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Paul Veyne - Como se escreve a História (edições 70)

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(1)
(2)

Fabricador

de instrumentos de. trabalho,

de

habítaqóes,

de culturas e sociedades,

o homem

é

também

agente transformador

da história.

Mas qual será o lugar

do homem na história

e o da 'história na vida do homem?

(3)

1. A NOVA HIsTÓRIA, Jacques Le Goff, Le Roy Ladurie, Georges Duby e outros

2. PARA UMA HIsTÓRIA ANTROPOLÓGICA, W. G. L. Randles, Na-

i

than Wachtel e outros 1

3. A CONCEPÇÃO MARXISTA DA HISTÓRIA, Helmut Fleischer I

4. SENHORIO E FEUDALIDADE NA IDADE MÉDIA, Guy Fowquin I

5. EXPLICAR O FASCISMO, Renzo de Felice I

I 6. A SOCIEDADE FEUDAL, Marc Bloch

7. O

FIM

DO MUNDO ANTIGO E O PRINCÍPIO DA IDADE MÉDIA, Fer- I

dinand Lot

1

8. O ANO MIL, Georges Duby

9. ZAPATA E A REVOLUÇÃO MEXICANA, John Wornack Jr.

10. HISTÓRIA DO CRISTIANISMO, Arnbrogio Donini I

11. A IGREJA E A EXPANSÃO BÉRICA, C. R. Boxer

12. HISTÓRIA ECONÓMICA DO OCIDENTE MEDIEVAL, Guy Fourquin

I

13. GUIA DE HISTÓRIA UNIVERSAL, Jacques Herrnan

14. O IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUES, C. R. Boxer

1

15. INTRODUÇÃO A ARQUEOLOGIA, Carl-Axel Moberg i

16. A DECADENCIA DO IMPÉRIO DA PIMENTA, A. R. Disney I

17. O FEUDALISMO - UM HORIZONTE TEORICO, Alain Guerreau 18. A INDIA PORTUGUESA EM MEADOS DO SÉC. X W , C. R. Boxer

19. REFLEXÕES SOBRE A HISTORIA, Jacques Le Goff I

20. COMO SE ESCREYE A HISTORIA, Paul Veyne

21. HISTORIA ECONOMICA DA EUROPA PRÉ-INDUSTRIAL, c a l o Ci- polia

22. MONTAILLOU, CÁTAROS E CATÓLICOS NUMA ALDEIA FRANCE- SA (1294-1324). E. Le Roy Ladurie

23. OS GREGOS ANTIGOS. M. I. Finley

24. O MARAVILHOSO E O QUOTIDIANO NO OCIDENTE MEDIEVAL,

Jacques Le Goff i

25. AS WSTITUIÇÕES GREGAS, Claude Mossé 26. A REFORMA NA IDADE MÉDIA, Brenda Bolton

27. ECONOMIA E SOCIEDADE NA GRÉCIA ANTIGA, Michel Austin e

I

Pierre Vida1 Naquet

28. O TEATRO ANTIGO, Pierre Grirnal

.

29. A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL NA EUROPA DO SÉC. XIX, Tom Kemp

30. O MUNDO YELENÍSTICO, Pierre Lévêque

(4)

PAUL VETNE:

Título original: Comment on écrit l'histoire O Éditions du Seuil, 1971

Tradução de António José da Silva Moreira Capa de Edições 70

Todos os direitos reservados para a língua portuguesa por Edições 70, Lda., Lisboa

-

PORTUGAL EDIÇÕES 70, LDA. - Av. Elias G a r c i a , 8 1 r / c - 1000 LISBOA

Telef. 76 27 20 / 76 27 92 / 76 28 54

Telegramas: SETENTA Telex: 64489 TEXTOS P

Esta obra está protegida pela Lei. Não pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor.

Qualquer transgressão a Lei dos Direitos de Autor será passível de procedimento judicial.

(5)

Introdução

...

9

Primeira P a r t e O OBTECTO DA HIST6RLA I

.

NADA MAIS DO QUE UMA NARRATIVA VERIDICA

....

13

Acontecimentos humanos

...

13

...

Acontecimento e documento 14 Acontecimento e diferença

...

15 A individualização

...

18 Natureza e história

...

19

...

Acontecimentos verdadeiros 21 A história 6 conhecimento mutilado

...

23

11

.

TUDO É HISTORICO. LOGO A HISTORIA NÃO EXISTE

.

25 Incoerência d a história

...

25

Natureza lacunar da história

...

26

...

A noção d e não-acontecimental 28 Os f a c t o s não t ê m dimensão absoluta

...

30

Extensão d a história

...

33

A história é uma ideía-limite

...

36

A história desenrola-se n o sublunar

...

40

Que f a c t o s s ã o históricos

...

41

111

.

NEM FACTOS. NEM GEOMETRAL. SOMENTE INTRIGAS 43 A noção d e intriga

...

44

(6)

Estrutura do campo acontecimental

...

48

Um exemplo: o evergetismo

...

50

Crítica da ideia de geometral

...

52

O nominalismo histórico

...

54

O problema da descrição histórica

...

56

...

Dificuldade duma síntese coerente 57

...

IV

.

POR UMA PURA CURIOSIDADE PELO ESPECfFICO 61 Uma palavra de historiador: "É interessanteu

...

61

Weber: a história seria relação de valores

...

62

O fundo do problema: Weber e Nietzsche

...

65

O interesse histórico

...

67

Comparação com a s origens do romance

...

68

A história liga-se a o específico

...

69

Definição do conhecimento histórico

...

72

História do homem e d a natureza

...

73

A história não é individualizante

...

76

O mapa da história

...

77

Os dois princípios da historiografia

...

79

Apêndice: A história axiológica

...

81

A consciência ignora a história

...

87

Nada de mutação historicista

...

91

Os fins do conhecimento histórico

...

95

Um falso problema: a génese da h i s t ó r i a

...

96

Nascimento do género histórico

...

99

A concepção existencialista

...

101 A c a t a r s e histórica

...

103 Segunda P a r t e A COMPREENSÃO

.

VI COMPREENDER A INTRIGA

...

.-.

...

107

TIExplicarlT t e m dois sentidos

...

1 0 7 Compreender e explicar

...

11 0 A falsa ideia d a s causas

...

11 1 A história "em profundidadeT!

...

113

Acaso. "matérian e liberdade

...

11 6 Causas materiais: o marxismo

...

118

Causas finais: mentalidade e tradição

...

119

Acaso e causas profundas . .

...

121

A história não1 t e m linhas gerais

...

124

A história não t e m método

...

126

A ontologia do historiador

...

130

Abstracção em história

...

132

Um exemplo: a religião grega

...

134

Os quadros: disparates

...

136

VI1

.

TEORIAS. TIPOS. CONCEITOS

...:.

139

Um exemplo d e teoria

...

140

...

Uma teoria não é mais que um resumo de intriga 141 O típico em história

...

142

Os tipos são c o n c e i t o s

...

144

A história comparada

...

145

É uma heurística

...

148

Os conceitos

...

149

Um exemplo: o nacionalismo helénico

...

151

As t r ê s espécies d e conceitos

...

153

Crítica dos conceitos históricos

...

153

Os agregados

...

156

Os conceitos classificadores

...

158

O devir e o s c o n c e i t o s

...

160

Apêndice: O tipo i d e a l

...

164

VIII

.

CAUSALIDADE E RETRODICÇÃO

...

167

Causalidade e retrodicção

...

168 A causalidade sublunar

...

169 Ela é irregular

...

170 Ela é confusa

...

171 A retrodicção

...

173 Fundamento da retrodicção

...

175 A retrodicção é a "sínteseu

...

177

O "métodoTT é uma experiência clínica

...

179

Os dois limites da objectividade histórica

...

180

Causas ou leis. a r t e ou ciência

...

182

A explicação segundo o empirismo lógico

...

183

Crítica do empirismo lógica

...

.- 185

A história não 6 um esboço d e ciência

...

187

As pretensas leis d a história

...

189

(7)

A ciência como intervenção

...

A história nunca será científica

...

unico lugar da ciência: os efeitos não intencionais

.

.

Apêndice: A quotidianeidade e a seriação

...

IX

.

