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O Mito da coerência decisória : sociologia política do Programa Fome Zero

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Academic year: 2021

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O MITO DA COERÊNCIA DECISÓRIA: SOCIOLOGIA POLÍTICA DO PROGRAMA FOME ZERO

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual d e Ca mpina s co mo par te do s re qu isitos exigidos para a obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais.

Supervisor/Orientador: Prof. Dr. Valeriano Mendes Ferreira Costa

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA REGINA CONRADO MELO, E ORIENTADA P E L O P R O F . D R . V A L E R I A N O M E N D E S

FERREIRA COSTA.

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AMPINAS

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NSTITUTO DE

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ILOSOFIAE

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IÊNCIAS

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UMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesade Dissertação/Tese de Mestrado/Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 30 de março de 2016, considerou a candidata Regina Conrado Melo aprovada.

Prof. Dr. Valeriano Mendes Ferreira Costa Profa. Dra. Ana Medeiros Fonseca

Prof. Dr. Walter Belik

Prof. Dr. Eduardo G. Noronha Prof. Dr. Ivan Filipe Fernandes

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

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As atividades da pesquisa aproximaram-me de pessoas comprometidas com o tema das políticas de desigualdade e pobreza no Brasil. As entrevistas realizadas foram determinantes no processo de trabalho. Meus agradecimentos a todas elas.

Agradeço, de forma especial, ao Profº. Drº Valeriano Mendes, orientador e amigo, pelas boas ideias, paciência e orientação. Um mestre que soube entender minhas escolhas e me acompanhou, em todo o processo de elaboração da tese, com sabedoria, conhecimento e bom humor, virtudes imprescindíveis ao desenvolvimento desta jornada.

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diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus antepassados, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender. Com simples sinais e sons poderiam comunicar as suas necessidades imediatas e idênticas.

Hannah Arendt A Condição Humana (1981)

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O projeto analisa a influência das ideias na formulação de políticas de redução de pobreza e da fome, no Brasil, no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva. A análise abrange o período de 1990, época de criação do Movimento Ética na Política e da Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, a 2004, momento de criação do Programa Bolsa Família. Tendo como referência teórica o modelo cognitivo das políticas públicas, busca-se resgatar ideias, valores e princípios normativos, compartilhados pelos atores sociais que contribuíram para o referencial do Fome Zero.

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The analysis considers the influence of ideas in poverty and hunger policy´s formulation in the first government of Luis Inácio Lula da Silva in Brazil. The analysis covers the period between 1990, when was launched the first version of Fome Zero Program, until 2004, when Bolsa Família Program was created. The theoretical reference, which oriented the present analysis, is the cognitive model of public policy, which seeks to realign the ideas, values and normative principles shared by the actors who contributed to construct the Fome Zero paradigm.

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ADENE – Agência de Desenvolvimento do Nordeste AFDC – Aid to Families with Dependent Children AID – Associação Internacional de Desenvolvimento ALSA –Agentes Locais de Segurança Alimentar

AMGI – Agência Multilateral de Garantias de Investimentos ASA – Associação do Semiárido

BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento

BIRD – Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social BPC – Benefício de Prestação Continuada

CADÚNICO – Cadastro Único para Programas Sociais CBIA – Centro Brasileiro para a Infância e a Adolescência CEASA – Centrais de Abastecimento de Campinas

CEB – Comunidade Eclesial de Base CEF – Caixa Econômica Federal

CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe CFI – Corporação Financeira Internacional

CICDI – Centro Internacional para Conciliação de Divergências em Investimentos CNA – Confederação Nacional de Agricultura

CNAS – Conselho Nacional de Assistência Social CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil CNI – Confederação Nacional da Indústria

COEP – Comitê de Entidades Públicas no Combate à Fome e pela Vida COFINS – Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social CONAB – Companhia Nacional de Abastecimento

CONANDA – Conselho Nacional da Assistência Social

CONEVAL – Consejo Nacional de Evaluación de la Política de Desarrollo Social CONSAD – Consórcios de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local CONSEA – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura COPO – Conselho Operativo do Programa Fome Zero

CPDOC – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil

CPMF – Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira CPT – Comissão Pastoral da Terra

CUT – Central Única dos Trabalhadores DRU – Desvinculação de Recursos da União FAO – Food and Agricultural Organization FAT – Fundo de Amparo dos Trabalhadores FGTS – Fundo de Garantia por Tempo de Serviço FIESP – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo FMI – Fundo Monetário Internacional

FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação FNAS – Fundo Nacional de Assistência Social

IBASE – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

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IDH – Índice de Desenvolvimento Humano

IETS – Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade INAN – Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição

INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária ( INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos

INSS – Instituto Nacional do Seguro Social

IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas ISER – Instituto de Estudos da Religião

JEC – Juventude Estudantil Católica JUC – Juventude Universitária Católica LBA – Legião Brasileira de Assistência

LGBTI – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social

LP – Linha de Pobreza

MAPS – Ministério da Assistência e Promoção Social MBES – Ministério do Bem-Estar Social

MDB – Movimento Democrático Brasileiro

MDS – Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome MESA – Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar

MPAS – Ministério da Previdência e Assistência Social MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra NEPA – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação OIT – Organização Internacional do Trabalho

ONU – Organização das Nações Unidas

PAA – Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar PAT – Programa de Alimentação do Trabalhador

PC do B – Partido Comunista do Brasil PCA – Programa Cupom de Alimentação PCPP – Programa de Crédito Produtivo Popular PDC – Partido Democrata Cristão

PDT – Partido Democrático Trabalhista

PETI – Programa Erradicação do Trabalho Infantil PGRR – Programa de Garantia de Renda Mínima PIB – Produto Interno Bruto

PL – Partido Liberal

PLANFOR – Plano Nacional de Educação Profissional PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNAA- Programa Alimentar de Acesso à Alimentação PNRA – Plano Nacional de Reforma Agrário

PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. PPA – Plano Plurianual

PPS – Partido Popular Socialista PPV – Pesquisa sobre Padrões de Vida PR – Partido da República

PRATO – Programa de Ação Todos pelo Programa Fome Zero . PROCERA – Programa de Crédito para a Reforma Agrária PRODEA – Programa de Distribuição de Estoques de Alimentos PROGER – Programa de Geração de Renda

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PRONINC – Programa Nacional de Apoio às Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares

PRWORA – Personal Responsibilty and Work Opportunities Reconciliation PSB – Partido Socialista Brasileiro

PSDB – Partido Social Democrático Brasileiro PT – Partido dos Trabalhadores

PTB – Partido Trabalhista Brasileiro

PUC-RJ – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PV – Partido Verde

RMI – Renda Mínima de Inserção SAL – Agentes de Segurança Alimentar SAS – Secretaria de Assistência Social

TANF – Temporary Assistance for Needy Families UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro UnB – Universidade de Brasília

UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas

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Introdução, 14

Capítulo 1: Aspectos teóricos e metodológicos, 25 1.1. Questões teóricas, 31

1.1.1. Referencial da política pública, 31 1. 1.2. Lógica incremental, 34

1. 1.3. Comunidades epistêmicas, 36 1. 2. Questões metodológicas, 39

1. 2.1. Pesquisa de campo, 43

Capítulo 2: Antecedentes do Programa Fome Zero (1991-2001), 45 2.1. Programas de transferência de renda, 60

Capítulo 3 – Construção do Programa Fome Zero (2002-2003), 69 3.1. Condicionantes do Fome Zero, 72

3.2. Equipe de transição (outubro de 2002 a janeiro de 2003), 83 3.3. Programa Fome Zero, 90

Capítulo 4 -- Programa Bolsa Família (2003-2004), 107 4.1. Ideias do processo de unificação dos programas sociais, 108 4.2. Débâcle do Fome Zero, 116

4.3. Grupo de trabalho da unificação (abril a novembro de 2004), 124 4.4. Programa Bolsa Família, 137

Capítulo 5 – Ideias e referencial do Programa Fome Zero, 142 5.1. Ideias da esquerda católica, 143

5.2. Ideias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 146 5.3. Os pragmáticos, 152

5.4. Os especialistas em Segurança Alimentar, 163 Considerações finais, 170

Referências, 184 Anexos , 209

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I

NTRODUÇÃO

No livro La nueva era de las desigualdades, Fitoussi e Rosanvallon (1997) argumentam que a questão social tem sido abordada em termos que combinam três grandes perversões da política moderna: a confusão da política com os bons sentimentos, o gosto pela política espetáculo e a simplificação dos problemas. Os autores mostram que, na França, houve o deslocamento do foco do problema da desigualdade social, passando de uma análise global do sistema social para um enfoque centrado no segmento mais vulnerável da população, os excluídos, quando o social passou a ser visto como remédio para as consequências mais escandalosas do econômico (FITOUSSI; ROSANVALLON, 1997). A focalização nos excluídos representou, assim, uma simplificação da questão social, que passou a ser vista como atrelada, essencialmente, a problemas econômicos.

