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33º Encontro Anual da ANPOCS. GT 30 Pensamento Social no Brasil

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33º Encontro Anual da ANPOCS

GT 30 – Pensamento Social no Brasil

A Sociologia Aplicada no Brasil: a importância da ELSP e das pesquisas de padrão de vida em São Paulo

Angelo Del Vecchio∗ e Carla Diéguez∗∗

Angelo Del Vecchio é Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, Docente do Departamento de Antropologia, Política e Filosofia da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e Presidente do Conselho Superior da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).

∗∗ Carla Diéguez é Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Professora e Pesquisadora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).

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2 O presente artigo trata de duas pesquisas de padrão de vida realizadas na cidade de São Paulo em meados dos anos 1930, as quais visavam estabelecer o dispêndio necessário à manutenção de uma família proletária durante o período de um mês. Essas investigações foram dirigidas por professores da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. Algumas causas e condições concorreram para que elas se realizassem, entre as quais as principais foram:

1°. As referidas pesquisas ocorreram num momento em que se verificou considerável incremento institucional, num ambiente em que uma elite intelectual se engajou em múltiplos projetos, proporcionando assim larga cooperação interinstitucional;

2°. A escolha do tema – condições de vida de trabalhadores – se deveu fundamentalmente à influência de Roberto Simonsen, figura central no processo de criação da Escola, e que, desde os anos 1910, demonstrava preocupação com as condições de vida dos assalariados;

3°. As pesquisas marcam um momento de inflexão no percurso de institucionalização da Sociologia no Brasil, pois, pela primeira vez associam o ensino da disciplina à pesquisa empírica;

4°. Essa experiência inaugural produziu insumos que subsidiaram de forma importante a implantação do salário mínimo no país. Trata-se, portanto, da primeira produção de Sociologia aplicada entre nós.

Sob tais circunstâncias, entre os anos de 1934 e 1937, foram realizadas as pesquisas sobre as condições de vida de trabalhadores da cidade de São Paulo, coordenadas pelos sociólogos Horace Brancroft Davis e Samuel Harman Lowrie.

A primeira, trabalho pioneiro de Sociologia Aplicada no País, foi coordenada pelo prof. Davis, então responsável pela disciplina de Economia Social na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (ELSP) (ESCOLA LIVRE DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1934, p. 11). Um grupo de alunos do professor Davis atuou em todas as fases do inquérito, uma vez que a participação dos alunos da ELSP em tais atividades “constituiria um dos exercícios práticos previstos pelo regulamento da Escola” (DAVIS, 1935, p. 115).

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3 Durante a preparação da atividade, o grupo de estudantes da ELSP foi ampliado e fortalecido pela presença de duas educadoras sanitárias, vinculadas ao Serviço de Higiene e Educação Sanitária Escolar, além de alunos da disciplina de Sociologia do Instituto de Educação, incorporados à investigação por sugestão de dois professores daquela escola, Noemy da Silveira Rudolfer e Fernando de Azevedo, este último titular da Diretoria Geral da Instrução Pública do Estado de São Paulo (DAVIS, 1935, p. 115). Técnicos do Instituto de Higiene de São Paulo, então dirigido pelo médico sanitarista Geraldo Horácio de Paula Souza, auxiliaram na construção dos instrumentos de coleta e na avaliação dos dados constantes das cadernetas de pesquisa.

Entre abril e junho de 1934, os investigadores realizaram o levantamento dos dados, que abrangeu 221 famílias operárias distribuídas em 39 bairros da capital paulista e concentradas, em sua maioria, no Ipiranga, no Cambuci e, sobretudo, na Bela Vista. O inquérito visava determinar o consumo destas famílias no período de um mês, em particular no que se refere à alimentação, sabidamente o item de maior peso entre aqueles necessários à subsistência dos proletários nos anos 30. Sob o título “Padrão de vida dos operários da cidade de São Paulo”, o relatório do inquérito foi publicado no volume XIII da Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, de 1935.

