 e retornou entre 1942 e 1945, quando manteve uma coluna diária na publicação intitulada Hora da Guerra, que fazia críticas ao Estado Novo.

18 AMADO, Jorge. É preciso viver ardentemente. In: Jorge Amado: seleção de textos, notas, estudos biográfico,

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regionais”19. O mentor do grupo era o jornalista e poeta Pinheiro Viegas e dele faziam parte

Sosígenes Costa, poeta, Walter da Silveira, crítico cultural, o etnólogo Edson Carneiro, Jorge Amado, entre outros. Mais de sessenta anos depois, Amado pondera sobre o objetivo e a importância desse grupo: "[...] com objetivo de varrer com toda literatura do passado [...] e iniciar nova era [...] para afastar das letras baianas da retórica, da oralidade balofa, da literatice, para dar-lhe conteúdo nacional e social na reescrita da língua falada pelos brasileiros [...] sentíamos brasileiros e baianos, vivíamos com o povo em intimidade”20.

A Academia dos Rebeldes se insere no contexto de uma reação na capital baiana aos pressupostos da Semana de Arte Moderna de 1922. Além do grupo do qual Amado fazia parte, surgiram também os grupos Samba e o Arco e Flexa (escrito com x), que publicavam as revistas Samba e Arco e Flexa, respectivamente. A respeito dos dois grupos:

A primeira, formada pelos poetas da baixinha, dividida entre as seduções parnasianas e as repercussões da modernidade na vida popular, adotou como figura intelectual orientadora o mesmo Pinheiro Viegas, poeta e agitador cultural que atuou junto aos Rebeldes; a segunda vertente reuniu os responsáveis pelas primeiras experiências modernistas na Bahia, incluindo Godofredo Filho que, sem pertencer aos quadros da revista, se integrou ao grupo de Arco & Flexa21.

Esses grupos estavam em certa consonância com outro movimento que surgiu em Pernambuco nesse mesmo momento e também como reação a Semana de 1922, capitaneado pelo sociólogo Gilberto Freyre, o Movimento Regionalista-Tradicionalista do Nordeste22, em

19 SEIXAS, Cid. Academia dos Rebeldes (sem causa?) - Revisitando uma proposta não esboçada. In: CANIATO,

Benilde Justo; GUIMARÃES, Elisa. (Org.). Linhas e entrelinhas: Homenagem a Nelly Novaes Coelho. São Paulo: Editora Casemiro, 2003, v. 1, grifos do autor.

20 AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que nunca escreverei.

São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 85.

21 SEIXAS, Cid. O gasto bordão (novamente): Oropa, França e Bahia. In: VII Congresso de estudos lingüísticos e literárias demandas da representação. Universidade Estadual de Feira de Santana, 2004. Feira de Santana, 2004,

s/p. Ainda segundo Seixas (2004), Samba reunia jovens escritores hoje conhecidos como os “poetas da Baixinha”, designação difundida pelo fato dos seus integrantes se reunirem num café da rua transversal à Baixa dos Sapateiros, reunia pessoas de classes mais baixas. Já o grupo Arco & Flexa era composto pela chamada elite social e intelectual de Salvador.

22 O objetivo do Movimento Regionalista do Nordeste, renomeado mais tarde de Movimento Regionalista

Tradicionalista do Nordeste, era resgatar os “verdadeiros” valores brasileiros baseando-se na tradição, que no contexto significava a manutenção da ordem social anterior: latifundiária, escravista e açucareira, pois segundo o sociólogo a universalidade do modernismo apagava os valores tradicionais e regionais. Em 1926, Freyre realizou o Congresso Regionalista do Recife, no qual se destacou a ideia de unificação econômica e cultural do Nordeste, a defesa dos antigos valores, a preservação arquitetônica das cidades, também do patrimônio histórico e artístico, festas e jogos, desse evento resulta o Manifesto Regionalista, que ganha sua versão definitiva em 1952, Manifesto

