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O DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM INFANTIL: A ENTONAÇÃO COMO ELEMENTO DE ARGUMENTAÇÃO E PERSUASÃO.

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O DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM INFANTIL:

A ENTONAÇÃO COMO ELEMENTO DE ARGUMENTAÇÃO E PERSUASÃO.

Maria de Fátima de Souza Aquino - PROLING-UFPB/ UEPB

0. Palavras iniciais

A primeira forma de socialização da criança acontece por meio da linguagem (o termo linguagem está empregado em sentido amplo não apenas como o código lingüístico). Através dessa, a criança, antes mesmo de aprender a falar, tem acesso a regras, valores e crenças culturais da comunidade em que está inserida.

Nesse sentido, podemos afirmar que ela, desde muito cedo, participa de interações comunicativas demonstrando suas intenções, primeiramente, através de gestos, olhares, expressões faciais. Em seguida, combinando esses elementos não verbais com vocalizações com entonações específicas para cada intenção comunicativa.

Em uma fase mais adiantada (após o primeiro ano de vida), a criança argumenta a favor ou contra uma série de situações que lhe dizem respeito (a roupa que quer usar, o que deseja comer, como quer brincar) de forma competente, no sentido de persuadir seu interlocutor a aceitar o seu ponto de vista.

Este estudo tem como objetivo apresentar uma análise do uso da entonação como mecanismo de argumentação por uma criança na faixa etária dos dois (02) aos três (03) anos, em interação comunicativa espontânea com adultos e com outra criança mais velha.

1. Argumentação e Persuasão

O interesse pelos estudos da argumentação, de acordo com a literatura pertinente, é antigo, remonta à tradição filosófico-retórica dos antigos filósofos gregos. Esses estudiosos trabalharam a argumentação sob os seguintes prismas: a lógica formal (argumentos estritamente lógicos), a retórica e a dialética (argumentos dialéticos).

A argumentação se insere em um conjunto de ações humanas, através da linguagem, cuja finalidade é a adesão do outro a uma opinião ou a um determinado comportamento. Na Grécia clássica, era imperativo que as regras e normas da boa argumentação fossem dominadas por certas camadas sociais. O exercício do poder era ao mesmo tempo uma ciência e uma arte. (CITELLI, 1999). Portanto, é na Grécia que surgem os primeiros estudos sistematizados sobre a argumentação.

Nesse panorama histórico, merece destaque o livro Arte Retórica de Aritóteles, que ajudou a delimitar e explicitar o domínio da retórica. Para Aristóteles, a Retórica é a faculdade através da qual se é capaz de gerar o fazer persuasivo.(FARIA, 2004). Seu legado prevaleceu por muitos séculos, destacando-se o modo analítico de raciocínio, marcado pela análidestacando-se lógica dos argumentos. Com o advento do pensamento moderno, perde-se um pouco o interesse pela argumentação retórica. Haja vista uma mudança epistemológica, os estudos da argumentação se desvinculam dos princípios da lógica formal, voltando-se mais para uma abordagem do cotidiano. Nessa nova abordagem destacam-se os trabalhos de Toulmin e de Perelman e Olbrecht-Tyteca. (LEITÃO e BANKS-LEITE, 2006).

Neste texto não é nosso objetivo traçar um exaustivo panorama histórico dos estudos da argumentação, porém essa retomada à tradição clássica faz-se necessária, uma vez que os estudos atuais sobre argumentação são frutos das formulações desenvolvidas no discurso clássico.

O uso da linguagem, na interação comunicativa, terá sempre um objetivo a ser atingido: atuar sobre o outro, convencê-lo, influenciá-lo. Portanto o uso da linguagem, nesse sentido, é essencialmente argumentativo (KOCH, 2001).

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A argumentação desenvolve-se em função de um destinatário, que influencia direta ou indiretamente a forma como evoluem os argumentos propostos. Argumentamos para persuadir alguém que não partilha os mesmos pontos de vista ou as mesmas convicções que nós possuímos.

