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SOBRE UM TRATAMENTO PSICANALÍTICO DA PSICOSE NA CLÍNICA INSTITUCIONAL

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE

FERNANDA MARA DA SILVA LIMA

SOBRE UM TRATAMENTO PSICANALÍTICO

DA PSICOSE NA CLÍNICA INSTITUCIONAL

Dissertação de Mestrado

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SOBRE UM TRATAMENTO PSICANALÍTICO

DA PSICOSE NA CLÍNICA INSTITUCIONAL

FERNANDA MARA DA SILVA LIMA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Psicanálise

ORIENTADORA: ANA MARIA MEDEIROS DA COSTA

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Dedico este trabalho a Manoel, Cida, Filipe e Luciano, por sentimentos que não caberiam em palavras.

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AGRADECIMENTOS

A profa. Ana Costa, por me orientar e me acolher no meu desejo de pensar sobre o tema da psicose na clínica institucional.

Ao prof. Luciano Elia, por suas preciosas contribuições tanto na qualificação como também no decorrer das aulas do mestrado.

A profa. Angélica Bastos, por aceitar de pronto meu convite para participar da banca. Para mim se trata de um ótimo reencontro com alguém que pode acompanhar meu percurso no decorrer da época da graduação em psicologia.

A Kátia Álvares, pela doçura e firmeza com que me acompanha em um trabalho tão árduo, seja na clínica seja na escrita.

A Andrea Bastos, por todo o tempo de um trabalho cujos efeitos se fazem sentir, também, na formação de uma analista.

A Maria Luíza, pelo francês e por todo seu incentivo.

Aos amigos, imprescindíveis em minha vida. Em especial, neste momento, a Débora, Valéria, Karla, Rosa, Mariana, Ludmilla, Fernanda M.

A minha família, meu pai, minha mãe e meu irmão, pelo apoio, incentivo e, também, é claro, pela paciência.

Ao Luciano Silva, por todo o carinho.

Ao NAICAP, pelo “espaço de possibilidades”, onde foi meu primeiro lugar de trabalho, ainda na forma de estágio.

Ao CAPSi Pequeno Hans, pelo “tempo de permanência” que foi curto mas deixou marcas significativas.

As crianças e adolescentes e, também, aos parceiros da clínica do CAPSi Monteiro Lobato, por um trabalho ali realizado desde o seu nascimento.

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Resumo

Esta dissertação parte da leitura de Sigmund Freud e do ensino de Jacques Lacan para situar a posição do sujeito psicótico enquanto resposta ao seu Outro louco. Em seguida, apresentaremos a tese de que o trabalho com “alíngua” pode orientar um tratamento psicanalítico com estes sujeitos. Por fim, abordaremos algumas formulações acerca da prática orientada pela psicanálise em âmbito institucional, desenvolvida em um Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil.

Résumé

Cette dissertation part de la lecture de Sigmund Freud et de l´enseignement de Jacques Lacan pour situer la position du sujet psychotique en tant que réponse à son Autre fou. Ensuite, on présentera la thèse selon laquelle le travail avec “lalangue” peut orienter un traitement psychanalytique avec ces sujets. Enfin, on abordera quelques formulations à propos de la pratique orientée par la psychanalyse dans le cadre institutionnel, développée dans un Centre d´Attention Psychosociale pour des Enfants et Adolescents.

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“Uma fala só é fala na medida

exata em que alguém nela crê.” Jacques Lacan

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SUMÁRIO

Apresentação...1

Capítulo I - Algumas Proposições acerca da Psicose...6

I.1 - Alguns desdobramentos das referências lacanianas sobre o lugar da criança no Desejo Materno e sobre a Função Paterna ...11

I.2 - A criança psicótica e seu Outro...22

Capítulo II - As Formações Humanas no Campo das Psicoses...29

II.1. - A função da fala na psicose e alíngua...37

Capítulo III - Sobre uma direção de trabalho institucional com psicóticos...50

III.1 - A direção de um trabalho psicanalítico na instituição...52

III.2 - Apresentação de uma situação clínica...69

Considerações finais...82

(9)

O desejo de trabalhar com o tema relacionado à psicose na clínica institucional se deu a partir de minha inserção nos diversos dispositivos de saúde mental da rede pública e privada, na cidade do Rio de Janeiro. Este percurso se iniciou em 1999 no curso de graduação em Psicologia, quando pude estagiar em algumas instituições; em seguida no Instituto Municipal Philippe Pinel, numa pós-graduação com um formato de residência em saúde mental, e, posteriormente, como membro de uma equipe técnica de saúde mental, por quatro anos, no Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil Monteiro Lobato.

No decorrer deste trajeto trabalhei em alguns dispositivos de tratamento tais como um ambulatório de saúde geral em que a psicologia se constituía como uma, entre outras, na série das especialidades existentes; um hospital-dia, um Centro de Atenção Psicossocial, como também, em uma enfermaria e em uma emergência, ambas de saúde mental.

Este percurso aponta para a sustentação de um desejo de trabalho clínico com sujeitos psicóticos numa instituição, e por isso que agora, no mestrado, temos como proposta trabalhar sobre uma possível direção de tratamento psicanalítico com estes sujeitos. Sendo que para este momento faremos um recorte e nos propomos a desenvolver nossa pesquisa elegendo um determinado dispositivo que é o Centro de Atenção Psicossocial infanto-juvenil.

Nossa proposta é de que esta pesquisa no campo da psicanálise — como toda e qualquer pesquisa neste campo — desempenhe o exercício de articular a teoria com a clínica. Assim não se trata de fazer caber a psicanálise na psicose, mas sim de justamente produzir um laço entre a clínica e a teoria. Esta idéia se orienta pela afirmativa de Freud que sustenta que em psicanálise a atividade de pesquisa e o tratamento coincidem1.

Na clínica com psicóticos nos deparamos com algumas questões que sempre acompanham nosso trabalho. Na clínica estivemos diante de alguns psicóticos que

1

FREUD, S. (1912) Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. V. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

(10)

nos mostravam o quanto a presença de um outro ao seu lado pode ser de puro horror. E, portanto, não suportavam um olhar ou uma fala a eles endereçada. Por isso que uma questão se colocava: afinal como construir uma direção de tratamento para estes sujeitos, que têm uma forma tão particular de estar no mundo?

Inclusive vale a pena também destacar que alguns dos sujeitos psicóticos não fazem uso da função fala. Alguns nunca pronunciaram nenhuma palavra, apenas alguns sons ininteligíveis e outros puderam estabelecer alguma fala que em dado momento de sua história de vida foi rompida. Diante disso, outra questão também se impunha a nós: qual tratamento possível para estes sujeitos que não fazem uso da fala?

Enfim, como pensar um trabalho possível para estes sujeitos que se mutilam, se agridem, gritam, saem correndo diante de uma fala endereçada a eles, ou mesmo um olhar dirigido a eles? Se a presença de um outro ao seu lado pode causar transtorno e sofrimento, como então conduzir um tratamento? Como, então, tratar esses sujeitos que não falam e não suportam nossa presença?

Para não ficarmos paralisados em nossas questões nos colocamos ao trabalho de pensar sobre um tema tão complexo e rico que é a clínica da psicose. Estamos avisados de que este é um campo que se abre a controvérsias e contradições, no que se refere às formalizações teóricas e direções de trabalhos clínicos. Entretanto, não temos por objetivo apresentar todas as concepções existentes sobre o tema e conduziremos nossa pesquisa a partir dos ensinamentos de Sigmund Freud, da obra de Jacques Lacan e de seus comentadores.

Para delinear nossa pesquisa dividiremos nosso trabalho em três capítulos que serão estruturados da forma que se segue.

No primeiro teceremos algumas considerações acerca da psicose, uma vez que só a partir disso poderemos pensar sobre uma direção de tratamento. Faremos um percurso de trazer à luz aquilo que da clínica pudemos recolher como testemunho. Estamos nos referindo ao que fenomenologicamente se apresenta: os psicóticos apontam para uma relação muito particular com os objetos (o olhar, a voz, os alimentos, os excrementos), com a linguagem e também com o próprio corpo2.