Regionalista de 1926 (título de capa) uma síntese dos elementos básicos do regionalismo defendido e difundido

por ele. Como apontou Chaguri (2007), no projeto estético regionalista a memória será o filtro que selecionará o que será lembrado, por meio dela serão unificados dramas da decadência nordestina, ou melhor, serão tratados como semelhantes tanto o drama dos senhores como dos trabalhadores, dos exploradores e explorados, ao promover tal aproximação e equalização dos conflitos, abre-se caminho para a recuperação do passado patriarcal como a autêntica tradição nacional. Para maiores detalhes sobre esse movimento indico o texto de Antonio Dimas (2003) Um Manifesto guloso e os livros As criaturas de Prometeu (2006) de Elide Rugai Bastos e A tradição

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que o ponto de identificação mais latente seria a crítica a uma "cultura importada" e a proposta de revalorização dos elementos regionais e populares. Não por acaso, apesar de seus membros terem seguido orientações políticas diferentes, como veremos mais à frente, comumente são colocados como componentes de uma mesma classificação nos manuais de literatura, a literatura regionalista do Nordeste.

Essas manifestações no campo cultural e artístico dos idos de 1920 não são registros de simples discussões estéticas, mas são, além disso, registros de uma sociedade em transformação nos âmbitos político e social. Elas se iniciam nessa década, mas se consolidam na década de 1930 e ecoam até a década de 1940. As tensões políticas e sociais vividas com a crise do poder oligárquico e agravadas com crise do café tiveram como consequência a Revolução de 1930, quando o poder oligárquico foi questionado, acabou a hegemonia política desse grupo, que acabou dando visibilidade à diversidade existente no país.

Como apontou Antonio Candido em A Revolução de 30 e a Cultura, a década de 1930 foi essencial para a cultura, pois naquele momento a estética modernista se populariza e cristaliza. Antes, a literatura estava ligada a uma certa ideologia da permanência, observada principalmente na gramática formal e na norma escrita ligada à literatura portuguesa23. Nessa perspectiva, a Revolução atuou como uma espécie estimulante no âmbito da cultura,

[...] catalisando elementos dispersos para dispô-los numa configuração nova. Neste sentido foi um marco histórico, daqueles que fazem sentir vivamente que houve um 'antes' diferente de um 'depois'. Em grande parte porque gerou um movimento de unificação cultural, projetando na escala da Nação fatos que antes ocorriam no âmbito das regiões. A este aspecto integrador é preciso juntar outro, igualmente importante: o surgimento de condições para realizar, difundir e 'normalizar' uma série de aspirações, inovações, pressentimentos gerados no decênio de 1920, que tinha sido uma sementeira de grandes mudanças24.

Jorge Amado cita a Revolução de 1930 como decisiva na formação literária de sua geração:

[...] que nos influenciou, sobretudo, foi a Revolução de 1930, um movimento que teve apoio popular e não um simples golpe de Estado [...] Sua influência foi tão grande que modificou, inclusive, o próprio Modernismo, que tinha feito

re(des)coberta: o pensamento de Gilberto Freyre no contexto das manifestações culturais e literárias nordestinas

(2010) de Moema Selma D' Andrea.

23 Segundo Arruda (2011), este decênio contou com alterações em todos os campos "[...] na poesia, no romance,

na arquitetura, nas artes plásticas, na produção intelectual, na música popular e erudita, à exceção, apenas, da dramaturgia, cuja renovação aconteceu na década seguinte. Em uma dezena de anos, transpirou-se nova atmosfera, igualmente tributária da criação de instituições centrais ao desenvolvimento da cultura, como o são a universidade, as editoras, as reformas do ensino, as iniciativas culturais do Governo Getúlio Vargas, instalado em outubro de 1930, cuja política dominante será marcada por um reformismo modernizador, ainda que autoritário" (p. 192).

24 CANDIDO, Antonio. A Revolução de 30 e a Cultura, In: A Educação pela Noite e Outros Ensaios. São Paulo:

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pelos filhos de papai das fazendas de café de São Paulo, que saiu dos salões da dona Olivia Penteado25. A literatura de 30 saiu sobretudo do Nordeste, mas

não só dele, saiu também do sul com os gaúchos Erico Veríssimo e Dionélio Machado, por exemplo - e do norte com o paraense Dálcio Jurandir26.