Koch (1987), citando Perelman, afirma que a argumentação caracteriza-se como um ato de persuasão, tendo em vista seu caráter de provocar ou incrementar a “adesão dos espíritos” às teses apresentadas. A autora destaca a diferença entre os atos de convencer e de persuadir:

Enquanto o ato de convencer se dirige unicamente à razão, através de um raciocínio estritamente lógico e por meio de provas objetivas, sendo assim, capaz de atingir um “auditório universal”, possuindo caráter puramente demonstrativo e atemporal [...], o ato de persuadir, por sua vez, procura atingir a vontade, o sentimento do(s) interlocutor(es), por meio de argumentos plausíveis ou verossímeis e tem caráter ideológico, subjetivo, temporal, dirigindo-se, pois, a um “auditório particular”. (KOCH, 1987, p. 20).

Em outras palavras, quando se argumenta no sentido de persuadir o interlocutor, o discurso se estrutura através do uso de argumentos plausíveis e subjetivos, a fim de atingir a vontade do interlocutor e mudar sua ideologia. Portanto, para que exista persuasão faz-se necessário que haja pluralidade de idéias em um ambiente em que a sua circulação seja livre.

Levando-se em consideração o fato de toda interação comunicativa ser carregada de intencionalidade, a argumentação constitui-se como uma atividade estruturante do discurso, pois, como bem coloca Koch(1987, p. 23), “a progressão deste se dá, justamente, por meio das articulações argumentativas.”

A literatura sobre argumentação é vasta, porém os estudos são voltados para a argumentação no discurso adulto, bem trabalho, bem formado. Quando se trata da argumentação infantil são poucos os estudos que exploram esse enfoque. Isso se dá pelo fato de, até pouco tempo atrás, se acreditar que esse tipo de discurso só se fizesse presente num estágio mais avançado da fala, isto é, nos discursos dos jovens e adultos. As crianças eram vistas como pertencendo a um estágio pré-argumentativo. A hipótese defendida por alguns estudiosos da argumentação, citados por Faria (2004), era de que a capacidade de construção do discurso argumentativo aumentava com a idade, havendo três estágios de aquisição:

1) o pré-argumentativo, no qual nenhuma posição é assumida e, quando assumida, não se apóia em argumento algum; 2) estágio de argumentação mínima, em que se apresenta um argumento e 3) estágios de argumentação elaborada, em que são oferecidos pelo menos dois argumentos. (FARIA, 2004, p. 40-41)

Esses estágios levantados pelos estudiosos vão ao encontro da tese piagetiana do desenvolvimento cognitivo, que defende o engajamento da criança no processo argumentativo a partir dos dez (10) ou onze (11) anos, quando esta é capaz de entender o pensamento operacional formal.

Atualmente, a argumentação é vista como parte substancial da interação comunicativa, tanto em seu aspecto formal quanto cotidiano. No cotidiano, a argumentação se manifesta através dos mais diferentes modos, pois diariamente estamos apresentando justificativa para nossas ações no ambiente familiar, no trabalho, na escola. A criança, como sujeito pertencente à grande parte desses ambientes, começa desde cedo a usar a linguagem para defender seus interesses infantis, portanto sua argumentação se insere na argumentação cotidiana.

A argumentação cotidiana é definida “como uma atividade verbal que tem como objetivo a solução de uma diferença de opinião através de argumentos levantados em relação a pontos de vista diferentes”. (FARIA, 2004, p. 26).

Faria (2004), citando Santos, apresenta algumas características da argumentação cotidiana que a diferencia dos argumentos da lógica formal, tais como: as premissas dos argumentos são produzidas no próprio curso da argumentação; essas são dependentes de conteúdo e de situações de produção

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específicas; a conclusão a que se pode chegar a partir dessas premissas jamais pode ser considerada como certeza.