A CONSCIENCIA NÃO ESTA NA RAIZ DA ACÇÃQ

...

A compreensão do outro

...

Nós sabemos que os homens têm fins

...

...

mas não sabemos quais os fins

...

Os juizos de valor em história

...

...

são juizos de valor em discurso indirecto

...

A um dualismo ideologia-realidade

...

...

substitui-se uma pluralidade concreta

...

A consciêncía não

6

a chave da acçãa

...

Crítica da ideia de mentalidade

...

Uma casuística: quatro exemplos

...

Um novo conhecimento do homem

...

A principal dificuldade da história

...

Terceira Parte

O PROGRESSO D A HISTORIA

X

.

O PROLONGAMENTO DO QUESTIONARIO

...

A progressiva conceptualização

...

A desigual dificuldade de percepçãa

...

...

A tópica históríca

...

Tópica das sociedades pré.industriais

...

A história não-acontecimental

...

Luta contra a Óptica das fontes

...

A história como recensão do real

...

Progresso do conhecimento histórico

...

Em que 6 a história obra de a r t e

...

Uma esquecida: a erudição

...

A história como a r t e do desenho

...

.

XI

.

O SUBLUNAR E AS CIENCIAS HUMANAS

...

Factos cientificos e factos vividos

...

Situação actual das ciências humanas

...

Possibilidade de uma ciência do homem

...

As ciências humanas são praxeologias

...

Por que aspira a história 5 ciência

...

A confusão das essências

...

279

Ela tem pouco a esperar da ciência

...

281

Exemplo: teoria económica e história

...

284

Outro exemplo: a repartição das riquezas

...

288

Verdade histórica e verdade científica

...

290

...

Condições para uma história científica

...

Porque é ela impossíveL

...

A sociologia não tem objecto

...

A sociologia não é mais que uma descrição

...

Mal-estar da sociologia

...

A sociologia é uma falsa continuidade

...

A sociologia é história e retórica

A sociologia deve-se a uma concepção demasiado es-

...

treita da história

...

As duas convenções que mutilam a história

O exemplo da geografia llgeral!l

...

...

A hístória completa abandona a socioIogia

(8)

Que é a história? É indispensável repor a questão, a julgar pelo que se ouve dizer à nossa volta.

«A história, no nosso século, compreendeu que a sua verdadei- ra tarefa era explicam; «tal fenómeno não é explicável somente pe- la sociologia: o recurso à explicação histórica não permitiria eluci- dá-lo melhor?»; «E a história uma ciência? Debate vão! A colabo- ração de todos os pesquisadores não é desejável, e a única fecun- da?»; «não deve o historiador dedicar-se a edificar teorias?»

-Não.

Não, semelhante história não é a que fazem os historiadores: quando muito é a que eles acreditam fazer ou a que os persuadi- ram de que deviam lamentar não fazer. Não, não é um debate vão saber se a história é uma ciência, porque «ciência» não é um vocá- bulo nobre, mas um termo preciso e a experiência prova que a indi- firença pelo debate das palavras é geralmente acompanhada pela confusão de ideias sobre a coisa em si. Não, a história não tem mé- todo: senão peçam que vos mostrem esse método. Não, ela não ex- plica nada, se a palavra explicar tem um sentido; quanto àquilo a que chama as suas teorias, seria preciso vê-las de mais perto.

Entendamo-nos. Não é suficiente afirmar mais uma vez que a história fala do «que nunca se verá duas vezes»; não se trata tam- pouco de pretender que ela é subjectividade, perspectivas, que inter- rogamos o passado a partir dos nossos valores, que os factos históri- cos não são coisas, que o homem se compreende e não se explica, que dele não pode haver ciência. Não se trata, numa palavra, de confundir o s& e o conhecer; a s ciências humanas existem por cer- to (ou pelo menos a s que, de entre elas, merecem verdadeiramente o nome de ciências) e uma G'sica do homem é a esperança do nosso século, tal como a física foi a do século XVII. Mas a história não é essa ciência e nunca o será; se ela souber ser ousada tem possibili- dades de renovação indefinidas, mas numa outra direcção.

A história não é uma ciência e não tem muito a esperar das ciências; não explica e não tem método; mais ainda a História, da qual se fala muito desde h á dois séculos, não existe.

(9)

Então, que é a história? Que fazem realmente os historiadores, de Tucídides a Max Weber ou Marc Bloch, quando abandonam os seus documentos e procedem à «síntese»? O estudo cientificamen- te conduzido das diversas actividades e das diversas criações dos homens de outrora? A ciência do homem em sociedade? Das socie- dades humanas? Bastante menos que isso; a resposta à questão não mudou desde que os sucessores de Aristóteles a levantaram h á dois mil e duzentos anos: os historiadores narram acontecimentos verdadeiros que têm o homem como actor; a história é um roman- ce verdadeiro. Resposta que, à primeira vista, nada significa ...(I )

Primeira Parte

O OBJECTO DA HISTÓRIA

(1) 0 autor deve bastante à sanscritista Hélène Flacelière, ao filósofo G. Granger, ao historiador H. I. M a m u e ao arqueólogo Georges Ville (1929-1967). Os e m s são dele próprio; e teriam sido mais numerosos se J. Molino não tivesse aceitado reler a dactilografia deste livro, introduzindo- -lhe o seu enciclopedismo um pouco assustador.

(10)

Capítulo I

NADA MAIS DO QUE UMA NARRATIVA

VERÍDICA

Acontecimentos humanos

Os acontecimentos verdadeiros que têm o homem como actor. Mas a palavra homem não nos deve fazer entrar em transe. Nem a essência, nem os fins d a história derivam da presença desta per- sonagem, dependem da óptica escolhida; a história é o que é, não devido a um qualquer ser d o homem, mas porque tomou partido por

uin certo modo de conhecer. Ou bem que os factos são considerados

como individualidades, ou então como fenómenos por detrás dos quais se procura um invariante escondido. O íman atrai o ferro, os vulcões têm erupções: factos físicos nos quais alguma coisa se repete; a erupção do Vesúvio em 79: facto físico tratado como um acontecimento. O governo Kerenski em 1917: acontecimento hu- mano; o fenómeno do duplo poder em período revolucionário: fenó- meno repetível. Se tomamos o facto por acontecimento, é porque o julgamos interessante em si mesmo; se nos interessa o seu carác- ter repetível, é somente um pretexto para descobrirmos uma lei. Donde a distinção que Cournot faz(1) entre as ciências físicas, que estudam as leis da natureza, e a s ciências cosmológicas que, como a geologia ou a história do sistema solar, estudam a história do mundo; porque «a curiosidade do homem não tem por objectivo so- mente o estudo das leis e das forças da natureza; ela é ainda mais prontamente excitada pelo espectáculo do mundo, pelo desejo de co- nhecer a sua estrutura actual e as revoluções passadas»

...

A presença humana não e necessária para que os acontecimen- tos excitem a nossa curiosidade. E verdade que a história humana tem a particularidade de a s operações do conhecimento de outrem não serem aquelas pelas quais compreendemos os fenómenos fi'si- cos; a história geológica, por exemplo, tem uma aura muito dife- rente da dos acontecimentos humanos; fala-se então de significa-

(1) Traité de l'enchalnement des idées fondamentales dans la nature et dans Z'histoire, reimpressão, 1922, Hachette, p. 204.

(11)

ção, de compreensão, mas a palavra correcta é bastante mais sim- ples, é finalidade. No mundo tal como ele aparece aos nossos olhos, a condução dos assuntos humanos e a sua compreensão são dominados pelo facto de que conhecemos em nós e reconhecemos nos outros a existência de uma revisão aue determina um ~roiec- 1

.,

to e de um projecto que culmina em condutas. Mas este finalismo humano não acarreta consequências para a epistemologia da histó- ria; não é introduzido pelo historiador no momento d a síntese; per- tence ao próprio vivido e não se restringe a narrativa que o histo- riador faz desse vivido; reencontramo-lo tanto no romance como no menor fragmento de conversação.

