PÓS-GRADUAÇÃO
STRICTO SENSU
– MESTRADO
SENTIDO E ALCANCE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
URBANA:
A AUSÊNCIA DE PLANO DIRETOR E O CONTEÚDO MÍNIMO DEDUTÍVEL DO
SISTEMA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988
JEAN JACQUES ERENBERG
SENTIDO E ALCANCE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
URBANA:
A AUSÊNCIA DE PLANO DIRETOR E O CONTEÚDO MÍNIMO DEDUTÍVEL DO
SISTEMA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de MESTRE em Direito do Estado –
Direito Urbanístico e Ambiental, sob a
orientação da Professora Doutora CONSUELO
YATSUDA MOROMIZATO YOSHIDA
DISSERTAÇÃO:
SENTIDO E ALCANCE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
URBANA:
A AUSÊNCIA DE PLANO DIRETOR E O CONTEÚDO MÍNIMO DEDUTÍVEL DO
SISTEMA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988
AUTOR:
JEAN JACQUES ERENBERG
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, aprovado com nota
_____, como exigência parcial para
obtenção do título de MESTRE em Direito
do Estado – Direito Urbanístico e
Ambiental, sob a orientação da Professora
Doutora CONSUELO YATSUDA
MOROMIZATO YOSHIDA
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
AGRADECIMENTOS
Meus agradecimentos a minha esposa Luiziane e a minhas filhas Beatriz e
Pâmela, pela compreensão e carinho.
Aos professores, colegas e funcionários da PUC/SP, pela enriquecedora
troca de experiências, ofereço meu respeito e minha profunda admiração.
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo demonstrar que o princípio da função social
da propriedade urbana tem um conteúdo mínimo, jurídico e cogente, que pode ser
extraído do sistema constitucional brasileiro instituído a partir da promulgação da
Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 e que não depende da edição de
plano diretor para incidir de forma plena, direta e imediata sobre toda propriedade
urbana localizada no território nacional. Para dar suporte à afirmação que se
pretende demonstrar, elegeu-se primeiramente o estudo dos princípios, buscando
revelar sua importância e identificar os pontos de contato e de distanciamento destes
em relação às regras; em seguida buscou-se a identificação do papel do plano
diretor, apontando-se as hipóteses de obrigatoriedade nos planos constitucional e
infraconstitucional e as conseqüências da não edição do plano, quando obrigatória;
seguiram-se questionamentos a respeito do novo perfil constitucional da propriedade
diante do posicionamento da função social como elemento intrínseco e conformador
de seu conceito, capaz de assegurar sua efetividade num Estado de bem-estar
social. Por fim teve vez a análise da função social da propriedade em geral e da
propriedade urbana em especial. O estudo conclui que, de fato, é possível extrair do
sistema constitucional brasileiro pós-1988 um conteúdo jurídico essencial para o
princípio da função social da propriedade urbana, capaz de fazer valer a idéia
subjacente de cumprimento das funções sociais da cidade e de cumprimento do
princípio fundamental da dignidade da vida humana. Nesse contexto, o plano diretor
se afigura como um instrumento de efetivação da função social da propriedade e
não como circunstância condicionante de sua existência e aplicabilidade.
ABSTRACT
The present paper work aims at showing that the urban property social function
principle has a minimum content, legal and mandatory, that can be extracted of the
Brazilian constitutional system since the promulgation of the Federal Constitution in
October, 5, 1988 and that does not depend on City Plannig Law presence to happen
in a full form, direct and immediate on all urban property in the domestic territory. To
support that affirmation, first we chose the study of the principles, searching to find its
importance and to identify the points of contact and distance of these in relation to
the juridical rules; after that we tried to locate the role of the managing plan, pointing
the hypotheses of obligatoriness in constitutional and infraconstitutional levels and
the consequences of not editing that plan, when it is obligatory; then we made some
relevants questionings about the new constitutional profile of the property by the
positioning of the social function as an intrinsic and forming element of its concept,
capable to assure its effectiveness in a State of social welfare. Finally we had
proceeded an analysis of the property social function in general and then of the
urban property in special. The study concludes that, in fact, it is possible to extract of
the Brazilian constitutional system after-1988 an essential legal content to the social
function of the urban property principle, capable to make valid the underlying idea of
fulfilment of the city social functions and fulfilment of the human life dignity basic
principle. In this context, the managing plan it figures as an instrument to ensure the
power of the urban property social function and not as a conditional circumstance of
its existence and applicability.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
... 7
I PRINCÍPIOS
... 12
1. A RELEVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS
... 12
2. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS BASILARES DO DIREITO URBANÍSTICO
.... 20
2.1. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
... 20
2.2. PRINCÍPIO DO BEM GERAL
... 21
2.3. PRINCÍPIO DA IGUALDADE
... 22
2.4. PRINCÍPIO DO PISO VITAL MÍNIMO OU DO BEM-ESTAR SOCIAL
... 22
2.5. PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
... 24
2.6. PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO E DEFESA DO MEIO AMBIENTE
... 25
2.7. PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
... 26
II CONSTITUIÇÃO, URBANISMO E DIREITO URBANÍSTICO
... 28
1. CONSTITUIÇÃO E URBANISMO
... 28
1.1. CONSTITUIÇÃO
... 30
1.2. URBANISMO
... 33
1.3. REGRAS CONSTITUCIONAIS APLICÁVEIS AO DIREITO URBANÍSTICO
... 40
2. DIREITO URBANÍSTICO E ESTATUTO DA CIDADE
... 45
3. PLANO DIRETOR
... 51
3.1. PLANEJAMENTO
... 51
3.2. O PLANO DIRETOR NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E NA
LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL
... 57
3.3. A APARENTE INCONSTITUCIONALIDADE DA AMPLIAÇÃO DO ROL DE
HIPÓTESES DE OBRIGATORIEDADE DE PLANO DIRETOR
... 65
3.4. CONSEQÜÊNCIAS DA MORA LEGISLATIVA NA ELABORAÇÃO DO PLANO
DIRETOR, QUANDO ESTA FOR OBRIGATÓRIA
... 72
III A PROPRIEDADE URBANA E SUA FUNÇÃO SOCIAL
... 78
1. A PROPRIEDADE
... 78
2. A FUNÇÃO SOCIAL
... 83
2.1. FUNÇÃO E FUNÇÃO SOCIAL
... 83
2.2. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
... 89
2.3. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA
... 96
2.4.1. ANÁLISE DA VALIDADE DO PARÁGRAFO 2º DO ARTIGO 182 DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL SOB A TEORIA DOS SISTEMAS DE LUHMANN
... 108
CONTEXTO HISTÓRICO
... 109
2.4.2. O SENTIDO DA DISPOSIÇÃO CONDICIONANTE DO PARÁGRAFO 2º DO
ARTIGO 182 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
... 116
2.4.3. O CARÁTER JURÍDICO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA
PROPRIEDADE URBANA
... 117
2.4.4. EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
URBANA
... 120
2.5. CONTEÚDO MÍNIMO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA
PROPRIEDADE URBANA
... 121
CONCLUSÃO
... 132
INTRODUÇÃO
A cidade é o lugar onde vivemos. É nela que realizamos as ações que
refletem a nossa condição de seres sociais e cidadãos.