Estes sujeitos podem se mostrar alheios à presença do outro ou mesmo indicar que não suportam nenhuma presença, olhar ou voz. Alguns recusam radicalmente

2

BAÏO, V. – L’autiste: um psychotique an travail in Preliminaire n.5, Bruxelas: revue de l`Anthénne 110, 1993. p. 68-83.

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qualquer alimento. Podem ficar constipados sem apresentar dor ou mesmo manusear seus excrementos de forma considerada socialmente bizarra. Além disso, muitos não fazem uso da fala, mas, se o fazem, é de muito particular, algumas vezes apenas repetindo a fala do Outro. E em relação ao próprio corpo, algumas vezes chegam a se mutilar, sem que isso pareça causar-lhes sofrimento.

Queremos traçar um percurso que aponte para o estatuto do Outro na psicose que se configura como um Outro invasivo e atormentador. Será a partir da elaboração acerca do estatuto do Outro na psicose que encontraremos balizas para sustentar a tese de que estes sujeitos se posicionam diante desse Outro louco. E todas as manifestações que percebemos são, de fato, uma posição de sujeito.

“Toda formação humana tem, por essência, e não por acaso, de refrear o gozo”3 é uma formulação lacaniana na qual encontramos respaldo para sustentar a tese de

que o psicótico está em trabalho para fazer frente ao seu Outro louco.

Ao abordarmos o estatuto do Outro na psicose, gostaríamos de enfatizar que nisso decorre um trabalho que diz respeito ao sujeito. Dedicaremos algumas palavras acerca da criança psicótica e seu Outro para justamente apontarmos para a causação do sujeito e também para responsabilidade no que concerne à sua posição subjetiva.

No segundo capítulo retomaremos e trabalharemos mais minuciosamente sobre a rica fenomenologia4 com a qual nos deparamos na clínica com psicóticos e que citamos no capítulo anterior. Pudemos construir uma trajetória que nos permite afirmar que as manifestações dos psicóticos constituem uma posição do sujeito diante do Outro. Estamos diante de produções que não carregam em si mesmas um sentido compartilhado socialmente, mas que comportam uma lógica que se sustenta pela posição destes sujeitos diante de seu Outro louco.

Também, neste segundo capítulo, abordaremos o campo da fala e “lalangue” na psicose. Apresentaremos o conceito de “lalangue”5, concebendo-o como a primeira marca do significante no corpo. Esta fala que não é endereçada, esta comunicação

3

LACAN, J. - (1967). Alocução sobre as psicoses da criança in Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p.362. O autor também trabalha com esta formulação num outro texto, a saber: LACAN, J. - (1968). Discurso de clausura de las jornadas sobre psicosis infantil. in MANONNI, M et al. Psicosis infantil. Buenos Aires: Nueva Visión, 1980.

4

BAÏO, V. – L`autiste: um psychotique an travail in Preliminaire n.5, Bruxelas: revue de l`Anthénne 110, 1993. p. 68-83.

5

LACAN, J. - (1972-3). O seminário, livro 20: Mais, Ainda. 2º. ed. Revista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1985. p. 188.

MILLER, J-A. - Os seis paradigmas do gozo. in Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. nº 26/27. Abril/2000. p.101.

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que não comunica nada, serve a que? Do que se trata? Quando uma criança que não fala nada ou fala muito pouco, mas aponta para uma enorme produção de sons que não apresentam qualquer sentido, o que fazer? Pretendemos pensar sobre os efeitos da apropriação de “lalangue” por cada sujeito e, como, a partir daí, pode se estabelecer uma orientação para um possível trabalho analítico com a psicose6.

No último capítulo verificaremos a possibilidade de uma direção de trabalho na clínica institucional com psicóticos, a partir de uma experiência enquanto técnica da equipe de saúde mental em um Centro de Atenção Psicossocial infanto-juvenil. Não se trata de pensar a inserção do psicanalista numa instituição, mas de uma instituição que em seus moldes possa de fato se deixar orientar pelo sujeito partindo do caso a caso para direcionar um trabalho. Não é uma instituição onde só trabalham analistas.

É uma instituição onde trabalham analistas e não-analistas, mas que cada um dos

profissionais estão implicados, não na especialidade de seu saber, mas na especificidade de seu ato. Na radicalidade que isso aponta, afirmamos que não nos referimos à especialidade de cada profissional seja ele médico, psicólogo, musicoterapeuta. Mas que no dispositivo da supervisão, com todos os profissionais presentes, cada um possa, a partir de seu testemunho, recolher os efeitos de seu ato e traçar estratégias que possam nortear o trabalho. Seguindo este caminho, apresentaremos duas orientações de trabalho, sendo que cada uma se refere à particularidade de uma instituição. Uma das instituições é o Núcleo de Assistência Intensiva à Criança Autista e Psicótica (NAICAP), cujo trabalho clínico recebeu a nomeação de “prática entre vários”.7 A outra instituição é o Centro de Atenção Psicossocial infanto-juvenil Pequeno Hans, cujo significante que marca o trabalho sofreu modificação no decorrer do tempo. Vejamos as nomeações seguindo a ordem cronológica: primeiramente, “Clínica-dia como extensão espácio-temporal e estrutural do dispositivo psicanalítico”, posteriormente, “dispositivo psicanalítico

6

HENRY, F. - Lalengua de la transferência em las psicosis. in Miller, J-A y otros. La psicosis ordinária. Buenos Aires. Paidós, 2003. pp 131-158.

7

BAÏO, Virginio. Lês conditions de l’Autre et l’ancrage in: Les Feuillets du Courtil - Point d’ancrage, la création des repères subjectifs en institution. Belgique, nº 18/19, 2000.

ZENONI, A. - Traitement de l´Autre. in: Preliminaire. n° 03. 1991. & ZENONI, A. - Psicanálise e Instituição: a segunda clínica de Lacan. Revista de Saúde Mental do Instituto Raul Soares – Abrecampos - Rede FHEMIG - Belo Horizonte, MG - Ano 1 – v. 1 - n° 0 - 2000.

BAIO, V. - O ato a partir de muitos. in Revista Curinga. Belo Horizonte: EBP-MG, n° 13, set. 1999a. p. 67.

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ampliado na clínica institucional pública do autismo e da psicose infantil”, em seguida, “psicanálise com muitos”, e atualmente, “psicanálise coletiva”.8

Devemos enfatizar que não se trata de uma proposta de um modelo a ser seguido. É antes de tudo o modo pelo qual um trabalho institucional pode vir a operar tendo como baliza a posição destes sujeitos psicóticos frente ao Outro.

Neste capítulo também apresentaremos uma situação clínica de uma criança cujo tratamento se desenvolveu numa instituição. Nos fragmentos clínicos apontaremos para a questão da fala, mas priorizando os efeitos do trabalho com a

“lalangue”.

Esta é a forma como pretendemos construir uma proposta de trabalho que caminha em direção ao título desta pesquisa: “Sobre um tratamento psicanalítico da psicose na clínica institucional”.

8

ELIA, L. - Psicanálise coletiva: as bases científicas da psicanálise e sua aplicação clínica ao campo da saúde mental pública e coletiva. Prociência – Programa de incentivo à produção científica, técnica e artística. UERJ/SR 2/DEPESq-FAPERJ. 2008-2011.

ELIA, L. & SANTOS, K. - Bem-dizer uma experiência. in: MELLO, Marcia & ALTOÉ, Sonia (orgs.). Psicanálise, Clínica e Instituição. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2005. p.107-128.

SANTOS, K. - O Dispositivo Psicanalítico na Clínica Institucional do Autismo e da Psicose Infantil. Rio de Janeiro: Programa de pós-graduação em psicanálise, IP/ UERJ, 2001. Tese (mestrado).