Em relação à interação comunicativa da criança, podemos perceber que a argumentação infantil é parte constitutiva de sua fala, pois ela vê o outro e se vê como agente intencional. Para Faria(2004, p, 58),

Essa competência argumentativa é um processo dinâmico, que se desenvolve cada vez que se entra em contato com novas situações, em diferentes interações e envolve múltiplas capacidades: rapidez de raciocínio, análise situacional, domínio lingüístico. Neste trabalho, nosso enfoque é sobre como a criança usa a entonação como estratégia argumentativa para defender seu ponto de vista, convencer seu interlocutor, isto é, como este recurso atua como fator de persuasão.

2. A entonação nos estudos lingüísticos

A preocupação com os aspectos prosódicos da fala remonta aos gramáticos greco-latinos. Na gramática greco-latina, conforme Cagliari (1993), havia uma parte que tratava dos aspectos prosódicos da fala, isto é, estudos sobre as sílabas, os acentos, os tons, a duração, o ritmo, e tinha como objetivo explicar como se estruturavam os padrões poéticos nos diferentes tipos de verso e poesia, voltando-se, portanto, mais para os aspectos literários do que fonético-fonológicos da língua.

Segundo Cagliari (1993), as gramáticas antigas e as modernas gramáticas normativas seguem a linha da gramática latina, em que a análise limita-se à classificação dos tipos de frase através da entonação.

Câmara Jr.(1986, p. 202), em seu Dicionário de lingüística e gramática, define prosódia como a “parte da fonologia referente aos caracteres da emissão vocal que se acrescentam à articulação propriamente dita dos sons da fala.” Já a entonação diz respeito à “escala de elevação e abaixamento de voz com que se enuncia uma frase”(Idem, p.106). Através da entonação, a frase é definida como ascendente ou descendente, tomando como referência o segmento que recebe o acento frasal.

No domínio da Lingüística, no campo dos estudos fonético-fonológicos, inicialmente, a prosódia - por comportar os chamados elementos supra-segmentais - recebeu uma atenção menor, pois a ênfase era dada aos elementos segmentais, embora alguns estudiosos reconhecessem sua importância no sistema fonológico da língua. Segundo Clagliari (1993, p. 45), dentro dos estudos lingüísticos,

Os trabalhos de descrição prosódica, com raras exceções, têm se circunscrito ao domínio da palavra, e mais frequentemente no da sílaba. Ou seja, a extensão necessária para a descrição do fenômeno é a sílaba. Tudo acontece dentro dela, e da soma de sílabas, tem-se a descrição da palavra, e assim por diante. A unidade mínima de duração, tonicidade, variação melódica etc., é do tamanho de uma sílaba.

Nespor e Vogel (1994), em seu livro La Prosodia, em que são analisados dados de diversas línguas, apresentam estudos de fenômenos prosódicos no âmbito da frase até o enunciado. As autoras enumeram as unidades relevantes para uma descrição de natureza prosódico-entonacional e evidenciam sua significância, recorrendo a processos segmentais. Os níveis de estruturação prosódica são os seguintes: a sílaba, o pé, a palavra fonológica, o grupo clítico, a frase fonológica, a frase entonacional, e o enunciado fonológico.

Após várias décadas de evolução dos estudos lingüísticos, com o advento de novas teorias fonológicas, os traços prosódicos ganharam espaço nas pesquisas. O acento é um dos elementos prosódicos que vem recebendo mais atenção dos estudiosos nos últimos anos.