Em razão da complexidade da sociedade moderna, não é dado a nós,
cidadãos, garantir direta e individualmente a efetivação das normas que
proporcionam a ordem necessária para afastar o caos e a entropia, razão pela qual
tal tarefa é atribuída pela Constituição Federal ao Poder Público, enquanto
representante e executor da vontade da coletividade, e à sociedade, na qualidade de
co-gestor e fiscal da realização dessa atividade.
É, assim, dever do Estado garantir a realização das regras e princípios que
elegemos relevantes através da elaboração e efetivação das normas que compõem
o sistema jurídico.
O Direito Urbanístico é ferramenta fundamental para a consecução dessa
tarefa de gerenciar as cidades por intermédio da aplicação das normas de Direito
Público, no sentido de conceder a cada habitante, bem como à comunidade como
um todo, a cota de bem-estar que almejamos e da qual a Constituição nos faz
merecedores.
Para isso, atender aos ditames constitucionais é caminho obrigatório, a partir
da constatação de que a Constituição carrega em seu ventre os anseios de um povo
e aponta as soluções para sua realização.
Sem que as normas constitucionais sejam plenamente realizadas,
caminha-se em direção à cricaminha-se de legitimidade que conduz ao triste e preocupante caminho
da desagregação, do estado paralelo, da desintegração das instituições, da
convulsão social e, talvez, da ruptura do tecido social e, por fim, total falência do
Estado de Direito.
sobre o qual se funda o Direito Urbanístico.
Uma comunidade que tem atendidos seus anseios e aspirações no que se
refere a habitar, trabalhar, circular e recrear (e, ouso acrescentar, receber
educação), funções sociais essenciais da cidade, conforme estabelecidas na Carta
de Atenas
1, caminha na direção da dignidade da pessoa humana, da igualdade e do
bem-estar geral.
O cumprimento da função social da propriedade, em especial a urbana, é
fator fundamental para o pleno atendimento das funções sociais da cidade.
A preocupação que motivou o presente estudo se prende ao fato de estar se
disseminando entre os intérpretes do Direito uma hermenêutica meramente
gramatical do texto constitucional, no que se refere à obrigatoriedade de edição de
plano diretor. Segundo essa interpretação, o cumprimento da função social da
propriedade urbana só é exigível se houver plano diretor, o que equivale a dizer que
se não há plano diretor não existe função social atribuível à propriedade urbana.
Não parecer ser a melhor forma de interpretar o dispositivo constitucional,
como procuraremos demonstrar.
A função social da propriedade urbana está definida constitucionalmente no
parágrafo 2º do artigo 182, nos seguintes termos:
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
§ 1o O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.
§ 2o A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende
1
às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
Trata-se, à primeira vista, de norma em branco, a ser complementada pelo
conteúdo normativo de cada plano diretor, de forma que o cumprimento da função
social da propriedade venha a ser definido para cada cidade brasileira de
conformidade com suas necessidades e interesses específicos.
No entanto, e levando-se em consideração o fato de que menos de 30% das
cidades brasileiras conta com mais de 20 mil habitantes
2, é necessário buscar
elementos para aferir se as propriedades urbanas localizadas em municípios de
menor porte, ou seja, nos quais habitem até 20 mil habitantes, estão ou não sujeitas
ao regime jurídico de cumprimento da função social da propriedade urbana quando o
Poder Público local não tenha exercido a faculdade de elaborar um plano diretor.
Para tanto, é relevante perquirir se a propriedade urbana, no que se refere à
sua função social, tem regime jurídico constitucional próprio, ou se, por depender de
produção normativa infraconstitucional, está sujeita a um eventual regime jurídico
constitucional geral da função social propriedade.
Caso a ausência de produção normativa local, que defina os contornos da
função social da propriedade urbana, nos termos do parágrafo 2º do artigo 182 da
Constituição Federal, determine que a propriedade urbana de determinada
localidade se sujeita diretamente a uma disciplina jurídica geral da função social da
propriedade em geral, é importante apurar qual seria essa disciplina.
Também parece útil procurar determinar um conteúdo mínimo para o
princípio constitucional da função social da propriedade urbana, capaz de servir
2
como norte para a elaboração e interpretação de leis urbanísticas e dos planos
diretores.
É importante localizar esse conteúdo mínimo no plano constitucional, para
fazer frente à disposição do parágrafo 2º do artigo 182 da Constituição, que à
primeira vista parece impedir que os preceitos infraconstitucionais (que lhe são
hierarquicamente inferiores) possam atribuir à propriedade urbana uma função
social, em aberta contradição com a disposição expressa, na hipótese de municípios
com menos de 20 mil habitantes, que não tenham plano diretor.
E ainda, diante da hipótese, que não se afigura de todo improvável, da
absoluta ausência de qualquer legislação que vise à ordenação dos espaços
habitáveis no seio de determinado município, tal conteúdo mínimo deverá servir, ao
menos, para coibir condutas que se oponham à realização do princípio constitucional
da função social da propriedade urbana.
Por fim, faz-se necessário aferir se o princípio da função social da
propriedade urbana, tal como delineado na Constituição Federal, é dotado dos
elementos necessários para ser considerado um princípio jurídico, ou seja, se, por si
só é cogente.
O presente estudo procurará responder a essas questões, a fim de
determinar se o titular do domínio de uma propriedade urbana localizada em
município com menos de 20 mil habitantes (e que não esteja enquadrado em
nenhuma das hipóteses adicionadas pelo Estatuto da Cidade, Lei 10.257, de 10 de
julho de 2001), que não disponha de plano diretor e nem de qualquer legislação
capaz de lhe fazer as vezes, está obrigado a promover o atendimento de alguma
função social atribuível à sua propriedade.
I PRINCÍPIOS
Tendo a Constituição Federal expressamente atribuído às normas que
determinam o cumprimento da função social da propriedade a condição de
princípios
, é relevante buscar subsídios para o entendimento mais amplo dessa
categoria normativa.
1. A RELEVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS
A disciplina urbanística encontra seus fundamentos em normas
constitucionais. Como normas, entende-se o conjunto de regras e princípios.
Regras
são normas cogentes, de comandos positivos.
Princípios
3são valores fundamentais
que norteiam a interpretação das regras e sua aplicação concreta ou
mandados de
otimização
4.
Canotilho
5indica os aspectos diferenciadores entre
regras
e
princípios
:
a)
grau de abstração
. Princípios possuem grau de abstração mais elevado.
