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AS MEMÓRIAS ANTROPOFÁGICAS DE OSWALD DE ANDRADE

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Academic year: 2022

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGEM

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

SILVANA APARECIDA TEIXEIRA

AS MEMÓRIAS ANTROPOFÁGICAS DE OSWALD DE ANDRADE

Cuiabá - MT

2011

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SILVANA APARECIDA TEIXEIRA

AS MEMÓRIAS ANTROPOFÁGICAS DE OSWALD DE ANDRADE

Cuiabá - MT

2011

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SILVANA APARECIDA TEIXEIRA

AS MEMÓRIAS ANTROPOFÁGICAS DE OSWALD DE ANDRADE

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem, do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem.

Área de concentração: Estudos Literários – Literatura e Realidade Social.

Orientadora: Profª Drª Sheila Dias Maciel

Cuiabá - MT

2011

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v FICHA CATALOGRÁFICA

T266m Teixeira, Silvana Aparecida.

As memórias antropofágicas de Oswald de Andrade / Silvana Aparecida Teixeira. – 2011.

146 f.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Sheila Dias Maciel.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, Área de Concentração: Estudos Literários, Litera- tura e Realidade Social, 2011.

Bibliografia: f. 143-146.

1. Andrade, Oswald, 1890-1954 – Crítica e interpretação.

2. Análise literária. 3. Literatura confessional. 4. Antropofagia literária. I. Título.

CDU – 82(81).09

Ficha elaborada por: Rosângela Aparecida Vicente Söhn – CRB-1/931

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DEDICATÓRIA

Ao matriarcado que me envolve:

Benedita Vieira Teixeira e Enodina Pedroso Duarte: Avós.

Davina Cláudia Duarte: Mãe.

Alcione Bom Despacho, Mônica Benedita, Danielle Regina e Flávia Manuela: Irmãs.

Paula Taici Teixeira Neves e Annelis Teixeira Alves Dias: Filhas.

Mayara Gabrielle Mazzonneto Zanutto, Cecília Dias Teixeira de Arruda e Anna Clara Dias Coelho: Netas.

Ao meu pai, Alceu Ribeiro Teixeira.

Professo Amor, que me ensinou que mil anos de idéia não valem um minuto azul do sentimento estampado em seus olhos.

Ao meu filho Bruno Raphael Zanutto e meus irmãos Adilson Espírito Santo Ribeiro Teixeira e Alceu Ribeiro Teixeira Filho.

A Elizé Antonio Dias, grande amigo.

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AGRADECIMENTOS

À Dra. Sheila Dias Maciel, orientadora que tem trilhado ao meu lado os senderos por onde passo.

À Dra. Rhina Landos Martinez André, amiga que há mais de uma década estimula e acompanha minha evolução acadêmica.

À Dra. Cláudia Graziano e à sua equipe do Mestrado de Estudos em Linguagem/IL/UFMT, em especial às secretárias que incansavelmente nos têm auxiliado.

Aos mestrandos que comigo estiveram durante o primeiro ano, em especial: Gisley, Leandro e Lucy.

Aos professores e funcionários da Escola do Legislativo, da Assembléia Legislativa de Mato Grosso, em especial: Professor Ataíde Pereira e Professor José Walter Zacarias.

Aos irmãos visíveis e invisíveis da Associação

Espírita Wantuil de Freitas.

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Muito de arte entrará nestes temperos, arte e paradoxo que fraternalmente se misturarão para formar, no ambiente colorido e musical deste retiro, o cardápio perfeito para o banquete da vida.

(ANDRADE, 2002: 162.)

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TEIXEIRA, Silvana Aparecida. As memórias antropofágicas de Oswald de Andrade. Universidade Federal de Mato Grosso, 2010.

RESUMO:

Sendo proposta lançar um novo olhar sobre Um homem sem profissão. Memórias e Confissões. Sob as ordens de mamãe (1954), de Oswald de Andrade, obra que faz parte de uma parcela pouco comentada da produção de um autor de reconhecida importância, busca-se investigar como ocorre a configuração das memórias no texto oswaldiano, bem como refletir sobre o lugar dessa obra dentro das escritas memorialísticas contidas no conjunto da literatura brasileira. Imbricando a antropofagia literária lançada por aquele escritor com teores de cunho autobiográfico, são dois os principais recortes para investigação: o trato da narrativa temporal, analisado à luz de Discurso da Narrativa (1979) de Genette, e associado posteriormente à configuração do processo memorialista propriamente dito, presente na obra. O segundo aspecto trata-se da explícita devoração da personagem pelo autor, fato transgressor do pacto autobiográfico. Para tanto, utiliza-se como aparato teórico os conceitos de memória apresentados por Lejeune (1994), Todorov (2000), Caballé (1995), Olmi (2006) e Halbwachs (2006).

RESUMEN: Haciendo propuesta de echar nueva mirada sobre Um homem sem

profissão. Memórias e Confissões. Sob as ordens de mamãe (1954), de Oswald de Andrade, obra que forma parte de una fracción poco comentada de la producción de un autor de reconocible importancia, la búsqueda es de investigar cómo ocurre la configuración de las memorias en el texto oswaldiano, además de reflexionar sobre el lugar de dicha obra dentro de las escrituras memoristas contenidas en el conjunto de la literatura brasileña.

Sobreponiendo la antropofagia literaria lanzada por aquel escritor con teores de cuño autobiográfico, dos son los principales recortes para investigación: el trato de la narrativa temporal, estimado a la luz de Discurso da Narrativa (1979) de Genette y correlacionado posteriormente al proceso memorista propiamente dicho presente en la obra. El segundo aspecto se trata de la explícita devoración del personaje por el autor, hecho transgresor del pacto autobiográfico. Para ello, se utiliza como aparato teórico los conceptos de memoria presentados por Lejeune (1994), Todorov (2000), Caballé (1995), Olmi (2006) e Halbwachs (2006).

PALAVRAS-CHAVE

: Literatura Confessional. Memórias. Oswald de Andrade.

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x SUMÁRIO

Introdução ...11

1.

A DEVORAÇÃO CRÍTICA...19

2.

A DEVORAÇÃO DO TEMPO...51

2.1 Uma leitura do tempo: a teoria de Genette...51

2.2 Em diálogo: Genette e os teóricos da confissão...77

3.

A DEVORAÇÃO DA PERSONAGEM PELO AUTOR...105

CONCLUSÃO...138

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...143

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INTRODUÇÃO

“Só a Antropofagia nos une: Socialmente.

Economicamente. Filosoficamente.”

Oswald de Andrade

Uma das linhas de pesquisa do Mestrado em Letras da UFMT, campus de Cuiabá, diz respeito ao estudo sistemático das tendências críticas que discutem a literatura no século XX em diferentes tradições literárias. Neste contexto, um dos objetivos da linha “Literatura e Realidade Social” é examinar o imbricamento do real histórico com o ficcional em textos deste período. Além disso, desenvolvem-se trabalhos reflexivos, nesta linha, sobre o modus operandi de escritores novecentistas em face à produção literária de seu entorno.

Neste âmbito há ainda muito por ser feito dentro do panorama dos estudos literários no Brasil, já que a reflexão sobre a produção literária do século XX nunca está acabada e merece ser retomada a luz de novos conceitos e teorias. Uma das obras, publicada sob a égide da memória, que merece ser revista é Um homem sem profissão. Memórias e Confissões. Sob as Ordens de Mamãe, de Oswald de Andrade (1890-1954).