Acontecimento e documento

A história é narrativa de acontecimentos: tudo o resto daí decor- re. Dado que ela é no conjunto uma narrativa, não faz revivedz),

tal

como o romance; o vivido

tal

como sai das mãos do historiador não é o dos actores; é uma narração, o que permite eliminar al- guns falsos problemas. Como o romance a história selecciona, simplifica, organiza, faz resumir um século numa página(3) e es- ta síntese da-narrativa não é menos espontânea do qui a da nossa memória, quando evocamos os dez últimos anos que vivemos. Es- pecular Sobre o intervalo que separa sempre o vivido e a recolecção da narrativa levaria simplesmente a verificar que Waterloo não foi a mesma coisa,para um veterano e para um marechal, quer se possa contar esta batalha na primeira ou n a terceira pessoa, falar dela como de uma batalha, duma vitória inglesa ou de uma derro- t a francesa, quer se possa deixar antever desde o princípio qual foi o epílogo ou fingir descobri-lo; estas especulações podem dar lu- gar a divertidas experiências de estética para o historiador; são a descoberta de um limite.

Este limite é o seguinte: em caso algum o que os historiadores chamam um acontecimento é agarrado directa e inteiramente; é-o sempre incompleta e lateralmente, através dos documentos ou dos testemunhos, digamos através dos tekmeria, dos ves Mesmo que eu fosse contemporâneo e testemunha de Wa mesmo que fosse o principal actor e Napoleão em pessoa, t e n a s e mente uma perspectiva sobre o que os historiadores chamarão o acontecimento de Waterloo; não poderei deixar a posteridade mais do que o meu testemunho, a que ela chamará vestígio se che- gar até ela. Mesmo se eu fosse Bismarck que toma a decisão de expedir o despacho de Ems, a m.inha própria interpretação do acon- tecimento não seria talvez a mesma dos meus amigos, do meu con-

(2) F. Ricoeur, Histoire et Vérité, Seuil, 1955, p. 29.

(3) H. I. Mamu, .L.. métier d'historienn, na Col. Encyclopbdie de Ia

Pléiade, L'Histoire et ses hféthodes, p. 1469.

fessor, do meu historiador oficial e do meu psicanalista, que po- derão ter a sua própria versão da minha decisão e pretender saber melhor que eu o que eu queria. Por essgncia, a história é conheci- mento através de documentos. A narrativa histórica coloca-se pa- ra além de todos os documentos, visto que nenhum deles pode ser o acontecimento; não é um documentário fotomontado e não faz ver o passado «em directo, como se você l á tivesse estado»; para reto- mar a util distinção de G. Genette(4), é diegesis e não mimesis. Um diálogo autêntico entre Napoleão e Alexandre I, se tivesse sido conservado pela estenografia, não seria «colado» tal e qual na nar- rativa: o historiador preferirá mais frequentemente falar sobre es- t e diálogo; se o cita textualmente, a citapão terá um efeito literário, destinado a dar vida à intríga

-

digamos, dar ethos

-

o

xima a história assim escrita dahistória romanceada.

Acontecimento e diferença

Sendo narrativa de acontecimentos, a história, por definição,

não se repete e é somente história das variações; rilatar-se-a a Guerra de 1914, mas não o fenómeno-guerra; imaginemos um - fí- sico que não procurasse a lei da queda dos corpos, mas relatasse quedas e as suas diversas «causas». Do texto do homem, o historia- dor conhece a s variantes e nunca o próprio texto; não é necessário .

pedir à história a maior parte, talvez até a mais interessante, do que se poderia saber do homem.

Um acontecimento destaca-se sobre o fundo da uniformidade;

é uma diferença, uma coisa que não podemos conhecer a priori: a história é filha da memória. Os homens nascem, comem e mor- rem, mas somente a história pode ensinar-nos a suas guerras e os seus impérios; são cruéis e quotidianos, nem demasiado bons, nem ,demasiado maus, mas a história dir-nos-á se, numa época dada, eles preferiam o lucro indefinido à reforma após adquiri- rem a fortuna e como percebiam ou classificavam a s cores. Ela não nos ensinará que os Romanos tinham dois olhos e que o céu era azul para eles; em contrapartida, não nos deixará ignorar que, onde recorremos à s cores para falar do céu quando faz bom tempo, os Romanos recorriam a uma outra categoria e falavam de caelum serenum de preferência a céu azul; é um acontecimento se- mântico. Quanto ao céu nocturno, viam-no, com os olhos de senso comum, como uma abóbada sólida e não muito distante; nós pelo contrário cremos ver a í um abismo infinito, desde a descoberta dos planetas medicéenes que causou, ao ateu que Pascal faz falar, o terror que se sabe. Acontecimento do pensamento e da sensibili- dade.

(4).cFrontiéres du récit», in Figures II, Seu& 1969, p. 50.

-

A história admite o ethos e a hipotipose, mas não opathos.

(12)

Não existe acontecimento em si, somente em relação a uma concepção do homem eterno. Um livro de história assemelha-se um pouco a uma gramática; a gramática prática duma língua es- trangeira não recenseia tabula rasa todas a s regras da língua, mas somente aquelas que são diferentes da língua falada pelo lei- tor a quem a gramática se destina e que poderiam surpreendê-lo. O historiador não descreve exaustivamente uma civilização ou um período, nem faz um inventário completo, como se desembar- casse vindo de outro planeta; ele dirá ao seu leitor somente o que é

necessário para que este possa apresentar a si próprio essa civiliza- ção a partir do que considera sempre verdade. Quer isto dizer sim- plesmente que o historiador não tem sempre de enunciar verdades primeiras? A infelicidade é que a s verdades primeiras têm uma tendência vergonhosa para se substituírem à s verdades verdadei- ras; se ignorarmos que a s nossas concepções do céu, das cores lucro, justificadas ou não, não são pelo menos eternas, não te mos a ideia de interrogar os documentos sobre estes capítulo melhor, não perceberemos mesmo o que eles nos dizem.

Pelo que tem paradoxal e de crítico, o lado «historicista» da his- tória tem sempre sido um dos atractivos mais populares do género; de Montaigne a Tristes Trópicos ou à História d a Loucura de Fou- cault, a variedade dos valores através das nações e dos séculos é

um dos grandes temas da sensibilidade ocidental(5). Como se opõe à nossa tendência natural para o anacronismo, tem também um valor heurístico. Um exemplo. No Satiricon, Trimalcião, depois de beber, fala longa, orgulhosa e alegremente dum magnífico tú- mulo que mandou construir; numa inscrição helenística, de um benfeitor público que o Estado quis honrar, vêem-se expostas, com cópia de pormenores que honras a pátria conferirá ao seu cadáver no dia da cremação. Este macabro involuntário adquirirá o seu verdadeiro sentido quando lermos, no livro do Padre Huc(6), que a atitude dos Chineses é a mesma nesta matéria: «As pessoas abasta- das, e que têm bens supérfluos para os seus gastos comezinhos, não deixam de se precaver com um caixão segundo o seu gosto, e que lhes assente bem. Esperando que chegue a hora de se deitarem den- tro dele, guardam-no em casa como um móvel de luxo que não po- de deixar de apresentar um a r consolador e agradável nos aparta- mentos convenientemente ornamentados. O caixão é, sobretudo pa- ra os filhos-família, um excelente meio de testemunhar a vivaci- dade da sua piedade filial aos autores dos seus dias; é uma doce e grande consolação no coração de um filho poder comprar um cai-

( 5 ) Sobre este tema, no fundo tão diferente da distinção antiga entre na- tureza e convenção, physis e thesis, ver Leo Strauss, Droit Naturel et Histoi- re, trad. franc., Plon, 1954, pp. 23-49; o tema torna a encontrar-se em Nie- tzsche (ibid., p. 41).

( 6 ) Souuenirs d'un Voyage dans lu Tartarie, le Thibet et la Chine, edi-

ção de Ardenne de Tizac, 1928, v017

IV,

p. 27.

xão para um velho pai ou uma velha mãe e oferecer-lho no momen- to em que menos esperam.» Lendo estas linhas escritas n a China compreendemos melhor que a abundância de material funerário n a arqueologia clássica não se deve somente ao acaso das desco- bertas; o túmulo era um dos valores da civilização helenístico-ro- mana e os Romanos eram tão exóticos como os Chineses; não h á nisto urna grande revelação donde se possam tirar páginas trági- cas sobre a morte e o Ocidente, mas é um pequeno facto verdadeiro que dá maior relevo a um quadro de civilização. O historiador nunca faz precisamente uma revelação tonitruante que transtorne a nossa visão do mundo; a banalidade é feita de particularidades insignificantes que, multiplicando-se, compõem um quadro mui- to inesperado.