As regras, por sua vez, apresentam um grau de abstração reduzido;
b)
grau de determinabilidade
na aplicação ao caso concreto. Princípios têm
caráter mais genérico, apresentam forte traço de indeterminabilidade, seu conteúdo
é, por vezes, vago e impreciso. As regras, ao revés, face à determinabilidade de seu
conceito têm aplicabilidade direta ao caso concreto;
c)
fundamentalidade
, segundo o qual os princípios têm papel de maior
3
. "Princípio, derivado do latim principium (origem, começo), em sentido vulgar quer exprimir o começo da vida ou o primeiro instante em que as pessoas ou as coisas começaram a existir. É, amplamente, indicativo do começo ou origem de qualquer coisa. No sentido jurídico, notadamente no plural, quer significar as normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa. E, assim, princípios revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixaram para servir de norma a toda ação jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica. Desse modo, exprimem sentido.
Mostram-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-se em axiomas". De Plácido e Silva. Vocabulário Jurídico. V.III. Rio de Janeiro: Forense. 1989, p. 433.
4
Cf. Cristiane Derani, Direito Ambiental Econômico, p. 48.
5
relevância no sistema constitucional. No que diz respeito aos princípios, sua
normatividade desempenha um papel fundamental no ordenamento jurídico diante
de seu caráter estruturante como fonte de direito. As regras não gozam, em geral, de
tal característica;
d)
proximidade da idéia de justiça
. Os princípios se aproximam mais da idéia
de direito, de justo, enquanto as regras estão mais voltadas à idéia de
funcionalidade. Princípios constituem parâmetros juridicamente vinculantes. As
regras geralmente adquirem um contorno mais voltado ao funcional;
e) por fim,
natureza normogenética
(ou normogênica), mediante os quais os
princípios funcionam como fundamento, desempenhando uma função
fundamentante na geração de normas, vez que são normas de base, de estrutura,
que representam a própria razão das regras jurídicas. É nos princípios que a regra
encontra seu fundamento de validade e existência.
Não parece haver dissenso significativo entre os doutrinadores em relação
ao fato de que os princípios são normas do mais elevado grau de generalidade e
abstração e que possibilitam uma margem de harmonização e ponderação entre
valores e interesses aptos a gerar um juízo mais próximo da eqüidade, inexistente
nas regras, uma vez que nestas os mandamentos se encontram expressamente
determinados, sem grandes possibilidade de flexibilidade de valoração.
Para Miguel Reale os princípios são “certos enunciados lógicos admitidos
como condição ou base de validade das demais asserções que compõem dado
campo do saber”
6.
Ivo Dantas salienta que:
Os princípios são categoria lógica e, tanto quanto possível, universal, muito embora não possamos esquecer que, antes de tudo, quando incorporados a um sistema jurídico-constitucional-positivo, refletem a própria estrutura ideológica dos Estados, como tal, representativa
6
dos valores consagrados por uma sociedade7.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello:
Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento do princípio que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra8.
De tudo isso se pode extrair que princípios constituem o cerne em que o
ordenamento jurídico encontra seu fundamento de validade. Princípios são
diretrizes, com a função de orientar a correta interpretação das normas isoladas, ou
indicar, dentre as interpretações possíveis, qual a que deve ser adotada pelo
intérprete, em face dos valores consagrados no sistema jurídico. Mas, mais do que
isso, princípios são normas e, como tal, dotados de positividade, capaz de
determinar condutas obrigatórias e impedir a adoção de comportamentos com eles
incompatíveis.
A Constituição Brasileira é mais que um conjunto de diretrizes. As normas
constitucionais, tanto as regras como os princípios, são dotadas de normatividade e
efetividade, ainda que programáticas.
7
Ivo Dantas. Princípios constitucionais e interpretação constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 1995. p 59-60.
8
Alexy
9conceitua os princípios como “mandados de otimização”. A categoria
mandados
faz parte da deontologia, ou seja, do que é obrigatório. Assim, os
princípios são tratados por esse autor como uma categoria deontológica
10, e não
axiológica
11ou antropológica
12.
Por vezes se faz necessário que determinadas circunstâncias se façam
presentes para que a norma possa ser identificada como regra ou princípio, como
aponta Humberto Ávila ao afirmar que a atribuição do qualitativo
princípios
ou
regras
a determinadas espécies normativas depende, antes de tudo, de conexões
axiológicas que não estão prontas antes do processo de interpretação que as
desvela
13.
Este autor critica duramente vários critérios de diferenciação entre princípios
e regras:
a)
caráter hipotético-condicional
. Segundo esse critério, as regras possuem
uma hipótese e uma conseqüência que predeterminam a decisão, aplicadas no
modo
se, então
. Os princípios apenas indicariam o fundamento a ser utilizado pelo
aplicador para, posteriormente, encontrar a regra aplicável ao caso concreto.
Humberto Ávila afirma
14, acertadamente, que esse critério é impreciso, uma
vez que o conteúdo normativo de qualquer norma depende de possibilidades
normativas e fáticas a serem verificadas no caso concreto. Por outro lado, a
existência de uma hipótese de incidência é uma questão de formulação lingüística,
razão pela qual não serve de elemento distintivo entre as espécies normativas. Por
fim, mesmo que determinado dispositivo contenha o elemento
hipótese
, esse fato,
por si só, não pode significar que tal dispositivo não possa ser havido pelo intérprete
9
Robert Alexy. Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001, p.112.
10
As categorias da deontológica são os mandados de proibição, permissão e obrigação.
11
A categoria axiológica é ligada ao valor, ou seja, o que é bom, seguro, econômico, democrático, liberal, próprio do Estado de Direito.
12
A antropologia se refere aos interesses, necessidades, decisão e ação.
13
como princípio, “intensificando ou deixando de intensificar a finalidade que entende
deva ser alcançada”.
b)
modo final de aplicação
. Esse critério de diferenciação se baseia na
aplicação de regras de modo absoluto,
tudo ou nada
, e na aplicação de princípios de
modo gradual,
mais ou menos
.
A crítica do autor a esse critério diferenciador é no sentido de que o modo de
aplicação não é determinado no texto normativo, mas “decorre de conexões
axiológicas construídas pelo intérprete, que pode inverter o modo de aplicação
havido inicialmente como elementar”. A “vagueza” é apontada por esse autor como
um elemento comum de qualquer enunciado prescritivo, uma vez que tanto os
princípios quanto as regras permitem a consideração de aspectos concretos e
individuais. “
É o modo como o intérprete justifica a aplicação dos significados
preliminares dos dispositivos, se frontalmente finalístico ou comportamental, que
permite o enquadramento numa ou noutra espécie normativa
”
15.
c)
conflito normativo
. Esse critério de diferenciação tem vez em caso de
conflito normativo. Em se tratando de conflito entre regras, há de ser solucionado
com a declaração de invalidade de uma delas ou com a criação de uma exceção. Já
em relação a conflitos entre princípios, há lugar para a ponderação que deverá
atribuir uma específica dimensão a cada um dos princípios em aparente conflito.
