CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA
ODILON KIELING MACHADO1
1. INTRODUÇÂO
Como acadêmico do Curso de História do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), em Santa Maria – RS realizei o Estágio Supervisionado Curricular IV na Escola Estadual de Ensino Médio Profª Maria Rocha, na turma 111 do primeiro ano do Ensino Médio, turno noturno. O plano de ensino foi ministrado abrangendo como temas desde a Pré-história até a Idade Média, conforme currículo da Escola e do PEIES (Programa de Ingresso ao Ensino Superior) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Viver em uma sociedade globalizada e complexa aumenta as responsabilidades da escola, exigindo um novo olhar sobre valores que esta julgava correto até hoje, como a autoridade e o dogmatismo, como destaca Alarcão:
A mudança de que a escola precisa é uma mudança paradigmática. Porém, para mudá-la, é preciso mudar o pensamento sobre ela. É preciso refletir sobre a vida que lá se vive, em uma atitude de diálogo com os problemas e as frustrações, os
sucessos e os fracassos, mas também emdiálogo com o pensamento, o pensamento
próprio e o dos outros (ALARCÃO, 2001:15).
Para enfrentar os desafios emergentes os educadores em geral precisam ressignificar a cada dia sua prática pedagógica, refletir sobre a responsabilidade da profissão se torna imperativo.
Muitos autores vêm abordando em suas obras uma educação humanizadora, dialógica, criativa, ética e libertadora. Apontando possibilidades de um novo projeto pedagógico para esta sociedade e também uma alternativa para superar as práticas opressoras e a dominação das pessoas, pois há muito tempo observa-se nas escolas a repetição automática dos conteúdos e a não contextualização destes. Isto faz com que o processo de aprendizagem se torne algo simples e sem significado para os educandos.
1 Professor de História na rede pública estadual do estado do Rio Grande do Sul, Mestre em História pela
Na contemporaneidade, o processo de educação precisa oportunizar aos educandos possibilidades de escolhas. Faz-se necessário que os educadores construam um novo olhar, novas ideias e possibilidades sobre o conhecimento.
A História como disciplina escolar e como forma de conhecimento humano, deve tornar-se fundamental para a compreensão dos processos históricos e para sua articulação da história com a realidade presente, uma vez que o presente é resultado dos acontecimentos históricos passados. Nesse sentido, a disciplina de História possui um papel relevante na construção da cidadania. Ensinar História é um papel sempre desafiador para o professor, levando em consideração que no ambiente escolar, no qual tive a minha experiência dentro de um estágio curricular, ingressaram alunos de diferentes origens e idades. Essas diferenças representaram as experiências de vida e conhecimentos adquiridos num meio sócio-cultural distinto para cada aluno.
A responsabilidade do professor é um elemento desafiador, como alerta Freire:
Como professor, tanto lido com minha liberdade quanto com minha autoridade em exercício, mas também diretamente com a liberdade dos educandos, que devo respeitar, e com a criação de sua autonomia bem como os ensaios de construção de autoridade dos educandos (FREIRE, 1998:107).
As aulas de História possibilitam a construção do saber histórico através da relação interativa entre o educador e o educando, transformando essa prática em ação de transformação consciente, salientando a importância do professor como pesquisador e produtor de conhecimento e não apenas um mero executor de saberes já produzido. Neste sentido Freire também faz uma consideração importante “Me movo como educador porque primeiro me movo como gente” (FREIRE, 1998:106).
2. A PRÁTICA DOCENTE E A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA
Ensinar História não é estabelecer certezas e nem cair no relativismo, em que todas as especulações interpretativas são permitidas; todas as conclusões são provisórias, pois podem ser aprofundadas e revistas por trabalhos ou fontes posteriores.
Atualmente, o ensino de História contribui para a formação da cidadania, associada mais explicitamente à construção do “cidadão crítico”. A construção do saber pelo ensino da
disciplina ocorre por intermédio de um compromisso de criação de instrumentos cognitivos, de habilidades e competências, para o desenvolvimento de uma aprendizagem, a qual se constitui em observar e descrever comparações entre o passado e o presente, identificando semelhanças e diferenças entre a diversidade de acontecimentos.