(14)

CAPÍTULO I

ALGUMAS PROPOSIÇÕES ACERCA DA PSICOSE

No encontro com crianças e adolescentes nomeados de psicóticos nos deparamos com algo muito peculiar que atravessa suas existências. Podemos testemunhar que João dá um soco no nariz, fazendo-o sangrar; e isso simplesmente por perceber meu olhar dirigido a ele; Marcus se morde até sangrar quando alguma pessoa da equipe se aproxima dele. Vinicius em relação à alimentação oscila entre duas posições radicais: ou não se alimenta ou apenas toma líquidos sem aceitar quaisquer alimentos de outra consistência.

Estes são apenas alguns fragmentos do testemunho que estes sujeitos nos dão de sua peculiar relação com os objetos (a voz, o olhar, os alimentos, os excrementos), com a linguagem e também com seu próprio corpo9. Se por um lado parecem ignorar quem estiver por perto como se estivessem alheios a tudo e a todos, por outro, podem não suportar a presença do outro, um olhar ou uma fala dirigidos a eles. Como já mencionado acima, estes meninos podem recusar radicalmente qualquer alimento. E, também, ficar constipados sem apresentar dor ou mesmo manusear de forma bizarra seus excrementos. São meninos que apresentam particularidades também em relação

à linguagem, pois repetem a fala de uma outra pessoa exatamente como escutaram

(inclusive mantendo a entonação de voz) e em alguns casos podem se referir a si mesmos na terceira pessoa. E em relação ao próprio corpo, estes sujeitos psicóticos muitas vezes se mutilam sem que isso pareça causar-lhes sofrimento ou dor.

Estranheza é lugar comum àqueles que se deparam com estas crianças e adolescentes que esboçam o quanto uma simples presença, ou mesmo um olhar, ou uma voz dirigidos a eles podem ser da ordem do horror.

Estamos indicando o que se apresenta como uma particularidade no funcionamento destes sujeitos e de forma nenhuma atribuímos a ele um valor que

9

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situaria como algo da ordem do déficit, de uma falha, de uma incapacidade ou inaptidão. Pelo contrário, apontamos para o que há de enigmático nestes sujeitos.

Justamente por isso é possível afirmar que é a clínica com psicóticos que nos coloca radicalmente diante do fato de que o sujeito não está dado a priori. É por isso que Jacques Alain Miller afirma que “(...) a psicose é questão de sujeito — pois ela assim mesmo nos conduz aos confins de sua produção”10.

Quando abordamos a questão do sujeito somos impelidos a nos remeter também ao campo do Outro. Os termos sujeito e Outro não apresentam uma relação unívoca e linear, entretanto não há sujeito sem o Outro. O campo do Outro sempre está colocado quando também abordamos o campo do sujeito.

No texto “Projeto para uma psicologia científica”11, Sigmund Freud aborda o tema do desamparo fundamental com o qual o ser humano se defronta assim que nasce já que ele depende de um outro para sobreviver. Freud afirma que é necessário que se realize uma ação específica para que se opere a descarga de tensão colocada pela fome, por exemplo. Mas esta ação específica não pode ser desempenhada pelo próprio bebê, sendo necessário que alguém o faça. É nestes termos que Freud trabalha com a idéia de desamparo fundamental, uma vez que o bebê depende que uma pessoa o tome em cuidados. Neste momento, o bebê precisa de um outro que se ocupe dele. Como esta função, muitas vezes, é exercida pela mãe, Lacan formalizou a idéia de que o Outro primordial é encarnado pela mãe, pois é ela quem referencia o bebê ao Outro da linguagem.

“(...) um outro falante que, de alguma forma, toma o infans aos seus

cuidados. Tradicionalmente, a mãe encarna esse lugar. Lacan atribuiu a ela a função de Outro primordial na medida em que desempenha a função de transmissor da referência ao Outro da linguagem, diante do qual o infans advirá sujeito”12.

10

MILLER, J-A. – Produzir o sujeito? in Matemas 1. Campo Freudiano no Brasil Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. p. 160.

11

FREUD, S. - (1895) Projeto para uma psicologia científica in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

12

ARAÚJO, M. E. - Autismo e constituição do sujeito. Rio de Janeiro: Programa de pós-graduação em psicanálise, IP/ UERJ, 2006. Tese (mestrado). p. 20.

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É a mãe, que tomando o bebê em seus cuidados, dará sentido aos seus sons,

gestos, movimentos e gritos. Então é este Outro primordial que transformará o grito deste bebê em demanda e lhe dará um sentido conferindo-lhe o valor de mensagem. Sendo assim, o grito, os sons ou os gestos apenas assumem valor de apelo quando um Outro lhe dá um sentido.

“Quando a mãe responde aos gritos do bebê ela os reconhece

constituindo-os como demanda, mas o que é mais importante é que os interpreta no plano do desejo da criança de estar perto dela, desejo de tomar-lhe algo, desejo de agredi-la, pouco importa. O que é certo é que por sua resposta, o Outro a dar a dimensão de desejo ao grito da necessidade, ao investir na criança, é de início resultado de uma interpretação subjetiva, função do desejo materno, de seu próprio fantasma”13.

Se a ação específica da qual o bebê depende está também na dependência de que seja feita sua leitura, então é isso que faz com que o Desejo do Outro “seja a bússola que orienta a constituição do sujeito”14.

“Assim, o grito corresponde ao primeiro movimento constitutivo do

sujeito: o corte que, do lado do infans tem função primordial de inscrever o sujeito na linguagem ao instaurar uma relação de dependência (...). É somente após o movimento interpretativo executado pelo desejo do Outro que aquilo que era puro vazio, pura escansão, assume o estatuto de palavra significativa e faz do grito um apelo15.

Ora, se a atribuição de significação ao que o bebê produz, seja sons, gestos, movimentos e gritos vem do campo do Outro primordial, então o sujeito se constitui a partir do Desejo do Outro. Esta é a marca que faz a passagem de infans para sujeito inaugurando a entrada do sujeito no simbólico.

Para que uma mãe, enquanto o Outro primordial, atribua significações aos sons, gestos, gritos do seu bebê é preciso que o bebê ocupe um determinado lugar na sua

13

LACAN, J. – (1961-62) O seminário, livro 9: a identificação. Inédito, aula 18. 02/05/62.

14

CIACCA, A. Di - A prática entre vários in Lima, M & ALTOÉ, A. (orgs.) Psicanálise, Clínica e Instituição. Rio de Janeiro: Rio Ambiciosos Livraria e Editora Ltda, 2005.

15

ARAÚJO, M. E. - Autismo e constituição do sujeito. Rio de Janeiro: Programa de pós-graduação em psicanálise, IP/ UERJ, 2006. Tese (mestrado). p. 23.

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economia libidinal, e, portanto, esteja investido psiquicamente por sua mãe. Fazendo uma articulação com a formulação lacaniana, podemos afirmar que é o mesmo que remeter ao lugar do bebê no desejo da mãe.

Freud em “Sobre o Narcisismo”16 aborda o tema do lugar do bebê na economia libidinal dos pais como “sua majestade: o bebê”, sendo, portanto, deste lugar que recebe todos os investimentos libidinais. E será este lugar que trará conseqüências para a constituição psíquica. Encontraremos alguma aproximação desta idéia freudiana nos escritos de Lacan: “(...) A frase foi começada antes dele, foi começada por seus pais (...)”17. O que quer dizer que o bebê mesmo antes de nascer já é falado por seus pais, ou seja, já é investido libidinalmente.

Não se trata de afirmar que a criança deve ser amada e não odiada. Não se trata de que os pais devam agradá-la ao máximo sem que ela possa vivenciar qualquer frustração, como abordavam alguns dos psicanalistas pós-freudianos. É mais radical que isso. É preciso que os pais se enderecem ao bebê e que possam supor e, portanto, atribuir significações ao seu grito, gesto, movimento, som. Isso significa dá ao bebê um determinado lugar.

Mas incide aí uma especificidade no que se refere à clínica com psicóticos. Então, o que se passa nesta clínica? O que testemunhamos na clínica com crianças psicóticas é que no trabalho de escuta das mães o que se apresenta diz respeito a uma posição de nada saber ou tudo saber sobre seu filho. Na verdade o que se apresenta aí são os dois extremos de uma mesma posição da mãe em relação ao seu filho. Quando uma mãe porta nenhum saber ou todo saber em relação ao seu filho é o mesmo que afirmar que esta mãe não confere aos sons, movimentos e gestos de seu filho o estatuto de demanda e apelo.