Notemos de passagem que, se escrevêssemos uma história ro- mana destinada a leitores chineses, não teríamos de comentar a atitude romana em matéria de túmulos; poderíamos contentar- -nos em escrever, como Heródoto: «Sobre este ponto, a opinião des- te povo é mais ou menos semelhante à nossa.» Se, portanto, para estudar uma civilização, nos limitarmos a ler o que ela diz de si própria, quer dizer, a ler as fontes relativas só a essa civilização, torna-se mais difícil o dever de nos espantarmos do que, aos olhos dessa civilização, era evidente; se o Padre Huc nos faz tomar cons- ciência do exotismo dos chineses em matéria funerária e se o Sati- ricon não nos dá a mesma surpresa para os romanos, é porque Huc não era chinês, enquanto Petrónio era romano. Um historiador que se contentasse em repetir em discurso indirecto o que os seus heróis dizem deles próprios seria tão fastidioso quanto edificante. O estudo de qualquer civilização enriquece o conhecimento que te- mos de uma outra e é impossível ler a Voyage dans I'Empire Chi-

nois de Huc ou a Voyage en Syrie de Volney sem estudar de novo o Império Romano. Pode generalizar-se o procedimento e, qual- quer que seja a questão estudada, abordá-la sistematicamente sob o ângulo sociológico, ou seja, sob o ponto de vista da história compa- rada; a receita é mais ou menos infalfvel para renovar qualquer ponto da história e a s palavras de estudo comparado deveriam ser pelo menos tão consagradas como a s da bibliografia exaustiva. Porque o acontecimento é diferença e sabemos bem qual é

característico do ofício de historiador e o que lhe dá o seu s pan@r-se com o que é evidente.

E acontecimento tudo o que não é evidente. A escolástica dina que a história se interessa tanto pela matéria como pela forma, tan- to

elas

particularidades individuais como pela essência e pela de- finição; a escolástica acrescenta, é verdade, que não h á matéria sem forma e nós veremos

também aos historiadores. distinção de Dilthey e Win

(13)

ciências nomográficas, que têm por fim estabelecer leis ou tipos, e por outro a s ciências ideomáficas, sue se debrucam sobre o indivi- dual; a física ou a economia são k~mográficas a história é ideo- gráfica (quanto à sociologia, ainda não se sabe o que é; ela sabe que h á um lugar destinado a uma nomografia do homem e queria ocupá-lo; mas frequentemente, sob a bandeira da sociologia, es- creve-se o que é n a realidade uma história da civilização contem- porânea, e até nem é o que se faz de pior).

Mas dizer que o acontecimento é individual é uma qualifica- ção equívoca; a melhor definição de história não é a de que tem por objectivo o que nunca vemos duas vezes. Pode acontecer que uma considerável aberração da órbita de Mercúrio, devida a uma rara conjunção de planetas, não torne a acontecer, e pode também acon- tecer que se reproduza num futuro remoto; o que importa é saber se a aberração é contada em razão de si mesma (o que seria fazer a história do sistema solar) ou se não vemos nela mais do que um problema a resolver pela mecânica celeste. Se, como movido por uma mola, João Sem Terra «tornasse a passar uma segunda vez por cá», para imitar um exemplo consagrado, o historiador conta- ria as duas passagens e não se sentiria menos historiador por isso; que dois acontecimentos se repitam, que se repitam mesmo exactamente, é uma coisa; que eles não sejam pelo menos dois é uma outra, que conta somente para a história. Do mesmo modo, um geógrafo que faz geografia duma região considerará como dis- tintos dois círculos glaciares, mesmo que se assemelhem muito e apresentem um mesmo tipo de relevo; a individualização dos fac- tos historicos ou geográficos pelo tempo ou pelo espaço não é con- traditória com a sua eventual redução a uma espécie, um tipo, ou um conceito. A história

-

é um facto - presta-se mal a uma tipolo- gia e quase nunca podemos descrever tipos bem caracterizados de revoluções ou de culturas como descrevemos uma variedade de insectos; mas, mesmo que fosse de outro modo e existisse uma va- riedade de guerra da qual se pudesse fazer uma descrição com muitas páginas, o historiador continuaria a contar os casos indi- viduais pertencentes a essa espécie. Todavia, o imposto directo pode ser considerado como um tipo e o imposto indirecto também; o que é historicamente pertinente é que os Romanos não tinham im- posto directo e quais foram os impostos estabelecidos pelo Directó- rio.

Mas que individualiza os acontecimentos? Não é a sua diferen- ça nos pormenores, a sua umatéria,,, o que eles são em si próprios, mas o facto de acontecerem, quer dizer, acontecerem num dado mo- mento; a história não se repetirá nunca, mesmo que lhe aconteça repetir a mesma coisa. Se nos interessarmos por um acontecimen- to em si mesmo, fora do tempo, como por uma espécie de ornamen-

to(8), seria inútil como estetas do passado, deleitarmc+nos com o que ele teria de inimitável, uma vez que o acontecimento não dei- xaria de ser um «modelo» de historicidade, sem ligações no tem- po. Duas passagens de João Sem Terra não são um modelo de pe- regrinação que o historiador teria em duplicado, porque o historia- dor não consideraria indiferente que aquele príncipe, que já ti- vera tanto desgostos com a metodologia da história, tivesse tido a infelicidade suplementar de tornar a passar por onde já tinha pas- sado; ao anunciar-se a sua segunda passagem, ele não diria «eu conheço., como faz o naturalista quando se lhe leva um insecto que já possui. O que não implica que o historiador não pense por conceitos, como toda a gente (ele fala correctamente em «passa- gem»), nem que a explicação histórica não deva recorrer a tipos, como o de «despotismo esclarecido* (isto já foi sustentado). Isto sig- nifica simplesmente que a alma do historiador é a de um leitor de faits-divers; estes são sempre os mesmos e são sempre interessan- tes porque o cão que é atropelado neste dia não é aquele que o foi n a véspera, e mais naturalmente porque hoje não é avéspera.

Natureza e história

De uue um facto seja singularizado não se deduz que de direito ele nã; seja cientificakenté explicável; apesar do que frequente- mente se diz. não h á uma diferenca radícal entre os factos estuda- dos pelas ciências físicas e os factos históricos: todos são indivi- dualizados num ponto de espaço e do tempo e seria a priori possível tratar cientificamente tanto estes como aqueles. Não se podem

(8) Esta espécie de estetismo do acontecimento é, no fundo, a atitude de Rickert, que opunha, à s ciências físicas, a história como conhecimento do individual. Mas ele pensava menos no individual como acontecimento singularizado no tempo, do que no individual como peça de museu: seriam objectos para a história, segundo ele, u m diamante famoso como o Regente, por oposição ao carvão que não perderia, ao scr cortado, uma individualida- de que não possui; ou Goethe, por oposição a u m homem comum. O que faz desses objectos outras tantas personalidades é o valor que têm para nós: a história é relação de valores; é esta uma das grandes ideias do historicis- mo alemão como veremos no capítulo

IV,

ela é a resposta ã interrogação central do historicismo: o que faz com que um fado seja «históricon? Ric- kert é então obrigado a explicar como 6 que o historiador não fala somente de diamantes e homens de g6nio: a razão seria que ao lado dos objectos his- tóricos «primários., como Goethc, haveria objectos históricos a título indi- recto, como o pai de Goethe. Veremos no capítulo IV a influência destas ideias em Max Weber. Sobre Rickert, ver M. Mandelbaum, The Problem of Historical Knowledge, an Answer to Relatzvism, 1938, reimp. 1967, Har- per Torchbooks, pp. 119-161; R. A l ~ n , Lu Philosophie Critique de L'Histoi- re, Essai sur une Théorie AUemande de Z'Histoire, Vrin, 1938, reimp. 1969, pp. 113-157.