Simplificar o entendimento do social significa adequar a interpretação da questão social às finalidades políticas dos governantes, seja por razões de racionalidade política ou finalidades pragmáticas. Em qualquer caso, significa que ideias diferentes da interpretação original do problema entraram em jogo, e, sua sobrevivência irá depender do nível de politização do issue em questão, da dinâmica burocrática de sua gestão e da força dos sistemas de ideias envolvidos. O sistema de ideias articula interesses e influencia o curso da ação política envolvendo racionalidades ou sistemas de representação, que “[...] comandam a maneira pela qual uma época, um país ou grupos sociais, conduzem sua ação e encaram o seu futuro” (ROSANVALLON, 1995, p. 24), situação que resulta da permanente reflexividade da sociedade.

A análise de como as ideias e os interesses influenciam as políticas integra o campo da Sociologia Política, disciplina que orienta a presente pesquisa. O desenvolvimento dessa disciplina a partir dos anos 1970, retomou o interesse pela história das ideias e os trabalhos sobre forças políticas e sistemas políticos multiplicaram-se.

Giovanni Sartori (1970) destaca o estudo das ideologias como objeto da Sociologia Política e distingue dois sentidos que o conceito pode assumir. Um primeiro considera a ideologia como um conjunto difuso de valores, crenças ou ideias associadas às condições sociais dos indivíduos e constitui sua visão de mundo. As ideias configuram aspectos da situação social dos atores. Outro é o sentido adquirido pelo conceito enquanto ideologia política, ou um conjunto estruturado e coerente de ideias que orienta a ação política e contém um comportamento voluntário e racional (SARTORI, 1970).

Reis (1988) esclarece que essa distinção [...] “permite falar de um contraste entre o social em geral, tomado como a esfera do dado, do substrato, do `adscrito´, e o político, tomado

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como a esfera do voluntário e do deliberado” (REIS, 1988, p. 2). Nossa perspectiva considera o sentido da ideologia política como orientadora da ação política.

Uma das possibilidades da análise das políticas públicas é identificar as ideias e os referenciais compartilhados por seus formuladores, abordando processos cognitivos, relações causais, soluções, símbolos e imagens de um determinado contexto histórico (CAMPBELL, 2002). No âmbito das políticas públicas, as ideias que orientam a política podem adquirir o formato de comunidades políticas (policy network), coalizões de defesa (advocacy coalitions), transferência de políticas públicas (policy learning), comunidades epistêmicas, entre outros. Em todos esses formatos as ações se estruturam em torno de frames que constituem o universo cognitivo dos formuladores e definem a relação entre eles, e a estrutura de significados da ação. A decisão sobre políticas públicas são tomadas com base nesses referenciais que formam uma representação coletiva da realidade, universo no qual os atores agem como tradutores desse referencial ou empreendedores políticos.

Os interesses “[...] se revelam através da produção de quadros interpretativos do mundo [...]” (MULLER, 2004a, p. 3), sendo que a interpretação do problema e o discurso sobre ele configuram formas de interferir na realidade e, por consequência, os objetivos da política são definidos a partir dessas representações. As ideias têm importante efeito tanto nas decisões individuais, como nas demandas que se apresentam ao Estado. Valores, crenças e atitudes sobre o mundo e a sociedade afetam a forma pela qual os indivíduos interpretam seus interesses e influenciam as políticas públicas.

O referencial de uma política é constituído de um conjunto de prescrições que dão sentido a um programa político, definindo critérios de escolha e modos de designação dos objetivos. Entretanto, as ideias contidas no plano dos enunciados não são, necessariamente, transpostas de forma idêntica para a ação; os recursos políticos, técnicos e institucionais irão influenciar a fidelidade dessas ideias. Quando o referencial não é construído a partir de ideias consistentes, as políticas poderão ter objetivos ambíguos, bons sentimentos, intenções e ideologias diversas (MULLER, 2004a). Nesse caso, embora a política não seja forçosamente menos efetiva, sua continuidade poderá ser comprometida se o nível de inconsistência for muito profundo ou acomodar interesses muito conflitantes.

Nosso interesse recai sobre o embate das ideias na interpretação de um determinado problema por parte dos governos, tema que tangencia a questão da coerência decisória das políticas públicas. Entendemos que um governo expressa coerência decisória quando as políticas por ele formuladas, respeitam os pressupostos ideológicos contidos em seu programa, constituindo assim,

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um fluxo razoavelmente racional e coerente de políticas sociais e econômicas. Vale lembrar que nem sempre existe racionalidade na formulação das políticas.

A racionalidade atribuída a uma determinada política, por exemplo, pode ser de natureza mítica e representar a objetivação da experiência em relação a uma determinada concepção de Estado, isto é, representar uma imagem ou um símbolo mítico como uma realidade que não pode ser negada ou criticada. O mito entendido como expressão simbólica de uma realidade empírica (Cassirer, 2003). Ou, então, a política pode apresentar algum grau de ambiguidade ao corresponder a uma situação em que há muitas formas de pensar sobre as mesmas circunstâncias e, como podem não ser reconciliáveis, criam-se imprecisão, confusão e stress (ZAHARIADIS, 2003). De acordo com o autor, quando o processo político contém ambiguidade, os objetivos dos participantes tornam-se, frequentemente, obscuros e as exigências temporais forçam a tomada de decisões sem a clara formulação das preferências. Nesse caso, as decisões podem ser facilitadas pela opacidade (opaqueness), e a imprecisão de objetivos torna-se uma maneira de enfrentar demandas políticas complexas e conflituosas (2003). Weick (2001), por outro lado, afirma que na política, a ambiguidade difere da incerteza: enquanto essa última se refere à inabilidade de prever um evento de maneira precisa, à incerteza, à ignorância ou à imprecisão, a ambiguidade implica na ambivalência de conteúdo.

Neste trabalho, pretendemos identificar as ideias contidas no referencial valorativo que orientou a política de combate à fome e à pobreza no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006) do Partido dos Trabalhadores (PT) – o Programa Fome Zero1. A

formulação e a evolução desse Programa foram marcadas por conflitos e ambiguidades em decorrência das várias visões de como enfrentar a pobreza, originárias de militantes do PT, de movimentos sociais e de técnicos do governo. Houve divergências entre as percepções do problema da fome e da miséria, das alternativas em tratá-las e das instituições responsáveis por implementar as soluções definidas.

O primeiro objetivo é reconstituir os fatores que contribuíram para que essas ideias confluíssem para um determinado campo decisório de ações de combate à fome e à pobreza – inicialmente, o PT e, posteriormente, o núcleo do governo Lula da Silva –, destacando a natureza polissêmica do Fome Zero. O segundo objetivo é buscar identificar se, entre esse elenco de ideias, algumas prevaleceram na constituição do referencial interpretativo da política formulado nos primeiros anos do governo e por quais motivos.