Temos o testemunho clínico de um dia em que Leci chorava muito, sem parar, e diante disso sua mãe falou: “Ela faz barulhos o tempo todo, grita, geme e nunca tem silêncio em casa e não há um momento de paz em casa. Ela é isso aí o tempo todo, não muda!”. A fala da mãe de Leci remete à impossibilidade de supor que estes gritos, gemidos e choro sejam um apelo, uma demanda. Para esta mãe eram tão simplesmente gritos, gemidos e choro que nada significavam. Dar-lhes algum sentido não era possível.

16

FREUD, S. - (1914) Sobre o Narcisismo. in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

17

LACAN, J. - (1957-1958). O Seminário, livro 05: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. p. 192.

(18)

Em outra situação, entrevisto a mãe na presença do filho, Eric. Apresento-me e me dirijo aos dois. A mãe rapidamente se interpõe e diz: “Não adianta falar com ele. Ele não entende nada, não!”. Vale destacar que esta mãe riu por eu me dirigir ao seu filho. Para ela minha posição foi tão absurda que lhe causou risos.

Agora traremos um testemunho de uma outra posição, aquela que apresenta todo o saber de uma mãe sobre seu filho. Maurício chegou com sua mãe ao serviço de saúde mental. Maurício entrou enquanto sua mãe aguardava na sala de espera. Alguns minutos depois a mãe me chamou para enfatizar que eu deveria dar água ao Maurício, pois era um dia ensolarado, ele estava com sede. Minha intervenção seguiu da seguinte maneira: “Entendo sua preocupação, pois hoje tá um dia quente. Eu perguntarei a ele se ele está com sede”. Mesmo que eu tentasse incluir o saber da mãe sobre seu filho, esta mãe reagiu com muita raiva e gritou comigo enfatizando que eu não precisava falar nada com ele, apenas deveria dar-lhe água.

Se “a fala só é fala na medida em que alguém nela crê”18, faz-se necessário que

à criança seja endereçada uma demanda particularizada. O que não ocorre como

testemunhamos na clínica com os psicóticos. “Isso fala dele, antes que isso se enderece a ele, e é lá que ele se apreende”19. Qual conseqüência para isso? A ausência de uma mensagem dirigida ao bebê que o particularize é o mesmo que não oferecer significação às manifestações do bebê. Podemos então afirmar que esta mãe confere a estas manifestações um estatuto que não o articula em relação ao campo da demanda. Para esta mãe os sons, os movimentos, os gritos da criança não são tomados por ela como um apelo. Decorre disso que “(...) o autista sai da demanda, do circuito das trocas, o que é escandalosa e emblematicamente representado por sua recusa à mais forte das demandas: o falar”20.

Estas crianças e adolescentes nos dão provas de que qualquer demanda dirigida a elas é da ordem do horror. Olhar para elas pode causar-lhes tamanho sofrimento a ponto de se machucarem. Falar com elas pode produzir o mesmo efeito.

Queremos apontar para uma questão que se coloca do lado da mãe que é para a criança o Outro primordial. Se para a mãe é preciso que a criança tenha um

18

LACAN, J. (1953-1954). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1983. p. 272.

19

LACAN, J. - (1960) Posição do inconsciente in Escritos. Rio de Janeiro: Campo Freudiano no Brasil: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 849.

20

ELIA, L. - O sujeito demasiado visível do autismo. Trabalho apresentado na I Jornada Clínica da sede Rio do Laço Analítico Escola de Psicanálise: O autismo tratado pela clínica psicanalítica, realizada no dia 11 de dezembro de 2004 no Museu da República (Palácio do Catete), Rio de Janeiro. p. 07.

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determinado lugar em sua economia libidinal para que possa inferir significações aos gritos de seu bebê, então a pergunta que se coloca é sobre o lugar do filho no desejo da mãe.

I.1 - Alguns desdobramentos das referências lacanianas sobre o lugar da criança no Desejo Materno e sobre a Função Paterna

Para abordar o lugar de um filho no desejo da mãe, vamos trabalhar com os temas relacionados ao complexo de Édipo e o complexo de castração, na menina e no menino, já que entre um e outro incidem algumas diferenças. Além disso, também será importante avançar em algumas formulações lacanianas que foram se modificando ao longo do tempo.

De início é importante destacar que a castração irá apontar para uma marca da diferenciação sexual.

Segundo Sigmund Freud21, o caminho percorrido pela menina difere do percorrido pelo menino, pois enquanto para o menino o declínio do Édipo se coloca pelo complexo de castração, a menina entra no Édipo por causa da castração.

O primeiro objeto de amor tanto do menino quanto da menina é a mãe. Então de início o menino já se encontra no Édipo, mas por medo de perder seu órgão se volta para o pai e com ele se identificará. Assim acontece o declínio do Édipo, no menino, por conta do medo da castração.

Já a menina, desde o início é devota a sua mãe, entretanto, mais tarde, com ela se revoltará ao constatar nela a ausência do pênis e em si mesma a castração. Isso a levará ao seu pai que então será objeto de seu amor. A menina faz um caminho diferente do menino: ela entra no Édipo pela castração.

Segundo Freud em “A Organização genital infantil”22 o que está em jogo tanto para a menina quanto para o menino é apenas a consideração de um órgão genital, o masculino. Sendo que a primazia não é do órgão genital, e sim do falo.

21

FREUD, S. (1923) A Organização genital infantil. in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

FREUD, S. (1924) A Dissolução do Complexo de Édipo. vol. XIX. in ibidem

FREUD, S. (1933) Novas conferências introdutórias sobre psicanálise – Conferência XXXIII: Feminilidade. vol. XXII. in ibidem.

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Diante do fato de não poder receber de seu pai o que deseja, isto é, o falo, a menina fará uma equivalência simbólica de pênis para bebê e assim desejará ter um filho. Portanto devemos enfatizar que este é o lugar de um bebê na economia libidinal de sua mãe: o falo.

O falo não é o pênis. O falo, aqui, recebe o estatuto de objeto que falta à mulher e, portanto, viria a preenchê-la. Sendo assim, na relação de uma mulher com sua falta, a criança se situa como o falo que viria a completá-la. “(...) Se a mulher encontra na criança uma satisfação é, muito precisamente, na medida em que encontra nesta algo que o satura”23.

A questão para a criança é sempre dirigida ao Desejo da Mãe. Mas o que vem a ser o Desejo da Mãe? “Esta mãe insaciável, insatisfeita, em torno de quem se constrói toda a escalada da criança no caminho do narcisismo, é alguém real, ela está ali e, como todos os seres insaciados, ela procura o que devorar, quaerens quem devoret (...)”24.

Como a criança poderá se posicionar diante do insaciável Desejo da Mãe? Na verdade a relação da criança com sua mãe não é dual, pois está presente também um outro elemento, o falo.

Num primeiro tempo a criança se vê assujeitada ao Desejo da Mãe, uma lei insana da mãe que submete à criança aos seus caprichos. A criança é tão prematura e dependente já que necessita de um outro sem o qual sequer sobreviveria, e é a mãe que muitas vezes encarna a função de cuidar da criança. É importante deixar claro que a mãe está submetida a uma ordem simbólica, mas diante da criança se posiciona de forma onipotente, uma vez que tudo o que se refere à criança é mediado pela mãe. Como já mencionamos não se trata de abordar a relação mãe-bebê. Há um terceiro termo presente: o falo. Neste tempo, é com a instauração da dialética do ser que a criança se vê confrontada. A questão é ser ou não ser o objeto de desejo da mãe, acreditando que para agradar sua mãe bastaria se identificar com o objeto que a preenche, o falo, e assim tamponar a falta da mãe.

Posteriormente, a partir da castração, o pai intervém como privador em seu duplo sentido: priva a mãe de seu objeto fálico e a criança de seu objeto de desejo.