A reflexão crítica e consciente sobre a prática, bem como a leitura do mundo, o domínio das teorias e métodos são bastante importantes e necessários para conseguirmos articular o conhecimento teórico com a prática. Porém, isso não é suficiente, precisamos de uma nova postura humana e pedagógica, para conseguir entender o que os educandos vivem diariamente, fazendo uma relação entre as técnicas e grades curriculares. Como complementa Fonseca:
Sabemos que aquilo que o professor ensina e deixa de ensinar – bem como aquilo que o aluno aprende e deixa de aprender – vai muito além do proposto nos livros didáticos e nos currículos prescritos nas diretrizes e mesmo nos projetos pedagógicos. Por isso defendemos um diálogo crítico, permanente, entre os sujeitos que (re) constroem os saberes históricos nos diversos espaços educativos e culturais (FONSECA, 2003: 244).
Libâneo enriquece o assunto quando diz que:
[...] a escola precisa articular sua capacidade de receber e interpretar informações [...], a partir do aluno como sujeito do seu próprio conhecimento”, portanto é na escola que está a força para mudar a sociedade, pois quando o projeto pedagógico está em consonância com a visão de sociedade que coloca a cooperação como eixo da humanização das relações, a educação se torna um meio dessa mudança (LIBÂNEO, 2001:41).
A moderna concepção de formação humanística aplicada ao ensino de História tem como pressupostos os compromissos e valores, de acordo com o Ministério da Educação, conforme a seguinte citação:
Uma formação humanística moderna abrange reflexões e estudos sobre as atuais condições humanas, mas que se fundamenta nas singularidades e no respeito pelas diferenças étnicas, religiosas, sexuais das diferentes sociedades [...]. A perspectiva histórica permite uma visão não apenas abrangente ao estabelecer relações entre passado-presente na busca de explicações do atual estágio da humanidade, como permite identificar as semelhanças e diferenças que têm marcado a trajetória dos homens no planeta Terra, [...] significa rever as relações entre homem e natureza e também situar, no tempo, as permanências de conflitos geradores de violências de diferentes níveis em diferentes locais, dentro das casas, das favelas, nos grande s centros urbanos, nas áreas rurais ou campos de batalha (BRASIL, MEC, 2002: 51).
Este olhar sobre o conhecimento histórico se dará na sala de aula onde se constrói uma relação de reciprocidade para refletir diante da realidade, cabendo ao professor uma prática reflexiva, como analisa Perrenoud:
Sem dúvida, cada pessoa reflete de modo espontâneo sobre sua prática; porém, se esse questionamento não for metódico nem regular, não vai conduzir necessariamente a tomadas de consciência nem a mudanças. Um “professor reflexivo” não para de refletir a partir do momento em que consegue sobreviver na sala de aula, no momento em que consegue entender melhor sua tarefa e em que sua angústia diminui (PERRENOUD, 2002:43).
A educação reproduz a sociedade, em relação às suas contradições e conflitos, assim acaba por fazer o que a classe dominante lhe impõe. A escola é o instrumento desse processo, pois é o palco de batalha entre várias tendências e grupos, ou seja, ela não pode fazer sozinha a transformação social, pois ela não se consolida e se efetiva sem a participação da própria sociedade.
Os educadores devem transpassar as paredes da sala de aula, programas, conteúdos e notas, as ações devem ir além da estrutura institucional escolar, isto é, ter uma visão do mundo e da realidade que os cerca. Este educador que se busca hoje tem gosto pela vida, acredita num mundo melhor, respeita qualquer diferença e rejeita qualquer tipo de discriminação, tem consciência do seu papel para modificar a realidade. Enfim, vive cada minuto de sua profissão, realizando a reflexão necessária para as mudanças pertinentes às suas práticas. Em relação ao professor de História, estas ideias, são ressaltadas por Pinsky:
O professor de história não pode ficar preso apenas a modos de produção e de opressão (embora isso seja fundamental), mas pode e deve mostrar que, graças a cultura que nós, membros da espécie humana, produzimos, temos tido talento para nos vestir mais adequadamente que os ursos, construir casas melhores que o joão-de-barro, combater com mais eficiência o tigre, embora cada um de nós, seres humanos, tenha vindo ao mundo desprovido de pêlos espessos, bicos diligentes ou garras poderosas. Cada estudante precisa se perceber, de fato, como sujeito histórico, e isso só se consegue quando ele se dá conta dos esforços que nossos antepassados fizeram para chegarmos ao estágio civilizatório no qual nos encontramos (PINSKY, 2003: 21).