O autor aponta que o recurso à ponderação não é exclusivo da solução de
aparentes conflitos entre princípios, podendo ocorrer igualmente nos conflitos entre
regras. Em acréscimo, as regras, assim como os princípios, podem ter seu conteúdo
superado por razões contrárias ou exceções individuais, mesmo que não previstas
expressamente no ordenamento jurídico, através de um processo de ponderação.
Por fim, o autor aponta que a atividade de ponderação de regras também se faz
presente na delimitação de “hipóteses normativas semanticamente abertas ou de
conceitos jurídico-políticos, como
Estado de Direito
”, indicando que as regras podem
14
Op. cit., p. 41.
15
adquirir um caráter de generalidade semelhante ao dos princípios.
Indica, assim, Humberto Ávila, que é incorreto afirmar que somente os
princípios possuem uma dimensão de peso, assim como também não é acertado
afirmar que os princípios possuem uma dimensão de peso. É às razões e aos fins
aos quais os princípios se reportam é que se deve atribuir uma dimensão de
importância
16.
O autor identifica nas regras um viés descritivo, na medida em que
descrevem uma conduta a ser adotada para estabelecer, em relação a ela,
permissões, obrigações e proibições, enquanto que nos princípios estaria presente
um caráter finalístico, por descrever um estado de coisas ideal, em prol do qual se
espera determinados comportamentos. Por outro ângulo, as regras teriam um
caráter retrospectivo, por se reportarem a situações de fato já conhecidas pelo
legislador, enquanto que os princípios seriam dotados de características
prospectivas, uma vez que se referem a situações a serem construídas. Aponta,
ainda, uma tendência à complementaridade e parcialidade nos princípios, posto que
estes não teriam função de gerar soluções específicas, mas sim de contribuir para a
tomada de decisões, enquanto que as regras teriam tendência decisiva e abarcante,
posto que têm a pretensão de gerar solução específica para os conflitos.
As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta como necessária à sua promoção17.
A doutrina aponta, de fato, uma relação de hierarquia entre princípios e
16
Idem, loc. cit..
17
regras, tendo aqueles prevalência sobre estas. Isso porque princípios são
enunciados fundamentais e fundantes da ordem jurídica, verdadeiros alicerces que
sustentam o sistema jurídico.
Para Paulo Bonavides princípios “são qualitativamente a viga mestra do
sistema, o esteio da legitimidade constitucional, o penhor da constitucionalidade das
regras de uma constituição”
18.
Essa importância
19transparece na Constituição Federal que, no parágrafo 1º
do artigo 5º, logo após arrolar em seus 78 incisos os direitos e deveres coletivos,
afirma: “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime
e dos princípios por ela adotados
, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (destaquei).
Diante de tal disposição, resta evidente que os direitos e garantias
decorrentes dos princípios constitucionais integram o rol de direitos individuais e
coletivos que são garantidos pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Luís Roberto Barroso define a importância dos princípios constitucionais:
Os princípios constitucionais são o conjunto de normas da ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus afins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamento ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui20.
18
Paulo Bonavides. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 358.
19
A relevância dos princípios constitucionais encontra eco na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, conforme se observa no voto do Min. Celso de Mello, proferido na PET-458/CE:
”O respeito incondicional aos princípios constitucionais evidencia-se como dever inderrogável do Poder Público. A ofensa do Estado a esses valores – que desempenham, enquanto categorias fundamentais que são, um papel subordinante na própria configuração dos direitos individuais ou coletivos - introduz um perigoso fator de desequilíbrio sistêmico e rompe, por completo, a harmonia que deve presidir as relações, sempre tão estruturalmente desiguais, entre os indivíduos e o Poder. (...) as normas que se contraponham aos núcleos de irradiação normativa assentados nos princípios constitucionais, perderão sua validade (no caso da eficácia diretiva) e/ou sua vigência (na hipótese de eficácia derrogatória), em face de contraste normativo com normas de escalão constitucional” (DJ 04-03-98, Julgamento 26/02/1998).
20
É, porém, necessário atentar para o fato de que a opção puramente
principiológica pode gerar, especialmente em regimes de democracia pouco
consolidada, uma sensação geral de relativa anomia e uma certa instabilidade da
segurança jurídica.
Mas, a solução diametralmente oposta é igualmente indesejável, posto que
torna excessivamente rígido o sistema jurídico, impedindo que as alterações
normativas sejam capazes de acompanhar a velocidade da dinâmica política e
social.
A grande vantagem estratégica da adoção de princípios como opção
normativa constitucional é a flexibilidade para a evolução e a adaptação da norma
principiológica ao momento histórico e social, sem necessidade de alteração
mediante o processo legiferante ou de mutação constitucional. No entanto, como já
dito, essa opção principiológica não pode ser absoluta e é necessário que seja
temperada com doses de positivação efetiva.
Nesse cenário é que se pode encampar em parte a idéia de que a linha
divisória entre princípio e regra é difusa e meramente circunstancial, havendo uma
faixa de intersecção entre as categorias normativas, na qual se podem posicionar
determinados princípios que, por sua importância ou pela necessidade de
aplicar-lhes a melhor interpretação que se aplicar-lhes pode dar em face do sistema jurídico, como
é o caso do princípio da função social da propriedade urbana, não podem ser vazios
de efetividade plena, direta e imediata.
2. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS BASILARES DO DIREITO URBANÍSTICO
Alguns princípios constitucionais se ligam diretamente às bases do Direito
Urbanístico, sendo relevante sua identificação, uma vez que o presente estudo tem
como objeto justamente esse ramo do direito.
2.1. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O primeiro e principal princípio sobre o qual se assentam as bases do Direito
Urbanístico é, sem dúvida, o
princípio da dignidade da pessoa humana
, inscrito
como fundamento da República no inciso III do artigo 1
oda Constituição Federal de
1988. Trata-se de aperfeiçoamento do princípio primeiro de todo e qualquer
ordenamento jurídico civilizado contemporâneo: o direito à vida.
A vida, por si só, não é um bem necessariamente vinculado à idéia de bem
estar, de felicidade, que lhe deveriam ser inerentes. O direito à vida se esgota no
simples direito à sobrevivência.
Para ser considerada como valor humano, a vida deve ser dotada de um
mínimo de dignidade. Não são raros na história e na literatura universais os relatos
de heróis conhecidos e anônimos que entregam sua vida sem pestanejar em prol de
objetivos ligados à dignidade: liberdade, honra, união em torno de ideais elevados,
proteção dos desfavorecidos, da natureza, da beleza, etc.
Assim, não é simplesmente a vida que as pessoas almejam e que o Estado
deve proteger, mas a
vida com dignidade
, a
vida digna
. Daí a importância do
princípio da dignidade da pessoa humana.
Muito mais amplo do que o conceito de cidadão, o conceito de pessoa
humana abrange mesmo aqueles que estejam provisoriamente localizados no
território brasileiro e os que tenham tido suprimidos seus direitos políticos por força
de lei.