22

FREUD, S. (1923) A Organização genital infantil in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

23

LACAN, J. - (1956-1957). O seminário, livro 04: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. p. 71.

24

(21)

Com isso, a criança se vê obrigada a renunciar sua posição de objeto de desejo da mãe. O pai mediatiza um desejo que não é mais de um objeto que a criança viria a encarnar, mas de um objeto que o pai é suposto portador. A dialética se estabelece, então, entre ter ou não ter o falo. Neste tempo, a lei insana da mãe será regulada pela lei do pai.

Se num primeiro momento o pai aparece velado, posteriormente, torna-se o representante da lei. Por isso afirma-se que o Desejo da Mãe será submetido a uma Lei para além da própria mãe, para além de seus caprichos. Assim é que o significante Nome do Pai virá em substituição ao significante do Desejo da mãe25. Decorre disso a metáfora paterna.

“De que se trata na metáfora paterna? Há, propriamente, no que foi

constituído por uma simbolização primordial entre a criança e a mãe, a colocação substitutiva do pai como símbolo, ou significante, no lugar da mãe. Veremos o que quer dizer esse no lugar da, que constitui o ponto axial, o nervo motor, a essência do progresso representado pelo complexo de Édipo”26.

Este conceito, o Nome do Pai está articulado ao Édipo. A metáfora paterna, derivada da inscrição no Outro do significante do Nome do Pai, é o que possibilitará ao sujeito uma baliza na existência.

Assim, por um lado, a mãe fica privada do objeto criança que viria a completá-la, tamponando sua falta, por outro, a criança é interditada do gozo da mãe. O Nome do Pai opera como um terceiro que cumprirá a função de oferecer significado ao enigma do desejo da mãe: a significação fálica.

O falo possibilita o distanciamento, uma mediação, entre a criança e a mãe. A imagem trazida por Lacan no Seminário, Livro 17, nos mostra sua importância: o falo seria o rolo que impede que a boca do jacaré se feche, portanto é o que a mantém aberta. Sendo o que possibilita um efeito apaziguador na relação do sujeito e o Outro.

O Nome do Pai constitui um operador que permite uma ordenação do mundo em sua dimensão significante, desta forma faz a articulação entre significantes e

25

LACAN, J. - (1956-1957). O Seminário, livro 04: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.

LACAN, J. - (1957-1958). O Seminário, livro 05: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

26

(22)

significados. Esta idéia é citada por Lacan27 como ponto de basta e também por Calligaris28 como ponto de ancoragem. Assim oferece ao neurótico coordenadas simbólicas para se situar na existência, e na partilha dos sexos.

Será, portanto, a inscrição do significante do Nome do Pai, do qual decorre a metáfora paterna, que caracteriza a estrutura neurótica. E se este significante vier a faltar? O Nome do Pai é o significante que por sua foraclusão irá definir a estrutura psicótica enquanto tal.

“É num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, na

foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose” 29.

A foraclusão do Nome do Pai consiste num conceito forjado por Lacan a partir do termo freudiano Verwerfung e será aquilo que caracterizaria a estrutura clínica da psicose enquanto distinta da neurose, como o trecho acima nos aponta. O termo Verwerfung foi cunhado num trecho em que Freud30 relata o caso clínico “Homem dos lobos” que apresenta um episódio de alucinação.

No Seminário 03, “As psicoses”, Lacan nos fala sobre este significante que fôra excluído na psicose: “Trata-se de um processo primordial de exclusão de um dentro primitivo, que não é o dentro do corpo, mas aquele de um primeiro corpo de significante”31.

É possível encontrar uma correspondência em Freud sobre esta formulação de

Lacan. No texto: “Rascunho H”, Freud relata um fragmento clínico em que a paciente apresenta um surto e passa a ouvir as pessoas lhe dizendo o que, de outro modo, ela diria a si mesma. Em seguida, Freud faz a seguinte pontuação: “... o tema permanecia inalterado; o que mudava era a localização da coisa. Antes, tratara-se de

27

LACAN, J. - (1955-1956). O Seminário, livro 03: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2 ed. 1988.

28

CALLIGARIS, C. – Introdução a uma clínica possível das psicoses. POA: Artes Médicas, 1989.

29

LACAN, J. - (1955-1956). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 582.

30

FREUD, S. - (1918 [1914]) História de uma neurose infantil in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

31

LACAN, J. - (1955-1956). O Seminário, livro 03: As psicoses: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2 ed. 1988. p. 174.

(23)

uma autocensura interna; agora, era uma recriminação vinda de fora”32. Sobre este tema, vale trazer uma citação de Lacan: “... tudo o que é recusado na ordem simbólica (...) reaparece no real”33.

Estamos nos referindo ao significante primordial que está ausente, que fôra rejeitado. Estamos, portanto, nos referindo à causalidade significante na psicose.

Jacques Lacan conceituou o significante Nome do Pai como articulado ao

Édipo e decorrente daí, a metáfora paterna. O que resulta desta operação é a

significação fálica. Com isso fica garantido ao sujeito a regulação do gozo do Outro. Assim, numa estrutura neurótica, nos diz Lacan34, a partir da leitura de Freud, que o que cai sob o golpe do recalque tem como destino o seu retorno sob a forma de sintomas, atos falhos, que são as formações do inconsciente. Entretanto, o que é recusado da ordem simbólica, no sentido da Verwerfung terá outro destino. Sem a inscrição do Nome do Pai no Outro e sem a referência significação fálica o sujeito se vê acossado por toda uma sorte de acontecimentos como os distúrbios da linguagem, as alucinações e os delírios, por exemplo. O psicótico fica no lugar de objeto do gozo deste Outro invasor. Reconhecemos neste momento “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida do sujeito”35 e que Freud formulará em termos de desligamento da libido e perda da realidade na psicose.36

Dentre estes fenômenos de que temos testemunho na clínica com a psicose, destacaremos o delírio para então nos reportamos a Freud que em “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia” nos afirma que o delírio é uma tentativa de “auto-recuperação”37. Encontramos uma correspondência sobre este ponto em Lacan que faz referência à ausência da inscrição do Nome do Pai na psicose para destacar o trabalho do delírio como uma suplência ao Nome do Pai, constituindo como uma metáfora que não a paterna, sendo então uma metáfora delirante. Assim o trabalho do delírio faria uma reconstrução do campo da realidade. Dizemos reconstrução, uma vez que aí incide uma diferença entre psicose e neurose,

32

FREUD, S. - (1895) Rascunho H: Paranóia in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.255.

33

LACAN, J. - (1955-1956) -O Seminário, livro 03: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2 ed. 1988. p.21.

34

Idem, Ibidem.

35

LACAN, J. - (1955-1956). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 565.

36

FREUD, S. - (1911) Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

37

(24)

pois segundo Lacan38 a constituição do campo da realidade, na neurose, se estrutura através da fantasia a partir de uma dupla referência: no campo simbólico, a inscrição do Nome do Pai, e no campo imaginário, a significação fálica.

Encontramos no texto: “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”39 a apresentação da metáfora paterna a partir da apresentação do caso Schreber. É um momento importante na obra lacaniana em que a metáfora delirante é apontada como uma construção para fazer as vezes da metáfora paterna ausente.

Num primeiro momento do ensino de Lacan, na década de 50, o Nome do Pai estava atrelado à metáfora paterna mais tarde com a formalização da pluralização do Nome do Pai, o significante Nome do Pai passou a ter como função o enodamento dos três registros: Real, simbólico e o Imaginário. O Nome do Pai passa a ser um significante suplementar, um elo que permitirá a amarração dos três registros, sendo esta uma idéia a ser trabalhada no Seminário 22, “R.S.I”, e também no Seminário 23,

“O Sinthoma”. Com isso, o acento para a função paterna cai sobre a nomeação e a

amarração.

Como já vimos, afunção paterna na década de 50 servia para ordenar todos os significantes fazendo supor um Outro “consistente”, uma vez que os significantes não extrapolariam o campo simbólico. Entretanto, a partir da formulação do objeto a no Seminário 1140, “Os quatro conceitos fundamentais”, na década de 60, Lacan nos aponta para o que haveria de inassimilável pela linguagem. Objeto a remete ao que não é possível de ser simbolizado e assim se aproxima do real. Com isso a linguagem seria estruturalmente comporta por uma falta justamente porque algo escapa à simbolização.