No tocante aos elementos prosódicos relativos à aquisição da linguagem, vale ressaltar os trabalhos de Cavalcante (1999, 2007), em que a autora focaliza a prosódia do manhês, isto é, a prosódia da

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fala do adulto (geralmente a mãe) dirigida à criança. As modificações prosódicas mais freqüentes nessa fala são: “freqüência fundamental mais alta, preferência por certos contornos (sobretudos os tons ascendentes), uso de falsetto, cadência mais lenta, partes sussurradas do enunciado, duração prolongada de certas palavras, mais de um acento frasal, etc.” (CAVALCANTE, 2007, p. 178). Destacamos, também, os trabalhos de Scarpa (1999, 2007) e Santos (2001, 2007), para quem a proeminência entonacional é a primeira com que a criança trabalha. Segundo Santos (2007, p. 234), no inicio do desenvolvimento prosódico, “o que se encontra são diversos contornos entonacionais associados a diferentes usos pelas crianças.” A autora, citando outro estudo seu, realizado em 2001, propõe três diferentes estratégias de proeminências acentuais usadas pelas crianças, são elas:

i) Uso das proeminências entonacionais dos diversos contornos utilizados; ii) fixação de um contorno para o trabalho com o acento;

iii) fixação de um arcabouço binário para o constituinte responsável pelo acento primário. (SANTOS, 2007, p. 234).

A autora conclui que as crianças, desde cedo, levam em conta o acento do nível entonacional, e que a proeminência acentual nos enunciados iniciais está sempre à direita. Portanto, mesmo que as palavras das crianças tenham apenas uma sílaba, elas têm projetada a proeminência acentual como qualquer enunciado do adulto. (SANTOS, 2007, p. 238)

Scarpa (2007, p.75) defende a dupla face da prosódia na aquisição:

Estabelece a ponte inicial, ligando som e sentido, através da organização formal da fala e o potencial dos efeitos significativos criados pela instanciação da língua no discurso. [...] É a via privilegiada de engajamento do infante no diálogo [...] e, ao mesmo tempo, é o veículo primeiro da organização das formas lingüísticas, sobretudo através da construção dos sistemas de ritmo e entonação como guia configuracional da delimitação da forma fônica em “fatias” estruturadas do enunciado. [...] os fatos prosódicos são os recursos expressivos ou subsistemas privilegiados do cruzamento da organização formal da frase com o potencial significativo e lingüístico nos primeiros anos de vida, face a parcos recursos expressivos de cunho léxico gramatical.

Depreendemos, do exposto acima, que há uma relação estreita entre som, entonação e sentido, fazendo com que um mesmo enunciado seja entendido de diversas formas, de acordo com a intenção do falante e o uso dos elementos prosódicos. Portanto, a intencionalidade do falante vai interferir nas suas escolhas prosódicas.

Segundo Scarpa (2007), os sistemas entonacionais das línguas se organizam nos domínios prosódicos superiores, nestes também se situam as curvas entonacionais e a organização lingüística dos acentos. Nas crianças, a proeminência melódico-acentual pode ser vista desde os seus primeiros sistemas entonacionais, a partir do segundo ano de vida. Isso mostra que a entonação é um dos primeiros elementos adquiridos pela criança no processo de aquisição da linguagem.

Os estudos com enfoque na percepção da fala enfatizam a capacidade perceptual do bebê para os elementos prosódicos. Miolo e Kent (1997), após revisão da literatura pertinente, afirmam que bebês em torno de um aos quatro meses de idade conseguem detectar variações nos padrões entonacionais e reconhecer a mesma sílaba em diferentes enunciados. Nessa mesma linha de pensamento, Le Normand (2005) afirma que, desde cedo, a criança parece ser influenciada pelas diferentes entonações do adulto. Bem antes de compreender a língua do circulo familiar, o bebê consegue identificar as intenções do adulto (se está zangado, inclinado a brincar, se pretende iniciar ou acabar ação), por meio de indicadores prosódicos como a intensidade e melodia da fala que lhe é dirigida.