Já
dignidade
é um conceito que abrange tanto a sua feição objetiva
(dignidade aos olhos do outro) quanto a subjetiva (dignidade aos olhos do próprio
indivíduo). Ser digno, pois, é, em análise perfunctória, algo como não sentir-se
inferiorizado perante os demais. É estar imbuído de valores imateriais inerentes ao
ser humano, como
amor próprio, brio, honra, respeitabilidade
21, dentre outros. Para
isso, há que se assegurar alguns direitos que, em razão de sua relevância, são
erigidos, eles mesmos, à condição de princípios.
É o caso dos direitos e garantias individuais e dos direitos sociais, tratados
respectivamente nos artigos 5
oe 6
oda Constituição Federal, dos quais nos
ocuparemos mais adiante.
2.2. PRINCÍPIO DO BEM GERAL
O artigo 3
oda Constituição elenca os objetivos fundamentais da República,
dentre eles a promoção do bem de todos (inciso III), que se coaduna com o princípio
ora em estudo. Para haver dignidade, é preciso que o
bem geral
seja perseguido
como objetivo. De forma implícita, se inclui aí o direito à busca da felicidade,
explicitado em alguns ordenamentos alienígenas, como o Norte-Americano
22.
21
Celso Antonio Pacheco Fiorillo, O Direito de Antena em Face do Direito Ambiental no Brasil, p. 14.
22
Bem e felicidade são elementos fundamentais para a existência digna.
2.3. PRINCÍPIO DA IGUALDADE
O
princípio da igualdade
vem expresso no
caput
do artigo 5
o, assegurando a
todos tratamento isonômico pela lei e garantia dos direitos à vida, à liberdade, à
segurança e à propriedade, independentemente de quaisquer circunstâncias
individuais
23.
Esse princípio já foi interpretado de diferentes maneiras ao longo da
evolução dos direitos fundamentais no curso da história.
De destacar que até meados do século passado, a interpretação prevalente
era nos sentido de que promover a igualdade era tão somente estabelecer as
mesmas regras, os mesmos ônus e os mesmos benefícios a todos os integrantes da
comunidade (igualdade formal). No entanto, hodiernamente esse sentido de
liberdade cedeu passo à idéia de que somente o tratamento desigual pode promover
a igualdade entre os desiguais (igualdade real ou material). Assim a medida da
desigualdade é o parâmetro para a adequada aplicação do princípio da igualdade.
Os incisos do artigo 5
ocarregam diversos princípios, como desdobramentos
da aplicação do princípio da igualdade. Para o estudo em tela, cumpre destacar o
princípio da propriedade
e o
princípio da função social da propriedade
(incisos XXII e
XXIII). Trata-se de princípios complementares segundo os quais é garantido o direito
de exercício da propriedade, desde que essa propriedade cumpra sua função social.
2.4. PRINCÍPIO DO PISO VITAL MÍNIMO OU DO BEM-ESTAR SOCIAL
O artigo 6
oda Constituição, por sua vez, elenca os direitos sociais, também
23
denominados por parte da doutrina de
piso vital mínimo
24: educação, saúde,
trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à
infância e a assistência aos desamparados. Cada um desses direitos pode ser
considerado como um princípio em si mesmo, podendo sua conjugação traduzir-se
como um
princípio do bem-estar social
ou mesmo como um
princípio da
busca pela
felicidade
. Os princípios de acesso à moradia, lazer, trabalho e segurança são
especialmente
ligados à questão urbanística, posto que diretamente ligados às
funções essenciais da cidade, estabelecidos na Carta de Atenas
25: habitar, trabalhar,
recrear e circular.
Ouso acrescentar que o princípio da
garantia de educação
, também
integrante do rol do artigo 6º da Constituição Federal, é igualmente relevante para o
Direito Urbanístico, vez que a educação ambiental-urbanística é fator determinante
de bons resultados na aplicação dos institutos e instrumentos previstos pelo Direito
Urbanístico
26.
Com efeito, defendemos que incumbe ao Estado a promoção da educação
ambiental formal, em todos os níveis do ensino, e da educação ambiental não
formal, mediante ações efetivas, incentivos, financiamentos e parcerias, de forma a
proporcionar e adequar as informações aos seus destinatários, de modo que se
verifiquem plenamente os objetivos delineados na Constituição Federal e
explicitados na legislação infraconstitucional.
De suma importância é a promoção da educação ambiental não formal, por
sua clara vocação de instrumento eficaz em relação às comunidades e grupos
menos favorecidos, que são justamente os que habitam em assentamentos
irregulares, lugares onde tem vez parcela considerável do problema ambiental
urbano
27.
24
Celso Antônio Pacheco Fiorillo, Estatuto da Cidade Comentado, passim.
25
A Carta de Atenas é um documento redigido em 1933, na capital grega, por ocasião da realização do 4º Congrés International d’Arquitecture Moderne – C. I. A. M.
26
Conforme tese “A Educação Ambiental como Instrumento de Política Urbana” por nós defendida e aprovada no XXIX Congresso Nacional de Procuradores de Estado no ano de 2003, em Fortaleza, CE.
27
A educação ambiental e urbanística é também fundamental para a formação
de uma consciência popular qualificada, a fim de eleger adequadamente seus
representantes e para exercer diretamente os atos de fiscalização e de gestão
democrática das cidades de forma eficiente e eficaz.
A educação ambiental deve ser, pois, efetivamente, considerada como
valioso e indispensável instrumento de política urbana, que pode e deve ser
sabiamente utilizado pelo Poder Público, na busca dos ideais constitucionais de vida
plena e digna.
2.5. PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Já no capítulo que trata dos Princípios Gerais da Atividade Econômica
(capítulo I do título VII, da Ordem Econômica e Financeira), a Constituição
estabelece o
princípio do desenvolvimento sustentável
(art. 170), segundo o qual
deve estabelecer-se o equilíbrio entre a atividade econômica típica do modelo
capitalista adotado pelo Estado brasileiro e o bem estar da população, mediante
“De todos os instrumentos arrolados no artigo 4º do Estatuto da Cidade, merece destaque, para efeito do presente estudo, o que consta da primeira parte da alínea r do inciso V: ‘assistência técnica gratuita para as
comunidades e grupos sociais menos favorecidos’.
Essa ‘assistência técnica’ quase que passa despercebida no texto legal, ante o fato de se encontrar na mesma alínea que o já consagrado e conhecido instrumento da assistência jurídica gratuita. No entanto, trata-se de dois instrumentos distintos, que não se confundem.
(...)
No humilde entender do autor do presente trabalho, a expressão ‘assistência técnica’ significa o oferecimento às comunidades e grupos sociais hipossuficientes (entendendo a expressão tanto em seu aspecto econômico, quanto em seu aspecto técnico, ou seja, relativo ao acesso à informação e ao conhecimento) de informações a respeito de técnicas, comportamentos e atitudes que possam influenciar na qualidade de vida. No que diz respeito ao urbanismo, essa assistência técnica pode (e deve) incluir noções básicas de construção civil, segurança, saúde, higiene, saneamento, disposição de resíduos, organização social, necessidade de preservação de espaços públicos e de interesse especial, e tudo mais quanto possa aproximar a realidade dessas
comunidades e grupos dos ideais constitucionais de vida digna.