Assim, a função paterna passa a ser referida à inconsistência do Outro, constituindo uma operação de suplência a esta falta estrutural do Outro. Desta forma a inconsistência do Outro é algo com o qual todo falante terá que lidar.

Para a linguagem, por estrutura, é impossível tudo simbolizar. O Outro comporta uma falta estrutural. É na linguagem que nos deparamos com a impossibilidade estrutural de tudo situar no campo simbólico.

38

LACAN, J. - (1955-1956). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

39

Idem, Ibidem.

40

LACAN, J. - (1964). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

(25)

Encontramos no trecho da tese de Rosa Alba Oliveira uma ilustração do que estamos apresentando e a isso se deve a importância de trazer à luz as palavras desta autora:

“A inconsistência do Outro, tomada como um fato de estrutura, produzirá

uma virada decisiva na abordagem do conceito do Nome do Pai. Nesta nova perspectiva, o Nome do Pai deixa de ser um a priori, assegurado para os neuróticos e que ordenaria integralmente o conjunto dos significantes. E a função paterna passa a ser referida à inconsistência fundamental do simbólico, constituindo uma operação de suplência a esta falta significante estrutural. É enquanto uma suplência que o pai, ao mesmo tempo em que irá constituir um princípio de resposta com relação

à ausência de um significante que faria o Outro completo, irá preservar

sua incompletude.”41

Assim, diante destas reformulações do conceito de Nome do Pai temos como conseqüência um novo lugar para o campo da neurose, e também no que se refere à clínica das psicoses na própria teorização lacaniana.

O Nome do Pai ao ser pluralizado destitui o Édipo enquanto único ordenador possível para ancoragem do sujeito na existência. Agora, a função do pai é de enodar os três registros, Real, Simbólico e Imaginário. Lacan assim formaliza:

“(...) quanto àquilo de que se trata, a saber, o atamento do Imaginário, do

Simbólico e do Real, é preciso, essa ação suplementar em suma de um toro a mais, aquele cuja consistência seria de referir-se à função dita do Pai”.42

No Seminário 2243, “R.S.I.”, Lacan apontará como esta função de atamento pode ser efetivar. Dito de outro modo, Lacan nos apresentará a idéia de que os operadores que podem fazer valer a função de atamento são inúmeros.

41

OLIVEIRA, Rosa. – A invenção do corpo nas psicoses: impasses e soluções para o aparelhamento da libido e a construção da imagem corporal. Rio de Janeiro: Programa de pós-graduação em teoria Psicanalítica, IP/UFRJ, 2008. Tese (doutorado). p. 19.

42

LACAN, J. - (1974-1975). O Seminário, livro 22: R. S. I. (inédito), cópia reprográfica. p.31-32.

43

(26)

“(...) quando comecei a fazer o seminário dos “Nomes do Pai”, e que pus,

como alguns sabem, pelo menos aqueles que estavam lá, pus um termo, eu certamente tinha - não é por nada que chamara isso de “Os Nomes do Pai” e não o Nome do Pai, eu tinha algumas idéias da suplência que o campo toma, o discurso analítico que faz com que esta estréia, por Freud, dos Nomes do Pai, é porque esta suplência é absolutamente indispensável que ela tem vez: nosso Imaginário, nosso Simbólico e nosso Real estão talvez para cada um de nós ainda num estado de suficiente dissociação para que só o Nome do Pai faça nó borromeano e mantenha tudo isso junto, faça nó a partir do Simbólico, do Imaginário e do Real”.44

O conceito de função paterna é reformulado quando da elaboração da noção de nó borromeo e a pluralização do Nome do Pai na década de 70. A referência ao nó borromeo remete e ilustra ainda mais evidentemente a função de amarração do pai, o que já estava colocado anteriormente.

“Fará, então do Nome do Pai um suplemento, um elemento suplementar,

quarto círculo que vai atar os três outros (RSI). É aí que poderíamos situar a passagem para o plural, do Nome do Pai aos Nomes do Pai. (...) Efetivamente, se dizemos que a função [do Nome do Pai45] é fazer manter junto, pode-se imediatamente dizer que talvez existam outras maneiras de fazer manter junto além da do viés desse significante”46.

O significante Nome do Pai é então dissociado do Édipo. A pluralização do Nome do Pai (os Nomes do Pai) e a estrutura do nó evidenciam a não predominância de qualquer registro sobre os demais, assim o Real, o Simbólico e o Imaginário ganham o mesmo estatuto.

Vale a pena enfatizar que desde a primeira formulação acerca do Nome do Pai até hoje sua função ordenadora e nomeadora se mantém inalterada. É assim que desde 1955, no Seminário 03, “As psicoses”, Jacques Lacan já havia definido o Nome do Pai como: “anel que faz tudo se manter junto”.47

E mais tardiamente, no Seminário 22, “R.S.I.”, a função paterna continua mantida atrelada à função de nomeação: “(...) reduzo o Nome-do-Pai à sua função

44

Idem, Ibidem.

45

Parênteses incluído por nós.

46

SOLER, C. - Artigos Clínicos. Salvador: Fator, 1991. p. 126-127.

47

LACAN, J. - (1955-1956). As psicoses. O Seminário, livro 03: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2 ed. 1988. p.358.

(27)

mais radical que é a de dar um nome às coisas com todas as consequências que isto importa”48.

Podemos articular a função de nomeação à função de amarração. É justamente a amarração dos três registros que produzirá como efeito a ancoragem do sujeito na existência.

É inevitável mencionar aqui, mesmo que brevemente, o seminário 23, “O

sinthoma”49. É o momento em que Lacan se refere ao trabalho de produzir suplência para a falha no enodamento dos três registros, o que será nomeado de sinthoma.

“A realidade humana define-se, assim, como não tendo nenhuma

existência intrínseca, mas como uma consistência produzida através da construção de um véu tecido de imaginário e simbólico que serve para recobrir o real. Esta construção implica numa contrapartida, que é a localização de gozo. E esta localização procede da função do pai, na forma de uma interdição que coloca em ação a lei simbólica, cabendo a cada sujeito fazê-la operar.

Dentro desta nova perspectiva, podemos afirmar que a função do Nome-do-Pai é a de fazer consistir, para cada sujeito, uma realidade sem existência prévia e que não existe outra escolha senão se servir dele, já que não há amarração a priori dos três registros.

Vemos, assim, que nos anos 70, o Nome do Pai passa a ser relacionado à função de localização de gozo, a ser produzida por cada sujeito mediante o enodamento dos três registros (...).”50

Para Recalcati51, a partir das últimas formulações de Lacan, é possível enfatizar que na clínica das psicoses não se trata de um defeito simbólico, mas, sim, de uma carência de uma operação que viabilize a regulação de gozo que, por sua vez, deixa como possibilidade a construção de uma suplência.

Em sintonia com esta idéia, Maleval52 proporá que o desencadeamento na psicose está relacionado ao confronto do sujeito com a inconsistência do Outro, não

48

LACAN, J. - (1974-1975). O Seminário, livro 22: R. S. I. (inédito), cópia reprográfica. p. 46.

49

LACAN, J. - (1975-1976). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

50

OLIVEIRA, Rosa. – A invenção do corpo nas psicoses: impasses e soluções para o aparelhamento da libido e a construção da imagem corporal. Rio de Janeiro: Programa de pós-graduação em teoria Psicanalítica, IP/UFRJ, 2008. Tese (doutorado). p. 22.

51

RECALCATI, M. – Cínica del vacío: anorexias, dependencias, psicosis. Madrid: Editorial síntesis, 2003.

52

(28)

sendo, portanto, decorrente de uma falha inaugural. A crise seria a falência do que até então pôde operar como uma regulagem de gozo.

Desta forma, não situaremos o sujeito psicótico conferindo a eles uma falha simbólica. Estamos enfatizando o trabalho do sujeito de produzir uma regulação e localização do gozo.