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opor a ciência e a história como o estudo do universal e o do indiw'- dual; antes de mais os factos físicos não são menos individualiza- dos que os factos históricos; seguidamente o conhecimento duma individualidade histórica supõe o seu relacionamento com o uni- versal: nisto é um motim e aquilo uma revolução, que se explica, como sempre, pela luta de classes, ou pela animosidade da multi- d ã o ~ . Que um facto histórico seja «aquilo que nunca se verá duas v e z e s não impede a priori explicá-lo. Duas passagens de João Sem Terra são dois acontecimentos distintos? Explicar-se-ão um ao outro, eis tudo. A história é um padrão de processos e a ciência mais não faz do que explicar processos; se o calor dilata duas ve- zes, a 12 de Março e de noyo a 13, o comprimento duma barra de fer- ro situada n a Praça de 17Etoile, explicaremos um e outro facto indi- vidual de dilatação. E poético opor o caracter histórico do homem às repetições d a natureza, mas esta não é uma ideia menos confu- s a do que poética.

Também

a natureza é histórica, tem a sua histó- ria, a sua cosmologia; a natureza não é menos concreta do que o ho- mem e tudo o que é concreto é-o no tempo; não são os factõs físicos que se repetem, é a abstracção sem lugar nem data que o físico daí extrai; se o submetermos ao mesmo tratamento, o homem repete- -se do mesmo modo. A verdade é que o homem concreto tem razões que a natureza não tem para se repetir (é livre, pode acumular co- nhecimentos, etc.); mas não é porque o homem tem a sua própria maneira de ser histórica que a natureza não pode ter a sua manei- ra própria de ser, Cournot tem inteira razão em não estabelecer ne- nhuma diferença de princípio entre a história da natureza e a do homem. Conclui-se assim, é preciso reconhecê-lo, que a história do cosmos e d a natureza é cientificamente explicável e que a do ho- mem não o é, ou não o é praticamente: mas, como veremos no fim

deste livro, esta diferença não é de modo algum devida ao modo I particular que o homem tem de ser histórico e menos ainda ao ca-

rácter individualizado dos factos históricos, ou, melhor, de todo o facto, histórico ou natural. Não existe, para o historiador, qual- quer impossibilidade a priori de imitar os Esicos e de extrair dum facto humano um invariante que, sendo abstracto, é eterno e vale- rá para todos os casos concretos futuros, como a lei de Galileu é vá- lida para toda a queda futura dum corpo; não se diz que Tucídides escreveu a sua História para dar lições eternas deste género? Vere- mos adiante por que esta operação não é realizável, e veremos tam- ue a sua impossibilidade tem a ver com a natureza da causa- em história e não com o carácter individualizado dos acon- tecimentos humanos.

A verdadeira diferença não se encontra entre factos históricos I e factos físicos, mas sim entre historiografia e ciência física. A E-

I

sica é um corpo de leis e a história é um corpo de factos. A física I não é um corpo de factos físicos descritos e explicados, é o corpus

1

das leis que servirão para explicar esses factos; para o físico, a I

existência da Lua e do Sol, do próprio cosmos, é uma anedota que só I

pode servir para estabelecer a s leis de Newton; a seus olhos, estes

astros não valem mais que uma batata(9). Para o historiador não é assim; quando houvesse (a supor que possa haver) uma ciência que fosse o corpus das leis da?iistória, a história não seria essa ciência: ela seria o corpw dos factos que explicariam essas leis. Resta saber se, existindo uma ciência das leis históricas, sentiría- mos ainda interesse pelos próprios factos; sem dúvida nos conten- tan'amos em estabelecê-los e a historiografia reduzir-se-ia à crí- tica histórica.

Acontecimentos verdadeiros

A história é anedótica, cativa a atenção contando, como o ro- mance. Distingue-se do romance num ponto essencial. Suponha- mos que me descrevem um motim e que sei que pretendem com is- so contar-me história e que esse motim aconteceu realmente; vi- sualizá-lo-ei como tendo acontecido num momento determinado, num determinado povo; tomarei por heroína aquela antiga nação que me era desconhecida um minuto antes e ela tornar-se-á para mim o centro da narrativa ou antes o seu suporte indispensável. Assim faz também todo o leitor de romance. S~nente, aqui, o ra-

mance é verdadeiro, o que o dispensa de ser cativante: a história do motim pode permitir-se ser enfadonha sem ser por isso desvalo- rizada. E provavelmente por isso que, e m contrapartida, a história imaginária nunca pôde assumir-se como género literário (salvo para os estetas que lêem Graal Flibuste), tal como o faits-divers imaginário (salvo para os estetas que lêem Félix Fénéon): história que se quer cativante ressente-se do falso e não con ultrapassar o pastiche. Conhecem-se os paradoxos da indivi dade e da autenticidade; para um fanático de Proust, é preciso que esta relíquia seja propriamente a caneta com a qual foi escrito o Temps Perdu, e não uma caneta idêntica, apesar de fabricada em grande série. A «peça de museu* é uma noção complexa que reúne beleza, autenticidade, e raridade; nem um esteta, nem um arqueó- logo, nem um coleccionador farão, em estado puro, um bom conser- vador. Se bem que um dos falsos quadros pintados por van Meege- ren seja tão belo como um Vermeer autêntico (enfim, como um Ver- meer de juventude, como Vermeer antes de Vermeer), não é Vermeer. Mas o historiador não é nem um coleccionador, nem u esteta; a beleza não lhe interessa, a raridade tampouco: apenas verdade.

A história é uma narrativa de acontecimentos verdadeiros. Nos termos desta definição, um facto deve preencher uma só condi- gão para ter a dignidade da história: ter acontecido realmente. Ad- miremos a simplicidade enganadora desta definição n a qual se

(9) Husserl, Recherches Logiques, trad. Élie, P. U. F., 1959, vol. 1, p. 260; B. Russel, TheAnalysis ofMatter, Allen andUnwin, 1954, p. 177.

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manifesta o génio que tinha o aristotelismo de se aperceber do es- sencial e das evidências que não se vêem; sabe-se que à primeira vista uma grande filosofia não parece profunda, obscura ou exal- tante, mas insípida. Narrativa de factos verdadeiros, e não vero- símeis (como no romance) ou inverosímeis (como o conto). O que implica entre outras coisas que o método histórico com que nos martelam os ouvidos não existe. A história tem uma cn'tica, a que

Foustel de Coulanges chamava análise e que é difícil: toda-a gente I

sabe que são precisos «dez anos de análise para um dia de sínte- se*. Mais precisamente a síntese não pede mais do que um dia. A palavra análise é enganadora; digamos: a organização dos do- cumentos e a sua crítica. Ora a crítica histórica tem por única fun- ção responder à questão seguinte que lhe coloca o historiador: «Eu considero que este documento me ensina isto; posso confiar nele?» Ela não está encarregada de dizer ao historiador, que não teria mais que fazer do que a síntese, o que nos informam os documen- tos: compete ao próprio historiador vê-lo e a sua síntese não é nada se não tomar conhecimento dos documentos. Assim também a s re- gras da síntese histórica são páginas em branco(l0); transpostas a s técnicas de manuseamento e de controlo dos documentos, não h á mais método da história tal como não existe da etnografi ou da arte de viajar.