Ora, nesse contexto, a educação ambiental, especialmente a não formal, ganha contornos de efetivo instrumento de política urbana, como parte de um processo mais amplo que tende a atingir os objetivos de política urbana estabelecidos na Carta e na Lei.
valores como existência digna e justiça social. Dos princípios elencados nos incisos
do art. 170, agora como corolários do princípio do desenvolvimento sustentável,
interessam diretamente ao Direito Urbanístico os da
função social da propriedade
(inciso III) e da
defesa do meio ambiente
(VI), observando que Direito Urbanístico e
Direito Ambiental são ramos cujos objetivos, valores e princípios são intimamente
ligados, ante o evidente caráter ambiental do objeto do Direito Urbanístico (a cidade
como meio ambiente construído).
2.6. PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO E DEFESA DO MEIO AMBIENTE
Ao tratar da política nacional do meio ambiente, em seu artigo 225, a
Constituição Federal nos traz os
princípios da preservação e da prevenção
,
da
educação ambiental
e
do poluidor-pagador
, derivados do princípio geral da proteção
e defesa do meio ambiente e plenamente aplicáveis ao Direito Urbanístico, pela
estreita vinculação entre este e o Direito Ambiental e pelo fato de que tais princípios
encontram reflexos diretos na norma que concede autonomia ao Direito Urbanístico,
que é o Estatuto da Cidade.
Com efeito, já no seu artigo 2º, que estabelece as diretrizes gerais da
política urbana, o Estatuto da Cidade aponta a garantia do direito ao saneamento
ambiental para as presentes e futuras gerações (inciso I) e o planejamento do
desenvolvimento das cidades de modo a evitar distorções do crescimento urbano e
seus efeitos negativos sobre o meio ambiente (inciso IV), além da proteção,
preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído e do patrimônio
cultural (inciso XII), da audiência do Poder Público local e da população interessada
nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos
potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído (inciso XIII) e
a consideração das normas ambientais por ocasião da regularização fundiária e da
urbanização de áreas ocupadas por populações de baixa renda (inciso XIV).
2.7. PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
A questão da função social da propriedade é de fundamental importância
para o Direito, vez que é através dela que se justificam muitos dos institutos e
instrumentos que representam limitações ao exercício do direito de propriedade.
Para apurar qual o regime jurídico imposto pela Constituição à função social
da propriedade é preciso realizar um exercício de interpretação que será mais
adiante objeto de estudo. De pronto, é possível identificar as disposições relativas à
função social da propriedade urbana e à função social da propriedade rural.
O capítulo II do título que trata da Ordem Econômica e Financeira dispõe de
forma direta sobre a política urbana. É onde se encontram os artigos 182 e 183, que
reafirmam os princípios da função social da propriedade e do bem-estar geral. Com
a previsão de medidas como a adequação compulsória do solo urbano aos ditames
do plano diretor, sob pena de imposição de IPTU progressivo no tempo e
desapropriação-sanção, e a usucapião pró-moradia. Nesse ponto a Constituição
trata de desde logo lançar as bases para a aplicação concreta do princípio da função
social da propriedade urbana.
A função social da propriedade
urbana
é cumprida quando esta atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor
(conforme artigo 182, parágrafo 2
o, da Constituição). Ou seja,
a priori
, somente
quando a propriedade é exercida de conformidade com as normas estabelecidas no
plano diretor, elaborado pelo Poder Público municipal, é que se considera cumprida
sua função social. Essa interpretação será mais adiante contrastada no presente
estudo.
trabalhadores.
A questão da função social da propriedade rural, em que pese não tratar da
propriedade que interessa diretamente ao Direito Urbanístico, será de grande
relevância para a verificação da existência de um regime geral para a função social
da propriedade no plano constitucional, como adiante se verá.
II CONSTITUIÇÃO, URBANISMO E DIREITO URBANÍSTICO
1. CONSTITUIÇÃO E URBANISMO
A questão urbanística hoje é uma das mais significativas fontes de
preocupação social, política e jurídica.
Sabe-se que ela se encontra na raiz de uma série de problemas que hoje
afligem o cotidiano dos brasileiros: miséria, violência urbana, má concentração de
renda, inadequada distribuição de benefícios sociais, danos ambientais, questões
relacionadas à saúde pública, dentre outros.
O Estado começou tarde a se munir de instrumentos legislativos para fazer
frente ao grande número de almas que se deslocou do Brasil rural para as grandes
metrópoles brasileiras ao longo do século XX, em busca de melhores condições de
vida e de trabalho, diante do fenômeno da industrialização e da propaganda oficial
que visava atrair trabalhadores para o florescimento dos centros urbanos,
especialmente no período conhecido como “milagre econômico”
28, na segunda
metade do século.
Uma enorme massa de novos habitantes aportou nas cidades, provocando
um crescimento descontrolado dos núcleos populacionais urbanos.
A ausência de adequadas políticas urbanas permitiu que o aumento de
demanda se transformasse em escassez de oferta e as grandes massas de
28
No período chamado "milagre econômico", que vai aproximadamente de 1968 a 1974 (ou seja, em plena ditadura militar, que perdurou de 1964 a 1985), o país experimenta crescimento acelerado. A disponibilidade externa de capital (que aqui ingressava na forma de financiamento e empréstimos) e a determinação dos governos militares de fazer do Brasil uma "potência emergente" resultam em pesados investimentos em infra-estrutura (rodovias, ferrovias, telecomunicações, portos, usinas hidrelétricas, usinas nucleares), nas indústrias de base (mineração e siderurgia), de transformação (papel, cimento, alumínio, produtos químicos,
migrantes dotados de poucos recursos foi sendo obrigada a deslocar-se cada vez
mais para as periferias das cidades, ocupando áreas não desejadas pelas
populações pré-existentes, seja por sua distância dos equipamentos urbanos, seja
pela dificuldade de transporte, seja pelas próprias características das áreas
ocupadas, como as encostas de morros e outras áreas de risco.
Hoje a situação que se verifica é de difícil reversão e muito vai se exigir do
Estado e da sociedade (componentes da
comunidade
) para que se possa vir a
alterar o cenário ora consolidado.
Segundo estudos da professora Ermínia Maricato, não há metrópole em que
as linhas de circulação (parcelas de rodovias em zona urbana, grandes avenidas
que cortam regiões menos urbanizadas) e áreas próximas a cursos d’água estejam
livres de densos núcleos habitacionais clandestinos, com tudo o que isso acarreta de
nocivo ao meio ambiente natural e construído (utilização inadequada da terra e dos
recursos hídricos, má gestão de resíduos sólidos e dejetos humanos, assoreamento
de leitos de cursos d’água, degradação das matas ciliares, inundações, etc.)
29.