A hipótese central é a de que o referencial normativo do Programa Fome Zero foi

1 Programa Fome Zero foi criado, em 2003, pelo Governo Federal, em substituição ao Programa Comunidade Solidária,

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influenciado por visões fragmentárias e contraditórias sobre o tratamento da pobreza e da fome no País, sendo esse caráter polissêmico, um dos motivos que viabilizaram sua implementação. Entretanto, o Fome Zero foi perdendo força à medida que foram se intensificando as críticas ao Programa por parte de diferentes setores da sociedade e do próprio governo. O controle político do Programa passou, então, a atender a uma visão mais liberal e pragmática de enfrentamento à pobreza, o que resultou na criação do Programa Bolsa Família no final de 2003, em substituição ao Fome Zero.

A equipe econômica do governo buscava garantir a maior racionalidade aos gastos públicos e criticava o excesso de gastos do Fome Zero; os membros do governo e do Partido dos Trabalhadores consideravam que o fracasso do Fome Zero comprometeria a reeleição do presidente Lula da Silva em 2006, e os representantes da Igreja criticavam o assistencialismo do programa. A criação do Bolsa Família neutralizava as pressões políticas e econômicas internas e externas e garantia ações mais eficazes contra a pobreza.

A escolha de uma política social geralmente responde ao cálculo de custos e benefícios para o governo e para diferentes segmentos sociais. Nesse processo, são calculadas as dificuldades de implementá-la, os benefícios sociais, os interesses contrários e os custos políticos e sociais. O Bolsa Família era a opção de política social de transferência de renda que atribuía continuidade e coerência à política macroeconômica ortodoxa do novo governo, tendência já presente na campanha eleitoral, de 2002, vista na Carta ao Povo Brasileiro (LULA DA SILVA, 2002), e no aval dado por Lula, ao último acordo do governo Fernando Henrique Cardoso com o Fundo Monetário Internacional.

Vale enfatizar que algumas características das políticas sociais de transferência de renda apresentam grande potencial de influência em decisões eleitorais. Como por exemplo, o Executivo define os critérios de elegibilidade para os beneficiários e as áreas geográficas de maior cobertura. Logo, a política de transferência de renda acaba sendo, mais facilmente, identificada ao governo do que ao sistema institucional que a faz funcionar e transcende o governo. O Bolsa Família foi um componente político importante para a reeleição do presidente Lula em 2006, o qual se recuperava da crise política do Mensalão2, e funcionou como um recurso para lidar com as contradições entre a

democratização política e a liberalização econômica enfrentadas por seu governo.

A presente análise é pautada pela abordagem compreensiva que busca reconstruir a forma como os atores elaboram a compreensão dos problemas e orientam sua ação. Significa “[...] desenhar a árvore dos impasses e das possibilidades que estrutura implicitamente seu horizonte”

2 Nome dado ao escândalo de corrupção política, objeto da Ação Penal nº 470, movida pelo Ministério Público (MP),

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(ROSANVALLON, 1995, p, 6). Tentar reconstruir as ideias presentes na elaboração do Programa Fome Zero implica analisar a evolução de seus sentidos a fim de compreender como foi possível criar um consenso ambíguo em torno do combate à pobreza, com a expectativa de identificar o referencial do Programa desde o seu primeiro esboço, em 1991, até sua substituição pelo Bolsa Família em 2004.

Reconstituir a lógica decisória envolvida na formulação de uma política é uma tarefa árdua. Em primeiro lugar, porque o ato decisório é um processo, e não um ato isolado, sendo que os fluxos decisórios ocorrem em diferentes arenas. Em segundo lugar, as decisões políticas resultam de ações, nem sempre, racionais e, nem mesmo, solucionam os problemas propostos uma vez que as ideias originais, poucas vezes são as mesmas impressas na ação final.

Charles Lindblom (1979) foi o pioneiro em sugerir que as escolhas políticas seguem um padrão sequencial e incremental a partir de uma dada situação, na qual os atores realizam análises incompletas da realidade em um ambiente limitado. Lindblom formulou uma teoria alternativa ao modelo da escolha racional do processo político caracterizado pela barganha e pelo compromisso com os interesses dos decisores, a que chamou de modelo incremental, no qual as decisões representam mais o que é politicamente possível do que o desejável. Reis (1988) complementa que a racionalidade é um atributo da ação e está associada à sua eficácia, que por sua vez, está relacionada ao controle e ao processamento de informação.

A racionalidade da ação política estará presente sempre que o comportamento dos atores for intencional. Mas outros fatores interferem nessa racionalidade, como os arranjos constitucionais e o desenho do sistema político. Alguns países concentram as decisões no poder executivo e na burocracia pública (presidencialismo), outros atribuem mais poder decisório ao legislativo e ao judiciário (parlamentarismo). No caso brasileiro, a análise das políticas públicas deve considerar os padrões de interação entre Presidente da República, membros do Congresso e demais atores que interferem nesse jogo. Em função da pressão eleitoral, o Presidente se vê obrigado a negociar a pauta política do seu governo com o Legislativo.

Uma das principais dificuldades encontradas no desenvolvimento deste trabalho, foi o fato de o objeto de análise não ser de fácil identificação. Admitir a existência de um quadro de referência sobre a fome e a pobreza do Programa Fome Zero implica em aceitar que as ideias e valores dão base para a legitimidade da política. Isto é, que o quadro normativo dos atores sobre uma determinada situação de fome e miséria que pretendiam mudar, é o ponto de partida de um processo de busca de hegemonia interpretativa da realidade social e econômica. Hall fortalece esse argumento afirmando que os formuladores de políticas, normalmente, trabalham com um

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framework ou referencial de ideias e padrões que especificam, não apenas os objetivos e os instrumentos da política, mas, também, a natureza dos problemas.

A teoria de Muller (2004a) converge para uma conclusão semelhante quando afirma existir uma relação entre a dimensão cognitiva e as políticas públicas, que é mediada pelo conceito de referencial definido como uma imagem da realidade social construída. As obras L´état em Concret, de Padioleau (1982) e L´État en action: politiques publiques et corporatisme, de Bruno Jobert e Pierre Muller (1987), importantes representantes da vertente francesa da análise das políticas públicas, revelam a visão sociológica do Estado visto como uma “montagem de políticas públicas, razoavelmente ajustada, mas de racionalidade questionável” (MULLER; SUREL, 1996, p. 97), em detrimento da noção de máquina dominante da sociedade.

Os formuladores de políticas públicas podem interpretar diferentemente o problema da pobreza: como produto da ineficiência administrativa do Estado, da injustiça social, do demérito individual, da concentração de renda, entre outros. Na perspectiva do Fome Zero, a pobreza era entendida como consequência do modelo econômico concentrador de renda e da concentração fundiária, ideias que tinham origens na matriz discursiva do PT. Esse matriz era orientada pela lógica dos movimentos sociais, por princípios de autonomia política e democracia direta, anti-institucionalismo e anticapitalismo. O ideário petista era um pouco difuso, sem um referencial teórico nítido, com elementos do discurso católico progressista – especificamente, o que constituiu a Teologia da Libertação –, cuja base era um sentimento solidário de natureza comunitária (Ricci ,

2004).

No caso do Fome Zero, não era possível encontrar uma solução consistente e unívoca para o problema da pobreza e da fome no País, em função das diferentes interpretações do problema e o status de eficiência econômica atribuído pelo governo às políticas sociais. A interpretação unidimensional da pobreza como sendo um produto da ineficiência alocativa do mercado, prevaleceu sobre interpretações mais favoráveis à redução efetiva da desigualdade e da pobreza. Além disso, a mudança de referencial do Fome Zero em direção às ações de transferência de renda, representou uma tentativa de minimizar essas contradições internas e dar maior racionalidade ao programa com a criação do Programa Bolsa Família, em 20043.