Ensinar exige uma busca constante entre a prática e a teoria, visando a construção da cidadania e o desenvolvimento do senso crítico dos alunos, como considera Freire:
A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria / Prática sem a qual a teoria pode ir virando blábláblá e a prática, ativismo. [...] Quem ensina
aprende ao ensinar e quem aprende ensina a aprender. [...]. Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar – aprender participamos de uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética [...] (FREIRE, 1998:24-6).
Dentro da realidade escolar, verifiquei como aspecto positivo, que apesar das dificuldades dos alunos de frequentaram aulas noturnas, após uma jornada de trabalho, e do professor que é, muitas vezes, sobrecarregado de atividades e falta de tempo para preparar suas aulas, que existe um esforço mútuo de aprender e ensinar, pois os alunos valorizam a educação e o professor de História faz jus a sua profissão de educador.
Dentro de minha trajetória pessoal dentro curso de História da UNIFRA, sempre esperei o momento de iniciar minhas atividades docentes. Como a formação inicial docente nos Estágios I e II do ensino de História me propuseram visitas a instituições de ensino de Santa Maria, onde pude inicialmente observar e interagir com alunos e professores de História, buscando aprimorar meus conhecimentos associando a teoria, estudada em sala de aula, com a realidade escolar, como evidencia Bittencourt (2004:15) “Ao confrontar suas ações cotidianas com as produções teóricas, é necessário rever as práticas e as teorias que as informam, pesquisar a prática e produzir novos conhecimentos para a teoria e a prática de ensinar”.
A disciplina de Estágio Supervisionado IV me proporcionou vivenciar em sala de aula no Ensino Médio na Escola Estadual de Ensino Médio Profª. Maria Rocha, a oportunidade de colocar em prática meus estudos teóricos acadêmicos. Foi um aprendizado constante, desde a organização dos planos de aula, com os diferentes recursos didáticos e a atividades propostas, até a preocupação de serem aulas participativas, tendo como objetivo uma visão crítica dos temas abordados e ao mesmo tempo, procurar fazer uma analogia do processo histórico com o conhecimento, habilidades e competências dos educandos.
A metodologia empregada muitas vezes foi de forma expositiva e dialogada, onde o uso de textos e esquemas no quadro proporcionou uma interação entre o professor e os alunos.
O uso de livro didático, documentários, lâminas, mapas, música e principalmente símbolos representativos como legado histórico e cultural para a atualidade, foi no meu entendimento, o aspecto mais criativo e participativo na interação entre minha prática docente e os alunos, onde pude perceber, principalmente no final do semestre, quando a turma ficou
menor, mas ao mesmo tempo mais crítica e consciente na construção da cidadania. Durante esse momento os alunos procuravam sanar suas dúvidas acerca do assunto de forma bem participativa, enquanto que o professor procurava responder os questionamentos.
Durante as aulas, em vários momentos, procurei fazer uma ligação entre o tema abordado com a realidade atual. É importante ressaltar que os temas das aulas tratam de uma forma significativa os conflitos políticos de interesses da classe dominante, no qual procurei fazer uma relação com a atual situação da política brasileira, onde os interesses e os conflitos se assemelham, embora em períodos históricos diferentes. Como exemplo desta análise cito a relação entre a política do “Pão e Circo” desenvolvida pelo Império Romano, para proporcionar a afirmação do poder e evitar o senso crítico da população, evitando ações contra a falta de políticas perenes que realmente pudesse transformar a realidade de injustiça vivida pela maioria do povo, com alimento e diversão e a atual política do Governo Federal que, através da “Bolsa Família”, que também proporciona alimento e diversão de forma assistencialista e paliativa, para evitar mudanças sociais mais profundas. Em suma, toda vez que a maioria da população, que de uma forma ou de outra é oprimida em suas necessidades básicas, como forma de dar mais vida e dignidade, muitos governantes evitam ser questionados, porque podem perder seus poderes e privilégios.
O passado e o presente na História deverão estar interligados para melhor entendimento do espaço temporal, Bittencourt (2004:204) complementa essa ideia quando afirma que “Um dos objetivos básicos da História é compreender o tempo vivido de outras épocas e converter passado em ‘nossos tempos’. A História propõe-se reconstruir os tempos distantes da experiência do presente e assim transformá-los em tempos familiares para nós”.