Nos estudos lingüísticos voltados para a análise discursiva, não é comum a incorporação de elementos fonético-prosódicos (entonação, pausa) nas suas descrições. Na abordagem discursiva, as unidades fonéticas não são vistas como um elemento determinante da estrutura da linguagem. Porém, com

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a incorporação do discurso oral como objeto de estudo, faz-se necessária uma melhor análise dos traços prosódicos para a compreensão de alguns fenômenos da linguagem. Nessa perspectiva, a entonação pode ser vista como um importante componente do discurso oral, pois, através de suas variações, podem-se imprimir significações diferentes à enunciação, além de poder influenciar o processo de interação. Assim, com a expansão dos estudos no campo da Pragmática e da Análise do Discurso, a entonação passa a ser investigada não só pelos seus aspectos fonético-fonológicos, mas também pela sua dimensão enunciativa.

Para Cagliari (1993), os elementos prosódicos, na linguagem oral, têm como função básica realçar ou reduzir certas partes do discurso, atribuindo-lhe maior ou menor grau de importância, portanto reflete o valor semântico dos enunciados. Isto permite ao interlocutor manter a linha argumentativa que pretende dar ao texto. Desta forma,

A prosódia comanda o valor que se deve atribuir a diferentes elementos do discurso, dentro do contexto desse próprio discurso, dando, por assim dizer, uma chave de interpretação. Um texto sem prosódia simplesmente não faz sentido. (CAGLIARI, 1993, p. 47).

Nesse sentido, a prosódia se apresenta como um fator importante na interação comunicativa entre os interlocutores e depende das convenções sociais da comunidade em que esses estão inseridos. Através dos elementos prosódicos é possível captar as reações do falante à determinada situação discursiva. Porque, como falante da língua, o interlocutor, sabe identificar os vários significados, não apenas o literal das palavras e das estruturas sintáticas, mas também a entonação, o tom de voz.

Nesse trabalho, iremos analisar o uso da entonação no discurso oral infantil espontâneo, buscando observar como a entonação atua se integrando ao enunciado da criança, tornando parte essencial de seu sentido e como fator de argumentação e persuasão, já que uma das funções do elemento prosódico é contribuir para a manutenção do fio discursivo e da linha argumentativa do texto.

Passemos, então, à análise dos dados de fala da criança. 3. O diálogo em questão

Numa situação de argumentação, quem argumenta deve ter certo conhecimento de seu interlocutor, quanto maior for esse conhecimento, maiores serão as probabilidades de êxito das teses defendidas. Neste caso se estabelece uma relação entre o Eu e o Outro a quem se tenta influenciar.

Beaudichon, citado por Faria (2004, p. 55), defende que:

A competência para comunicar como a competência para perceber o ponto de vista do outro são constituídas pela combinação de fatores intrínsecos enriquecidos de relações de experiências anteriores e de fatores sociais, todos dependentes um dos outros e, portanto, indissociáveis.

Podemos inferir dessa afirmação, uma relação entre o potencial natural do indivíduo, portanto inato ou biológico, e um potencial determinado pelos fatores culturais a que ele está exposto.

A argumentação oral infantil, aqui analisada, foi produzida em situações de diálogo no meio familiar entre uma criança (com idade de 02 aos 03 anos) e um adulto (mãe ou pai). Os diálogos foram gravados em audio.

A observação do processo argumentativo da criança nessa faixa de idade é instigante, porque vai de encontro à tese defendida por Piaget de que nessa fase a criança está centrada em si própria sem interagir com o outro, portanto sem a preocupação de convencer, persuadir.

O corpus está dividido em pequenas cenas de interação discursiva entre os participantes. Nestas cenas podemos observar especificidades das condutas dialógicas infantis.

Na identificação dos interlocutores usamos os seguintes códigos: M (mãe), P (Pedro – a criança), Pai (pai). Para as transcrições da fala da criança, utilizamos os sinais usados por Faria (2004, p. 176), que

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seguiu as orientações de Marcuschi em seu livro Análise da conversação. Os sinais foram os seguintes: (.) pausa existente na fala; : alongamento da vogal; (( )) comentários do analista, letras maiúsculas sílaba ou palavra pronunciada com maior ênfase.

