UTILIZAÇÃO DO ENSAIO DE ARCAN PARA A IDENTIFICAÇÃO
DO COMPORTAMENTO AO CORTE DA MADEIRA DE PINHO
Marcelo Oliveira
ESTV, Departamento de Engenharia de Madeiras, Viseu, Portugal José Xavier e José Morais
CETAV/UTAD, Departamento de Engenharias, Vila Real, Portugal
RESUMO
Neste trabalho foi examinada a aplicabilidade de uma nova versão do ensaio de Arcan para a identificação completa do comportamento ao corte da madeira de Pinus Pinaster Ait., no plano de simetria natural LR. Os resultados obtidos mostram que esse ensaio é adequado para a determinação do módulo de corte. O ensaio de Arcan não é porém um ensaio directo para a determinação da resistência ao corte, uma vez que a rotura é dominada por concentração de tensões e por um estado complexo de tensão. Todavia, fornece uma estimativa por defeito bastante aproximada da verdadeira resistência ao corte da madeira de Pinus Pinaster Ait. 1. INTRODUÇÃO
É fundamental para o uso efectivo da madeira como material estrutural competitivo, conhecer com rigor as suas propriedades mecânicas. Porém, a identificação experimental do comportamento mecânico da madeira é ainda um problema em aberto, devido à sua variabilidade, heterogeneidade e ortotropia. Em cada ponto, as direcções de ortotropia são a direcção longitudinal (L), correspondente às fibras, a direcção radial (R), perpendicular aos anéis de crescimento e a direcção tangencial (T), paralela aos anéis de crescimento. Para a completa caracterização do comportamento mecânico da madeira é pois necessário conhecer as relações tensão-deformação no referencial LRT. Todavia, esta é uma tarefa complexa, sobretudo no que diz respeito à identificação das relações tensão - deformação de corte em todos os planos de simetria natural (LR, LT e RT).
Não existe actualmente nenhum ensaio normalizado que permita a identificação completa do comportamento ao corte da madeira, incluindo não só os módulos de corte (GLR, GLT e GRT)
como também as resistências ao corte (XLR, XLT e XRT). Este facto deve-se porventura à escassa
investigação sobre o tema, ao contrário do que acontece com os compósitos artificiais, para os quais foram estudados diferentes ensaios. Um deles, embora seja o menos estudado, é o ensaio de Arcan, que foi inicialmente concebido para estudar o comportamento ao corte de plásticos (Arcan, 1957; Goldenberg, 1958) e que posteriormente foi aplicado aos compósitos unidireccionais (Voloshin, 1980; Yen, 1988; Hung, 1999) e aos materiais celulares artificiais (Mohr, 2003). Este ensaio foi pela primeira vez usado para a madeira por Liu (1984), seguindo
o procedimento original de Arcan, e mais tarde foi adaptado tendo em vista a redução do tempo de execução dos ensaios (Liu, 1996).
Neste artigo apresenta-se os resultados de um trabalho experimental sobre a aplicabilidade duma nova versão do ensaio de Arcan para a identificação do comportamento ao corte da madeira da espécie Pinus Pinaster, Ait., no plano de simetria LR. A ênfase é colocada na metodologia experimental e de tratamento dos resultados experimentais, com vista à correcta determinação das propriedades mecânicas ao corte.