Em meio à efervescência, nomes surgidos na cena intelectual no decênio anterior estrearam como destacados romancistas, naquela que foi nomeada como “segunda geração modernista” ou “romance social de 30”, composta na sua maioria de escritores advindos da região Nordeste; podemos citar como representantes, entre tantos: Jorge Amado, José Lins do Rego, Lúcio Cardoso, Cyro dos Anjos, José Américo de Almeida, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e Érico Veríssimo, do Rio Grande do Sul. Esses escritores são produtores do que Candido considera como "romance por excelência", pois nesse estariam presentes os elementos pitorescos, o dado concreto, a vivência social e telúrica da região de origem.

Romance fortemente marcado de neonaturalismo e de inspiração popular, visando aos dramas contidos em aspectos característicos do país: decadência da aristocracia rural de formação do proletariado (José Lins do Rego); poesia e luta do trabalhador (Jorge Amado, Armando Fontes); êxodo rural e cangaço (José Américo de Almeida, Raquel de Queiros, Graciliano Ramos); vida difícil das cidades em rápida transformação (Erico Veríssimo) [...] o importantíssimo caráter de movimento dessa fase do romance, que aparece como instrumento de pesquisa humana e social, no centro de um dos maiores sopros de radicalismo da nossa literatura”27.

Esses escritores, que tinham em comum o objetivo de descrever a realidade brasileira, foram bastante diversos na forma de abordar a temática28. Diferenças oriundas das

posições/perspectivas que adotaram para observar a realidade brasileira em um país que encontrava em transição. É notável, nesse momento, como os intelectuais assumem de forma clara seu posicionamento político-ideológico e utilizam a criação artística como elemento para difusão desses ideais29.

25 É possível notar a adesão de Amado a uma interpretação sobre o movimento Modernista de 1922, a respeito da

presença do elemento burguês na primeira fase. Nesse sentido, segundo José Luiz Lafetá (2000), o Modernismo deve ser encarado em duas fases, pelo projeto estético predominante na década de 1920, ligado às modificações operadas na linguagem, quando "não há no movimento uma aspiração que transborde os quadros da burguesia" (p. 27) e pelo projeto ideológico, predominante na década de 1930, que é ligado à visão de mundo de sua época, onde há um "recrudescimento da luta ideológica: fascismo, nazismo, comunismo, liberalismo medem suas forças em disputa ativa" (p. 28). Roberto Schwarz no ensaio A carroça, o bonde e o poeta modernista, também faz considerações sobre o aspecto conservador-burguês presente no movimento de 22.

26 AMADO, Jorge. É preciso viver ardentemente. Op. cit., p. 14.

27 CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história e literatura. São Paulo: T. A. Queiroz,

2002, p. 28, grifos do autor.

28 Podemos tomar como exemplo desta diversidade, José Lins do Rego que se dedicou a descrever o ciclo da cana

de açúcar dos primórdios até sua decadência enquanto Jorge Amado procurava escrever uma literatura que seria expressão do proletariado.

29 Nesse sentido Candido aponta uma "radicalização" nas posições políticas que resultou num polarização dos

intelectuais entre fascismo e comunismo: "Muitas vezes o espiritualismo católico levou no Brasil dos anos 30 à simpatia pelas soluções políticas de direita, e mesmo fascistas, como foi o caso do integralismo, cujo fundador,

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O que observamos são diferentes tendências no Modernismo que se cristalizam em duas vertentes que se destacam por serem oriundas de orientações políticas que refletem diferentes entendimentos sobre o futuro do país naquele momento, integralismo e comunismo, uma com orientação mais à direita30 e outra, mais à esquerda.

Em 1922, foi fundado o Partido Comunista Brasileiro (PCB), em que parte da intelectualidade brasileira entre as décadas de 1930 e 1950, como Caio Prado Junior, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Orígines Lessa, Oscar Niemeyer, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Patrícia Galvão, Carlos Scliar, Candido Portinari, entre tantos outros, militou e/ou foi filiado.

No "modernismo do sul", aquela polarização foi representada por duas tendências: uma expressa pelo Movimento Verde-amarelo e pela Escola da Anta, identificados com o integralismo31, e outra representada pela poesia do Movimento Pau-Brasil e do Movimento

Antropofágico, capitaneados por Oswald de Andrade32.