No Capítulo 1, são apresentadas as referências teóricas orientadoras do trabalho. Sob a perspectiva da análise cognitiva das políticas públicas, examinamos como as ideias influenciam a elaboração de uma política pública, que, por sua vez, tende a variar de acordo com as instituições, networks, condicionantes sociais e econômicas, escolha racional, ideias e conhecimento. Longe de

3 O Programa Bolsa Família foi instituído pelo Governo Federal, pela Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004,

regulamentado pelo Decreto nº 5.209, de 17 de setembro de 2004, alterado pelo Decreto nº 6.157 de16 de julho de 2007.

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qualquer pretensão, mas empenhados em nos manter fiel à perspectiva teórica eleita, buscamos reconstruir as ideias presentes à época da elaboração do Fome Zero a fim de compreender como foi possível criar um consenso ambíguo em torno do combate à pobreza no País. Partimos da perspectiva de que, embora, parte dos formuladores do Fome Zero tivessem a mesma origem político-partidária, diferentes ideias influenciavam suas ações, articulavam interesses, e representavam distintas origens societais. São apresentados, também, o método utilizado para a elaboração da pesquisa e as principais mudanças metodológicas.

No capítulo 2, são mostrados os principais momentos da trajetória histórica da política de combate à fome e a pobreza entre os anos de 1991 a 2002, período de intensa mobilização popular em prol da consolidação da democracia, da ética na política e contra a corrupção, contra a miséria e a desigualdade. Pretende-se analisar as ideias disseminadas por movimentos políticos e sociais como a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, liderada por Herbert de Souza, o Betinho, em 1993. As propostas do Governo Paralelo do Partido dos Trabalhadores em 1991, a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA)4, em 1993, e

a implementação da Rede de Proteção Social pelo presidente Fernando Henrique, em graus diferenciados, delinearam o referencial valorativo do Programa Fome Zero.

No período analisado, houve dois momentos decisivos no processo de formulação do Programa Fome Zero: a proposta contra a fome e a pobreza apresentada pelo Governo Paralelo do Partido dos Trabalhadores, em 19915, e o movimento Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e

pela Vida, em 1993. Essas referências são importantes, pois representaram esforços societais em colocar o problema da fome na agenda política e, ao fazê-lo, contribuíram para fortalecer um ethos de solidariedade, humanidade e justiça social no País, transposto para o Fome Zero. Outros fatores que influenciaram o Programa foram a elaboração do Mapa da Fome: Subsídios à Formulação de uma Política de Segurança Alimentar, pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA, 1993). Essa iniciativa culminou na elaboração do Plano de Combate à Fome e à Miséria pelo governo Itamar Franco6; na disseminação de princípios da Igreja Católica progressista, como 4 O CONSEA foi criado durante o governo Sarney e durou de 1993 a 1994, quando foi extinto por Fernando Henrique

Cardoso, que criou, em substituição, o Conselho da Comunidade Solidária. Esse era um instrumento de articulação entre governo e sociedade civil, na proposição de diretrizes para as ações de alimentação e nutrição. Esse Conselho coordenava diferentes programas, como os da Alimentação Escolar, o Bolsa Família, a Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar, a Vigilância Alimentar e Nutricional, entre outros; foi um órgão complementar na execução do Programa Fome Zero.

5 O Governo Paralelo (1990-1992) foi criado após as eleições presidenciais de 1989, com a derrota de Luis Inácio Lula

da Silva. Era uma coalizão de partidos de esquerda e um dos poucos exemplos do shadow cabinet na América Latina, com o objetivo de apresentar propostas alternativas de políticas ao governo Fernando Collor de Mello. O primeiro ministro paralelo foi Carlos Nelson Coutinho.

6O Mapa da Fome: subsídios à formulação de uma política de segurança alimentar (IPEA, 1993) foi coordenado por

Anna Maria Peliano; já o Plano de Combate à Fome e à Miséria, de acordo com Takagi (2006), foi coordenado pela ministra da Secretaria de Planejamento, Orçamento e Coordenação, Yeda Crusius, e contou com a colaboração de

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solidariedade, voluntariado e suprapartidarismo por meio da Ação da Cidadania, e nas demandas por segurança alimentar e reforma agrária, por parte dos movimentos sociais, principalmente, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Desde a década 1980, o movimento vinha defendendo a reforma agrária sob o controle dos trabalhadores da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG); a desapropriação de propriedades com mais de 500 hectares; a expropriação das terras das multinacionais; a extinção do Estatuto da Terra e a criação de novas leis fundiárias com a participação dos trabalhadores (MST, 2004, p. 20).

Outra característica do Programa Fome Zero foi seu viés societal: sua construção gradual ocorreu em diferentes arenas políticas, com destaque ao Fórum de Segurança Alimentar; Instituto Cidadania; Partido dos Trabalhadores; equipe de transição do governo e CONSEA, em diferentes momentos históricos. Esse fato nos remete a Lindblom (1979), para quem o processo decisório é uma cadeia com deliberações tomadas, em diversas arenas políticas, envolvendo um conjunto de processos desde a formulação à implementação das ações, promovendo a efetivação da política. O Programa Fome Zero não foi gestado, exclusivamente, no interior da burocracia pública, mas foi fruto da mediação entre sociedade e o Estado, sobre o qual, Frei Betto afirmou que “[...] o Fome Zero é um mutirão idealizado pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva e protagonizado pela sociedade civil” (BETTO, 2003, p. 28)7.

A proposta contra a fome e a pobreza chamada Política Nacional de Segurança Alimentar, foi elaborada pelo Instituto Cidadania em 1991. Se, do ponto de vista técnico, a proposta configurava o embrião do Programa Fome Zero, do ponto de vista político, coube ao movimento Ação da Cidadania Contra a Miséria e Pela Vida mobilizar a sociedade para o problema da fome, difundir ideias que relacionavam segurança alimentar e pobreza, e transformar o Programa em bandeira política.

No Capítulo 3, nossa intenção é analisar a construção do Programa Fome Zero, identificando os fatores políticos, institucionais e ideológicos que contribuíram para definir o seu referencial. O processo perpassa o período da eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em outubro de 2002, até o final de 2003, quando houve o acirramento do conflito de ideias sobre Betinho, pelo IBASE; d. Mauro Morelli, bispo da Arquidiocese de Duque de Caxias; Anna Maria Peliano, do IPEA; Denise Paiva, assessora especial do Presidente da República e Josenilda Brant, do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN).

7 Frei Betto é um frade dominicano, amigo pessoal de Lula, que se destacou nos movimentos católicos progressistas,

nas CEBs e na Pastoral Operária, exercendo papel expressivo nas interpretações do socialismo na América Latina, na década 1970. Em sua opinião, os fracassos do socialismo residiam na ausência da participação popular, de organizações capazes de formar revolucionários e da reconquista da democracia formal. Participou da reunião no Instituto Cidadania, na década 1990, em São Paulo, na qual o Governo Paralelo do PT lançou o programa de segurança alimentar e nutricional. Frei Betto exercia uma forte liderança nos movimentos sociais e, o fato de nenhum deles ter rompido com o governo, no período inicial, se deveu principalmente, à sua atuação.

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universalização e focalização no âmbito do governo. Serão analisadas as diferentes concepções de políticas de transferência de renda implantadas no País, que estavam em disputa no processo de criação e implementação do Programa Fome Zero.