O escritor publicou Um homem sem profissão pouco antes de morrer, em

1954, atendendo a um pedido do crítico Antonio Candido, que lhe aconselhara

a escrever suas memórias. Após ouvir o conselho, redige, então, o primeiro

volume, que dá conta de sua infância, adolescência e primeiros anos de

juventude e formação intelectual. Outros estavam planejados, mas a morte

interrompeu o trabalho, que certamente acabaria se tornando peça chave para

a compreensão da cultura e da política brasileiras da primeira metade do

século XX.

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Dessa forma Um homem sem profissão é o único volume de memórias de Oswald de Andrade que chegou ao público leitor. Autor de mais de 20 obras, seu nome é central para compreender o transcurso do Modernismo no Brasil.

Neste âmbito, revisitar seu único volume de memórias deve ser visto como uma tarefa da crítica e da academia.

Sabe-se, pela variedade de estudos sobre Oswald de Andrade dentro do Movimento Modernista, que há um estigma sobre a imagem deste escritor, seja pelas atitudes (anti) sociais, seja pela sua criação literária. Estigma este que poderia constituir de per si um trabalho específico que trataria dos inúmeros adjetivos que lhe foram dados: subversivo, irreverente, conquistador, imoral, decadente, oportunista, sarcástico, irresponsável, entre tantos.

Ao lado de Mário de Andrade, o paulistano irreverente falou e escreveu com a singularidade que o fez destacar e, por muitas vezes, ser atacado e atacar. Para Gimenes, 2000:135, a escrita de Andrade visa a “contestar os limites existentes do campo de relações sociais no qual se situa. Ela afronta a Gramática, já que não admite normatizações”. De igual forma, investindo contra os principais agentes da opressão e controle - como o Estado, a Igreja Católica, o Liberalismo e a Academia-, praticou uma escrita contestatória dos tabus fixados por esses poderes.

Ainda em Gimenes, 2000:139, tem-se

Para compreendermos a posição histórica ocupada pela enunciação de Oswald, é importante repensarmos o estatuto de seus escritos quando do momento de sua produção [...] se quisermos entender o potencial crítico da época de seus escritos, é preciso revisitar seu caráter histórico de literatura menor.

A título de ilustração, em 1922 o romance Os condenados já estava em circulação, assim como Memórias Sentimentais de João Miramar, em 1924, sem, contudo, serem vistos como autênticas representações do nacionalismo literário brasileiro. Por outro lado, Juca Mulato (1917), de Menotti Del Picchia, e A cinza das horas (1917), de Manuel Bandeira, eram aceitas como obras prometedoras de êxito junto ao público.

Lessa, 2008:250, apresenta-nos justificativa plausível para o êxito de

determinadas criações literárias em detrimento de outras:

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Para a construção nacional, a principal descoberta consiste em perceber o povo [...] o novo olhar inspira uma explosão de literatura regional e um esforço por tipificar e ilustrar uma variedade de tipos populares e regionais do Brasil.

Sendo consideradas como literatura menor, as obras oswaldianas estavam fadadas ao esquecimento, ao descrédito e à marginalização. A literatura menor abrangia tudo que estava fora dos cânones, ou, como esclarece Gimenes, 2000:139, “uma série de textos que,

por algum motivo,

não está colocada na primeira linha de obras-primas” (grifo nosso).

A insubordinação literária do escritor visou destituir o poder homogeneizante, em todos os seus sentidos, o mote inovador. Antonio Candido, em Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade, ao comentar sobre a atitude de „devoração e mobilidade‟ deste escritor paulista, afirma que

De um homem assim, pode-se dizer que a existência é tão importante quanto à obra. Pelo menos a nós isto parecia evidente, porque o víamos intervir, vituperar, louvar até as nuvens, xingar até o inferno, aclamar e depois destruir, remexendo sempre com uma paixão em brasa pela literatura.

(Candido, 1977:75)

Referendar as próprias ações e composições literárias no escritor de Os condenados significou constantes resistência e insistência. Resiste-se a quê?

Esse escritor resistiu à interpretação simplista imposta, de que a literatura brasileira deveria configurar um „espelho‟ da nação, ou seja, servir de veículo representativo de uma estrita visão sociológica do povo brasileiro, como aponta Velloso, 1998:1:

Ao longo de nossa historia político-intelectual, as mais diferentes correntes de pensamento tenderam a conceituar a literatura enquanto instancia portadora e/ou refletora do mundo social.

Ante o exposto, indagamos: - Em quê insiste Oswald de Andrade?

Insiste em não admitir a Literatura apenas como veículo comunicativo do

estado social de uma nação. Insiste em discursar e agir a favor da imanência

constituinte da própria arte literária, ainda que se admita ser uma de suas

funções abranger o aspecto sociológico. Insiste em contrapor-se àquela

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concepção ingênua que, segundo Velloso, 1998:1, apresenta a obra literária como “mero testemunho da sociedade, como uma espécie de documento destinado exclusivamente ao registro dos fatos”. Insiste em afirmar o Movimento Modernista como acertada vanguarda literária para aquele momento.

Esse posicionamento insubordinado oswaldiano, e próprio de todos os modernistas, dadas as mudanças sociais, econômicas e políticas, e as transformações literárias iminentes, compõem o quadro que antevê o quanto os escritores deste movimento:

Não vão concordar com a rígida simetria que se pretende estabelecer entre literatura e nação [...] O tom dos escritos modernistas é muito mais de perplexidade do que de constatação e testemunho. (Velloso, 1998:8.)

A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos, diz o blague em Pau Brasil (1924). Nota-se aqui uma preocupação sobremaneira literária, estética em sua forma e conteúdo, e que desvia o foco da importância sociológica para aquela de composição desta arte. Esse deslocamento de visão da função e do fazer literários insubordina-se à imposição do regime político (ditatorial, diga-se) vigente no Brasil daquela década. Imposição que, para Velloso, 1998:8, objetivava a unicidade das múltiplas manifestações artísticas, planejava manter uma continuidade através de „aparente ruptura‟, ou, como afirma a autora, ter a “literatura como espelho da nação”.

Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas.

Os futuristas e os outros. Uma única luta – a luta pelo caminho.

Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação. (Andrade, 1996)

Dito de outra forma, o que se pretendia ao homogeneizar ou inculcar

uma identidade literária nacional era combater, via controle, a alteridade e a

heterogeneidade literária. Em Velloso, 1998:9, vê-se que o discurso daquele

momento de poder político instituído pelo regime “exige uma ruptura com a

estética e a subjetividade, vistas como falsas porque incapazes de apreender a

nacionalidade”. Nesse sentido, a vanguarda modernista sempre representará

uma ruptura com moldes antigos, uma renovação de algo em desuso ou

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insatisfatório às necessidades de determinada época, ou dinâmica destruição que reconstrói ou reinventa.

Em quê constitui a insubordinação literária de Oswald de Andrade? Em valorizar, pela criação literária, mais do que pelos discursos ideológicos e políticos, o brasileiro em sua manifestação ímpar, em sua capacidade de absorver, „degustar e digerir‟ e, como artista autenticamente do Brasil, de miscigenação de raças e de diversidades culturais, de dar a sua interpretação genuína, de transformação, daquilo tudo que vê, sente, pensa e que lhe dá movimento. “Elementos desprezados da poesia nacional”, como bem o disse.