A mesma divisão será observada entre os intelectuais nordestinos. Como chama atenção Ana Paula Palamartchuk, até o fim da Segunda Guerra Mundial o PCB atrai jovens

Plínio Salgado, modernista e participante do movimento estético renovador, aliou a doutrinação a uma atividade literária de certo interesse [...] Simetricamente, os anos 30 viram um grande interesse pelas correntes de esquerda, como se pôde ver no êxito da Aliança Nacional Libertadora e certo espírito genérico de radicalismo, que provocou as repressões posteriores ao levante de 1935 e serviu como uma das justificativas do golpe de 1937. Muita gente se interessou pela experiência da União Soviética, e as livrarias pululavam de livros a respeito, estrangeiros e nacionais." (1987, p. 188-189). Lafetá (2000), também aponta uma "agudização" da consciência política na literatura deste período.

30 Sobre a vertente mais conservadora do Modernismo, a tese de doutorado de André Botelho, Um ceticismo interessado: Ronald de Carvalho e sua obra dos anos 20 (2002) elucida elementos, esse constata que Carvalho

procurava tornar nosso país mais familiar aos brasileiros, uma das pretensões do nosso modernismo, o que acabou contribuindo para a rotinização de uma ideologia autoritária de Estado que reverbera na Revolução de 1930 e se consolida no Estado Novo.

31 Em resposta ao nacionalismo do Pau Brasil, surgiu o grupo do Verdeamarelismo, formado por nomes como

Plínio Salgado, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo. Para esses, o ingresso do Brasil na modernidade implicava o rompimento radical com toda herança cultural "europeia afrancesada". Seu lema era: "Originalidade ou Morte!", o projeto cultural dos verde-amarelos tinha também sua contrapartida política: o autoritarismo aparecia como condição imprescindível para a independência cultural e política do país. Através do jornal Correio Paulistano que o grupo defendia suas ideias. Em 1927, esses artigos foram reunidos em uma coletânea com o título O Curupira e o Carão. Em maio de 1929, o grupo publicou o manifesto Nhengaçu Verde

Amarelo, em que defendia a integração étnico-cultural sob o domínio da colonização portuguesa, o nacionalismo

e o predomínio das instituições conservadoras. Na década de 1930, o grupo se bifurcou em dois movimentos distintos: o integralismo e o bandeirismo. Rompendo com o grupo de origem, Plínio Salgado fundou em 1932 a Ação Integralista Brasileira.

32 Publicado em 1924 no jornal O Correio da Manhã, com o título em clara referência a árvore nativa brasileira o Manifesto Pau Brasil coloca como objetivos: "A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A

contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos [...] Uma única luta - a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação" (s/p) reflete bem os objetivos não dos poemas do livro Poesia Pau Brasil como as ideias deste "modernismo progressista". Que foram veiculadas principalmente por meio da Revista Antropofagia(1928-1929). Segundo Carreri (2013), Oswald de Andrade atuou na produção e difusão da cultura comunista nos meios de imprensa, pelos periódicos OHP, na Revista Espírito Novo, Jornal A Platéia, Revista Problemas, apesar da repressão do Estado Novo.

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intelectuais oriundos de famílias tradicionais decadentes de estados não centrais do Brasil, como Jorge Amado, da Bahia, Graciliano Ramos, de Alagoas, Rachel de Queiroz, do Ceará33. Essas adesões podem ser explicadas pelo fato de a Revolução de 1930 e a consequente ascensão de Getúlio Vargas ter desalojado setores tradicionais da centralidade política, o que favoreceu o aparecimento de organizações dispostas a contestar o novo Estado que se montava. Do mesmo modo que o governo pós-revolução passou a invocar a participação dos intelectuais como "construtores da nação"34, o PCB seduziu outro grupo apresentando uma alternativa ao poder

posto. Mas não foi só com o pensamento de esquerda que os intelectuais da geração de 1930 do Nordeste se engajaram; como demonstrou Moema D'Andrea, existiam estreitas relações entre os "modernistas da ordem"35, o Modernismo Tradicionalista do Nordeste liderado por Gilberto

Freyre e os relatos da adesão de José Lins do Rego ao integralismo36.