Os resultados das eleições presidenciais, de 2002, revelaram o favoritismo do Partido dos Trabalhadores com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva que, logo de início, definiu o combate à fome e à pobreza como prioridades de governo, dando continuidade ao tom da campanha eleitoral, na qual prevaleceu a ideia de que o governo anterior havia “esquecido do social” (SCHWARTZMAN, 2007). O Fome Zero foi a primeira política lançada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e apresentava três eixos centrais de intervenção. O primeiro eixo era a separação entre políticas estruturais (reforma agrária, geração de emprego e renda, previdência social, incentivo à agricultura familiar, bolsa escola e renda mínima); políticas específicas para o atendimento emergencial das famílias (Cartão Alimentação8, cestas básicas, combate à desnutrição materno-infantil, ampliação da

merenda escolar e educação alimentar) e políticas locais, implantadas por governos estaduais, municipais e sociedade organizada, como: restaurantes populares, bancos de alimentos, apoio à agricultura familiar e os Consórcios de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local (CONSAD). O segundo eixo atendia ao compromisso do presidente Lula da Silva com os movimentos sociais, em consolidar a política de segurança alimentar e nutricional, com a recriação do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), extinto pelo governo anterior. O terceiro eixo de intervenção era o Mutirão contra a Fome, iniciativa que promovia a mobilização da sociedade para o combate à fome por meio da articulação entre sociedade civil e Estado e do fortalecimento dos conselhos nacionais e dos Comitês Fome Zero

No Capítulo 4, são destacados os principais fatores que condicionaram o fracasso do Programa Fome Zero como estratégia de redução da pobreza: as dificuldades operacionais de implementação; os conflitos conceituais e ideológicos entre os formuladores dos vários ministérios

8 Partiu de José Graziano a ideia do Cartão Alimentação, inspirada na política do New Deal americano na década de

1930, voltado para enfrentar a ameaça do desemprego, a queda dos salários e a sobra da produção agrícola em consequência da crise econômica de 1929. O Food Stamp era um programa contracíclico, que aumentava nos momentos recessivos da economia e reduzia-se nos de expansão, e era dirigido em maior proporção às famílias pobres. O Food Stamp era um cupom, depois transformado em cartão-magnético, que podia ser trocado por alimentos e eram eficazes por eliminarem o transporte e reduzirem a perecibilidade dos alimentos. Posteriormente, o Food Stamp foi instituído durante o governo do Presidente Kennedy em 1961 em um programa piloto e, em 1964, foi editado o Food Stamp Act que deu início ao programa em diversas áreas dos Estados Unidos, caracterizando um período de grande expansão de programas de transferência de renda monetária e não monetária. Embora os benefícios do programa fossem pagos em vouchers exclusivos para compra de alimentos, esses representavam menos do que os domicílios gastavam com comidas, o que o transformou em um programa de transferência adicional de renda. Seus resultados foram benéficos: houve aumento do peso dos recém-nascidos brancos e negros e, apesar de não ter mulheres gravidas como alvo, o programa fez aumentar o peso dos recém-nascidos. Além disso, esses impactos eram mais intensos nos estados mais pobres dos Estados Unidos. O fato é que o aumento adicional de renda, durante a gravidez, pode melhorar a saúde infantil (ALMOND; HOYNES; SCHANZENBACH, 2011).

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envolvidos; as pressões da equipe econômica em garantir que o problema social atendesse à racionalidade; a eficiência dos gastos públicos e as intenções eleitorais de reeleição do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2004. Apresentamos o processo da construção do Programa Bolsa Família e os conflitos decorrentes de diferentes estratégias de combate à pobreza e à fome. O período analisado abrange desde o ano de 2003, o primeiro ano do governo Lula da Silva, até 2004, último ano de vigência do Programa Fome Zero, quando o governo decidiu unificar os programas de transferência de renda. O arranjo institucional escolhido para gerir o Programa envolvia vários ministérios setoriais coordenados pelo Ministério Extraordinário da Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA), que, por sua vez, não tinha força política suficiente para intervir nos rumos das diferentes pastas, ou mesmo, estrutura organizacional capaz de implementá-lo de forma eficiente. Desde o início da implementação do Fome Zero em 2003, instalou-se um embate no núcleo do governo sobre a forma de adequar a política de estabilização financeira e corte de gastos e a ampliação dos gastos sociais para financiá-lo. Entretanto, as ideias que o fomentaram eram anteriores.

O conflito normativo, no âmbito do governo, foi intensificado com a evolução do Programa Cartão Alimentação, originalmente, uma política específica do Fome Zero, chamado também de Cupom Alimentação e, posteriormente, de Programa Nacional de Acesso à Alimentação (PNAA). O programa transferia renda para famílias beneficiárias por meio de um cartão alimentação para adquirir alimentos, à exceção de bebidas alcoólicas, refrigerantes e cigarros, à semelhança do programa americano Food Stamp (INSTITUTO CIDADANIA, 2001). A ideia era vincular a transferência de renda à alimentação para induzir a demanda por alimentos e dinamizar a economia local, a partir do aumento da circulação de moeda e do fortalecimento da produção municipal de alimentos. O Programa Cartão Alimentação passou a galvanizar o conflito na disputa pelo referencial do Programa Fome Zero. A ideia do Cartão Alimentação foi discutida, no início do governo, pela equipe de transição para solucionar o problema da seca no Nordeste e da falta de recursos do Programa Bolsa Renda, voltado para atender emergencialmente às famílias atingidas pela estiagem na região do semiárido. Como era emergencial e temporário, a proposta da equipe foi expandir o Programa Cartão Alimentação para as famílias da região que já recebiam o benefício do Bolsa Renda, para que não houvesse a interrupção dos benefícios para cerca de um milhão de famílias. Esse tema e analisado no Capítulo 2.

O Programa Fome Zero teve vida curta e sua evolução refletiu as inconsistências e ambiguidades das proposições do governo, o qual tentava conciliar a política macroeconômica com investimentos em políticas universais e de redistribuição de renda. Entretanto, a ideia de assegurar a estabilidade para garantir o crescimento econômico e, então, implementar ações sociais parecia

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inconsistente, considerando-se que a política econômica limitava o investimento público em políticas universais, já que a elevação da meta de superávit primário levaria ao contingenciamento dos recursos previstos no orçamento.

No Capítulo 5, apesentamos as origens das ideias dos formuladores do Programa Fome Zero e que convergiam para a urgência da erradicação da fome e da pobreza no País, mas divergiam quanto à intensidade das reformas estruturais, o modus operandi e a amplitude da inclusão social pretendida. Essas ideias obedeciam mais ao discurso humanitário e ao da filantropia dentro de uma lógica que subordinava as políticas sociais aos ajustes econômicos e às regras de mercado. Ao longo da pesquisa, foi possível identificar quatro matrizes de pensamento que influenciaram o referencial do Fome Zero, sendo que três delas eram originárias do próprio PT e representavam diversos movimentos sociais e ideários politicamente reformadores.

O ethos do modelo originário de formação do PT e os atores constitutivos dos grupos formadores do partido eram sindicalistas; lideranças dos movimentos sociais urbanos e rurais; militantes católicos, sobretudo, das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs); militantes da esquerda clandestina e parlamentares do Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Apesar da importância dessas quatro matrizes de pensamento para a formulação original do Fome Zero, nos limitamos a analisar as ideias que caracterizaram dois grupos principais: o dos economistas e pragmáticos que insistiam na necessidade de dar maior racionalidade aos gastos públicos, e o dos especialistas em segurança alimentar simpatizantes do desenvolvimentismo. A justificativa para tal seleção foi a constatação de que o conflito entre as ideias defendidas pelos dois grupos terminou por delinear a evolução da política social do primeiro ano do governo Lula da Silva. O pensamento pragmático tomou corpo a partir da reorientação ideológica ocorrida no governo do PT ao final de 2003, e que já vinha desde a transição do governo na direção de uma política social mais pragmática e eficiente. A visão desenvolvimentista tentava moldar a política social com suas premissas transformadoras e havia vigorado no interior do PT desde a primeira versão do Fome Zero no Instituto Cidadania, em 1991 e, posteriormente com a vitória presidencial de Lula da Silva em 2002.

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C

APÍTULO

1 – A

SPECTOSTEÓRICOS EMETODOLÓGICOS

Um aspecto da realidade social torna-se objeto de política pública por um processo socialmente mediado e construído, o qual depende da visão de mundo de quem o interpreta. Dessa forma, o reconhecimento de um problema a ser tratado por determinada política e a formulação de respostas, resultam da disputa de ideias entre atores envolvidos nesse processo de reconhecimento. São as diferentes visões de mundo e interpretações da realidade que geram os conflitos em torno das decisões sobre políticas públicas.