Passemos às cenas.

Cena 1: Diálogo entre Pedro(2:10,19) e a mãe, conversando sobre a dança da apresentação do dia das mães.

M: Dança aí pra mamãe ver. Faz como foi. P: ã: ã: ((negativo))

M: Faz. P: NÃO.

M: Não? Por que não? P: TITIA.

M: Só com titia? P: É.

Nesta cena temos um diálogo entre Pedro e sua mãe sobre uma dança apresentada na escola, ela pergunta como ele dançou na escola e pede para que demonstre. Diante do pedido, ele responde negativamente “ã: ã:”. Com a insistência da mãe, ele responde com um “NÃO” bem enfático. Para reforçar a defesa do seu ponto de vista, usa como argumento “TITIA”, ou seja, o fato de só dançar com a tia e, portanto, no espaço da escola, já que era uma apresentação ensaiada em conjunto com os colegas e a professora. Observamos, neste diálogo, como Pedro, mesmo com pouco domínio do léxico da língua, usa os recursos de que dispõe para argumentar contra o pedido da mãe para dançar. Isso demonstra sua compreensão lingüística e sua competência comunicativa.

Cena 2: Diálogo entre Pedro(2:10,19) e a mãe. Agora a mãe pergunta se ele dormiu na escola. M: E hoje, na escola, tu dormiu?

P: não.

M: Dormiu não? A tia disse que você dormiu. P: É?

M: Foi. P: é? M: Foi. P: é

M: Dormiu muito ou só pouquinho? P: é

M: Pouco? P: é.

M: Ou muito?

P: mãe ((chama atenção da mãe para uma nova ação – riscou várias vezes o livro de tarefas)) M: Oi.

P: ((risos)) mãe ((risos)) M: Fez o quê?

P: sei não mãe. ((falando rindo))

M: Hum. O que é isso que tu tá fazendo? P: ê u.

M: Não. Isso não é ê u não. Isso não é fazer tarefinha. Isso não é a letrinha não. Isso é traquinagem. P: É?

M: é. P: A A é?

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M: Isso é um A? P: a A ((bem alto))

Nesta cena podemos observar duas especificidades do diálogo de Pedro. Primeiro destacamos o uso da forma lexical “É” com entonações diferentes, significando tomadas de posições diferentes no discurso. Nos dois primeiros usos, “É” (bem enfático) e “é” há uma entonação interrogativa, com o intuito de obter a informação da mãe se realmente a tia havia dito que ele dormira na escola. Diante da confirmação da mãe, ele usa um “é” afirmativo. Se a mãe está afirmando que a tia disse que ele dormiu, diante do argumento de duas autoridades máximas, ele reconstrói sua linha argumentativa, só lhe resta confirmar que realmente dormira.

Essa estratégia usada pela criança corrobora a posição defendida por Scarpa(2007) de que a intencionalidade do falante vai interferir nas suas escolhas prosódicas.

No segundo momento, destacamos a forma como Pedro rompe o diálogo, mudando o assunto, já que o fato da descoberta de ter dormido na escola não lhe agradou muito. Então, como não teve argumentos suficientes para convencer a mãe de que não havia dormido, e diante da insistência para saber se ele dormira pouco ou muito, ele desvia a atenção da mãe para outro assunto. Nesse momento introduz um novo assunto como estratégia para recuperar seu domínio da situação comunicativa, que havia perdido no assunto anterior.

Essa conduta é considerada adequada para a situação comunicativa, pois, como coloca Brito (2004), a quebra da seqüência é um procedimento normal do diálogo e assenta-se em justificativas pragmáticas.