Rio de Janeiro e São Paulo eram os centros onde a intelectualidade se reunia e debatia ideias sobre as orientações políticas e artísticas que circulavam naquele momento. Os pontos de encontro eram, em São Paulo, os salões do Departamento de Cultura37 e as livrarias:

José Olympio (até 1934 tinha sede em São Paulo), a Garnier e a Católica (que depois muda o nome para Schmidt).A "Casa", como ficou conhecida a livraria da editora José Olympio, tinha

33 PALAMARTCHUCK, Ana Paula. Os novos bárbaros: escritores e o comunismo no Brasil (1928- 1948). Tese

(Doutorado em História Social). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Campinas, 2003.

34 Situação que se inicia no Governo Provisório (1930-1934) e que se torna mais evidente após o golpe a partir de

1937. Neste primeiro momento a política cultural varguista envolveu a nomeação de intelectuais para postos de destaque e a criação de diversos órgãos capazes de atraí-los para junto do governo. Como exemplos, em 1930, o arquiteto Lúcio Costa foi indicado para a direção da Escola Nacional de Belas Artes. Manuel Bandeira foi convidado, em 1931, para presidir do Salão Nacional de Belas Artes. Em 1932, o escritor José Américo de Almeida assumiu a pasta da Viação e Obras Públicas. Gustavo Capanema foi nomeado em 1934 ministro da Educação e Saúde Pública, que por sua vez convidou o poeta Carlos Drummond de Andrade para chefiar seu gabinete. Mário de Andrade iria assumir, em 1935, a direção do Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo, entre outros.

35 D’ANDREA, Moema Selma. A tradição re(des)coberta: o pensamento de Gilberto Freyre no contexto das

manifestações culturais e literárias nordestinas. Campinas: Editora UNICAMP, 2010. Expressão cunhada por Arnoni Prado para se referir a algumas expressões do Modernismo carioca e paulista de visão conservadora ligadas ao espiritualismo e ao Simbolismo e como afirma Candido (2002) "desta tendência brotaram sugestões decisivas para a criação de ideologias de direita, como o Integralismo, e certas orientações do pensamento católico" (p. 117).

36 Para José Castello (1961), foi com José Lins do Rego teria assimilado mais do que qualquer outro autor o espírito

do regionalismo defendido por Gilberto Freyre. Ideia complementada por Almeida (1999) quando observa que enquanto Gilberto Freyre foi o sociólogo da decadência da sociedade patriarcal do Nordeste açucareiro, Rego pode ser considerado o seu romancista. Consta que o romancista paraibano foi entusiasta do integralismo durante seus anos em Maceió (1926-1935), em entrevista ao pesquisador Sávio de Almeida (2006), Moacir Pereira- principal liderança do integralismo alagoano - revela que Rego lhe apresentou o integralismo, o escritor ainda é apontado como articulador da visita de Plínio Salgado a Maceió em 1932, além de ter participado e discursado na fundação do Núcleo Integralista de Alagoas (1933).

37 Implementadas entre 1935 e 1938, segundo Roberto Barbato (2004), suas tarefas denotavam a criação de

projetos de políticas culturais. Intelectuais ligados a Mário de Andrade cooperaram no sentido de viabilizar uma política de ação cultural e se propuseram a gerenciar os recursos destinados a esse fim, pela primeira vez os intelectuais deslocam suas ambições literárias para o plano da ação pública. Segundo seu levantamento, a experiência do Departamento de Cultura inaugura no país uma noção de política cultural.

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um variado leque de escritores de várias orientações políticas, era um ponto notório de debate e efervescência intelectual.

O negro na formação da nação

Na década de 1930 também transparecem elementos marcantes para discussão sobre a questão do negro na sociedade brasileira.

No século XIX, eventos como o fim do tráfico de escravos, em 1850, a abolição da escravatura, em 1888, e o advento da República, em 1889, trazem à tona, por parte da elite intelectual, a discussão em relação à formação da nossa identidade nacional. O objetivo dessa elite brasileira era constituir um país civilizado, capaz de superar seu atraso e contradições. A partir dessa discussão, a questão racial se converteu em tema central para a compreensão dos destinos da nação.