Além de investigar o regime alimentar das famílias, a pesquisa visava a outros objetivos, entre os quais se destacam o estabelecimento de referências para o estudo das condições e do custo de vida no País e a formação de pesquisadores capazes de dominar e desenvolver praticamente a metodologia para o tratamento científico de temas dessa natureza, em especial por meio da interpretação das estatísticas sociais.

Nessa medida, o inquérito sobre o padrão de vida dos operários paulistanos reveste-se de pioneirismo, uma vez que, segundo informações do prof. Davis, “no Brasil, ao que parece, a primeira pesquisa, no gênero, é a que agora apresentamos, sobre os operários da cidade de São Paulo” (DAVIS, 1935, p. 114). Tal ineditismo foi reconhecido pelo Bureau Internacional do Trabalho, por intermédio de seu chefe da seção de Estatística, J. H. Dixon, conforme se pode verificar em carta reproduzida no relatório publicado na Revista do Arquivo.

No entanto, é necessário registrar que, quase concomitantemente à investigação coordenada pelo prof. Davis em São Paulo, realizava-se no Recife, sob a chefia de Josué de Castro, o Inquérito sobre as Condições de Vida das Classes Operárias do Recife.

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4 Abrangendo quinhentas famílias, o estudo foi concluído em outubro de 1934 e publicado em 1935 (CASTRO, 1935). Gilberto Freyre, com boa dose de acerto, chama a atenção para determinado registro de interpretação histórica, que sobrevalorizaria a experiência paulista, ao qual ele denomina entusiasmo “pelas glórias paulistas” (FREYRE, 1973, p. 181). Segundo o autor, tal viés levaria à desconsideração, entre outros, dos avanços relativos à institucionalização da Sociologia que decorreram da Reforma Carneiro Leão, implantada em Pernambuco em 1929, em função da qual surge “[...] a primeira cátedra de Sociologia estabelecida no Brasil, e talvez na América do Sul, com critério experimental e moderno” (FREYRE, 1973, p. 181; grifo nosso).

A despeito da importância da informação apresentada por Freyre, parece-nos que o debate a propósito da antecedência de uma ou outra iniciativa na implantação do ensino de Sociologia no País não revela o prisma mais interessante. Mais significativo é o fato de que a disciplina enraizava-se simultaneamente em vários centros e de modos diversos. Ademais, sua prática dava-se sob o abrigo nominal da antropossociologia, da sócio-ecologia, da geografia ou simplesmente da Sociologia, a qual, se associou ao tema das condições de vida dos trabalhadores. Aliás, a extensa obra do próprio Josué de Castro sobre as questões da alimentação e da fome demonstra, de forma exemplar, essa associação, uma vez que, com exceção do clássico Geografia da fome (CASTRO, 1946), foi toda escrita entre 1932 e 1937.

Além disso, é sabido que o ciclo institucional de uma disciplina científica só se conclui quando se torna sistemática a formação de pesquisadores na área. Para tanto, não basta que tal disciplina conste da grade curricular de um ou mais cursos, nem mesmo que um curso específico lhe seja exclusivamente dedicado. É necessário que o ensino desta mesma disciplina esteja indissociavelmente articulado à prática do trabalho de campo, ou seja, ao treinamento de novos profissionais por meio da participação em investigações científicas.

No caso da Sociologia, tal articulação ocorreu pela primeira vez no País graças ao inquérito dirigido pelo prof. Davis. A atuação discente no trabalho de campo de natureza aplicada constituía-se em elemento fundamental do próprio projeto da ELSP, que, neste aspecto, pode ser considerado pioneiro. Tal prática teria seguimento nos anos imediatamente posteriores, e seu campo ainda se cingia ao tema das condições de vida dos trabalhadores.

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5 A segunda pesquisa teve por objeto as famílias dos operários da Limpeza Pública da cidade de São Paulo. Foi coordenada por Samuel Lowrie, professor de Sociologia na ELSP.

O levantamento de campo compreendeu três períodos de observação, de um mês cada, entre novembro e dezembro de 1936, janeiro e fevereiro, abril e maio de 1937. Abrangeu apenas famílias de trabalhadores no Serviço de Limpeza Pública de São Paulo, perfazendo 465 cadernetas relativas aos dispêndios em cada um dos meses pesquisados, das quais 37 não foram utilizadas.