As ideias têm importante efeito tanto nas decisões individuais, como nas demandas que se apresentam ao Estado. Valores, crenças e atitudes sobre o mundo e a sociedade afetam a forma pela qual os indivíduos interpretam seus interesses e influenciam as políticas públicas. Os indivíduos concebem os problemas que inspiram suas demandas por ações governamentais, por meio desses prismas ideacionais.

Peter John (1999, p. 15) apresenta, de maneira sintética, o papel das ideias na análise política.

Mais do que atores racionais perseguindo os seus interesses, é a interação de valores, normas e diferentes formas de conhecimento que caracteriza o processo das políticas [policy process]. [...] Os sistemas de ideias constroem os interesses dos tomadores de decisões. A ação política refere-se à linguagem [is about language], que é um sistema de significação através do qual as pessoas constroem o mundo [...]. [Tradução nossa].

O processo de produção das ideias também revela os atores que as constroem e como elas são institucionalizadas em políticas públicas. Entendemos por ideias “[...] um conjunto de representações, quadros de análise e de esquemas de interpretação diversos, que fazem sentido através da sua encarnação em comunidades de atores específicos” (FOUILLEUX, 2000, p. 278).

Ao centrar a análise em ideias materializadas em conjuntos de atores, o propósito é identificar a articulação entre ideias, instituições e interesses, dimensões geralmente pouco integradas em análises da abordagem cognitiva. Compreendemos que os interesses são construções sociais que mobilizam crenças e representações, de modo que, para defender seus interesses, o indivíduo assume a necessidade de antes construir representações sobre o objeto (JOBERT; MULLER, 1987).

Marx (1986) afirma que ideias, preconceitos, ideologias ou teorias são elementos constitutivos da realidade e constitutivas de determinadas práticas ou práxis. Para os autores, a produção de ideias, de representações consciência, está entrelaçada à atividade material e ao

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intercâmbio material. Expomos nossa concordância com essa tese sobre a origem das ideias, mas, nossa proposta não é discutir a origem, mas sim, investigar o papel que as ideias produzidas exercem no plano da ação, e quais ideias alcançam ascendência sobre o referencial de uma política pública. Entendemos que o processo político se realiza no plano das ações, representações ou ideologias que fazem parte do conjunto das ações empreendidas na disputa pelo poder político. Essas ações não são práticas autônomas, mas têm caráter relacional e definem o campo da disputa pela hegemonia das representações, imagens, valores e crenças.

Sob essa perspectiva, pretendemos examinar como as ideias influenciam a elaboração de uma determinada política pública, que, por sua vez, constitui uma variável dependente que muda de acordo com a variável independente: instituições, networks, condicionantes sociais e econômicos, escolha racional, ideias e conhecimentos. A formulação da política refere-se ao processo de propor soluções para resolver problemas que são percebidos e interpretados enquanto tal. Na busca por soluções, são analisadas as ações consideradas, tecnicamente, capazes de tratar ou corrigir o problema, mas, também, ações julgadas politicamente aceitáveis e administrativamente viáveis. As políticas públicas constituem-se em um nível de interpretação da atividade política, e essa dimensão ideacional de análise é conhecida como abordagem cognitiva ou normativa, por destacar a importância dos valores, das ideias e das representações na análise das políticas públicas. Howlet, Ramesh e Perl (2013, p. 127) afirmam que a interpretação de um problema é um processo, por vezes, nebuloso que não leva a definições precisas, o que torna a identificação de soluções mais difícil e, ainda que os policy-makers reconheçam a existência do problema, talvez não tenham um entendimento comum de suas causas e consequências. Por isso, segundo os autores, a busca por uma solução política, geralmente, é polêmica e sujeita a pressões que impedem uma análise mais racional dos cursos possíveis de ação. A questão central é que ao interpretar um determinado problema, os atores usam filtros ou mapas de ação mentais formados por um conjunto de ideias, visões de mundo e crenças, nem sempre compartilhadas. Compreender esses mapas mentais, as experiências que os atores envolvidos carregam no processo de formulação de políticas e os contextos em que operam, pode ajudar a explicar por que alguns cursos de ação foram preferidos.

O esforço em analisar o conjunto de ideias que deram origem ao Programa Fome Zero tem como referência teórica a abordagem cognitiva das políticas públicas. A reconstrução desse processo se pautou pela tentativa de compreender o campo histórico e reconstruir a forma como os atores elaboram a compreensão dos problemas e como orientam sua ação; significa “[...] desenhar a árvore dos impasses e das possibilidades que estrutura implicitamente seu horizonte” (ROSANVALLON, 1995, p. 6). Longe de qualquer pretensão, mas empenhados em nos manter fieis à

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perspectiva teórica eleita, buscamos reconstruir as ideias presentes à época da elaboração do Fome Zero, a fim de compreender, como foi possível criar um consenso com tantas contradições em torno do combate à pobreza no País.

A vertente cognitiva de análise de políticas públicas floresceu, principalmente, na França na década 1980, estimulada por um grupo de pesquisadores da Universidade de Grenoble, cuja abordagem das políticas públicas utilizava variáveis normativas, frequentemente negligenciadas, a partir do uso de matrizes normativas designadas de paradigmas, de sistemas de crenças ou de referencial. Contudo, não se pode falar na existência de uma escola que adote essa perspectiva, uma vez que diferentes autores, em distintos tempos e lugares, destacaram o peso desses elementos cognitivos no universo das políticas.

O paradigma de análise de políticas públicas estruturado em torno do modelo francês, também conhecido como análise da ação pública, tem seus elementos centrais nos conceitos de referencial, ideias, conhecimento ou cognição e a ação pública é a forma com que a sociedade constrói os problemas coletivos, apontando respostas, conteúdos e processos para poder abordá-los (THOENIG, 1999).

Embora existam diferentes abordagens normativas, o ponto comum entre elas é o foco nas representações mentais reveladas nos discursos dos atores e no processo de interpretação dos problemas, e conduzem à construção de alianças, coalizões e conflitos políticos no âmbito da ação pública. As inflexões nas políticas públicas resultam, com frequência, das mudanças que se operam nesses referenciais, paradigmas ou sistemas de crenças.

Entretanto, esta perspectiva de análise apresenta lacunas, como a inexistência de uma definição clara do conceito de ideia por nós identificada. A vertente tem recebido algumas críticas notadamente quanto à falta de clareza da noção de referencial e a sua não aplicabilidade a todas as políticas públicas. O referencial é utilizado como sinônimo de ideias, representações sociais e ideologia. Por sua vez, Massardier (2008) alude que a noção de referencial não seria cabível na análise de políticas públicas que apresentam elevada fragmentação dos atores, onde a ação pública é policêntrica, dada a dificuldade de estabilização de um referencial (caso das redes de política pública). Entendemos que as ideias são construídas pelos atores de acordo com seus interesses, identidade, relações de poder que os constrangem e as regras do jogo que os regem (instituições formais e informais no sentido de North (1991)).

Outro aspecto que merece atenção é a posição crítica que a perspectiva cognitiva assume em relação à coerência das intervenções do Estado e de suas políticas, enquanto elementos dotados de racionalidade. Ao recusar a concepção de um Estado como ator unitário, racional e com preferências claras, o modelo cognitivo busca identificar as variáveis que, dentro e fora do Estado,

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atuam na formulação de políticas, e pontuam os limites da racionalidade dos sistemas decisórios (JENKINS-SMITH, 1988).

Finalmente, a perspectiva cognitiva não concebe as ações governamentais como objeto central de análise, a qual não se resume aos jogos de influência, no âmbito das relações interinstitucionais. O Estado não é visto como máquina dominante da sociedade, mas, montagem de políticas públicas razoavelmente ajustadas de racionalidade questionável, ocorrendo, com frequência, uma incoerência relativa das intervenções do Estado (HASSENTEUFEL; SMITH, 2002).