Parte da elite adotou uma ideologia positivista, conservadora e racista, que negava o lugar dos negros na formação nacional. A mestiçagem, que até então era considerada negativa por teóricos como Nina Rodrigues e demais adeptos da escola italiana de criminologia, se tornou necessária por parte do discurso nacionalista no sentindo de promover o branqueamento da população. Influenciados por teóricos darwinistas sociais, como Gobineau, Agassiz e Le Bon38, que consideravam nossa base racial – constituída majoritariamente de negros e mulatos – um obstáculo para a formação da nação ideal, muitos intelectuais brasileiros viram na imigração europeia e na mestiçagem uma saída favorável para o surgimento de uma nação civilizada e moderna.

Nas palavras de Giralda Seyferth, o mito do branqueamento, ou seja, as discussões sobre o processo de branqueamento39 da nação brasileira ganharam notoriedade na Primeira República (1889-1930):

38 Nas palavras de Nina Rodrigues (2008): “No trabalho que publicou em 1855, Gobineau já fazia um quadro bem

negro da decadência dos mestiços sul-americanos. Mas em 1861, Quatrefages invocava, precisamente contra ele, o exemplo da América do Sul a favor do sucesso completo da mestiçagem e punha em relevo a intrepidez e a energia da empresa dos paulistas brasileiros. Mais tarde, em 1863, é Agassiz que por sua vez vê a mestiçagem como a causa fundamental da decadência miserável dos mestiços do Vale Amazônico. Sem ir mais longe, recentemente vemos Gustave Le Bon considerar as repúblicas sul-americanas como a prova incontestável da influência social desastrosa dos mestiços, ao passo que Keane os apresenta como a prova não menos conclusiva das vantagens da mestiçagem” (Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702008000400014).

39 Fato notório foi a participação do Brasil, único país latino-americano convidado, no I Congresso Internacional

das Raças, em 1911. Neste evento, o professor de antropologia João Batista Lacerda, representando o governo brasileiro, apresentou um texto em francês com o título Sur les métis au Brésil (Sobre os mestiços no Brasil), falando sobre o processo de miscigenação e branqueamento brasileiro. Em seu texto estava sendo defendida a tese de branqueamento, mas não somente um clareamento físico, mas também moral e social, em um período de três

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A nação brasileira ideal deveria ser ocidental: uma civilização latina, de língua portuguesa e população branca plasmada na mestiçagem. Não é por outra razão que os principais dogmas do racismo vicejaram depois da Abolição e que os verbos conjugados para os imigrantes eram caldear, misturar, fundir, miscigenar (devidamente subsumidos à assimilação)! De fato, esperava-se a

assimilação física dos europeus e o desaparecimento dos negros e mestiços

mais escuros, num prazo que variava, conforme o autor, entre três gerações e três séculos40.

Entre os intelectuais, Euclides da Cunha, Silvio Romero e Oliveira Vianna se debruçaram sobre o tema do clareamento racial. Esse enfoque predomina até meados da década de 1920. Na mesma década, já se nota sinais de positivação da mestiçagem como elemento essencial da nossa cultura, mas é a partir da década de 1930 que essa mudança se consolida e a mestiçagem passa a ser valorizada. Como observa Lilia Schwarcz: “Cantada em verso e prosa, a miscigenação de grande mácula transformava-se em nossa mais sublime especificidade, sem que o tema fosse, de fato, enfrentado. Nesse movimento, o conflito virava sinal de identidade [...] passava a equivaler a uma grande representação nacional”41.