Além de lecionar na ELSP, o sociólogo norte-americano exercia as funções de técnico em pesquisas sociais da Subdivisão de Documentação Social e Estatísticas Municipais da Divisão de Documentação Histórica e Social do Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo, em cujas dependências foi sediada a coordenação dos trabalhos relativos à pesquisa. O relatório do estudo foi publicado no volume LI, ano V, da Revista do Arquivo Municipal, sob o título “Pesquisa de padrão de vida das famílias dos operários da Limpeza Pública da municipalidade de São Paulo”.

O texto faz referência ao arcabouço legal constituído desde 1934, compreendido pela Constituição naquele ano promulgada e pelos decretos no. 185 e no. 399 (LOWRIE, 1938, p.184), o qual objetivava o estabelecimento e a regulamentação de níveis salariais que garantissem as condições básicas de subsistência do trabalhador. Inspirado e provavelmente premido por esse conjunto de leis, o governo municipal tomara a iniciativa de realizar a pesquisa, que, além de investigar o custo de vida de um dos grupos de mais baixo salário, tinha por objetivo principal introduzir na administração municipal paulistana as normas legais de vigência do salário mínimo. Era intenção dos autores que essa iniciativa fosse exemplar, de forma que se irradiasse como padrão a outros entes da administração pública paulista (LOWRIE, 1938, p. 185).

Para fazer frente a essa tarefa, a Subdivisão de Documentação Social e Estatísticas Municipais constituiu uma equipe de pesquisa de “pouco mais de uma dezena de indivíduos, inclusive os nove pesquisadores que foram a campo” (informação verbal),1 todos eles funcionários públicos municipais. Entretanto, ainda segundo o sr. Ruy Barbosa Cardoso, “[...] a larga maioria dos servidores municipais envolvidos no levantamento era

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Depoimento obtido em entrevista de 2 de junho de 2008, concedida por Ruy Barbosa Cardoso, pesquisador que atuou na “Pesquisa de padrão de vida das famílias dos operários da Limpeza Pública da Municipalidade de São Paulo”.

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6 composta por alunos da ELSP”, fato que mostra certo grau de permeabilidade entre o corpo técnico da Subdivisão de Documentação Social e Estatísticas Municipais e a ELSP. Tal situação pode ser explicada pelas peculiares condições da época em que se desenvolveram as investigações em foco. Vivia-se um momento marcado por intenso incremento institucional nas áreas de cultura e ciências humanas, em que um seleto grupo de intelectuais atuava em várias frentes. Nesse sentido, é notável a presença de Mário de Andrade entre os signatários do manifesto da Fundação da ELSP. Na ocasião, ele era diretor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e estava engajado nos esforços de criação de outro centro de produção e difusão das ciências humanas de grande importância: o Departamento de Cultura de São Paulo.

Cabe lembrar que Mário de Andrade, ao lado de Sergio Milliet e Paulo Duarte, exerceu decisiva influência na concepção e na implantação do Departamento de Cultura, instituído pelo prefeito Fábio Prado com o ato nº 768, de 10 de janeiro de 1935, e organizado pelo ato nº 861, de 30 de maio do mesmo ano (DEPARTAMENTO DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO, 2006).

Os professores Samuel Lowrie e Bruno Rudolfer — este último integrante do grupo instituidor da ELSP — também exerciam, em mais de um posto, essa militância pela institucionalização das ciências humanas que se operava de forma intensa na São Paulo dos anos 30. Além de serem da primeira equipe de professores contratados pela ELSP, integravam os quadros da Subdivisão de Documentação Social e Estatísticas Municipais do Departamento de Cultura desde a sua implantação, em 1935. Além deles, alunos da ELSP ali atuavam como pesquisadores permanentes, como é o caso do sr. Ruy Barbosa Cardoso e de seus colegas que integraram o grupo de investigação sobre o padrão de vida dos trabalhadores na Limpeza Pública. A dedicação simultânea às duas instituições, cujos propósitos e técnicas de trabalho eram praticamente coincidentes, está a indicar que esses cientistas participavam, não só da construção de um complexo aparato de produção e difusão das “humanidades”, mas também da empreitada de desenvolvimento de uma modalidade de Sociologia até então não praticada no País, fundada em métodos e técnicas que incorporavam o tratamento quantitativo e que apontava para a resolução prática dos problemas estudados.