Nas muitas literaturas oswaldianas mais se destacam: o uso de vícios condenados pelos cânones, os neologismos, a fusão de vocábulos e de falas, inclusive reveladoras da diversidade estrangeira habitante do Brasil, enfim, uma renovação estética que facilita ao autor de A estrela de absinto (1927) ir mais além com sua ironia:

É claro que um intelectual metrificado que anda de bonde com os bluffs do Anatole France na cabeça não pode enxergar a emoção bem-humorada que existe neste [...] Como esses, os outros procuram somente fixar com simplicidade, sem comentário, sem erudição, sem reminiscência, os fatos poéticos de nossa nacionalidade, pareça ela tosca, primitiva, humorística ou guindada. Isto é o que quero eu. Vida de Far- West e de preguiça colonial – estética helênica e renascentista eis o que querem os outros. (Andrade, 2009:35-36)

Se Pau-Brasil foi o começo declarado de uma insubordinação literária oswaldiana, com o Manifesto Antropófago (1928) percebemos o amadurecimento da insistência de Oswald de Andrade em direção a uma genuína forma de pensar a literatura brasileira e o ato criador do escritor. Ser antropófago, para ele, é rebelar-se “contra todas as catequeses. E ir contra a mãe dos Gracos”, é insubordinar-se “contra todos os importadores de consciência enlatada” e buscar uma comunhão entre espírito e corpo, antropomórfica, “em comunicação com o solo”. (Andrade, 1996:22)

Assim configurada, a Antropofagia, que exalta a transformação dos tabus em totens, em síntese,

É o culto à estética instintiva da Terra Nova. Outra: É a redução a cacarecos, dos ídolos importados, para a ascensão dos totens raciais. Mais outra: É a própria terra da América, o

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próprio limo fecundo, filtrando e se expressando através dos temperamentos vassalos de seus artistas. (Andrade, 2009: 65.)

Pelas evidências expostas, percebemos que há uma coerência discursiva que permeou o pensamento (ou mesmo o desejo) de Oswald de Andrade. Ainda que para alguns o movimento literário oswaldiano estivesse plasmado ou enfocado em suas atitudes pessoais, do homem em seu meio social, repleto de impulsividades, inconsequências e inconstâncias, como aquelas próprias a todos os simples mortais, pode-se afirmar que é justamente pela sua produção literária e pelas suas revelações verbais sobre o movimento modernista que aquele escritor demonstrou a significância e o valor da sua manifestação, enquanto artista escritor brasileiro de visão universal.

Andrade percebeu e sentiu o fluxo ou movimento contínuo do fazer literário daquele início do século XX seguindo sempre um dado curso. Em convergência, criou uma nova maneira de (re) interpretar tal criação, sendo o influxo provocador de efeitos distintos no modo de se pensar a Literatura Brasileira. Por suposto, como conseqüência, sentiu o refluxo de seus atos.

Divergências que, supomos, foram evidenciadas nesta reflexão e que seguramente demonstram o valor da insubordinação literária do escritor aqui estudado.

Se ele se insubordinou “Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.” (Andrade, 1996:20). A questão que merece ser tratada nesse momento, após longa explanação sobre a trajetória do escritor paulistano, diz respeito à sua última obra, nosso objeto de análise: também estarão as Memórias do autor impregnadas dessa insubordinação? Poderão ser consideradas como antropofágicas, as memórias contidas em Um Homem Sem Profissão, obra escrita em um momento bem posterior à disseminação do conceito de Antropofagia?

A obra trata da história da família de Oswald de Andrade, mas também

da vida urbana que viria a transcorrer na cidade de São Paulo da belle époque,

ou seja, entre o final do século XIX e os primeiros decênios entre 1900 e 1920.

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Além de tudo que foi escrito, Um homem sem profissão é um texto que merece ser revisto por ocupar um lugar importante no panorama da escrita de memórias no Brasil. Publicada antes da sacralização da memória a que se reporta Todorov em Los Abusos de la Memoria (2000), esta obra inaugura uma nova concepção de texto memorialista no país. As memórias de Andrade foram produzidas após as Memórias, de Visconde de Taunay, e Minha formação, de Joaquim Nabuco, mas não seguem o legado positivista de crença na verdade que inicia a produção das memórias em terras brasileiras.

Os dois textos oitocentistas mencionados (Taunay e Nabuco) foram escritos sob a égide de uma concepção de memória como ciência, ou melhor, como fruto de um trabalho que crê na verdade e no fato como forma de descrever a realidade. Já Um homem sem profissão parece representar um momento especial na história da escrita das memórias no Brasil, momento em que as memórias, no esteio de um modernismo revisor do passado nacional, por meio de uma linguagem criativa e recriadora, e assumir seu papel de literatura e de invenção. Hipótese que deverá ser perquirida neste trabalho.

Trazer à tona hoje a obra implica tanto reavaliar seu lugar no panorama da escrita de memórias no conjunto da literatura brasileira quanto compreender como ocorre a configuração das memórias no texto oswaldiano.

Justificamos esta investigação com amparo na proposta de um novo olhar sobre uma obra novecentista, publicada em 1954 e reeditada em 2002 (cf. na bibliografia), que faz parte de uma parcela pouco comentada da produção de um autor de reconhecida importância. Pretendemos avaliar, neste título selecionado, tanto as características da forma narrativa compreendida como memória quanto o lugar deste texto na história da escrita memorialística no Brasil, por meio da compreensão de sua singularidade.

Nesta perspectiva de recuperação de sentido, avaliar a obra

selecionada, escrita antes da sacralização da memória como produto de

exposição, mas inserida no universo de desvelamento do eu e da auto-escrita,

é nosso objetivo geral. Igualmente, na busca de compreender as dimensões

dessa insistência de Oswald de Andrade, cuja evidência recai sobre as

memórias e confissões, buscamos amparo em teorias memorialistas,

principalmente naquelas que dialogam com vertentes transgressoras do

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memorialismo positivista, e, em paralelo, na própria antropofagia literária oswaldiana como forma de conceber este discurso.

A escolha centra-se na hipótese de que, ao insistir em corroborar constantemente sua própria concepção de literatura e de vida, Oswald de Andrade ocupe lugar ímpar, já que nessa „matinada‟ (a frase “Este livro é uma matinada” consta da página 19 da obra em questão) reside, explícita ou implicitamente, a constância discursiva desse autor em defesa da Antropofagia Literária, ou, seguindo o título desta dissertação, das Memórias Antropofágicas.

Os objetivos específicos da pesquisa podem ser definidos em quatro itens:

1. Levantar a fortuna crítica sobre a obra em questão.

2. Compreender a singularidade da obra

Um homem sem profissão, avaliando sua forma narrativa e linguagem, por meio de investigação crítica.

3. Validar um conceito de memória e de compreensão do tempo,

dentre os posicionamentos de teóricos diversos, compatíveis com a leitura da obra base.

4. Reavaliar, segundo os resultados desta leitura crítica, o lugar de Um

homem sem profissão na linhagem das memórias do Brasil: texto genuíno, escrito no esteio das obras escritas até então, ou composição que já traz no seu bojo a utilização da forma das memórias como suporte da ficção, empréstimo que as novas eras literárias utilizarão em larga escala.

A aquisição deste conjunto de informações teórico-críticas sobre uma obra representativa de literatura de língua portuguesa e que diz respeito, também, à identidade do nosso Modernismo, compõe os objetivos da pesquisa, a qual será apresentada em quatro partes ou capítulos.

O primeiro capítulo, A Devoração Crítica”, versa sobre as críticas recebidas pela obra em questão, ou seja, trata da fortuna crítica que gravita em torno de Um homem sem profissão para podermos iniciar um caminho crítico específico.