A década de 1930 é um momento decisivo nessa discussão, pois, além do lançamento do notório livro de Gilberto Freyre, são publicadas as obras: O negro brasileiro (1934), O folclore negro no Brasil (1935) e As culturas negras no novo mundo (1937), de Arthur Ramos; Religiões negras (1936) e Negros bantos (1937), de Édison Carneiro; The negro

in Bahia (1938), de Donald Pierson; O negro e o espírito guerreiro nas origens do Rio Grande do Sul (1937), de Dante de Laytano; entre outras. Também são realizados o I e o II Congresso

Afro-Brasileiro (em 1934 e 1937), organizados por Gilberto Freyre e Édison Carneiro, respectivamente, que contaram com a participação de vários intelectuais (alguns estiveram presentes, outros enviaram trabalhos), incluindo José Lins do Rego, Jorge Amado42 e artistas participantes da Semana de Arte Moderna de 1922, como: Lasar Segall, Candido Portinari, Di Cavalcanti, Santa Rosa, Mário de Andrade, Manuel Bandeira e tantos outros. Ainda nessa década, é fundada a Frente Negra Brasileira em 1931, organização de “homens de cor”, que tinha como objetivo combater o racismo e promover melhores condições para a população negra.

A obra de Gilberto Freyre, especialmente Casa-Grande & Senzala, publicada em

gerações, ou seja, em meados dos anos 2000, o Brasil seria uma nação branca e moralmente regenerada. Ver mais em: SEYFERTH, Giralda. A antropologia e a teoria do branqueamento da raça no Brasil: a tese de João Batista Lacerda. In: Revista do Museu Paulista, vol. 30, 1985.

40SEYFERTH, Giralda. O beneplácito da desigualdade: uma breve digressão sobre racismo. In:______________

(et alii). Racismo no Brasil. São Paulo: Fundação Petrópolis, 2002, p. 37.

41 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Usos e abusos da mestiçagem e da raça no Brasil: uma história das teorias raciais

em finais do século XIX. In: Afro- Ásia, n. 18, 1996, p. 98.

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1933, veio afirmar a tendência de positivar a formação brasileira43. Em seu livro mais famoso,

Freyre afirma que a família patriarcal foi geradora de todas as relações sociais brasileiras e que devido ao seu caráter amistoso e confraternizador, herdado da tradição colonizadora portuguesa, esta afastou os riscos de ruptura social. Segundo essa perspectiva, no regime patriarcal, o conjunto casa-grande e senzala e a união entre o branco e o negro, que a princípio são polos antagônicos, se complementam e tendem a conciliar-se44. O conceito de cultura foi introduzido

no meio intelectual superando até certo ponto o discurso racialista de Nina Rodrigues45, muito

influente até então.

Essa perspectiva, que via positivamente a união das “três raças”, o branco, o índio e o negro, se cristalizou no conceito de “democracia racial”, que se resume na ideia que a mistura entre os três povos gerou uma sociedade igualitária em todos os âmbitos.

Como já observado, a criação artística estava ligada a esse momento de reconhecimento e valorização da cultura negra/mestiça, da mesma forma que Antonio Sergio Guimarães observa essa valorização da herança cultural negra na literatura regionalista: “[...] seus primeiros expoentes, seja na literatura regionalista, expressa por Jorge Amado, José Lins do Rego e outros, ou ainda na indústria cultural emergente erudita ou popular, encontrou um destino nacional comum na superação do racialismo e na valorização da herança cultural em uso pelos negros e caboclos brasileiros46.

Podemos observá-la também no Modernismo, como notável exemplo Macunaíma (1928), em que Mário de Andrade mostrava um país de costumes e culturas misturados47.

A partir deste breve contexto, é observável que a questão racial há muito é considerada um tema-chave para compreendermos a construção da nossa identidade nacional. Jorge Amado, que está começando sua atuação intelectual nesse contexto, entre o final de 1920

43 Casa-Grande & Senzala, especialmente, veio mostrar, de um modo conservador, a centralidade da escravidão

na formação da sociedade brasileira. Como afirma Lilia Schwarcz: “nesse sentido, obra de Freyre não teria sido aceita exclusivamente pelo que não dizia. Ao contrário, sua popularidade vem da afirmação de que a questão racial é fundamental entre nós e que é preciso que levemos a sério a singularidade de nosso processo de socialização e formação” (1996, p. 99).

44 Nesse mesmo sentido Elide Rugai (2006) comenta que para Freyre é na “família patriarcal, simbolizada pela

casa-grande e pelo sobrado, é o espaço onde ocorre a confluência das diferentes tendências socioculturais brasileiras, onde as mesmas se anulam e finalmente conciliam-se” (p.106).