Somente instrumentos políticos e jurídicos de grande impacto e relevo serão
capazes de promover uma alteração significativa no quadro que ora se apresenta
30.
Dentre esses instrumentos, certamente o Direito Urbanístico se destaca por
seu potencial de promover mudanças.
A raiz constitucional desse novo ramo do Direito é o que se pretende
prospectar no presente capítulo, a fim de contribuir para a adequada compreensão e
operação dos institutos e instrumentos trazidos pela lei que concede afinal
autonomia ao Direito Urbanístico, o Estatuto da Cidade, assim autodenominada a
Lei Federal 10.257/2001.
29
Palestra “Fundamentos urbanísticos do Estatuto da Cidade”, proferida no Instituto dos Advogados de São Paulo em 20 de junho de 2002.
30
1.1. CONSTITUIÇÃO
A doutrina oferece muitos conceitos de Constituição.
Conceitos estes que pode variar segundo o prisma através do qual se
observa o tema.
Jorge Miranda
31, por exemplo, conceitua Constituição dos pontos de vista
material, formal e instrumental:
De uma perspectiva material, a Constituição consiste no estatuto jurídico do Estado, ou, doutro prisma, no estatuto jurídico do político; estrutura do Estado e o Direito do Estado32.
A perspectiva formal vem a ser a de disposição das normas constitucionais ou do seu sistema diante das demais normas do ordenamento jurídico em geral. Através dela chega-se à Constituição em sentido formal como complexo de normas formalmente qualificadas de constitucionais e revestidas de força jurídica superior à de quaisquer outras normas33.
Um último sentido básico da Constituição a propor é o sentido instrumental: o documento onde se inserem ou se depositam normas constitucionais diz-se Constituição em diz-sentido instrumental34.
O mesmo autor nos dá que a Constituição não é apenas limite, mas também
fundamento do poder público e da própria ordem jurídica
35e ensina que “somente
desde o século XVIII se encara a Constituição como um conjunto de regras jurídicas
definidas das relações (ou da totalidade das relações) do poder político, do estatuto
de governantes e governados”
36.
31
Manual de Direito Constitucional, tomo II, 4a edição, Coimbra Editora, 2000.
32
Op. cit., p. 10.
33
Idem, p. 11.
34
Idem, p. 12.
35
Idem, p. 19.
36
José Roberto Dromi conceitua Constituição como “el modo de ser que
adopta uma comunidad política em el acto de crearse y también em el acto de
reformarse”
37.
Para Konrad Hesse, Constituição é “a ordem jurídica fundamental da
comunidade”
38, sendo nela que se fixam os princípios diretores que formam a
unidade política e se assumem as tarefas do Estado. A Constituição deve conter os
procedimentos de solução de conflitos no interior da comunidade e regula a
organização e o procedimento de formação da unidade política e a atuação estatal.
A Constituição é o “plano estrutural básico, orientado a determinados princípios de
sentido para a conformação jurídica de uma comunidade” (Höllerbach)
39.
Em suma, Constituição pode ser conceituada como o instrumento que
concretiza a ordem jurídica fundamental da comunidade (comunidade esta formada
pela manifestação de suas duas facetas: a sociedade e o Estado).
É pacífico entre os doutrinadores que a Constituição é um sistema de
normas que podem adotar a feição de princípios e ou de regras. Princípios como
valores que formam as regras e regras como normas de caráter preceptivo, que
determinam condutas.
Esse sistema de princípios e normas é de grande valia, uma vez que
soluciona, em primeira análise, dois problemas que poderiam prejudicar o
funcionamento do ordenamento jurídico: a questão das lacunas e a questão da
adequação.
A Constituição não contém e nem pode conter lacunas, sob pena de falência
do sistema. Isso só se faz possível pelo caráter principiológico de parte das normas
37
Tradução livre: “a maneira de ser que uma comunidade política adota no ato de criar-se e também no ato de reformar-se”. José Roberto Dromi. La reforma constitucional – El constitucionalismo del por-venir. La reforma de la Constitución. El Derecho Público de Finales de Siglo. Una perspectiva Iberoamericana. Madrid: Civitas, p. 107.
38
Konrad Hesse. Escritos de derecho constitucional, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p. 16.
39
que integram a Constituição. Princípios, enquanto valores, são, por definição,
flexíveis e mutáveis, permitindo a integração e a complementação das normas que
têm caráter de regras. Assim, a Constituição é capaz de transformar-se ao longo do
tempo, mediante a mutação constitucional, permanecendo atual e, portanto,
adequada aos anseios e aspirações da comunidade. Outra vantagem do caráter
principiológico das normas constitucionais é permitir que lacunas porventura
existentes na legislação infraconstitucional sejam superadas através da aplicação
direta dos princípios constitucionais, sempre possível em razão de seu caráter de
norma hierarquicamente superior.
Assim, o conceito de Constituição também se transforma ao longo do tempo,
vez que este conceito nos é dado pela Ciência do Direito, cuja função é tão somente
descrever o Direito. Somente à luz do contexto histórico, da função da Constituição
na realidade e na vida históricas da comunidade é que se pode definir Constituição.
Isso se faz extremamente importante, a partir da constatação de que é a
Constituição que proporciona a ordenação da vida estatal e não-estatal na
comunidade, estabelecendo os pressupostos de vigência e execução das normas de
todo o ordenamento jurídico e, conseqüentemente, sua unidade.
Por isso é que quanto maior a conexão das normas constitucionais com as
circunstâncias históricas, maior é sua força normativa, o que se revela como
efetividade, ou seja, a disposição dos membros da comunidade em adotar como
vinculante o seu conteúdo e assumir a decisão de incorporá-los à sua realidade
cotidiana.
Não é por outra razão que Jorge Miranda aponta que a Constituição não é
somente política, mas também social, ou seja, o estatuto da comunidade perante o
poder
40.
Assim é que a necessidade de estreita ligação entre a Constituição e a
realidade depende da formação de um consenso básico, o que resulta em uma
40
ordem jurídica firme.
Reside aí uma dificuldade. O consenso raramente ocorre no interior de um
sistema complexo como a comunidade. Anseios e aspirações não são os mesmos
de indivíduo para indivíduo e de grupo para grupo. Um jogo de maiorias e minorias
está constantemente em ação, fazendo surgir focos de conflitos a todo momento.
Daí a constatação de que não há outra forma de consenso que não o
consenso
possível
, ou seja, o maior nível de consenso que seja possível obter diante de um
cenário complexo e em constante transformação
41.
Para que haja um mínimo de consenso, é necessário que todos os setores
da comunidade sejam, de alguma forma, considerados, por ocasião da tomada de
decisões que constituem o momento de aplicação das normas.
A regra da maioria não significa que a minoria seja irrelevante e que seus
anseios e aspirações não devam ser levados em conta. É preciso, obviamente,
atender à maioria, sem excluir a minoria.