Não existe método da história porque a história não tem nenhu- m a exigência; ela está satisfeita desde que se contem coisas verda-

(10) Digamos que se podem distinguir três momentos no trabalho his- tórico: a leitura dos documentos, a crítica e a retmdicção. l o Posso em- preender um trabalho sobre a história da China sem ser sinólogo: se as fontes estão traduzidas, posso lê-las e compreendê-las tão bem como qual- quer outro e, na simples leitura dessas fontes, a csintese, dos acontecimen- tos far-se-á rapidamente no meu espfrito, como quando abro o meu jornal habitual. 20 Mas ser-me-á necessário saber, por meio da crítica, se as inscrições sobre carapaças de tartaruga são autênticas e se as obras atribuí- das a Confúcio lhe pertencem realmente; ser-me-á preciso também - e é essa parte delicada da crítica - aprender a distinguir, nos textos chineses, as proposições que são para tomar iiletra e as que são metafóricas, conven- cionais e fruto das ilusões que a sociedade chinesa faz sobre si própria. 3." Sendo os acontecimentos sempre conhecidos por tekmeria parciais e indi- rectos, haverá neles bastantes lacunas que eu preencherei fazendo a retro- dicção; tal imperador abdicou para se isolar numa montanha, num eremi- t6rio taufsta, mas por que o fez ele?

d

esta a maneira chinesa de dizer que ele foi encerrado num convento por qualquer mordomo do palAcio? Ou te- ria realmente acontecido que no fim da sua vida um letrado, apesar de im- perador, tivesse desejado afastar-se para preparar a sua alma através da filosofia, como em Roma? Somente a retmdiccão baseada numa "seria- ç ã o ~ de casos semelhantes e na probabilidade das diferentes causas me per- mitirá responder. A sintese consiste, na verdade, em preencher os vazios da compreensão imediata. Daqui resulta que é enganadora a distinção en- tre grande história e "disciplinas auxiliares».

deiras(l1). Não procura mais que a verdade, e nisso não é como a ciência, que procura o rigor. Não impõe normas, nenhum? regra de jogo lhe serve de suporte, nada é inaceitável para ela. E nisto que reside o carácter mais original do género histórico. Imagina- -se que seja suficiente enunciar o «grande teorema de Fermat e verificá-lo por meio de calculadoras electrónicas para fazer arit- mética? Estabelecer que o íman atrai o ferro para fazer física?

Far-

-se-ia quando muito história natural. Existe certamente um «campo» dos fenómenos físicos e o movimento, por exemplo, foi sempre considerado como pertencente a esse campo de Aristóteles a Einstein; mas não é suficiente que a realidade dum fenómeno deste campo seja reconhecida para que o fenómeno entre ipso facto

no corDus da física. exce~to a titulo de problema.

história

é um s&r decepcio6ante que ensina coisas que se-

riam tão banais como - - a nossa vida se não fossem diferentes. Sim,

é pitoresca; sim, a s cidades antigas eram cidades repletas de chei- ros, cheiro dos corpos demasiado apertados, das valetas, cheiro das lojas tenebrosas onde se corta a carne e os couros e das quais não vemos a beleza n a tristeza das ruas e sob os andares de ressalto

(suggrundationes); cidades onde se redescobre a atracção das cores pemárias, o vermelho, o amarelo, e o gosto infantil pelo que brilha.

E

um pouco enjoativo como as recordações de quem viajou demasiado, não é rigoroso nem misterioso, mas n+o se pode negar que seja verdadeiro. A história é uma cidade que se visita pelo úni- co prazer de ver assuntos humanos n a sua diversidade e ao na- tural, sem nisso encontrar qualquer outro interesse ou alguma be- leza.

Mais exactamente, visitamos, dessa cidade, o que ainda é visí- vel, os vestígios que perduram; a história é conhecimento mutila- do(l2). Um historiador não diz o que foi o Império Romano ou a Re- sistência Francesa em 1944, mas sim o que ainda é possível saber disso. Não h á seguramente dúvida de que não se pode escrever a história de acontecimentos dos quais não resta nenhum vestígio,

(11) Sobre a tripartiçáo dos sucessores de Aristóteles, verdade-vemsi- mil-inverosímil, ver R. Reitzenstein, Hellenistische Wunderer&hlun- gen, pp. 90-97; A. Rostagni, «Aristotele e l'aristotelismo nella storia

dell'estetica antica, nos seus Scritti minori, vol. I, pp. 205-216; W. f i l l , Studien zum Verstandnis der r6mischen Literatur, p. 61. No a h g o ~Histó- rim da Enciclopédia, Valtaire escrevia também <'História: é a narrativa de factos considerados como verdadeiros, ao contrário da fábula, que 6 nar- rativa de factos considerados como falsos.»

(13) Ver por exemplo, G. R. Elton, The Practice of History, 2." ed., Col-

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mas é curioso que não restem dúvidas; não se pretende apesar de tudo que a história é ou deva ser reconstituição integral do passa- do? Não damos títulos aos livros como história de Roma» ou «A

Resistência em França»? A ilusão de reconstituição integral ad- vém do facto de que os documentos, que nos fornecem a s respostas, nos ditam também as perguntas; daí, não somente nos deixam ig- norar bastantes coisas, mas ainda deixam ignorar que a s ignora- mos. Porque é quase um esforço contra natura conseguir imagi- nar que possa existir uma coisa da qual nada nos diz que exista; antes da invenção do microscópio ninguém tinha tido a tão sim- ples ideia de que pudessem existir seres mais pequenos do que aqueles que os nossos olhos conseguem ainda distinguir; nin- guém tinha tido em conta a possível existência de estrelas invisí- veis a olho nu antes do óculo de Galileu.

O conhecimento histórico é traçado sobre t> modelo de documen- tos mutilados; não aceitamos passivamente esta mutilação e deve- mos fazer um esforço para a ver, precisamente porque medimos o que deve ser a história sobre o modelo dos documentos. Não abord mos o passado com um questionário preestabelecido (qual era o nú- mero da população? o sistema económico? a civilidade pueril e ho- nesta?), estando decididos a recusar examinar todo o período que deixaria em branco a s respostas a um demasiado grande número de questões; não exigimos tampouco do passado que ele se explique claramente e não recusamos o título de facto histórico a qualquer acontecimento, sob o pretexto de que a s causas permanecem desco- nhecidas. A história não comporta o limite de conhecimento nem o mínimo de inteligibtlidade e nada do que foi, desde que o foi, é

inadmissível. A história não é, portanto, uma ciência; ela não tem por isso menos rigor, mas esse rigor coloca-se ao nível da crí- tica.

Capítulo I1

TUDO

É

HISTÓRICO, LOGO

A

HISTÓRIA

NÃO EXISTE

Incoerência da história

O campo hisMrico é portanto completamente indeterminado, com uma só excepção: é necessário que tudo o que se encontra te- nha realmente tido lugar. Quanto ao resto, que a textura do campo seja fechada ou aberta, intacta ou lacunar, não importa; uma pági- n a de história da Revolução Francesa tem uma trama bastante cer- rada para que a lógica dos acontecimentos seja quase inteiramen- te compreensível e um Maquiavel ou um Trotsky saberiam tirar dela toda uma arte da política; mas uma página de história do Oriente Antigo, que se reduz a alguns pobres dados cronológicos e contém tudo o que se sabe de um ou dois impérios dos quais nada mais subsiste para além do nome, é ainda história. O paradoxo foi claramente trazido à luz por Lévi-Strauss(1): «A história é um conjunto descontinuo, formado por domínios dos quais cada um é definido por uma frequência própria. Existem épocas em que nu- merosos acontecimentos oferecem aos olhos do historiador a s ca- ractensticas de acontecimentos diferenciais; existem outras épo- cas em que, pelo contrário (a não ser, bem entendido, para homens que as viveram), se passaram muito poucas coisas e por vezes na- da. Todas estas datas não formam uma serie, relevam de situa- ções diferentes. Codificados no sistema da pré-história, os episó- dios mais famosos da história moderna deixariam de ser pertinen- tes, excepto talvez (e mais uma vez, nada sabemos) algúns aspec- tos massivos da evolução demográfica considerada à escala do glo- bo, a invenção da máquina de vapor, e da electricidade e da ener- gia nuclear.»' A que corresponde uma espécie de hierarquia dos módulos: «A escolha relativa do historiador só se encontra entre uma história que informa mais e explica menos e uma história

(1) LCb Pensée Sauuage, Plon, 1962, pp. 340348; citamos estas páginas com grande liberdade, sem assinalar os cortes.

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que explica mais e informa menos. A história biográfica e anedóti- ca, que se encontra no ponto mais baixo da escala, é uma história fraca que não contém nela a sua própria inteligibilidade, a qual lhe advém somente quando a transportamos em bloco para o seio duma história mais forte; não temos portanto razão para crer que estes ajustamentos reconstituam progressivamente uma história total, porque o que ganhamos dum lado, perdemos do outro. A histó- ria biográfica e anedótica é menos explicativa, mas é mais rica do ponto de vista da informação dado que considera os indivíduos n a sua particularidade e porque pormenoriza, para cada um deles, os cambiantes do carácter, os desvios das suas motivações, a s fases da sua deliberação. Esta informação esquematiza-se, depois abo- le-se quando se passa a histórias cada vez mais fortes.»