45 Segundo Guimarães (2009), as teorias racialistas foram influentes até meados do século XX nas escolas de

Direito e Medicina.

46 GUIMARAES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo: FUSP e Editora 34, 1999,

p. 64.

47 Nas palavras de Candido (2004) sobre a produção modernista: "O mulato e o negro são definitivamente

incorporados como tema de estudo, inspiração, exemplo. O primitivismo é agora fonte de beleza e não empecilho a elaboração da cultura. Isso, na literatura, na pintura, na música, nas ciências do homem" (p. 120).

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e início de 1930, não se mostra indiferente, principalmente no que se refere a articulação das diferentes culturas que compõe a nossa nacionalidade, como veremos no decorrer da tese.

O país do carnaval: uma percepção da formação nacional

Nessa ambiência, Jorge Amado estreia como romancista, influenciado pelo modernismo e seus desdobramentos, a Revolução de 1930 e o comunismo. Influências mais nítidas durante o período que compreende 1933-1954, quando irá combinar lado a lado militância política e criação literária48. Nesse meio tempo, a questão racial aumenta

progressivamente sua importância.

O ano de publicação da sua primeira incursão na literatura foi 1930, com a novela

Lenita, escrita em colaboração com Dias da Costa (1907-1974) e Édison Carneiro (1912-1972),

publicado pelo periódico O Jornal, mas que o próprio Amado e estudiosos49 não a consideram

como obra de estreia.

Passando a residir no Rio de Janeiro em 1930, com objetivo de estudar Direito na Universidade do Rio de Janeiro, Amado chega com seu livro de estreia na bagagem, O país do

carnaval, publicado no ano seguinte. Pela faculdade que se inseriu nos meios intelectuais

cariocas. Por intermédio de seu primo, Gilson Amado, conheceu Otavio de Farias (1908-1980), que atuou como uma espécie de mediador, enviando os originais de seu primeiro romance ao seu primeiro editor, Augusto Frederico Schmidt, proprietário da Livraria Schmidt50.

48Assis (1996) aponta a confluência três eventos na trajetória do então jovem contestador da Academia dos Rebeldes: "[...] a Semana de Arte Moderna, o levante do Forte de Copacabana e a fundação do PCB. No momento

em que o país comemora o primeiro centenário da independência política e procura fazer um exame crítico de sua história, tais eventos condensam - e irradiam - todo um sentimento de negação do status quo político, artístico e social" (p. 20).

49 Para citar algumas críticas, o livro é considerado "pura abominação" por Medeiros de Albuquerque e "falsa e

vazia" na opinião de Octávio de Faria. Alfredo Wagner de Almeida (1979) em sua extensa pesquisa sobre o campo intelectual no qual Jorge Amado se insere, faz uma ampla discussão sobre o que seria o "livro de estreia" e não considera Lenita por vários motivos, entre outros, os mais importantes seriam: 1) o fato de não ser uma obra individual, 2) as coletâneas e as editoras não a consideram e 3) a falta de reconhecimento desta no campo intelectual. Além do próprio romancista não a reconhecer afirmando: "Um subliterado não poderia tê-lo feito tão ruim, foi necessário que se juntassem três" (AMADO, 2011, p. 44).

50 Em fins dos anos 1920, Augusto Frederico Schmidt estreia nos meios literários cariocas e começa a frequentar

o Centro Dom Vital que congregava a intelectualidade católica. Nesse círculo Schmidt promoveu e dirigiu a revista

Literatura, que lhe outorgou nome e relações. A livraria que surgiu no começo em 1930 com o nome Católica,

mas mudou o nome para Schmidt no ano seguinte. Segundo Sorá (2001), a atividade editorial de Schmidt entre 1930 e 1933, produziu um catálogo modelo para os anos 1930, publicando além de Jorge Amado, Vinicius de Moraes, Rachel de Queiroz, Amando Fontes e Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre. Anos depois seu catalogo altera significantemente: “Essa mudança esteve estreitamente vinculada com a tomada de posição de Schmidt em apoio às propostas fascistas que Plínio Salgado começava a divulgar, uma alternativa entre outras abertas pelos ecos da abortada contra-revolução de 1932" (p. 140).

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