O ceticismo revelado em relação à racionalidade decisória transporta a análise para a dimensão cognitiva da ação pública, e concebe as políticas públicas como matrizes definidoras de visões de mundo, princípios de ação, prescrições metodológicas e práticas entre os atores que a compartilham. Essas políticas são quadros cognitivos de interpretação do real, nem sempre coerentes, mas, mais ou menos duráveis, que balizam o debate público e a formulação das políticas públicas.

Os principais autores da vertente cognitiva na França são Pierre Muller e Bruno Jobert da Escola de Grenoble, e Yves Surel, Alain Faure, Gilles Pollet e Philippe Warin e Pierre Rosanvallon. Os autores Jobert e Muller (1987) criaram o conceito de referencial, em contraposição às análises políticas de inspiração marxista, que consideram o Estado como um produto da estrutura social e dos conflitos de classe. Para os primeiros, o referencial da política pública é constituído por pressupostos e prescrições que lhe dão sentido e definem critérios de escolha e objetivos, de forma relativamente autônoma, em relação aos conflitos sociais ou interesses (HASSENTEUFEL; SMITH, 2002).

Nos Estados Unidos, os expoentes são John Kingdon e Paul Sabatier. Em oposição às teorias da escolha racional que pressupõem os interesses, como os fatores determinantes da ação, Sabatier (1998) procurou mostrar que os conflitos originados entre os grupos de atores, não resultam apenas dos seus interesses, mas, também, dos sistemas de crenças compartilhados, que são considerados variáveis intervenientes.

O canadense Peter A. Hall (1993) retomou a ideia de que a política encontra suas fontes na incerteza (men collectively wondering what to do) para entender a relação entre as ideias e a formulação de políticas. Desenvolveu, então, a noção de paradigma, originalmente formulado por Thomas Kuhn (1962), que diz respeito aos conhecimentos, ideias e crenças que interferem na formulação e no desenvolvimento das policies. O autor concebe o paradigma como um quadro de ideias que especifica, não apenas, objetivos e instrumentos da política pública, mas, a natureza dos problemas que ela deve enfrentar. Hall mostra que os conflitos de interesses que emergem durante o processo de formulação das políticas são, não raras vezes, determinados pela lógica normativa

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inerente ao paradigma, o que pode interferir nas políticas públicas. Com o conceito de paradigma, Surel (2000) aspira alcançar um poder explicativo superior ao das abordagens pluralistas, que veem as políticas públicas, exclusivamente, como resultado do confronto de interesses.

A formulação do Programa Fome Zero ocorreu em um contexto favorável às ideias de redução da fome e da pobreza no Brasil, e do enfrentamento dos obstáculos estruturais para eliminar o problema, em decorrência da intensa mobilização política. Havia um national mood favorável às propostas de reformas estruturais (agrária, previdência, tributária, eleitoral, entre outras) e aceitação de políticas sociais universalizantes. Por outro lado, o padrão de intervenção estatal baseado no gerencialismo, que resultou da reforma do Estado brasileiro, em 1995, pregava prevalência do mercado, melhor alocação de recursos e aumento da eficiência produtiva, teses que enfraqueciam a capacidade estatal de formular políticas públicas. A sociedade civil demandava reformas estruturais e o Estado oferecia políticas residuais e focalizadas: a responsabilidade pretendida pelo Estado era cuidar dos segmentos à margem do mercado. Nessa perspectiva, a focalização tornou-se um componente da eficiência do sistema público, e passou a orientar o gasto social e confinar a política social a grupos específicos. Era um caráter reparador que tentava restituir o acesso efetivo aos direitos universais. A trajetória do Programa Fome Zero reflete essa ambiguidade das intenções do Estado entre a orientação do mercado e a dos direitos, durante os anos iniciais do primeiro governo Lula da Silva que, aparentemente, tentava criar condições políticas para implementar um programa social politicamente aceitável e administrativamente viável.

Segundo Zahariadis (2003), a política tende a revelar algum grau de ambiguidade quando existem muitas formas de pensar sobre as mesmas circunstâncias e, como essas podem não ser reconciliáveis, criam-se imprecisão, confusão e stress. O autor aponta que quando o processo político contém ambiguidade, frequentemente, os objetivos dos atores se tornam obscuros e as pressões temporais forçam decisões sem uma clara formulação das preferências. Nesse caso, as decisões podem ser facilitadas pela opacidade (opaqueness), quando a imprecisão dos objetivos transforma-se em uma estratégia para enfrentar as demandas políticas complexas e conflituosas, ainda de acordo com Zahariadis.

A diferença entre ambiguidade e incerteza na política é apresentada por Weick (2001): a incerteza refere-se à inabilidade de prever um evento de maneira precisa devido à incerteza, ignorância ou imprecisão, e a ambiguidade implica na ambivalência do conteúdo da política.

Charles Lindblom (1979) formulou teoria alternativa ao modelo da escolha racional do processo político, que chamou de modelo incremental, com o intuito de representar o processo decisório das políticas públicas, de forma realista, baseado em observações de como ele realmente ocorre. O modelo de comparações sucessivas limitadas ou incrementalismo desarticulado coloca a

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política pública como um processo político, em detrimento da primazia da técnica, e incremental, uma vez que os atores que formulam a política têm interesses e valores próprios, que interferem no seu desenho, cujas decisões são influenciadas pela limitada capacidade analítica e pelo reduzido tempo disponível para tomar a decisão.

O incrementalismo descreve as decisões que privilegiam a barganha e o compromisso com os interesses envolvidos, resultando em decisões politicamente possíveis e não, desejáveis. Lindblom (1979) sugere que as escolhas políticas seguem um padrão sequencial e incremental, a partir de uma situação existente, fundamentadas em análises incompletas, e em ambientes limitados. Como as informações sobre o objeto da política são limitadas e incompletas, a decisão restringe-se a poucas alternativas e a uma sequência de tentativas, erros e revisão das tentativas. Tendemos a concordar com a perspectiva apresentada por Lindblom, segundo a qual, a lógica incremental que orienta o processo decisório da política pública segue um caminho complexo, sem princípio nem fim, com limites incertos e metas, quase sempre, contraditórias.

Tendo por referência esse quadro, tentamos reconstituir a lógica decisória do Programa Fome Zero, que se mostrou uma tarefa árdua. Em primeiro lugar, porque o ato decisório é um processo – e não um ato isolado no tempo e no espaço – que ocorre em diferentes arenas e direções. Segundo, as decisões políticas nem sempre são as mais racionais, ou solucionam os problemas propostos, uma vez que as ideias originais, poucas vezes, são impressas na ação final; ao contrário, podem ser alteradas ou substituídas por outras. Mesmo assim, a reconstrução da trajetória do Fome Zero baseou-se no método da periodização, que é uma perspectiva macro-histórica que considera as combinações de probabilidades objetivas, sequências e padrões de ações com significado em um determinado momento histórico, conforme Katznelson (1997). A periodização que está associada às preferências, vincula a estrutura e o agente e tenta reunir o individualismo e o holismo para compreender a história, enquanto dimensão mediada pela imaginação institucional (KATZNELSON, 1997, p. 272), Ao situar atores, categorias e networks, ao longo do tempo, a periodização fornece as macro fundações para a ação humana e privilegia as preferências, em momentos de mudanças históricas, contribuindo para compreender como são resolvidas as várias possibilidades políticas em um determinado momento.

Para fins de análise, utilizamos três conceitos disponíveis na literatura sobre políticas públicas que, no nosso entendimento, dão sentido a um conjunto mais amplo de fatos analisados: o referencial das políticas públicas, as comunidades epistêmicas e o modelo incremental de decisão política. Embora formulados por diferentes autores e em diferentes contextos, esses conceitos ou categorias teóricas transcendem a dimensão temporal e espacial e revelam-se instrumentos analíticos flexíveis, que se adequam a diferentes perspectivas.