No segundo momento da cena, chama-nos atenção a consciência de Pedro sobre algo errado que fez (riscou várias vezes o livro de tarefas). Consciente da travessura, ele ri deliciosamente ou, talvez, ironicamente, tanto por se sentir feliz pelo seu feito, quanto como forma de persuadir a mãe, com seu riso contagiante, evitando assim sofrer punição. Sua linha argumentativa é reforçada quando ele nega saber o que está fazendo, ao ser indagado pela mãe (M: Fez o quê? P: sei não mãe. (falando rindo)). Diante da insistência da mãe para saber o que Pedro fez ou está fazendo, ele argumenta afirmando que está fazendo a tarefa (ê u). A mãe reage afirmando que aquilo não é tarefa, é traquinagem. Evidenciando uma competência nesse jogo argumentativo, Pedro questiona a mãe (É?) como forma de testar a reação de seu interlocutor, e a partir da sua constatação, poder reformular os seus argumentos. Essa estratégia de Pedro corrobora a idéia defendida por Faria (2004, p. 90) de que:

A fala do locutor tem origem na audiência, à medida que esta o encoraja ou o desanima através de seu comportamento, dos atos de fala proferidos ou dos sinais de ouvintes realizados durante a interação. É com base na atitude da audiência que o argumentador prepara o próximo passo a ser dado.

Continuando o diálogo, a mãe confirma que o que ele fez foi traquinagem, Pedro refuta a posição da mãe afirmando que é um A, ou seja, o que ele fez não foi traquinagem, foi sua tarefa (a letra A). Assim, Pedro mantém o domínio da situação comunicativa.

Cena 3: Diálogo entre Pedro(2:10,19) e a mãe sobre uma camiseta do dia das mães. P: mãe

M: oi

P: eh (.) ã (.) mamãe. ((apontando a camiseta que está sobre a mesa de estudo)) M: é de mamãe, é.

P: eh mãe (.) eh (.) eh mãe eh M: Pra fazer o quê?

P: hum (.) hum (.) hum. É mãe? É? É? (mostrando o saco para guardar a camiseta). M: se é assim? É. É assim que guarda. É (a camiseta dobrada de forma errada).

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P: hum? M: É. P: hum? M: É.

P: AH (.) sim ((assim)) não MÃE (.) sim ((assim)) não MÃE (.) ah ((mostrando a camisa mal dobrada))~. M: é assim, é.

P: AH (.) sim ((assim)) não MÃE: ((ênfase na vogal final)) sim ((assim)) não MÃE. M: assim não?

P: sim ((assim)) não MÃE

Neste fragmento de diálogo, a maior parte da verbalização de Pedro é monossilábica, mesmo assim ele consegue argumentar e defender sua opinião de que a camiseta está dobrada de forma errada, portanto não pode ser guardada daquela forma. Para tal, ele usa a entonação e os gestos como recursos para sustentar o seu ponto de vista e convencer sua mãe a guardar a camiseta de forma correta. Sua posição é tão firme que, para chamar a atenção da mãe, ele dá ênfase à palavra mãe pronunciando-a com maior intensidade (P: AH (.) sim ((assim)) não MÃE: ((ênfase na vogal final)) sim ((assim)) não MÃE).

Isso nos mostra que, apesar do pouco domínio de produção oral da linguagem, essa criança possui uma compreensão bem desenvolvida da linguagem como processo de interação dialógica.

Cena 4: Pedro(2:10,19) calçando a sandália da mãe. M: De quem é essa sandália que você tem?

P: mamãe.

Pai: Use a sandália de papai, rapaz! P: MAMÃE

Pai: A sandália de papai é mais bonita. P: Mamãe.

Pai: A sandália de mamãe é mais bonita, é? P: É ah((mostrando o salto))

Pai: O meu não tem salto alto!

P: ah tem mamãe? ((pedindo a confirmação do pai)).