Enfatizando o trabalho de regulação do gozo devemos nos reportar a Lacan53 que afirma que toda formação humana tem por essência barrar o gozo. Com isso podemos entender que as ricas fenomenologias que encontramos na clínica da psicose referem-se às tentativas de criar mediações e balizamentos para ordenar a existência.

Exatamente neste ponto devemos nos remeter ao início deste capítulo quando apresentamos algumas manifestações de que os sujeitos psicóticos nos dão a ver e afirmamos que nossa direção de trabalho consistia em não tomá-las no campo da deficiência, do déficit, de uma falha, de uma incapacidade ou inaptidão. Com isso naquele momento sustentávamos o que haveria de enigmático na posição destes sujeitos. E agora vale a pena enfatizar o que há de produtivo no duplo sentido do termo, seja enquanto produção e enquanto positividade. Dito de outro modo: podemos afirmar que estas manifestações comportam um trabalho, isto é uma produção do sujeito para barrar o gozo. Nisso incide sua positividade.

Para Strauss54, no autismo55 não há o recurso à norma fálica com a qual o neurótico pode se situar na existência, nem mesmo pode lançar mão da metáfora delirante, como na paranóia; então, é por isso que se empenham em se fazerem, a si mesmos, de ordenadores do mundo.

Parece que diante deste Outro que se constitui para eles como intrusivo e avassalador é necessário um trabalho, isto é, um posicionamento de proteção diante do que provém do Outro. Daí decorrer a rica fenomenologia com a qual nos deparamos na clínica com os psicóticos: a ausência de fala, a ecolalia, a relação

53

LACAN, J. - (1968). Discurso de clausura de las jornadas sobre psicosis infantil. in MANONNI, M et al. Psicosis infantil. Buenos Aires: Nueva Visión, 1980. O autor também trabalha com esta formulação num outro texto, a saber: LACAN, J. - (1967). Alocução sobre as psicoses da criança in Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p.359-368.

54

STRAUSS, M. Pour une espécificité de l`autisme. in Revue de l`école de la cause freudienne. Paris, nº. 23, 1993.

55

Não poucos psicanalistas vão supor uma aproximação entre autismo e esquizofrenia de modo que o autismo pertenceria, assim como a esquizofrenia, ao campo das psicoses. Alguns dos trabalhos que podemos citar a esse respeito é Baio (1993), Bruno (1999) e Soler (2002).

(29)

singular com o corpo, o não endereçamento do olhar, os ditos distúrbios alimentares, a necessidade de regular sequencialmente algumas tarefas.

Nossa proposta para esta pesquisa é seguir na direção do que pode ter como efeito esta função de manter junto, enodar. A partir do que Jacques Lacan nos aponta na sua formalização sobre a pluralização dos nomes do pai, seguiremos com a aposta de que um outro conceito, a saber, o sintoma, em sua versão ampliada, que se refere, também, à psicose e não só a neurose. Gostaríamos de avançar em relação à seguinte questão: será que o sintoma pode funcionar como nó “amarrando” os três registros na psicose?

A invenção psicótica é um trabalho de bricolagem do sujeito. Segundo Jacques-Alain Miller: “o sentido do termo “invenção” é (...) o de uma criação a partir de materiais existentes. Eu atribuiria de boa vontade à invenção o valor de bricolagem”56. Angélica Bastos nos oferece subsídios para entendermos melhor esta terminologia:

“O termo é retirado do francês, bricoler, bricolage, e designa uma

atividade construtiva de caráter artesanal e privado. O bricoleur é aquele que, ao invés de recorrer ao serviço especializado de terceiros para instalar, construir ou consertar algo em sua casa, engaja-se no trabalho sem possuir formação técnica ou profissional.

(...) o bricoleur recorre a restos, partes de objetos, cacarecos, coisas sem utilidade que são aproveitadas, recicladas num novo objeto, onde cada peça adquire um novo uso.

(...) O sintoma também é uma questão de invenção. Também é fabricado com elementos da cultura, mas com seus fragmentos heterogêneos, numa montagem particular, que traz a marca do sujeito. Nessa acepção do termo sintoma, não estamos limitados à estrutura clínica da neurose. Ele não é necessariamente uma formação do inconsciente recalcado, mas uma formação do falante que ata (...), poder-se-ia dizer, amarrando os registros do real, do simbólico e do imaginário. É uma bricolagem com assinatura que dá forma à formula da contingência: que isso cesse de não se escrever, ou seja, que dá um tratamento ao real do gozo”57.

Será esta uma direção de trabalho: que o sujeito possa construir uma bricolagem, produzir uma invenção? Mas, conforme afirma Jacques Alain-Miller58,

56

MILLER, J-A. - A invenção psicótica. in Opção Lacaniana. nº. 36. maio, 2003. p. 06.

57

BASTOS, A. - Segregação, gozo e sintoma. in Revista Mal-Estar e Subjetividade, Fortaleza, v. IV - n. 2- p. 251 – 265, set. 2004. p. 262-263.

58

(30)

nem toda invenção é bem sucedida, havendo possibilidade de fracassar. Podemos então afirmar que uma direção clínica se constituiria no trabalho de bricolagem e invenção que fossem bem sucedidos, que pudessem se constituir como um sintoma?

I. 2 - A criança psicótica e seu Outro

Já pudemos abordar o tema que envolve a criança e seu Outro primordial que muitas vezes é encarnado por sua mãe. De todo modo o que destacamos é a função daquele que se ocupa da criança. É claro que se trata de cuidar da criança, mas não é só de satisfazê-la em suas necessidades.

Será função da mãe, enquanto Outro primordial, tomar o bebê em seus cuidados, dando sentido aos seus sons, gestos, movimentos, gritos. Então é este Outro primordial que transformará o grito deste bebê em demanda e lhe dará um sentido o que lhe confere um valor de mensagem. O grito, os sons ou os gestos apenas assumem valor de apelo quando um Outro lhe dá um sentido.

Laznik-Penot, cita Winnicott, ao se referir a “loucura necessária às mães” 59 e aponta para esta função encarnada pela mãe de supor sentido ali mesmo onde o que se apresenta pode parecer não ter sentido algum. É num som, num movimento do bebê que a mãe vai atribuir sentido. Por isso o termo “loucura”, pois este sentido não

é algo compartilhado socialmente, pelo contrário, é a mãe que sustentará a existência

de algum sentido.

Quando a mãe supõe sentido ao que o bebê faz, ela também supõe que aquele pequeno sujeito lhe demanda algo e lhe faz apelo.

Supor na criança um apelo é articular o circuito da necessidade com o campo da demanda. Mas para isso é preciso que esta mãe se enderece à criança e por isso a mensagem da mãe não será anônima.

Sobre isso Lacan em seu texto “Nota sobre a criança” afirma que se trata “(...) de outra ordem que não a vida segundo as satisfações das necessidades, mas é de

59

PENOT, L. M. C. - Rumo à palavra: três crianças autistas em psicanálise. São Paulo: Escuta, 1997. p.11.

(31)

uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo”60.

Seguindo no mesmo texto, o autor aborda a função da mãe e sobre isso nos diz:

“(...) [Se julga a função da mãe] na medida em que seus cuidados trazem a marca de

um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas”61. As faltas da mãe apontam para as faltas do Outro, já que a mãe encarna o Outro primordial para criança. O Outro por estrutura apresentará uma falta. Será que a questão é pensar como cada um vai lidar com a falta estrutural? Como cada um vai se posicionar diante da irremediável inconsistência do Outro?

Estamos sustentando a tese de que o Outro da linguagem é incompleto. E é a partir de sua falta que o sujeito poderá formular uma pergunta sobre seu desejo que é sempre o desejo do Outro.

A criança precisa se confrontar com a pergunta: “O que o Outro quer de mim?” e a partir daí se posicionar. É uma pergunta sobre o desejo do Outro, sobre o seu lugar no desejo do Outro. Esta pergunta só se elabora a partir da falta do Outro, a partir dos buracos aí existentes.