Em um segundo momento, propomos uma leitura sobre a singularidade

temporal da obra em A Devoração do Tempo”visto que é o tempo um suporte

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da narrativa de extrema importância para compreendermos a escrita das memórias e, sobretudo, das memórias oswaldianas. Como aparato teórico, evocamos Genette (1979) em diálogo com Lejeune (1994); Olmi (2006);

Halbwachs (2006); Caballé (1995) e Todorov (2000).

Em seguida, o terceiro capítulo, intitulado A Devoração da Personagem pelo Autor apontará a relação entre o narrador, sujeito gramatical preenchido por informações referenciais, e a personagem João Miramar, das Memórias Sentimentais de João Miramar, obra clássica do Modernismo brasileiro.

Ademais, dissertamos sobre a consequência desse ato devorador cujo efeito nos permite rever o valor e lugar de Um Homem sem Profissão no palco da historiografia literária nacional, a partir do diálogo entre o antropofagismo literário e a escrita memorialista.

Assim exposto, à Conclusão reservamos a intenção de reavaliar, segundo os resultados obtidos desta leitura crítica, o lugar de UHSP dentro da linhagem das memórias do Brasil, através de novo olhar sobre esta obra novecentista, publicada em 1954 e reeditada em 2002.

1. A DEVORAÇÃO CRÍTICA

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. (Manifesto Antropófago, 1928.)

Este presente capítulo mostrará de que maneira se dá a devoração, por parte da crítica, da obra Um Homem Sem Profissão. Memórias e Confissões.

Sob as Ordens de Mamãe (2002), doravante UHSP.

Cabe ressaltar que são as vozes críticas de Gimenes (2000); Candido

(2004); Velloso (1998); Fonseca (2008); Natália Silva (2008); Farias Silva

(2003) e Rezende (2003) que, apresentadas, ajudam tecer a fortuna. Além

delas, somaremos a voz do próprio escritor recuperada pelas várias entrevistas

concedidas e posteriormente publicadas na obra Os Dentes do Dragão (2009)

bem como devidos comentários nossos sobre as críticas arroladas.

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No ensaio Oswald de Andrade: Literatura como política, de Renato Aloizio de Oliveira Gimenes, consta uma declaração desse crítico que nos chama a atenção no sentido de decidir por onde iniciar. Diz ele:

É comum atribuir os “acontecimentos de fundo” das histórias de Oswald à sua biografia. Entretanto, se é verdade que há uma notável semelhança entre o enredo de Memórias Sentimentais de João Miramar, Serafim Ponte Grande e Um Homem sem Profissão, fundados todos sob um narrador que sempre conta suas memórias a partir da infância à vida adulta, torna-se necessário perguntar: por que, então, essa insistência da escrita em recontar diferentemente os acontecimentos, refazer sempre o mesmo? (Rago; Gimenes, 2000:146. Grifos nossos)

De fato, as obras oswaldianas supracitadas trazem essa constância memorialista que „salta aos olhos‟, característica considerada principal por muitos críticos, ainda que alguns deles tenham optado por um recorte de perspectiva histórica, ou psicológica, ou político-social, ao estudar a última obra de Oswald de Andrade. Entretanto, é essa „insistência‟ que perseguimos como possível caminho para compreensão do porquê implícito que configura as intenções literárias do escritor em evidência.

Ainda em Gimenes, 2000: 139, podemos constatar o fato de que, para a época de produção literária brasileira em que Andrade escreveu suas obras, estas não tinham “o peso da consagração, ou aquele engessamento advindo da notoriedade”. Assim, a literatura oswaldiana foi tida como literatura menor ou, em acordo com Gimenes, como aquela que “não está colocada na primeira linha de obras-primas”.

As narrativas do tipo memórias e confissões também foram (ou ainda têm sido) consideradas como Literatura Menor. Literatura do Eu, este gênero tem despertado interesses diferentes do daquele passadista em que o leitor buscava somente saber sobre a vida de alguém através de sua autobiografia ou de uma biografia. Para Olmi, 2006:09,

Nas duas últimas décadas, o projeto autobiográfico veio absorvendo uma surpreendente variedade de interesses, demonstrando que a leitura de uma autobiografia, associada ao escrutínio crítico do contexto no qual foi produzida, pode fornecer uma visão ampla não somente do autobiógrafo, mas

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também das condições sociais, culturais, políticas e psicológicas que gravitam ao redor de quem escreve a seu respeito.

UHSP, essa obra da Literatura Menor, tem sido estudada para detectar aspectos como os de literatura ficcional, crítica sociopolítica, construção de identidade, marcas psicológicas ou de registro histórico, entre outros. Mas, aqueles estudos que se detenham em tentar explicá-la a partir de teorias sobre o autobiográfico, as confissões e memórias, ainda carecem de maiores dedicação e interesse.

Em Gimenes, a crítica centra-se na constituição do eu autobiográfico de Andrade como núcleo fundamental de sua política, tão importante quanto as denúncia e crítica sociais. Para melhor compreender as vias desta fala, necessária se faz a explicitação do crítico, que observa ter esse tipo de literatura de atitude política (obviamente pertinente em Oswald de Andrade) algumas características peculiares. Nesse sentido, Gimenes, 2000:146, destaca do estudo de Deleuze e Guattari, intitulado Kafka: por uma literatura menor, como principais os fatos de a literatura menor ser aquela que uma minoria faz em uma língua maior e aquele resultado de que aí tudo é político e adquire um valor coletivo.

Em comparação com o exposto, para o ensaísta, ademais da evidente marginalização da escritura oswaldiana e da evidência de reafirmação da inovação da linguagem, sobretudo em UHSP, soma-se uma abordagem edipiana de profunda crise metafísica, já que “a morte da mãe é vivenciada como uma experiência dilacerante de ruptura com a fé”, diz Gimenes, 2000:148, sendo este o ponto de partida para a criação literária oswaldiana, segundo consta. Contudo, ao relacionar as obras UHSP, Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, Gimenes

(2000:155- 156.)

assim esclarece:

Quero dizer, com isso, que o traço autobiográfico bde seus escritos é base para se pensar em experiências históricas coletivas, processos que atingem coletivamente pessoas de classes e etnias distintas.

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Dentro da supracitada miscelânea de abordagens, o crítico em questão conduz seu ensaio não se restringindo estritamente à obra UHSP, mas equiparando-a com outras obras escritas anteriormente pelo escritor de O rei da vela (1937). Sua proposta é a de uma leitura crítica que considere os valores questionados por ele através de suas obras, a saber, o estético e o ético. Ainda em Gimenes, 2000:165, a crítica oswaldiana ao parnasianismo além de fazer emergir o valor e a finalidade política do texto, consiste numa contestação da ordem literária e também da ordem política, o que evidencia a interdependência de ambos, como enfatiza:

Não consiste apenas em contestação estética, mas num combate a toda ética implícita à forma com que as elites intelectuais pensavam os problemas sociais de seu tempo.

Por outro lado, ainda que se utilize igualmente de estudo comparativo entre obras de Oswald de Andrade, o crítico Antonio Candido registra sua impressão sobre UHSP no ensaio Digressão Sentimental sobre Oswald de Andrade (2004), olhando-a sob outro prisma. Amigo íntimo e autor de Prefácio Inútil escrito àquela obra supracitada, Candido revela o fato, que talvez tenha sido explorado por muitos críticos de forma equivocada e sensacionalista, de que Oswald de Andrade morreu depois “de um sofrimento comprido e pavoroso”.