2. O ENSAIO DE ARCAN
O provete de Arcan é basicamente uma viga rectangular de pequenas dimensões com dois entalhes em V (Figura 1). Amarras apropriadas transformam a força P, medida pela célula de carga da máquina de ensaios, numa tensão de corte média entre os dois entalhes em V, dada por: A P média = 6 σ (1)
onde A é a área da secção do provete entre os entalhes. O provete é instrumentado com rosetas biaxiais, fixadas no seu centro a ±45ºem relação ao eixo longitudinal (Figura 1). A deformação de corte relativa aos eixos principais do material (1,2) é dada por:
º 45 º 45 6 = ε+ −ε− ε média , (2)
onde
ε
+45º é a deformação medida pelo extensómetro a +45ºeε
−45º é a deformação medida pelo extensómetro a − 45º. O módulo de corte aparente obtém-se dividindo a tensão de corte média pela deformação de corte:P
1
2
-45º +45º1
2
-45º +45º (a) (b) Figura 1 - Ensaio de Arcan: (a) esquema do ensaio e (b) do provete.média média a G 6 6 12 ε σ = , (3)
Se o campo das tensões e das deformações na região de referência do provete (entre os entalhes em V) é homogéneo, o módulo de corte aparente (Equação 3) coincide com o módulo de corte real do material. Mas, como foi já demonstrado por outros autores (Hung, 1999; Oliveira, 2003) recorrendo à simulação numérica do ensaio de Arcan pelo método dos elementos finitos, os estados de tensão e de deformação não são homogéneos, embora sejam praticamente de corte puro. Neste caso, e à semelhança do que foi proposto para o ensaio de Iosipescu (Pierron, 1988), o módulo de corte pode obter-se através da seguinte equação:
a CSG
G12 = 12
,
(4)onde C e S são factores de correcção definidos por
média C 6 6 σ σ = (5) e 6 6 ε εmédia S = . (6)
O factor de correcção C, que corresponde ao quociente entre a tensão de corte no ponto central do provete (
σ
6) e a tensão de corte média, é uma medida da heterogeneidade do campo das tensões na região central do provete. Por sua vez, o factor de correcção S, que é o quociente entre a deformação de corte no ponto central (ε
6) e a deformação de corte média na região de colagem da roseta biaxial (ε
6média), é uma medida da heterogeneidade do campo das deformações. Os valores aproximados destes factores de correcção (C e S) foram determinados por Oliveira (2003) para a madeira de Pinus Pinaster Ait., usando o método dos elementos finitos, tendo obtido:919 , 0 =
C e S = 1,000. (7)
A simulação do ensaio por elementos finitos (Oliveira, 2003) mostra que a rotura tem início na concordância entre os flancos e a raiz dos entalhes em V, numa região de forte concentração de tensões e sob um estado complexo de tensão. Assim, o valor máximo da tensão de rotura dado pela equação (1) não coincide com a resistência ao corte, pelo que o ensaio de Arcan não é um método directo para a determinação dessa propriedade. A utilização de um critério de
rotura para estimar a resistência ao corte, quando a rotura é dominada pela existência de forte concentração de tensões, é também desprovida de qualquer sentido físico (Smith, 2003). 3. TRABALHO EXPERIMENTAL
3.1. Material e provetes
Neste trabalho foi utilizada madeira proveniente de uma única árvore da espécie Pinus Pinaster Ait. Foram manufacturados provetes com a forma e as dimensões indicadas na Figura 2, coincidindo a direcção natural L com a direcção longitudinal do provete e a direcção natural R com a direcção transversal
.
Este provete é uma adaptação do que foi proposto por Liu (1996). Para evitar incisões dos mordentes das amarras e uniformizar a pressão de aperto das amarras, colaram-se nas extremidades do provete “bolachas” de Iroko (Chlorophora excelsea Beneth & Hook).Antes dos ensaios mecânicos todos os provetes foram estabilizados para as condições ambientais em vigor no laboratório. Após os ensaios, foi determinado o teor de humidade e a densidade de cada provete (EN 408, 2002). Registaram-se teores de humidade entre 11% e 12%, e densidades entre0,582 e 0,685.
3.2. Ensaios mecânicos
Os ensaios mecânicos foram executados numa máquina universal INSTRON 1125, à velocidade do travessão de 2mm/min. Foi utilizada uma versão original de amarras, que evita a colagem dos provetes às amarras, como acontecia na primeira versão (Arcan, 1957; Liu, 1984), ou a abertura de furos nos provetes, como sugeriram outros autores (Liu, 1996). Nessa versão original (Figura 3), desenvolvida por Oliveira (2003), o esforço entre a amarra e o provete é transferido essencialmente por atrito, nas faces de amarração.
Os ensaios foram instrumentados com uma célula de carga de 5 kN e com extensómetros eléctricos de resistência. Usaram-se duas rosetas biaxiais CEA-06-125WT-350, cada uma colada numa face do provete, a ± 45ºem relação ao eixo longitudinal (Figura 1). Os extensómetros foram colados com o adesivo M-Bond AE-10, seguindo o procedimento recomendado pelo fabricante.
130 50 15 50 Ø4 8 Bolachas 10 30 2 12
Figura 3 - Ensaio de Arcan.
4. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS EXPERIMENTAIS
Na Figura 4 ilustram-se os resultados directamente obtidos nos ensaios de Arcan. Em cada uma das faces, as deformações a +45º e a -45º são simétricas, pelo menos na região linear inicial, confirmando assim os resultados dum estudo por elementos finitos (Oliveira, 2003), segundo o qual o estado de tensão na secção central do provete é de corte puro. Observa-se porém que as deformações medidas numa face são diferentes das deformações medidas na outra, em virtude da existência de uma torção parasita fora do plano de ensaio.
0 500 1000 1500 2000 2500 3000 3500 4000 4500 -20000 -15000 -10000 -5000 0 5000 10000 15000 Deformação (µε) F or ça ( N ) e -45 Face frontal e +45 Face frontal e -45 Face posterior e +45 Face posterior
A partir da informação experimental de base, determinou-se para cada provete as curvas med
LR med LR γ
τ − relativas à face frontal e posterior, usando as equações (1) a (3), conforme se ilustra na Figura 5. A não coincidência destas duas curvas deve-se à existência de uma torção parasita fora do plano principal do provete (plano LR). Conforme foi demonstrado por outros autores, para o caso do ensaio de Iosipescu (Pierron, 1999), a curva média das duas faces (Figura 5) filtra esse efeito parasita. O conjunto das curvas médias tensão – deformação de corte está reunido na Figura 6. É evidente, a partir destas curvas, que o comportamento ao corte da madeira de Pinus Pinaster Ait. no plano LR não é linear.
0 20000 40000 60000 80000 100000 120000 140000 0 5000 10000 15000 20000 25000 30000 Deformação de corte (µε) T en são d e co rt e (M P a) Média Posterior Frontal
Figura 5 - Curvas tensão – deformação de corte: face frontal, face posterior e média.
0 2 4 6 8 10 12 14 16 18 0 5000 10000 15000 20000 Deformação corte (µε) Te nsã o cor te (MPa )
Por regressão linear do troço inicial das curvas tensão-deformação de corte, medidas na face frontal e na face posterior de cada provete, obteve-se o correspondente valor do módulo de corte aparente, com um coeficiente de correlação não inferior a 0,999. Os resultados obtidos (Figura 6), incluindo a média dos módulos de corte aparentes das duas faces, são comparados na Figura 7. Os valores dos módulos de corte aparentes determinados em cada provete (média das duas faces) encontram-se na Tabela 1. Pela Figura 7 se vê a necessidade de instrumentar as duas faces dos provetes com rosetas extensométricas biaxiais, para reduzir a dispersão dos resultados experimentais. 1,0 1,2 1,4 1,6 1,8 2,0 2,2 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 Provetes M ódulo de cort e (G P a)
Frontal Médio Posterior 34%
0%
Figura 7 - Dispersão dos módulos de corte: frontal, posterior e médio. Tabela 1 - Propriedades mecânicas ao corte no plano LR.
Provete Densidade a LR G (GPa) r LR τ (MPa) 1 0,598 1,25 15,3 2 0,605 1,41 15,3 3 0,611 1,55 15,1 4 0,613 1,52 15,6 5 0,618 1,43 12,3 6 0,575 1,64 18,3 7 0,607 1,40 16,2 8 0,582 1,47 15,4 9 0,612 1,39 14,0 10 0,629 1,38 13,6 11 0,684 1,49 - 12 0,685 1,43 - 13 0,667 1,49 - Média 0,622 1,45 15,1 C. V. (%) 5,7 6,5 10,6
A Figura 8 documenta o modo de rotura macroscópico dos provetes ensaiados. Em todos eles a primeira rotura consiste na formação de uma fenda na transição entre o flanco e a raiz de um dos entalhes, que se propaga grosso modo na direcção longitudinal do provete. A ocorrência dessa primeira fenda traduz-se nas curvas tensão - deformação por uma queda da tensão de corte (Figura 5). Uma vez que a rotura se dá sob um estado complexo de tensão (Oliveira, 2003), a tensão de corte correspondente ao aparecimento da primeira fenda,τ LRr (Tabela 1), não é a resistência ao corte do material (XLR). Porém, por comparação com os
resultados obtidos por outros autores através do ensaio de Iosipescu e “off-axis” (Xavier, 2003), podemos afirmar que τ é uma estimativa bastante aproximada, e por defeito, da rLR verdadeira resistência ao corte para o plano LR.
Figura 8 - Modo de rotura dos provetes no ensaio de Arcan.