Natureza lacunar da história

Para qualquer leitor provido de espírito crítico e para a maior parte dos profissionais(2), um livro de história surge sob um aspec- to muito diferente daquilo que parece ser; não trata do Império Ro- mano, mas do que ainda podemos saber desse império; por debaixo da superfície traquilizadora da narrativa, o leitor, a partir daqui- lo de que fala o historiador, da importância que ele parece atribuir a este ou àquele género de factos (a religião, a s instituições), sabe inferir a natureza das fontes utilizadas, assim como a s suas la- cunas, e esta reconstituição acaba por se tornar um verdadeiro re- flexo; ele adivinha 'a localização das lacunas mal remendadas, não ignora que o número de páginas que o autor concede aos dife- rentes momentos e aos diversos aspectos do passado é uma média entre a importância que têm esses aspectos aos seus olhos e a abun- dância da documentação; sabe que os povos de que se ignora a his- tória e que os .Primitivos» têm um passado, como toda a gente. Sa- be sobretudo que, duma página para outra, o historiador muda de tempo sem prevenir, segundo o tempo das fontes, que qualquer li- vro de história é, neste sentido, um tecido de incoerências e que não pode ser de outro modo; este estado de coisas é certamente insu-

(2) Para ilustrar algumas confusões, citamos estas linhas de A. Toyn- bee: «Não estou convencido de que se deva conceder uma espkie de privilé- gio à história política. Sei de antemão que se encontra aqui um preconceito generalizado; que é um t r a p comum à historiografia chinesa e à historio- grafia grega. Mas ele é completamente inaplicável A história da fndia, por exemplo. A fndia tem uma grande história da religião e da arte que não é, de modo nenhum, uma história política., (L'Histoire et ses Interprétations, Entretiens autour d ! h o l d Toynbee, Mouton, 1961, p. 196.) Estamos em ple- no santeiro de gpinal nos templos indianos; como poderemos julgar não- -grande uma história política que, na Índia, por falta de documentos, é quase desconhecida, e sobretudo o que quer dizer «grande,>? A leitura de

.

Kautilya, esse Maquiavel da Índia, faz ver as coisas doutra maneira.

portável para um espírito lógico e suficiente para provar que a história não é lógica, mas não h á remédio para isso e não pode ha- vê-lo.

A solução seria a modificação dos títulos dos capítulos? Um ca- pítulo intitular-se-ia, por exemplo, NO que sabemos da história rural de Roma», em vez de «A história rural em Rom a»... Pelo menos poderíamos proceder a uma definição prévia das fontes se- gundo o seu carácter (história historizante, anedótica, romance, cronologia árida, documentos administrativos) e o seu tempo (uma página para um dia ou para um século)? Mas como resolver a difi- culdade que consiste n a existência de aspectos do passado que a s fontes nos deixam ignorar e que ignoramos que elas nos deixam ignorar? Além do mais, seria preciso decidir da importância que o historiador atribuirá aos diferentes aspectos; a história política do primeiro século antes da nossa era é conhecida frequentemente quase mês a mês; da do segundo século não se conhecem mais do que a s grandes linhas. Se verdadeiramente a história se acodifi- casse» metodicamente segundo «frequências», a lógica exigiria que os dois séculos fossem descritos segundo o mesmo ritmo; dado que não podemos descrever para o segundo século o pormenor dos acontecimentos, que ignoramos, só nos restaria abreviar os porme- nores do primeiro século

...

Não conviria, diríamos nós com efeito, interrogar as fontes sobre os factos importantes e deixar cair a poei- ra dos pormenores? Mas o que é importante? Não se trata antes do que é interessante? Como seria desagradável então esta espécie de nivelamento da narrativa por baixo, feito em nome da coerência! Por que fechar os olhos para ver, nas fontes do primeiro século, o pulular dos pormenores interessantes que elas narram? A pala- vra exacta é: interessante; falar de importância histórica seria pretensiosismo de seriedade. As intrigas à volta de Cícero já não são, com certeza, importantes para nós, mas são curiosas em si mesmas e são-no pela simples razão de que aconteceram; é assim que, para um naturalista, o insecto mais desprovido de consequên- cias e de valor é muito interessante porque existe e que para os al- pinistas um cume merece ser escalado pela única razão de que, como dizia um deles(3), «está lá». Então, dado que não podemos fa- zer dizer à história maisdo que dizem as fontes, apenas nos resta escrevê-la como sempre se escreveu: com as desigualdades de tempo que são proporcionais à desigual conservação dos vestígios do passado: abreviando, para o conhecimento histórico, é suficien- te que um acontecimento tenha tido lugar para que seja bom sa- bê-lo.

Veremos portanto uma história do Império Romano, onde a vi- da política é mal conhecida e a sociedade bastante bem conhecida, suceder-se sem chocar a uma história do fim da República n a

(3) O matemático Mallory que, em 1924, desapareceu no Evereste; igno- ra-se se conseguiu atingir o cume.

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qual acontece o contrário e preceder uma história da Idade Média que nos fará compreender, por contraste, que a história económica de Roma é quase desconhecida. Não pretendemos com isto trazer à

luz o facto evidente de que, dum período ao outro, a s lacunas das fontes não dizem respeito aos mesmos capítulos; verificamos sim- plesmente que o carácter heterogéneo das lacunas não nos impede de escrever alguma coisa que tem ainda o nome de história, e que não hesitamos em reunir a República, o Império e a Idade Média num mesmo tapete, apesar de as cenas que bordamos destruí- rem O conjunto. Mas o mais curioso é que a s lacunas da história se estreitam espontaneamente aos nossos olhos e que só a s discerni- mos à custa de um esforço, tanto as nossas ideias são vagas sobre o que se deve esperar a priori encontrar n a história, quando a abor- damos desarmados dum questionário elaborado. Um século é um espaço em branco nas nossas fontes, é difícil que o leitor sinta a la- cuna. O historiador pode escrever dez páginas sobre um dia e desli- zar em duas linhas sobre dez anos: o leitor confiará nele, como num bom romancista, e presumirá que esses dez anos são vazios de acontecimentos. Vixere ante nos Agamemnones multi é unia ideia que não nos ocorre naturalmente; pensemos em Marx e En- gels povoando milénios de pré-história com o seu monótono comu- nismo primitivo, ou ainda no género de «história verosímiln à

qual recorrem os arqueólogos para reconstruir mais ou menos a história dos séculos obscuros: género que é o inverso da utopia e que tem a mesma insipidez demasiado lógica que aquela, sendo a regra do jogo fazer o mínimo de suposição possível (o historiador deve ser prudente) para justificar da maneira mais económica os poucos vestígios que o puro acaso escolheu e deixou chegar até'nós. A familiaridade que temos com o passado é como aquela que temos com os nossos avós; não existem em carne e osso, de modo que os dias passam e não pensamos nunca que a sua biografia, que igno- ramos quase inteiramente, é povoada de acontecimentos tão apai- xonantes como a nossa e não se reconstrói à risca. A ciência é ina- cabada de jure, só a história pode permitir-se ser lacunar de facto: porque não é um tecido, não tem trama.

A noção de não-acontecirnental(')

Também os historiadores, em cada época, têm a liberdade de operar cortes n a história a sua maneira (em história política, eru- dição, biografia, etnologia, sociologia, história natural)(4), porque a história não tem articulação natural; chegou o momento de fazer

(*) guenementielle, adj., relativo a acontecimento. Este neologismo, que ainda não existia em português, foi criado no francês em 1959.

(4) Por exemplo, a história das artes, na Histoire Naturelle de Plínio, o

Velho.

a distinção entre o .campo» dos acontecimentos históricos e a histó- ria como género, e as diferentes maneiras que houve de a conceber ao longo dos séculos. Porque, nas suas metamorfoses sucessivas, o género histórico conheceu uma extensão variável e, em certas épo- cas, partilhou o seu domínio com outros géneros, história de via- gens ou sociologia. Distingamos portanto o campo acontecimen- tal, que é o domínio virtual do género histórico, e o reino da exten- são variável em que o género se dividiu nesse domínio com o cor- r e r dos tempos.