Viés que muitos exploram negativamente, como se a personalidade e o comportamento do autor condenassem antecipadamente suas realizações literárias. Mas, felizmente, a argúcia da digressão de Candido ultrapassa tais limitações sobre nosso escritor paulistano e sua criação literária, ao rememorar sinteticamente o ensaio Estouro e Libertação, de 1945, escrito e considerado por Candido, 2004:33, como a “primeira e até então a mais longa tentativa de analisar o conjunto da ficção de Oswald”.

Em Digressão Sentimental, dois aspectos são apontados por Candido

como comuns à personalidade humana e literária de Andrade:

devoração e mobilidade (grifo nosso). Visto desde esta perspectiva o conjunto oferece-nos

amparo para conduzir todas as hipóteses levantadas na introdução de que,

contrariamente ao que pensam alguns, o filho de José Oswald escreveu UHSP

com intuito de ratificar o seu projeto manifestadamente Antropófago, seja como

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projeto de vida ou de fazer literário, algo corroborado pela seguinte declaração de Candido, 2004:44-5:

Nos últimos anos se desinteressou da ficção, voltando-se para o ensaio filosófico e a redação das memórias, que infelizmente não pôde acabar. [...] A partir de 1945 tornou-se cada vez mais um estudioso, preparando-se para desenvolver o tema da crise da filosofia ligada ao patriarcalismo, que foi para ele a praga da história do Ocidente.

Convivência e cumplicidade entre eles servem de fonte segura para afirmar que os dois foram devoradores de obras sobre antropologia, história da cultura e filosofia (sobretudo fenomenológica e existencialista), psicologia, política e religião, entre muitas. Diz Candido que Andrade escreveu UHSP quase à mesma época de A crise da filosofia messiânica (1950) e A marcha das utopias (1953) Constata-se por essa afirmativa que o idealizador de O Pirralho (1911) levou pouco mais de dois anos (começou em 1952) para concluir suas memórias e confissões não sendo, portanto, uma obra escrita sem prévia concepção e elaboração, ou como pensam alguns, escrita com pouca inspiração já que o autor estava „no corredor da morte‟.

Daí resulta simplista reduzir a literatura oswaldiana à única intenção de retratar o social a partir da correlação entre estético e ético, como afirmado por Gimenes. Há que se visualizar algo mais subliminar como, por exemplo, os traços perfilados por Candido, 2004:50, fisionômico e comportamental, que corroboram o desejo e a concepção oswaldianos de devoração:

Fome de mundo e de gente, de idéias e acontecimentos. Daí a sua devoração não ser destruidora, em sentido definitivo, pois talvez fosse antes uma estratégia para construir não apenas a sua visão, mas um outro mundo, o das utopias que sonhou com base no matriarcado.

A crítica dialética de Candido discute ainda sobre a mobilidade oscilante de Oswald de Andrade, que transita entre o berço católico e burguês e a experimentação do anarquismo e da vida boêmia, extremos opostos que formam parte da vida e da obra do escritor de Marco Zero.

Para Candido, tal mobilidade pode constituir a “síntese devoradora”

oswaldiana, advinda do choque de dois momentos culturais distintos: o do

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mundo primitivo e do mundo cosmopolita; algo que é representado através de estruturas móveis em sua literatura, presente também na obra UHSP, e que Candido elogia, igualmente àquelas Memórias de João Miramar, dizendo-as

“boas”:

Quando é boa, a sua composição é muitas vezes uma busca de estruturas móveis, pela desarticulação rápida e inesperada dos segmentos, apoiados numa mobilização extraordinária do estilo. É o que explica a sua escrita fragmentária, tendendo a certas formas de obra aberta, na medida em que usa a elipse, a alusão, o corte, o espaço branco, o choque do absurdo, pressupondo tanto o elemento ausente, quanto o presente, tanto o implícito quanto ao explícito, obrigando a nossa leitura a uma espécie de cinematismo descontínuo, que se opõe ao fluxo da composição tradicional. (Candido, 2004:51.)

Visualizamos em UHSP essas características, também. Ainda que Digressão Sentimental pouco explicite a respeito dessa obra, já que Candido delimita o estudo no jogo par/ímpar que compõe a coleção de obras de Andrade, considerando seus escritos como redações ora contínua ora descontínua. Ainda assim, situamos a obra dentro desse „jogo‟. Assim, o par descontínuo se forma através de Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande; a trilogia constante de Marco Zero representa a escrita contínua, segundo aquele crítico. Incluímos no primeiro par, portanto, a obra UHSP, que viria a constituir nova trilogia.

Assim caracterizado, destacamos a valiosa contribuição de dito ensaio que corrobora a hipótese de que as memórias e confissões oswaldianas, ainda que Candido se refira em específico a Serafim Ponte Grande e Memórias Sentimentais de João Miramar, pois demonstra mais e mais a insistência de Oswald de Andrade em um largo projeto antropofágico de literatura. É o que vemos implícito no excerto abaixo, onde Candido dá importância à perspectiva temporal para a construção do juízo crítico sobre uma obra literária, sobretudo esta aqui estudada segundo vemos:

Naquele tempo, Miramar parecia melhor porque ainda fazíamos crítica de olhos postos numa concepção tradicional da unidade de composição, o princípio estabelecido por Aristóteles como condição de escrita válida. Mas o que veio depois fez ver mais claramente o caráter avançado de Oswald como agressor deste princípio e precursor de formas ainda mais drásticas de descontinuidade estilística. (Candido, 2004:57)

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No segundo capítulo intentamos estudo mais aprofundado sobre a descontinuidade existente em UHSP, através de análise temporal que considera o fator tempo como imprescindível para se observar o par formado entre presente e passado, ou, quiçá, entre presente e futuro. Candido

(

In

:

Andrade

, 2002:12.)

confirma a existência dessa descontinuidade, através de crítica preliminar em Prefácio Inútil, escrito em 1954 para a obra em questão, quando afirma que não se deve procurar nas memórias oswaldianas um retrato do tempo, ou um traçado coerente do próprio eu, e

Nem tampouco ordenar as impressões relativas a fatos e pessoas num sistema frio de observação. Aqui tudo se mistura;

o eu e o mundo fundem-se num ritmo de impressão pessoal muito peculiar, em que se perde, por assim dizer, a independência de ambos.

Há que se salientar, com antecipação, o paradoxo existente em UHSP:

Se por um lado se evidenciam explicitamente forma e conteúdo literários descontínuos, por outro ratifica subliminarmente contínuo projeto antropofágico de Andrade, já que reafirma e evolui a concepção estética e estilística realizada em períodos anteriores. Candido (In: Andrade, 2002:15), em seu prefácio, diz que na obra “tudo isto ocorre, na verdade, porque este livro é feito sob o signo da devoração”.

Inspiramo-nos em muito nessa afirmativa e no conselho dado por Candido ao tratar sobre Oswald de Andrade de que: a melhor maneira de compreender a sua vida, a sua obra e as estas Memórias é considerá-las em conjunto, indissociáveis.

Assim, Prefácio Inútil registra que na técnica literária de UHSP coexiste a solidariedade da obra e da vida através de certa dualidade que comprova a existência da descontinuidade. Na primeira parte parece haver mais coesão entre conteúdos, “organizando os dados da memória num sistema evocativo mais inteiriço”, no dizer de Candido.