Nesse contexto, a formação dos profissionais da área de ciências humanas e, em especial, das ciências sociais, ocorria no ambiente formado por um complexo de

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7 instituições às quais os pesquisadores vinculavam-se de modo cumulativo, que compreendiam desde escolas recém-fundadas, como o Instituto de Educação2 e a Faculdade de Ciências Econômicas da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado, a ELSP e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, o Instituto de Organização Racional do Trabalho e o Departamento de Cultura de São Paulo.

No entanto, a profissionalização dos cientistas sociais não se constituiu em projeto único. Estava referida a um movimento mais amplo, que toma forte impulso nos anos 30, mas se apresenta como desdobramento das mudanças iniciadas na década anterior, quando surgem “[...] condições estimuladoras e provocadoras de um processo que vai se desencadeando” (NAGLE, 2001, p. 16), as quais ganham força, organização e enraizamento social com a criação do Partido Democrático, em 19263

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De fato, a longa duração e a natureza extensiva do processo em foco contribuíram para a participação de profissionais de tão variadas especialidades. Artistas, escritores, sociólogos, educadores, médicos, engenheiros, advogados — enfim, um estrato do campo cultural e científico de São Paulo, um verdadeiro grupo de “ilustrados” (ABDANUR, 1992, p. 4) estava imbuído da missão de construção de um vasto corpo de instituições capaz de formar quadros competentes para mudar os rumos da vida nacional (PRADO, 1986, p. 174), fosse pela nova orientação cultural da nação, a qual se daria pela “[...] vulgarização das ciências, das letras e das artes” (SÃO PAULO, 1934), fosse pela formação de “[...] uma elite numerosa e organizada, instruída sob métodos científicos, a par das instituições e conquistas do mundo civilizado, capaz de compreender, antes de agir, o meio social que vivemos” (ESCOLA LIVRE DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1933, p. 1).

Entre os grupos profissionais envolvidos na afirmação da nova disciplina científica, a Sociologia, os médicos paulistas contribuíram de forma peculiar, em particular os professores Raul Briquet, Antonio de Almeida Júnior e André Dreyfus. Os

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O Instituto de Educação nasceu da Escola Normal Secundária da Praça da República, que, pelo Decreto Estadual nº 4.888, de 12 de fevereiro de 1931, passou a chamar-se Instituto Pedagógico e em 1933 adotou a denominação de Instituto de Educação, incorporado em 1934 à Universidade de São Paulo (BEISIEGEL, 2003).

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O Partido Democrático foi fundado em fevereiro de 1926, por lideranças dissidentes do Partido Republicano Paulista (PRP). Tais líderes estavam descontentes com a conduta o PRP à frente dos governos paulista e nacional. Congregava principalmente fazendeiros e profissionais liberais e seu programa pregava o voto secreto e a autonomia do Poder Judiciário.

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8 três exerceram importante papel na construção do sistema universitário paulista e no desenvolvimento da educação no estado. Briquet e Almeida Júnior foram, em 1932, signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, e, ao lado de Dreyfus, fizeram parte do grupo que, no início de 1934, apresentou o projeto de fundação da Universidade de São Paulo ao interventor Armando Sales de Oliveira. O projeto de fundação da USP foi assinado pelos professores Vicente Rao, da Faculdade de Direito; Júlio de Mesquita Filho, Fonseca Teles e Teodoro Ramos, da Escola Politécnica; Rocha Lima e A. Bittencourt, do Instituto Biológico; e Raul Briquet, Antonio de Almeida Júnior e André Dreyfus, da Faculdade de Medicina (CARDOSO, 1982, p. 96; CUNHA, 1994, p. 185). A partir desse projeto, instituíram-se, além de outros, o curso de Ciências Sociais, moldado segundo o espírito dos “[...] institutos de investigação científica de altos estudos, de cultura livre, desinteressada” (SÃO PAULO, 1934), cumprindo, portanto, função de formação de cientistas sociais de “padrão europeu”, isto é, produtores de interpretações de longo alcance.