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Sabemos que conceitos não são neutros e integram visões de mundo, e frequentemente estão associados a vertentes teóricas, no caso, da Sociologia Política ou da Ciência Política. Entretanto, o que há de comum entre os conceitos citados é o fato de retratarem uma forma de pensamento político que vincula as ideias à ação política, o subjetivo ao objetivo ou o logos a práxis. As prescrições do pensamento político são normativas, cuja função é direcionar a ação em determinado sentido, e não a de representá-la enunciativamente, o que é função da ideologia. Esses conceitos estruturam e delineiam o marco teórico da análise e serão explorados a seguir.

1.1. QUESTÕESTEÓRICAS

1.1.1. Referencial da política pública

O conceito de referencial da política pública é essencial para compreender a nossa análise, uma vez que, com base nesse conceito, desenvolvemos o argumento de que as ideias, contidas no referencial do Programa Fome Zero, enquanto política de combate à pobreza e à fome, formavam um todo pouco consistente e, muitas vezes, contraditório. O conceito de referencial converge para a tese defendida por Peter Hall (1993), segundo a qual, os formuladores de políticas públicas normalmente trabalham com um framework ou um referencial de ideias e padrões que especificam, não apenas os objetivos e os instrumentos da política, mas também a natureza dos problemas. De acordo com Hall (1993, p. 279)

[...] esse framework está embutido na própria terminologia através da qual os decisores comunicam o seu trabalho, e é influente precisamente porque grande parte dele é dada como certa e refratária ao escrutínio como um todo. Vou chamá-lo de paradigma da política. [Tradução nossa].

O paradigma ou o referencial da política faz a mediação da relação entre a dimensão cognitiva dos atores e a compreensão das políticas, sendo imagem construída da realidade social (MULLER, 1993). A mesma perspectiva analítica encontra-se em Padioleau (1982) e em Jobert e Muller (1987) os quais, de maneira semelhante, pressupõem uma visão sociológica do Estado, entendido como “[...] montagem de políticas públicas, razoavelmente ajustada, mas de racionalidade questionável” (MULLER, 2004a, p. 21), diferentemente da abordagem marxista que vê o Estado como máquina dominante da sociedade. O referencial da política pública é o conjunto de prescrições que dá sentido a um programa político e define critérios de escolha e designação dos objetivos (MULLER, 2004a). Entretanto, as ideias contidas nos enunciados não são necessariamente transpostas de forma idêntica para a ação, uma vez que os recursos políticos, técnicos e

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institucionais disponíveis influenciam o grau de fidelidade dessas ideias. Além disso, quando o referencial não é construído com base em ideias consistentes, as políticas ao qual se referem poderão ter objetivos ambíguos, bons sentimentos, intenções e ideologias diversas (MULLER, 2004a). Nesse caso, embora a política não seja necessariamente menos efetiva, se o nível de inconsistência for muito profundo ou acomodar interesses muito conflitantes sua continuidade poderá ser comprometida.

De acordo com Fouilleux (2000), na dinâmica de construção do referencial, pode ocorrer imposição de um referencial dominante e designação de um grupo de atores que se identificam como seus porta-vozes. Esses são legitimados para emitirem suas próprias interpretações ou traduções do mundo ao exterior. “O processo de tradução confere aos grupos vitoriosos uma forte visibilidade e uma forte legitimidade, tornando-os naturalmente os interlocutores privilegiados para o exterior do fórum” (MULLER, 2004a, p. 281).

Entretanto, a construção de um referencial da política não impede a existência de vozes dissidentes de grupos de atores que o recusam e o desafiam quando não, o desestabilizam.

O Programa Fome Zero era uma política social que ambicionava empreender, tanto reformas mais profundas, como ações imediatas. A dimensão reformista do Programa concentrava-se nas propostas que atendiam às reivindicações das lideranças dos movimentos sociais ligados ao PT e que haviam apoiado a eleição de Lula da Silva - os sem-terra, os movimentos sociais urbanos, particularmente, os sem-teto, os que lutavam contra a alta do custo de vida, as associações de bairros e setores da política de base da Igreja Católica. Esses movimentos mantinham certa desconfiança, em relação às instituições representativas, e pretendiam fortalecer a sociedade civil para participar do processo decisório.

De acordo com Couto (1995, p. 63), esses movimentos combinavam a lógica da autonomia – organização e mobilização da população – com atuação de grupo de pressão sobre o Estado, reivindicando direitos. Já a conclamação da sociedade civil para lutar contra a fome, por meio da mobilização das Pastorais e Comunidades Eclesiais de Base, era um item da pauta da Igreja Católica articulada aos movimentos sociais reivindicativos. As ideias progressistas ancoradas na Teologia da Libertação eram orientadas pelo comunitarismo e o idealismo ético, já presentes no discurso do Betinho na Ação da Cidadania, na década 1990.

Panebianco (1982) argumenta que o modelo originário de um partido político – gênese e formação –, determina, em grande parte, a maneira pela qual ele enfrentará as novas situações. Nas palavras do autor: “Toda organização leva sobre si a marca das suas modalidades de formação e das decisões político-administrativas cruciais operadas pelos seus fundadores, as decisões que modelaram a organização” (PANEBIANCO, 1982, p. 103-104).

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Dessa forma, os movimentos citados acima, contemplavam a solidariedade organizacional e valores de igualdade, e rejeitavam a participação institucional no âmbito da racionalidade estatal (SADER, 1988). Essas matrizes discursivas foram reproduzidas no difuso discurso petista que, segundo Meneguello, era fundado em sentimento solidário de natureza comunitária, um pouco moralista e mais crítico do que propositivo, “[...] pregando um socialismo democrático com novas práticas de participação política, basismo, assembleísmo e novo sindicalismo, sob o manto da democratização da política” (MENEGUELLO, 1989, p. 7).

As pretensões de reforma social, contidas no Programa Fome Zero, tinham raízes na formação do PT, enquanto um partido plural e comprometido com a causa dos trabalhadores, o socialismo e a democracia plena, conforme Carta de Princípios (PT, 1979). O discurso do PT, na década 1980, atendia aos anseios dos movimentos populares por lutas sociais, e representava a visão messiânica e o discurso transformador (GENOÍNO, 2005), que propunham a ruptura com a ordem econômica capitalista, a dependência externa, os acordos com o Fundo Monetário Internacional e os latifúndios. Para tanto, era necessário que os setores populares fossem emancipados, por meio da participação organizada e consciente, e de um novo governo democrático que preparasse as condições políticas e acumulasse forças para a revolução socialista (PT, 1979).

O socialismo petista, na visão de Bittencourt (2009,p. 313), era uma síntese da unidade na pluralidade de culturas, pensamentos e ideais e mostrava que, no PT, conviviam diferentes correntes de pensamento: cristianismo social, marxismo, socialismo não marxista, democracia, doutrinas laicas de revolução comportamental, entre outras, cujo ponto de convergência era o projeto de uma sociedade sem exploração e opressão. Ainda, segundo o autor, o socialismo defendido pelo PT era um projeto coletivo democrático e emancipador, fundado no princípio da solidariedade e da ética, com ampliação das liberdades democráticas e participação das massas no processo político e na gestão econômica, por meio da democracia direta. Essa dimensão utópica e ética do discurso petista foi transposta para o conteúdo do Fome Zero, especialmente, os aspectos relacionados às ações fundadas na expectativa de maior protagonismo da sociedade civil consciente e participativa.

A outra dimensão mais pragmática do PT foi identificada por Ricci (1999) na matriz discursiva do pragmatismo sindical, cuja origem reside na prática do novo sindicalismo que caracterizou a hegemonia sindical urbana metalúrgica e bancária da Central Única dos Trabalhadores (CUT), e que dispunha de um ideário profissional e pragmático de organização e negociação política. Rodrigues (2009, p. 7) identifica essa vertente na composição social do PT, da seguinte maneira.

Referências

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