Entretanto, a partir de certa altura da obra, como veremos no próximo

capítulo, a proximidade da narrativa com o tempo real de existência do escritor

(Anos 50) acaba por diluir aquelas primeiras impressões em favor do

surgimento de novas impressões, dadas por „fantasmas‟ que habitam o

discurso coletivo da segunda parte ou, como preferimos, que habitam na

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memória coletiva do autor. Oswald de Andrade, de há muito, contrapõe-se à lei e à ordem, sendo esta característica considerada por Candido

Uma das raízes da sua Antropofagia, a sua cosmovisão que assimila o mundo e os valores segundo um ritmo profundo, triturando-os, para que sobre, como bagaço, a peia do costume petrificador. (Andrade, 2002:15)

¿Qué sentido tiene que nos ofrezcan el relato de una vida desarticulada, compartimentada, descuartizada? Esta indagação da crítica espanhola Anna Caballé, presente em Narcisos de Tinta (1995) faz-se nossa também.

Perguntamos, ainda: - O ato de elaborar um texto literário que explore o recordar, o revisitar o passado, funciona por esse mesmo viés?

Esta investigação, em busca de compreensão das memórias e confissões, considerando a própria visão do autor em questão, transforma-nos em críticos antropófagos a indagar: - O que é uma fortuna crítica literária, senão a devoração de tudo que já foi escrito e editado sobre determinado aspecto de específica obra de um autor?

Conhecer a crítica do outro, observá-la, absorvê-la, digeri-la e (re) interpretá-la sob outra ótica não seria, acaso, uma tarefa antropofágica de deglutição de tudo que se nos possa surgir à frente? Oportunamente seria, acaso, o intuito de alimentar-nos de tais fontes para daí tomar posição no mundo da crítica segundo nossa visão das coisas? Tudo se (trans)forma, bem foi dito. Assim, ainda sentimos fome e, parece-nos que, alguns temperos de alguns pratos são principais para esta nossa farta ceia. Note-se que esta devoração começa-se pelo geral, o afortunado prato de entrada, para a seu tempo deglutir o específico do prato principal oswaldiano.

Nesse rito, de tentativa de transformação do tabu em totem, continuamos pedindo mais entradas, convidando Fonseca a falar algo sobre Por que ler Oswald de Andrade (2008). Livro este que se divide em capítulos onde a autora apresenta, inicialmente, uma biografia sucinta sobre dito escritor, seguida de cronologia e de uma sessão intitulada Ensaio de Leitura que traz, sinteticamente, crítica sobre suas principais obras.

Entre Aspas é o penúltimo capítulo cujo teor contém trechos de algumas

obras e, de Estante constam publicações em vida do autor, assim como

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entrevistas, edições em jornais de trechos de obras, edições póstumas, volumes e textos esparsos, traduções; e, por fim, apresenta um leque de opção para se compor qualquer Fortuna Crítica sobre obras de Oswald de Andrade, sob a forma de indicações de livros, ensaios, dissertações e teses, autores e títulos que o influenciaram, entre outros.

Para o leitor iniciante, é obra que se faz imprescindível por oferecer uma visão de tudo que Oswald de Andrade compôs e, ainda, apresenta estudos existentes sobre ele. Nesse sentido, quero registrar que foi através de Por que ler que obtivemos informações sobre a tese de doutorado de Neide Luzia de Rezende, da Universidade de São Paulo, cujo teor vem exposto adiante.

Ainda que somente duas ou três páginas tenham sido dedicadas à crítica sobre UHSP, nelas Maria Augusta Fonseca registra sob o título Entre Aspas um trecho do Livro de Convalescença (1954), escrito em caderno espiral, em que o nosso escritor revela sua intenção quando da composição de suas memórias, e aí diz que Fonseca, 2008:133, que “Trazem elas um sentido edipiano, particularmente o primeiro volume que se intitula Sob as ordens de mamãe”. A autora, entretanto, delimita sua investigação em crítica sumária sobre as memórias oswaldianas, dizendo ser:

Um misto de memória, confissão e diário [...] Há nas páginas de Um homem sem profissão pegadas significativas das importantes transformações da vida social brasileira e das mudanças que Oswald de Andrade operou no campo da linguagem literária, aliada ao sumo de sua personalidade exuberante.

Fonseca propõe um olhar sobre o hibridismo da literatura confessional oswaldiana, evidente avanço. A proposta de edição coordenada por Rinaldo Gama sob a Coleção por que ler da Editora Globo é muito pertinente. Daí passando quase imperceptível o equívoco da página 146 sobre o ano de edição de UHSP, pois daí consta que foi em 1945 quando em verdade trata-se do ano de 1954.

Sobre as críticas tecidas por Fonseca, as que afirmam tratar-se UHSP

de “um relato de vida ou, antes, de uma análise fecunda de sua meninice e da

vida de um jovem”, Candido já advertira em Prefácio Inútil que:

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Nas presentes memórias de Oswald de Andrade, não se deve procurar auto-análise nem retrato do tempo [...] O leitor verá, por exemplo, que os fatos e os homens aparecem, aqui, não como depoimentos ou estudos, mas como modos de sensibilidade [...] onde as pessoas tornam-se personagens, imperceptivelmente, e, quando menos esperamos, o real se compõe segundo as tintas da fantasia. (Andrade, 2002:12-13.)

Outro ponto que nos chama a atenção é a indicação feita por Fonseca de que ao ler UHSP o leitor pode aí comprovar pela leitura como, o que e quem foi seu autor. Ledo engano bem advertido por Candido, como se observa acima. Em busca de oferecer aos sentidos do leitor mais opções para a sua construção critica, fazemos parêntesis neste estudo para mencionar o artigo escrito por Natália Silva, 2008:4, sob o título A memória de Miramar:

decompondo e recompondo a memória ficcional. Ainda que dele conste apenas um registro sobre UHSP, sua importância se faz pelo trato dado ao universo das escritas confessionais oswaldianas em geral. Nesse sentido, a autora nos diz que:

Nas Memórias Sentimentais, encontramos não apenas a construção ficcional dos processos da memória, mas também uma paródia a essa construção, na qual o autor se apropria de elementos próprios do gênero das memórias a fim de subvertê- los.

Tecendo uma crítica contrária àquela apresentada por Fonseca, Silva delimita três eixos norteadores das memórias literárias, sobretudo daquelas constantes de Memórias Sentimentais. Diz que são eles: a memória da banalidade, a memória como paródia e a memória em estilhaços. Sobre a primeira, apresenta-a como uma pista falsa sobre fatos da vida e afirma, sobre a segunda, que esta é paródia porque não temos nas Memórias uma destruição em estilhaços porque toma a parte pelo todo.

E, em salvaguardando o fato de não estarem estilhaçadas as confissões

de Miramar, comparativamente, tem-se tais processos facilmente detectados

igualmente em UHSP, salvo o fato de ser estas memórias imagéticas de

tempos e lugares diversos, representativos do histórico-social, político, religioso

multifacéticos.

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Uma possível relação entre UHSP e Memórias Sentimentais, segundo citação de Silva sobre estudos de Schwartz, pode acontecer se observada a seguinte insistência:

Sabemos que o tema da viagem é uma constante na obra oswaldiana: há, inclusive, diversos paralelos entre as viagens de Oswald e as de João Miramar (Oswald conhece Landa, Miramar conhece Rolah, ambos hospedam-se no mesmo albergue parisiense; ficam órfãos de mãe na viagem de retorno). O próprio Oswald reitera, em suas memórias (Um homem sem profissão. Sob as ordens de mamãe), que seu nome é Miramar (Cf. ANDRADE, 1990b, p.112), deixando claro que em sua criação há o “aproveitamento, submetido a uma elaboração ficcional, fragmentadora, de muito de sua experiência vivida.