Pois não foi isso o que se viu ao longo do século XX. O Brasil passou por um
processo de industrialização acelerado. Em poucas décadas, deixa de ser rural para
se tornar industrial. O campo cede lugar à cidade. O país vê grande parte de sua
população migrar para os grandes centros urbanos. É o chamado êxodo rural.
1.2. URBANISMO
Com a industrialização, veio a necessidade de mão de obra (de baixíssimo
custo) e o sonho de uma vida melhor atrai brasileiros de toda a parte, além de
estrangeiros de várias regiões do planeta.
A partir das décadas de 1930 e 1940, em decorrência da Segunda Grande
Guerra, as mulheres passam a encontrar seu lugar no mercado de trabalho e
41
mesmo as crianças passam a assumir tarefas. Trata-se de fabulosa força de
trabalho, cujo suor ajudou a alimentar a transição do Brasil agrário e rural para o
Brasil industrial e urbano.
As cidades passam a crescer sem o devido planejamento. Alocar o grande
volume de pessoas que chegavam a cada dia aos centros urbanos era um problema
do qual não se ocupava com a necessária seriedade o Estado.
A expansão desordenada determinou o surgimento de formas irregulares de
moradias, como os cortiços (grandes mansões eram locadas a inúmeras famílias,
cada qual ocupando uma pequena porção de espaço e compartilhando
equipamentos sanitários com as demais).
A Lei Lehman
42buscou
solucionar
o problema declarando ilegais essas
moradias irregulares. Essa medida, porém, somente contribuiu para o deslocamento
dessa massa humana para a periferia das cidades, ainda de urbanização incipiente
ou nula.
Sem imóveis prontos para ocupar, não restou a essas pessoas senão
instalar-se de forma precária e improvisada (ocupação de terrenos vazios, com a
construção de simulacros de residências, em madeira, folhas de zinco ou outros
materiais nos quais raramente a alvenaria se incluía). Tem início um processo de
“favelização” nunca visto até então
4344.
Essas favelas passam a ser erguidas principalmente ao longo de linhas de
circulação (estradas e avenidas) e cursos d’água
45.
42
Lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979.
43
Cf. José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, p. 23.
44
A pesquisa IBGE 2000 nos Municípios revela a presença de assentamentos irregulares em quase 100% das cidades com mais de 500 mil habitantes e, em menor escala, nas cidades médias e pequenas (fonte: página da Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades na internet, http://www.cidades.gov.br, em 18/7/2003).
45
Relegadas ao descaso das autoridades, esses aglomerados habitacionais
improvisados se transformam em densos núcleos populacionais, que crescem
desordenadamente e totalmente alheios aos benefícios da urbanificação, sem
atenção estatal e sujeitas a toda sorte de controle por organizações não oficiais,
como o crime organizado.
Soluções paliativas (e mais voltadas ao controle social do que propriamente
à distribuição de benefícios ou à solução efetiva do problema), como a instalação de
guias e sarjetas para possibilitar a passagem de viaturas oficiais e
vistas grossas
à
realização de instalações elétricas clandestinas ou não, foram, via de regra, tudo o
que essas populações receberam do Poder Público ao longo de décadas.
E mesmo a negativa de fornecimento de tais equipamentos comunitários
mínimos serviu de fomento, ao contrário do que pretendia o Poder Público, para as
ocupações irregulares.
Em recente palestra intitulada “Meio ambiente e exclusão social: o processo
histórico de urbanização da metrópole paulistana”, proferida no dia 28 de fevereiro
de 2007, no auditório do Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São
Paulo, por ocasião da realização do Seminário de Direito Ambiental e Urbanístico
“Cidade de São Paulo: proteção do Meio Ambiente Natural e Cultural” pelo Instituto
Brasileiro de Advocacia Pública, o professor Alaôr Caffé Alves referiu-se à estratégia
de não instalar equipamentos comunitários em terrenos à margem de importante
reservatório de água na capital paulista, com a finalidade de desestimular ocupações
irregulares em área de proteção ambiental.
A ocupação de áreas públicas e particulares, a autoconstrução parcelada ao
arrepio das posturas administrativas (e muitas vezes com risco à vida e à saúde
pública), o dano ambiental e mesmo a lesão ao direito constitucional de moradia das
populações irregularmente assentadas são conseqüências de décadas de descaso
estatal para com a situação (tal qual a atitude que se atribui – indevidamente, uma
vez que este animal na realidade não adota esse comportamento – ao avestruz, que
ante a ameaça esconderia a cabeça num buraco, deixando que todo o restante de
seu corpo permaneça exposto ao perigo).
Diante desse cenário, resta um déficit habitacional de 6,6 milhões de
unidades no país, sendo 1,3 milhão no campo e 5,3 milhões nas cidades, segundo
estimativas da Fundação João Pinheiro, de Minas Gerais
46. Tal déficit é maior na
zona urbana
47e atinge sobretudo a parcela de menor renda da população, sendo
que das famílias atingidas 84% conta com renda inferior a três salários mínimos. No
entanto, 67% dos recursos para habitação eram concedidos, no final do século XX, a
famílias com renda superior cinco salários mínimos, que não representavam, então,
mais do que 18,3% dos assalariados do país (IBGE/PNAD, 1999)
48.
A globalização econômica, a crise do emprego, a queda do poder aquisitivo,
a redução da massa salarial
49têm causado um tal agravamento da situação que já
não se pode mais qualificar como minoria a parcela da população sujeita a habitar
moradias irregulares
50, num contexto em que se vêem desprovidas do privilégio de
46
Conforme destaca Luiz Cláudio Assis Tavares, em Questão da habitação social: desafios e perspectivas, in Boletim do Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, janeiro de 2005, p. 13.
47
“Em 1972, quando em Estocolmo a comunidade das nações proclamou a convenção de proteção do meio ambiente, dando um sentido sistemático à proteção ambiental e incluiu a questão urbanística, 70% da população do mundo vivia na cidade. Hoje já estamos com 80% da população vivendo na cidade e numa perspectiva de 6 milhões de pessoas em 2025”, conforme manifestação de Daniel Fink no Seminário de Regularização Fundiária, realizado nos dias 26 e 27 de junho de 2003 em São Paulo.
48
Luiz Cláudio Assis Tavares, Boletim...,p. 14.
49
A renda dos assalariados na cidade de São Paulo caiu em 28,7% entre 1997 e 2002. Em 1989 havia cerca de 614 mil desempregados na cidade; em 1999 já eram 1 milhão e 750 mil, segundo João José Sady em A nova classe que habita a não-cidade. Revista de Direito e Política, maio a agosto de 2004, p. 79.
50
Na cidade de São Paulo, a parcela da população que vive em favelas saltou de 1% para 20%, de 1995 a 1999. No final do século XX, a cidade tinha 2000 favelas nas quais residiam 200 mil famílias. Além disso, havia 600 mil famílias habitando ilegalmente, no mais das vezes sem água, esgoto ou iluminação. A área ocupada pelas moradias irregulares ocupava 17% do território da cidade, segundo o Projeto Moradia.