O

Oriente Antigo tinha a s suas listas de reis e os seus anais dinásticos; com Heródoto, a história é política e mili- tar, pelo menos em princípio; ela descreve a s façanhas dos Gregos e dos Bárbaros; no entanto, o viajante Heródoto não a separa de uma espécie de etnografia histórica. Nos nossos dias, a história anexou a si a demografia, a economia, a sociedade, a s mentalida- des e aspira a tornar-se «história total», a reinar sobre todo o seu domínio virtual. Uma continuidade enganadora estabelece-se diante dos nossos olhos entre esses reinos sucessivos; donde a fic- ção de um género em revolução, sendo a continuidade assegurada pela própria palavra história (mas pensamos dever pôr de parte a sociologia e a etnografia) e pela fixidez da capital, a saber a histó- ria política:'todavia, nos nossos dias, o papel capital tem tendência para passar para a história social ou para o que se chama civiliza- ção.

Então, o que é histórico, o que náo é? Teremos mais à frente que colocar a mesma questão; mas digamos desde já que não podemos confiar, para fazer a distinção, nas fronteiras do género histórico num dado momento; seria o mesmo que acreditar que a tragédia raciniana ou o drama brechtiano encarnam a essência do teatro. E impossível, nesta fase do raciocínio, fundamentar n a razão a distinção entre história, etnografia, biografia e vulgar crónica jor- nalística; impossível dizer por que a vida de Luís XIV seria histó- ria e a de um camponês nivernês no século XVII não o seria; é im- possível afirmar que o reino de Luís XIV narrado em três volumes é história e que, narrado em cem, já não o é. Que se experimente fa- zer a distinção, dar uma definição (a história é história das socie- dades, história do que é importante, do que importa para nós...): o historicismo alemão demonstrou-o e, ainda mais, confirmou-o involuntariamente pelo seu falhanço: nenhuma definição resiste; a s únicas fronteiras continuam a ser, por enquanto, a s conven- ções variáveis do género. Além disso pode constatar-se que o géne- ro, que variou bastante no decurso da sua evolução, tende, desde Voltaire, a expandir-se cada vez mais; como um rio em região de- masiado plana, espraia-se largamente e muda facilmente de lei- to. Os historiadores acabaram por erigir em doutrina esta espécie de imperialísmo; recorrem mais a uma metáfora florestal do que uma fluvial: afirmam, pelas suas palavras ou pelos seus actos, que a história, tal como a escreveram em determinada época, não é mais do que terreno arroteado no meio de uma imensa floresta que, de direito, lhes pertence inteiramente. Em França, a Escola

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dos Annales, reunida em torno da revista fundada por Marc Bloch, dedicou-se a decifração das zonas circundantes desse terre- no arroteado; segundo estes pioneiros, a historiografia tradicional estudava demasiado exclusivamente os grandes acontecimentos reconhecidos como tais desde sempre; ela fazia «história-tratados e batalham; mas faltava decifrar uma enorme extensão de «não- -acontecimental» da qual não apercebemos sequer os limites; o nã+acontecimental são os acontecimentos ainda não saudados como tais: história dos solos, das mentalidades, da loucura ou da procura de segurança através dos tempos. Chamaremos, portanto, não-acontecimental à historicidade da qual não temos consciên- cia enquanto tal: a expressão será empregue com este sentido neste livro, e com justiça, porque a escola e a s suas ideias provaram sufi- cientemente a sua fecundidade.

O s factos não têm dimensão absoluta

No interior do terreno arroteado que as concepções ou a s con- versações de cada época mondam no campo da historicidade, não existe hierarquia constante entre a s províncias, nenhuma zona comanda outra nem, em qualquer caso, a absorve. Quando muito pode pensar-se que alguns factos são mais importantes que outros, mas essa importância depende inteiramente dos critérios escolhi- dos por cada historiador e não tem grandeza absoluta. E cómodo distinguir a história, económica, a história política, a das técnicas, etc., mas nenhuma regra de métodos nos ensina que uma dessas histórias precede a s outras. Ensinando-o ela e fosse o maixismo verdade demonstrada ou fosse ele verdade platónica, isso não afec- taria a maneira de narrar a história; a técnica não ihkgraria a economia, nem a economia a sociedade, e só se teriam sempre de descrever minuciosamente os acontecimentos sociais, económi- cos e técnicos. Por vezes, um hábil encenador organiza um vasto cenário: Lepanto, todo o século XVI, o eterno Mediterrâneo e o de- serto, onde Alá é o único a existir; é escalonar uma cenografia em profundidade e justapor, em barroco artístico, ritmos temporais di- ferentes, não é seriar os determinismos. Mesmo se, para um leitor de Koryé, a ideia de que o nascimento da física no século XVII se podia explicar pelas necessidades técnicas da burguesia ascenden- te não fosse inconsistente ou mesmo absurda(@, a história das ciências não desapareceria por ser explicada deste modo; de facto, quando um historiador insiste n a dependência da história das ciências em relação à história social, é muito frequente escrever uma história geral de todo um pen'odo e obedecer a uma regra retó-

( 5 ) A. Koyré, Études,d'Histoire de la Pensée Scientifique, pp. 61, 148 e

260, n.", 352 e segs.; Etudes Newtoniennes, p. 29; cf. Etudes d'H$toire de la Pensée Philosophique, p. 307.

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rica que lhe prescreve estabelecer a s pontes entre os capítulos sobre a ciência e os relativos a sociedade. A história é o reino da justapo- sição.

Permanece, contudo, a impressão de que a Guerra de 1914 é ain- da assim um acontecimento mais importante do que o incêndio do Bazar d a Caridade ou o caso Landru; a guerra é história, o resto é fait-divers. Não é mais que uma ilusão, que decorre de termos confundido a série de cada um destes acontecimentos e o seu tama- nho relativo n a série; o caso Landru fez menos mortos do que a guerra, mas será desproporcionado em relação a um pormenor da diplomacia de Luís XV ou a uma crise ministerial n a 3.qepúbli- ca? E que dizer do horror com que a Alemanha hitleriana enla- meou a face da humanidade, devido ao gigantesco fait-divers de Auschwitz? O caso Landru é de primeira grandeza n a história do crime. Mas essa história conta menos do que a história política; ocupará ela um lugar efectivamente menor n a vida da maior par- t e das pessoas? Dir-se-ia o mesmo da filosofia, e da ciência antes do século XVIII; tem ela menos consequências actuais? Tem a di- plomacia de Luís XV bastante mais?

Mas sejamos sérios: se um génio bom nos concedesse conhecer dez páginas do passado de uma civilização hoje desconhecida, que escolheríamos? Preferíamos conhecer grandes crimes ou saber a que se assemelharia essa sociedade, se à s tribos melanésias ou à

democracia britânica? Preferiríamos evidentemente conhecer se ela era tribal ou democrática. Simplesmente estamos ainda a con- fundir o tamanho dos acontecimentos e a sua série. A história do crime não é mais que uma pequena parte (mas muito sugestiva, nas mãos de um hábil historiador) da história social; do mesmo modo, a instituição de embaixadas permanentes, essa invenção dos venezianos, é uma pequena parte da história política. Seria pre- ciso, quer comparar a dimensão dos criminosos com a dos em- baixadores, quer comparar a historia social com a história políti- ca. Que preferiríamos saber, se a nossa civilização desconhecida era democratica e não tribal? Ou então se era industrial ou estava ainda n a idade da pedra lascada? Sem dúvida a s duas coisas; a menos que preferíssemos discutir para saber se a política é mais importante que a social e se a praia é melhor que a s férias n a mon- tanha? Eis que chega um demógrafo, que proclama que a demogra- fia deve levar a palma.

O que embrulha a s ideias é o género da história dita geral. Ao lado de livros que se intitulam Les Classes Dangereuses ou Histoi- re Diplotnatique e das quais o critério escolhido é indicado desde o titulo, existem outras com o titulo

Le

Seizième Siècle, nas quais o critério permanece tácito: não deixa de existir e não é menos sub- jectivo. O eixo destas histórias gerais foi durante muito tempo a história política, mas é hoje mais frequentemente nãc-aconteci- mental: economia, sociedade, civilização. Nem tudo é regulado do mesmo modo. O nosso historiador raciocinará sem dúvida assim: para não tornar desproporcionada a nossa exposição, falemos do

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