(Schwartz, 1983: 81. In: Silva, 2008:5)

A atenção que a autora dá ao trato da escrita memorialista conduz o discurso para o universo do próprio gênero, embora reconheça que apenas

“alguns traços característicos do gênero memorialista são mantidos, como a narração em primeira pessoa e o panorama da época” (Silva, 2008:14).

Em 2003, Rodrigo Pereira Lopes de Faria e Silva defendeu Mosaico das memórias de Um Homem sem Profissão, dissertação cujo teor está recheado de aspectos que intentam relacionar o gênero memorialista com a ficção. Para tanto, notamos que este estudioso se ocupa de um viés explicitamente linguístico e histórico já que apresenta:

Um mapeando da cidade já modificada de Oswald (1890 – 1919) e de expressões e vocábulos, dos quais muitos já se encontram em desuso (1954 – ano de publicação das memórias. E por fim a obra também rastreia a presença dos parentes do autor procurando assim um tecido que abranja o familiar e o coletivo, a cidade com seus usos e costumes e o homem e o artista que caminha por suas ruas. (Silva, 2003:03)

Explorando a frase inicial Este livro é uma matinada, constante da

página 19, levanta hipóteses significativas sobre a possibilidade de exploração

do vocábulo matinada por parte de Oswald de Andrade, considerando que

nessa terminologia pode residir seu núcleo importante. Tais significações serão

retomadas quando da Conclusão desta dissertativa.

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Antecipando as várias acepções para matinada, sinteticamente, o estudioso começa por relacioná-la com o caráter religioso, ou com livro das orações matinais que seria o canto do sentimento órfico explicitado pelo escritor Andrade. Ação de madrugar é outra possibilidade que Silva relaciona com a festa antes da noite, equiparando tal matinada com o advento das mortes da mãe, de Daisy, do pai e do próprio escritor paulistano, sendo esta última tida como prenúncio.

Matinada também pode ser tomada como estrondo, ruído, confusão – algo que Silva remete à vida amorosa tumultuada e ao temperamento impulsivo de Andrade. Há ainda um sentido que se aproxima da idéia de vozerio, falatório, sempre segundo Silva, que representaria por extensão as inúmeras vozes evocadas pelo autor para referendar sua narrativa; assim como a idéia de tentar convencer, persuadir, utilizada pelo subversivo escritor Andrade como sua versão ante os fatos.

Por último, apresenta a correlação com o uso popular em São Paulo dado ao termo, que se equivale ao ato de mentir, ou ao “mentiroso [...] que corrobora muito a idéia de que neste relato memorialista também se entretecem confissão e ficção.” (Silva, 008: 8) As inúmeras possibilidades de interpretação do termo são muito oportunas, daí defendermos também que sua presença no livro tem propósito bem pensado pelo rei do blague, algo que trataremos posteriormente, conforme exposto.

Outro ponto que resguardamos para comentários posteriores, e que foi evidenciado por Silva, encontra-se na ausência do subtítulo Sob as ordens de mamãe na edição do ano 2002. Subtítulo este que denominaria o primeiro volume dos quatro pretendidos por Oswald de Andrade. A supressão deu-se talvez porque “o organizador pensou ter o conjunto concretizado do projeto Um homem sem profissão e que nesta edição (de 2002) valeria a supressão do subtítulo”. (Silva: 2008:16)

Ainda em Silva, observamos extensa explicação comparativa das publicações de UHSP dadas em 1954, 1976, 1990 e 2002, com comentários sobre formato das edições, capas e contracapas, da qual ele constata:

Ao cotejá-las percebo que não houve nenhuma mudança de relevo, apenas as alterações na ortografia e na acentuação por força de atualização ortográfica de padrão ocorrido na Língua

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Portuguesa, como o do acento diferencial de timbre [...] Outras mudanças são de caráter tipográfico, como títulos de obras e de periódicos que na primeira edição são apresentadas entre aspas e passam para o itálico na última; ou a substituição interna de maiúsculas por minúsculas em alguns destes títulos [...] No mais foram algumas correções como a supressão de uma vírgula ali e a correção de uma palavra lá, que não passam de cinco ou seis no livro todo e que estão mais para correções tipográficas do que para alteração de caráter significativo ou imprescindível como afirma Jorge Schwartz, o organizador da obra, em nota introdutória. (SILVA, 2003:15)

Após tais observações, Silva, 2008:19, explora a estrutura narrativa de UHSP descrevendo alguns fatos como a morte da mãe de Andrade, e o casamento in-extremis dele com Miss Daisy, insinuando-nos que Andrade avança no tempo narrado, de uma estrutura fragmentária, conjugando assim estilo do narrador com o estilo de vida da personagem no momento abordado.

Conclui o crítico que em UHSP a narrativa “torna o passado remoto mais objetivo em sua estrutura realista e ficcionaliza na estilização o passado próximo” (Silva, 2008:.22), evidenciando ausência de construção organizada do passado enquanto documento de época, em acordo com suas próprias palavras, algo que para ele representa proposta modernista de ruptura lúdica e revolta lúcida frente aos cânones autoritários do realismo vigente, como forma de preservação da identidade artística de Oswald de Andrade.

Outro aspecto reside na confluência de gêneros registrada em UHSP, caracterizadora da estética oswaldiana, já que para o estudioso:

Tanto a obra ficcional quanto aquela de cunho confessional e memorialista representam um movimento de oscilação entre o real e o inventado, entre a lembrança e a fantasia deste eu.

(Silva, 2003:32)

De fato, torna-se inviável criar limites entre o ficcional e o factual em UHSP, pois nesta obra o lugar da imaginação está entredito, num espaço que não é exatamente passado nem precisamente o presente narrado, como expõe dizendo que:

Tais gêneros são aqui entendidos enquanto formas discursivas com claras diferenciações: o ficcional apresenta a imaginação como fonte primária dentro de uma complexa construção textual; e o memorialista necessariamente se vale da

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experiência no lugar da imaginação, embora muitas vezes seja secundada por ela. (Silva, 2003:33)

Visando explicar dito hibridismo de gêneros em UHSP, indaga onde está o factual e onde está a ficção em UHSP, apontando para evidente presença de personagens outras de obras de Oswald de Andrade, como aquelas de Memórias Sentimentais de João Miramar, Serafim Ponte Grande e do diário O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo, e sobre isto afirma:

Assim como o romancista povoava seu universo de ficção de personagens arrancadas da vida ao seu redor, no caso me parece que leva um pouco de fantasia e ficção aos personagens de suas memórias, dando-lhes uma dimensão literária muito superior e mais agradável do que a dimensão concreta pretendida no ato de lembrar. (Silva, 2003:37)

Como resultante desse entrelaçar de gêneros, Silva supõe intencional paralelismo dado por Andrade em UHSP, entre o mundo das verdades pessoais e o mundo das verdades históricas, equilibrado dentro da instância narradora. Nesse sentido, para aquele estudioso existe uma predisposição do leitor em confundir o narrador com o autor empírico da narrativa em primeira pessoa, justificando que “a autobiografia é também uma auto-interpretação, fazendo desse autor empírico uma espécie de personagem de ficção de si mesmo e é justamente isso que assistimos em UHSP”. (Silva, 2003:39)

Dessa observação advêm comparações que diferenciam os papéis desempenhados por Andrade em UHSP: ora escritor, ora narrador, ora personagem central ou mesmo secundário. Disso resulta que Silva elenca diversas passagens que na obra demonstram tal oscilação, dizendo-as de acordo com a intenção do momento narrado, e vendo-as como resultantes do ato de lembrar, como imagens que espocam quais flashes alheatórios.