Diante da falta estrutural do Outro é preciso tomar uma posição. Uma posição da qual decorre conseqüências para toda uma vida. Ao sujeito cabe se situar diante do Outro reconhecendo ou abolindo esta falta estrutural.

Assim, Neusa Souza nos oferece uma bela explicação sobre a responsabilidade que concerne ao sujeito neste ato mesmo de escolha de um posicionamento diante da falta do Outro.

“O sujeito que se realiza em cada um de nós é constrangido a se inserir na

estrutura, tomar posição, e a fazer uma escolha, escolha da qual ele é sempre responsável. A estrutura é falhada, funciona desarranjada, dessaranjo próprio à incompletude do discurso e do sentido. Diante da estrutura, do Outro, e sua falha o sujeito é forçado a uma escolha que decide seu destino: aceitar ou enjeitar esse furo, acolher ou recharçar essa falha irremediável. Aceitar ou recharçar implicam conseqüências, conseqüências pelas quais o sujeito terá que responder. É aí que o sujeito

é sempre responsável”.62

60

LACAN, J. – (1969) Nota sobre a criança. in Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p.369.

61

Idem, Ibidem.

62

SOUZA, Neusa Santos. O eu e o sujeito: ressentimento, culpa e responsabilidade. in Cadernos de Psicanálise - Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, ano 24, nº. 15, maio 2002. p. 65-66.

(32)

Lacan, em “Nota sobre a criança”63, afirmará que há dois caminhos possíveis para a criança diante da falta materna: numa a criança responde ao que há de sintomático na estrutura familiar; noutra, a criança se oferece como objeto que falta à mãe. De um modo a criança reconhece a falta e tenta tamponá-la, e de outro ela impede a falta de aparecer, rejeitando-a. Temos então aí uma resposta neurótica e outra psicótica.

No primeiro dos casos, a criança apresenta um sintoma que vem revelar a verdade do casal parental. Segundo Lacan, por um lado, este é um caso mais complexo, mas por outro lado, é o que se mostra mais acessível às intervenções analíticas.

Afirmar que o sintoma da criança revela a verdade do casal parental é o mesmo que afirmar que aquilo que está velado será revelado. Aqui não devemos tomar a verdade em oposição à mentira. A verdade aqui tem o estatuto de verdade do inconsciente. É algo que não se inscreveu em termos de significantes, e este buraco da não representação é o que faz a verdade.

Esta é uma das posições da criança frente ao Outro. A segunda diz respeito ao lugar de objeto que a criança pode vir a ocupar.

“Aqui, é diretamente como correlativo de um fantasma que a criança está

implicada.

(...). Ela se torna o “objeto” da mãe, e só tem como função revelar a verdade desse objeto.

A criança realiza a presença do que Jacques Lacan designa como objeto a no fantasma”.64

Neste caso a criança realiza a presença do objeto a no fantasma da mãe o que é o mesmo que dizer que a criança torna real com sua presença o objeto fantasmático que preencheria a falta da mãe. Aqui a criança é o objeto do Outro materno. A

63

LACAN, J. - (1969) Deux notes sur l’enfant. in Ornicar? nº 37, Paris: Navarin, 1987. p. 13-14.

64

Idem, Ibidem.

A versão francesa será transcrita a seguir: “(...) Ici, c’est directement comme corrélatif d’un fantasme que l’enfant est interéssé.

(...) Il devient l’´objet` de la mère, et n’a plus de fonction que de révéler la vérité de cet objet. L’enfant réalise la présence de ce que Jacques Lacan désigne comme l’objet a le fantasme”.

(33)

criança se situa como objeto do gozo do Outro e encarna com seu próprio corpo o objeto que viria a tamponar a falta da mãe.

É importante enfatizar que para que a criança venha ocupar este lugar de objeto

que satura a falta de sua mãe, não importa a estrutura clínica da mãe que pode se constituir enquanto neurótica, perversa ou psicótica.

Testemunhamos na clínica que uma mãe neurótica pode ter um filho psicótico. Ou mesmo uma mãe neurótica pode ter dois filhos: um psicótico e o outro neurótico. E também uma mãe psicótica pode ter um filho neurótico. Enfim, as possibilidades são inúmeras, pois o lugar de cada filho para uma mãe é único e relança a mãe a sua história e a seu desejo em relação àquele filho específico. Além do que temos também que enfatizar a especificidade da posição de cada criança.

Há também outro modo de trabalhar o tema da neurose e da psicose que consiste em abordar o tema da causação do sujeito.

O mito da lâmina apresentado por Lacan no Seminário 11, “Os conceitos fundamentais da psicanálise”65, é a parte do vivo que precisa ser perdida para que ele se integre à ordem sexual. São estas partes de si mesmo cujos objetos a são as partes representantes, figurativas, equivalentes que ao serem perdidas tornam o sujeito como desejante.

Haveria, portanto, três tempos lógicos na estrutura: um primeiro tempo mítico, de puro gozo, do ser; num segundo tempo em que recai sobre sujeito a extração do objeto a do campo do Outro, e num terceiro tempo da constituição do sujeito desejante.

Lacan tratará destes três tempos a partir das operações de causação do sujeito, a alienação e a separação. A alienação é o assujeitamento à linguagem. Momento em que o sujeito seria supostamente puro efeito da linguagem. No entanto com a entrada do sujeito na linguagem é inevitável uma insondável perda do ser. Perda marcada pela impossibilidade do significante tudo simbolizar. O sujeito nasce numa divisão em que para surgir se petrifica num significante o que por outro lado implicará na sua mortificação. Assim a cadeia desliza remetendo um significante a outro, na medida em que esta é por excelência a própria definição de significante. E

65

LACAN, J. - (1964). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

(34)

o sujeito aparece entre um significante e outro, e, portanto, está localizado na divisão.

“(...) se lhes falei do inconsciente como do que se abre e fecha, é que sua

essência é de marcar esse tempo pelo qual, por nascer com o significante, o sujeito nasce dividido. O sujeito é esse surgimento que, justo antes, como sujeito, não era nada, mas que, apenas aparecido, se coagula em significante”.66

No segundo tempo, que concluirá o tempo lógico da alienação, é nomeado de separação. Na separação, o sujeito se realiza a partir da falta que produz no Outro o que é o mesmo que afirmar que o sujeito se situa na falta do Outro. É um tempo em que o sujeito é o efeito da separação de uma cadeia de significantes que lhe subscreve. Sendo uma separação em que o sujeito se serve da cadeia de significantes. O sujeito se engendra, se produz, mantendo sua filiação67 à cadeia de significantes.

O que decorre das operações de alienação e separação é uma perda de ser, porque não dizer, uma perda de gozo que é o objeto a. A queda do objeto a, objeto causa de desejo, é o que possibilitará a constituição do sujeito enquanto desejante. Este é o caso clínico da neurose. Mas na psicose incide algumas diferenças.

Na psicose a operação de separação não se realiza e, por conseqüência, não há a perda fundamental e a queda do objeto a. O que não é sem conseqüências para o sujeito e também para o Outro.

Se é pela extração do objeto a que o sujeito neurótico terá ao seu dispor recursos para metaforização da falta, então o que se passa na psicose? Não havendo a metaforização da falta do campo do Outro, na psicose, o que se configura aí é a absolutização do Outro que comparece como completo, consistente e, portanto, gozador. É desta forma que afirmamos que o Outro sendo estruturalmente inconsistente na psicose configura-se como invasor, atormentador. Jeanne Marie Costa Ribeiro assim situa uma posição a ser tomada por todo falante: “Já que o

66

Idem, Ibidem. p. 188.

67

Lacan, no seminário, livro 11, afirma que um dos sentidos flutuantes para a palavra separação é

engendrar-se. Sobre isso o autor diz: “Ela [engendra-se] é jurídica, como aliás, coisa curiosa, em

indo-europeu, todas as palavras que designam pôr no mundo. A própria palavra parturição se acha originar-se numa palavra que, em sua raiz, não quer dizer outra coisa senão procurar um filho para o marido, operação jurídica, e, digamos logo, social. (p. 202/203)

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