A dispersão das propriedades mecânicas registada neste trabalho (Tabela 1) está dentro da ordem de grandeza típica para a madeira. Mesmo assim, verificou-se em que medida a densidade explica a variação das propriedades de provete para provete, não se tendo obtido nenhuma correlação significativa, tal com está documentado nas Figuras 9 e 10. Este facto, aliado ao baixo coeficiente de variação (5,7%) da densidade (Tabela 1), atesta a homogeneidade da amostra de provetes que foi seleccionada para este trabalho.
0,00 0,50 1,00 1,50 2,00 0,55 0,60 0,65 0,70 Densidade G a LR (G P a)
0 5 10 15 20 0,56 0,58 0,60 0,62 0,64 Densidade τ r LR (M P a)
Figura 10 - Variação da resistência aparente ao corte com a densidade.
5. CONCLUSÕES
O ensaio de Arcan é adequado para a identificação do módulo de corte da madeira de Pinus Pinaster Ait., no plano LR. Por outro lado, como a rotura é dominada por concentração de tensões e ocorre sob um estado de tensão complexo, o ensaio de Arcan não é um método directo para a identificação da resistência o corte. Apesar disso, este ensaio fornece uma estimativa aceitável e por defeito da verdadeira resistência ao corte da madeira de Pinus Pinaster Ait.
6. AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem à Fundação para a Ciência e a Tecnologia o apoio financeiro para a realização deste trabalho, através do Projecto POCTI/EME/36270/2000.
7. REFERÊNCIAS
Arcan, M.; Goldenberg, N., 1957 - “On a basic criterion for selecting a shear testing standard for plastic materials”, ISO/TC 61-wg2 st.171, Burgenstock, Switzerland
.
European Committee for Standardization, 2002 - “EN 408 Timber structures – Structural timber and glued laminated timber – Determination of some physical and mechanical properties”, Office for Official Publications of the European Communities, Luxembourg, 2002.
Goldenberg, N.; Arcan, M.; Nicolan, E., 1958 - “On the most suitable specimen shape for testing shear strength of plastics”, ASTM STP 247, Proceedings of International Symposium on Plastics Testing and Standard, PA, pp.115-121.
Liechti, K. M.; Hung, S.C., 1999 - “Finite element analysis of the Arcan specimen for fiber reinforced composites under pure shear and biaxial loading”, Journal of Composite Materials, 33(14) pp.1288-1317.
Liu, J.Y., 1984 - “New shear strength test for solid wood”, Wood and Fiber Science, 16(4), pp. 567-574.
Liu, J.Y.; Ross, R. J.; Rammer, D. R., 1996 - “Improved Arcan shear test for wood”, Proceedings of the International Wood Engineering Conference, vol. 2, Gopu e Viajaya (eds), Louisiana State University, pp. 85-90.
Mohr, D.; Doyoyo, M., 2003 – “A new method for the biaxial testing of cellular solids”, Experimental Mechanics, vol. 43, nº 2, pp. 173-182.
Pierron, F., 1988 - “Saint-Venant effects in the Iosipescu specimen”, J. Com. Mat., 32(22), pp. 1986-2015.
Voloshin, A.; Arcan, M., 1980 - “Failure of unidirectional fiber-reinforced materials – new methodology and results”, Exp. Mech., pp. 280-284.
Yen, S. C.; Craddock, J. N.; Teh, K. T., 1988 - “Evaluation of a modified Arcan fixture for the in-plane shear test of materials”, Exp. Tech., 12(12), pp. 22 – 25.
Oliveira, M.; Xavier, J.; Morais, J., 2003 – “Análise por elementos finitos do ensaio de Arcan aplicado à madeira de Pinus Pinaster Ait.”, Livro de Actas do VII Congresso de Mecânica Aplicada e Computacional, Vol. I, 14 a 16 de Abril, Universidade de Évora, pp. 163 – 173.
Oliveira, M., 2003 - Caracterização do Comportamento ao Corte da Madeira Usando o Ensaio de Arcan. Tese de Mestrado, UTAD, Vila Real, (em preparação).
Smith, I.; Landis, E.; Gong, M., 2003 – Fracture and Fatigue in Wood. John Wiley & Sons Ltd., Chichester, England.
Xavier, J.; Garrido, N.; Oliveira, M.; Morais, J.; Camanho, P.; Pierron, F., 2003 - “A comparison of shear characterization of Pinus Pinaster Ait. with the Iosipescu and off-axis shear test methods”, Composites Part A (aceite para publicação).