Evidência aposta no seguinte registro:

Se por um lado é o estilo e o ritmo narrativo de Oswald que enriquecem seu texto memorialista e confessional, também o método adotado por ele em UHSP é importante, revelando suas próprias obras como documentos de pesquisa, e além delas as reminiscências que acabam sendo regidas pela

„memória involuntária‟ [...] Trata-se de um dado concreto na construção de um relato memorialista, pois dos fatos lembrados surgem outros fatos associados, sensações e

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sentimentos, bem como invenções desenvolvidas com as interferências do tempo. (Silva, 2003:46)

Daí que, para o crítico em evidência, as multifaces da memória constituem ápice de sua crítica sobre UHSP, pois as percebe fragmentadas, em tempos e em espaços, entremeadas de confissões. Como exemplo, quando Oswald de Andrade fala sobre a cidade de São Paulo é a própria maneira de sentir a vida social dessa metrópole, com acurado senso do processo histórico por ele vivenciado o que, ainda segundo Silva, denota associação do progresso modernista nos seus aspectos sociais, comportamentais e políticos, entre alguns.

Outros aspectos ressaltados relacionam-se à vida educacional, ao universo feminino presente através das figuras da mãe, tias, professoras e mulheres com quem se relacionou, assim como a presença do diário coletivo desenvolvido na garçonnière, já mencionado anteriormente.

Ainda consta da obra de Silva o capítulo Para ler UHSP que apresenta vocábulos, expressões e construções oswaldianas e referências onomásticas, matéria que ocupa mais de trinta páginas sem menção ao „objetivo‟ do capítulo em questão. Porém, da introdução consta que o intuito reside em registrar tais fatos linguísticos como forma de colaborar para o entendimento maior da obra.

Algo alcançado de fato, principalmente pela presença de expressões pertencentes ao universo linguístico em moda naquela época.

Seguidamente, o quarto capítulo traz a memória toponímica de São Paulo entre 1890 e 1919, com extensa relação dos nomes de cidades, bairros, ruas e praças, entre outros locais supostamente freqüentados e na obra utilizados pelo escritor Andrade para composição da sua narrativa.

Valemo-nos ademais do extenso e supracitado estudo para observar o

propósito de Oswald de Andrade de se apropriar da hagiologia que nomeia

ruas, avenidas e outros espaços paulistanos. Isto configura um chamamento

especial para a influência católica exercida sobre dito escritor e sobre o povo

brasileiro daqueles anos. É a tradição do catolicismo forçando correlação com

o sentimento órfico oswaldiano; sentimento exacerbado no instante em que o

filho de Dona Inês sentiu o dissídio com Deus, quando da morte da sua

genitora e também por ocasião de cada decepção que a vida se lhe impunha.

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34

Silva, no quinto capítulo, faz referências à família Andrade, apresentando possível esboço da árvore genealógica do nosso escritor. Parte aquele estudioso das próprias indicações constantes em UHSP e a partir daí registra dados sobre local e data de nascimento de alguns deles. Entretanto, faz-se importante registrar que em Mosaico das memórias de Um Homem sem Profissão, os capítulos subseqüentes ao primeiro parecem moldar outro recorte investigativo já que não se apresentam conectados àquele inicial, passando a funcionar como listas de dados históricos mais bem que aquele de cunho literário proposto inicialmente pelo acadêmico.

No sexto e último capítulo tece comentário sobre a fortuna crítica por ele levantada, com alusões sobre artigos, resenhas, obras, recorte de jornais, ensaios, enfim, todos os materiais a que teve acesso. Dentre estes destaco o Livro da Convalescença, datado de 27-3-54, que foi transcrito na dissertação a partir do caderno manuscrito que se encontra no IEL (Instituto de Estudos de Linguagem) – CEDAE (Centro de Estudos e Documentação Alexandre Eulalio) da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas).

Dividido o Livro em três partes, como aponta o estudioso, a última trata de uma comunicação para Encontros de Intelectuais. A segunda parte traz o texto intitulado Do órfico e mais cogitações, cujo teor trata de impressões da influência religiosa religião sobre a criança ou o período infantil de Oswald de Andrade. Da primeira parte do Livro constam informações sobre UHSP, tratando principalmente daquele sentimento órfico. Na revelação acima exposta o filho de Dona Inês ratifica sua descrença ou ausência de profissão de fé no patriarcalismo estatal, através da seguinte afirmativa registrada com palavras quase idênticas àquelas existentes em UHSP:

Adotei de há muito um completo ceticismo em face da civilização ocidental que nos domou. Acredito que ela está nos seus últimos dias, vindo à tona uma concepção oposta – a do homem primitivo, que o Brasil podia adotar como filosofia [...] O ocidente nos mandou com o messianismo todas as ilusões que escravizam [...] As minhas memórias como documento marcam a maior das transições [...] O sentimento órfico que levantava para o alto as mãos de minha mãe explicaria o milagre de eu estar vivo, convalescente e esperar ainda. Sem nenhum compromisso confessional. Não adoto nenhuma religião mas sei que a religião é uma dimensão do homem. (Silva, 2003:126-7.)

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Aprofundando nossa investigação sobre a fortuna crítica de UHSP, fazemos referência à menção que faz ao texto de Décio Pignatari, intitulado Tempo: Invenção e Inversão. (In: Andrade, 2002:23-7.) que foi analisado por Silva, 2003:120, como prescindível, “apesar de se tratar do texto que acompanha a obra desde sua terceira edição, não faz referência direta às memórias de Oswald”, restringindo-se em comentar sobre a figura humana, social e literária de Andrade.

Entretanto, salientamos que dito artigo de Pignatari destaca precisamente o valor do tempo para a composição das memórias do pai de Nonê, Rudá e Antonieta. Anacronicamente, através das inversões dadas por prolepses e analepses, como veremos no capítulo seguinte, tem-se o singular modo de invenção característico de Andrade: o kodakar, o ready-made, a colagem – processos constituintes do processo de revisitar o passado ou das memórias e confissões oswaldianas, enfatizados Pignatari em:

Da arte, Oswald derivou o pensamento antropofágico, proposta cultural para os velhos povos das nações novas. Os antropólogos brasileiros não são melhores, nem piores, do que os sociólogos e historiadores. Sentimental, desbocado e debochado, virou o indianismo romântico-nacionalista pelo avesso das tripas, centrando-o no comer como signo e no signo como comer, le plaisir de la dévoration. Devoração: a oração da dívida e do comer cômico! (In: Andrade, 2002:25.)

Outro estudo, com viés mais literário, trata-se de Percursos da narrativa de Oswald de Andrade: Estudo dos Romances e das Memórias (2003), tese de doutorado de Neide Luzia de Rezende. Nela, é investigada a maneira como nosso autor se apropriou dos gêneros confessionais – memória, autobiografia e diário –, para instaurar em UHSP novos padrões para a prosa literária do seu tempo, segundo palavras dessa crítica. Para tanto, o estudo contempla as obras A estrela de Absinto, Memórias Sentimentais de João Miramar e UHSP.

Seu objetivo é, conforme explicita, o de alargar as perspectivas acerca

das possibilidades teóricas e práticas do uso de (auto) biografias na formação

de professores e nos estudos educacionais, o que deixa antever a imensa

contribuição que investigações advindas da área de Educação possam dar

para alargar o campo da crítica literária, ainda que os objetivos finais sejam

diversos (ou adversos, às vezes).

Referências

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