A turma teve durante o semestre uma alta rotatividade, em função de matrícula e assiduidade, através de critérios da Escola, considerando a troca permitida de escola durante o semestre, dentro de uma realidade noturna e de muitos serem trabalhadores. Neste sentido ocorreu uma quantidade significativa de alunos evadidos (alunos com faltas acima dos vinte e cinco por cento permitidos), bem como a falta de uma base maior oriunda do ensino fundamental, onde alguns alunos inclusive estavam retornando aos estudos depois de alguns anos, de acordo com suas realidades sócio-econômicas, familiares e tempo necessário para
estar em sala de aula. Ao final do semestre constavam 46 matriculados e somente 12 permaneceram até o final das aulas.
Esta realidade tornou minha experiência um constante desafio de fazer com que aqueles que estavam entrando, pudessem acompanhar o conteúdo trabalhado, com os alunos que já estavam na turma. Fui orientado pela escola a fazer atividades e provas para recuperação de notas, independentemente do número de faltas. Considerando que se por um lado tive uma ótima estrutura física e liberdade para desenvolver meu estágio em sala de aula, inclusive com uma sala de multimídia com aparelho de VHS e DVD, além de quadro e mapas.
Esses elementos fortalecem a proposta de uma educação diferenciada, levando em consideração também o processo avaliativo. Desta forma, a verificação do aproveitamento escolar dos alunos durante o estágio incidiu sobre o desempenho de cada educando nas diferentes situações de aprendizagem consideradas as competências e habilidades. A avaliação foi contínua e realizada por meio da observação em relação ao interesse, à participação, ao desenvolvimento das atividades produzidas oralmente ou por escrito, individuais ou coletivos, através de exercícios e trabalhos, portanto a avaliação foi um conjunto de ações dentro de uma visão global, ponderando também dificuldades, interesses e esforços, tanto individual como coletivo.
O relacionamento com os alunos foi bom, na medida em que procurei valorizar as opiniões e as diferentes formas de responder questionamentos nos temas abordados. Foi muito importante quando os alunos relacionaram certos legados históricos à filmes, novelas e informações gerais da mídia para entender melhor aspectos culturais, políticos e sociais, como por exemplo o funcionamento da sociedade de castas na Índia e a religiosidade muçulmana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O educador deve ser um profissional que possa desenvolver seu ofício, baseado em uma ação que deverá ter como base a preocupação com a liberdade e a responsabilidade diante do saber, e ao mesmo tempo humanizar o processo educacional, visando contribuir para a construção da cidadania. O educando neste processo torna-se um protagonista, onde a
construção do saber histórico tem por finalidade desenvolver uma visão crítica, levando o aluno a ter opções de suas escolhas em uma sociedade complexa, onde a democracia não seja um meio, mas um instrumento permanente em uma educação formadora de pessoas conscientes e participativas.
O papel do educador, dentro de uma prática pedagógica, deve ser sempre de orientador e sua autoridade deve estar a serviço de uma educação transformadora e libertadora. Esta aprendizagem deverá ter uma relação com a dinâmica social, visando uma transformação dentro de análise mais global do processo histórico, tendo como meta uma sociedade mais justa, democrática e solidária.
Dentro dessa perspectiva o estágio realizado no ensino médio foi desafiador e ao mesmo tempo muito gratificante, pois pude ligar aspectos teóricos do curso de História com a prática docente. Entendo que tudo foi um aprendizado muito importante para exercer o magistério como professor de História, pois certamente minha vida profissional foi facilitada pela oportunidade que tive e ao mesmo tempo ter uma experiência baseada em uma prática docente na construção da cidadania.
O educando deve ser o protagonista, cabendo ao educador orientá-lo e valorizá-lo para que o mesmo desenvolva uma visão crítica da realidade que o cerca.
A humanização do saber no processo educacional, baseado na construção permanente do conhecimento entre o educador e o educando fortalece o princípio de uma educação libertadora. Neste processo a preocupação do professor de História, como um profissional preocupado com a cidadania valoriza uma prática que possa envolver a educação como um todo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALARCÃO, Isabel. Escola Reflexiva e nova racionalidade. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004.
BRASIL, Ministério da Educação (MEC). História e Geografia, ciências humanas e suas
FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de história. Campinas, SP: Papirus, 200.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
LIBÂNEO, José Carlos. Organização e Gestão da Escola: Teoria e Prática. Goiânia: Editoras Alternativas, 2001.
PERRENOUD, Philippe. A prática Reflexiva no Ofício do Professor: profissionalização e razão pedagógica. Porto Alegre. Artmed Editora, 2002.
PINSKY, Jaime e PINSKY, Carla Bassanazi. Por uma história prazerosa e conseqüente. In: KARNAL, Leandro (Org.). História da sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2003.