Nesta cena, Pedro dialogando com o pai, percebemos certo confronto de forças, em que a criança refuta a opinião do pai e defende a sua tese de usar a sandália da mãe porque é mais bonita. Quando o pai manda que “use a sandália de papai, rapaz!”, Pedro desafia a autoridade do pai argumentando: “MAMÃE” bem enfático. No final, quando o pai expressa seu convencimento de que a sua sandália não tem salto, portanto não é bonita, Pedro toma a palavra e mostra que a sandália da mãe tem salto, ao mesmo tempo em que pede a confirmação do pai para a sua assertiva. Nesta fala (P: ah tem mamãe?), Pedro não está perguntando se a sandália da mãe tem salto. Portanto, o uso da entonação de interrogação não se dá com o objetivo de perguntar para obter uma resposta (sim/não), mas com o objetivo de obter uma confirmação positiva do pai para a sua afirmativa. Mais uma vez, a criança usa elementos prosódicos para reforçar sua argumentação.

Cena 5: Pedro (2:11,27) com a mãe arrumando a roupa para a festa do São João da escola. P: pepeu aqui. ((com um lenço na mão))

M: Não, Pepeu vai levar esse oh. Esse é o de Pepeu, oh. ((com outro lenço na mão)) P: PEPEU?

M: É.

P: não (.) aqui. ((com o lenço da mão))

M: É pra botar na bolsa? Pronto, mamãe bota. ((com o lenço da mão)) P: não hum! ((fazendo gesto de que o lenço está sujo, malcheiroso)). M: Não esse tá limpo, esse tá bem cheirosinho.

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P: não (.) hum! ((fazendo gesto novamente com a mão)) É.

M: Pronto. Oh, aqui. ((a mãe ignora o lenço da mão de Pedro e coloca na bolsa o lenço que estava em sua mão)).

P: hum (.) hum (.) não. ((tira o lenço que a mãe havia colocado e põe o que estava com ele)).

Esta cena revela a capacidade argumentativa de Pedro, quando ele usa o argumento de que o lenço está sujo, portanto não pode usá-lo, para convencer a mãe a deixá-lo levar o lenço que ele quer.

No diálogo, ele argumenta que não quer o lenço que a mãe está colocando na bolsa e justifica a sua posição com um novo argumento de que o lenço da mãe está sujo. Sua justificativa é baseada no comportamento social de que não devemos usar roupas sujas. Isso demonstra sua competência para entender os comportamentos sociais e usar esse comportamento como argumento para reforçar sua decisão.

Por fim, como a mãe ignorou os seus argumentos e colocou na bolsa o lenço que estava com ela, Pedro se recusa a aceitar a decisão da mãe, vai até à bolsa, retira o lenço que estava lá e coloca o seu.

Nesta cena, como nas anteriores, podemos observar que a criança usa as estratégias de que dispõe para sustentar seu ponto de vista, mostrando, assim sua competência na interação comunicativa.

Palavras finais

Neste trabalho focalizamos a entonação como mecanismo de argumentação oral infantil. Em todos os diálogos analisados vimos como a prosódia foi parte essencial no processo de argumentação da criança pesquisada. Observamos que a criança usou contornos entonacionais variados para diferentes intenções comunicativas. Como também, usou vários movimentos discursivos: indagação, justificação, refutação nas diversas situações, expressando, assim, certa maturidade no domínio da interação comunicativa.

Nesta criança pesquisada, um fato que nos chamou atenção foi sua maturidade para compreensão da linguagem, enquanto que sua exposição verbal ainda é muito limitada. Em outras palavras, apesar de não ter uma verbalização oral desenvolvida, ela consegue compreender seu interlocutor e interagir no diálogo com competência.

Diante das revelações dos dados, podemos afirmar que a argumentação faz parte do cotidiano infantil desde os primeiros anos de vida. Embora a verbalização oral da linguagem ainda não esteja desenvolvida, a criança consegue argumentar usando outros recursos lingüísticos como os elementos prosódicos.

Referências

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Referências

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