Os médicos tiveram papel igualmente importante na constituição da ELSP. No manifesto de fundação da Escola, 32 subscritores eram ligados a faculdades ou associações médicas. Nove deles eram professores da Faculdade de Medicina e, destes, três tornaram-se docentes da primeira turma de alunos da ELSP. Por coincidência nada casual, os três eram os mesmos Raul Briquet (Psicologia Social), Antonio de Almeida Júnior (Fisiologia do Trabalho) e André Dreyfus (Biologia Social).

Neste primeiro momento, a ELSP concentrava-se na Sociologia Aplicada, predominantemente empírica e voltada para a proposição de ações que superassem problemas claramente delimitados no sentido de proporcionar maior desenvolvimento social. A atuação dos mestres estrangeiros, Lowrie e Rudolfer, e a formação dos novos cientistas ocorriam em projetos e pesquisas que informavam intervenções, mormente públicas, e que articulavam estreitamente a ELSP e a Subdivisão de Documentação Social e Estatísticas Municipais, de forma a torná-las praticamente extensões uma da outra (informação verbal).4

O ensino e a prática da Sociologia Aplicada tornavam assim pouco definidos os limites entre as atividades didáticas e o efetivo exercício da profissão, bem como borraram as fronteiras entre a ELSP e a “Subdivisão”. Por essa razão, a pesquisa original

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9 de 1934, realizada pela ELSP sobre o “Padrão de vida dos operários da cidade de São Paulo” pode ser aperfeiçoada e retomada sob o mesmo regime metodológico da monografia da família operária, e se baseou no mesmo instrumento de campo do levantamento anterior: a caderneta. Além disso, Lowrie beneficiou-se da experiência do primeiro estudo e recrutou um núcleo de “investigadores, já treinados em inquéritos anteriores, [que] foram incumbidos de instruir um grupo suplementar de pesquisadores na técnica de acesso às casas, das entrevistas, e da conquista e cooperação das famílias a serem estudadas” (LOWRIE, 1938, p. 186).

A colaboração interinstitucional e a emergência do tema das condições de vida dos trabalhadores nos anos 30 criaram circunstâncias favoráveis à realização dos inquéritos aqui abordados. Entretanto, ao menos uma indagação não pode ser respondida por estas explicações: por que o inquérito sobre “as condições de vida” realizou-se na ELSP?

A primeira linha de resposta remete à figura de Roberto Simonsen, o mais destacado instituidor da Escola.

Simonsen é objeto de ampla produção científica, que abarca múltiplos aspectos da variada obra intelectual, institucional e política desse empreendedor brasileiro; destacam-se as análidestacam-ses de Berlinck (1948), Lima (1963; 1976), Carone (1971) e o recente Maza (2004).

Lido por Simonsen, o Manifesto de 27 de abril, no entanto, não foi obra sua. Em depoimento alusivo ao 40º aniversário da Escola, o diretor-geral Cyro Berlinck afiança que o manifesto de 27 de abril de 1933 foi obra de

[...] Tácito de Almeida, que era o mais destacado líder jovem da época, revelado pela atuação desde a 1ª Semana de Arte Moderna, [que] redigiu sozinho, e numa noite, o Manifesto dos Fundadores da nossa instituição, no qual, com rara competência e felicidade, resumiu em palavras a aspiração da juventude. O Manifesto foi lido e aceito por Roberto Simonsen que não alterou sequer uma vírgula (BERLINCK, 1973, p. 253).

A autoria do Manifesto, no entanto, é matéria de disputa, uma vez que Barbato Jr. atribui a Sérgio Milliet a redação do documento (BARBATO JR., 2004, p. 74).

Seja qual for a sua autoria, o Manifesto é, sem dúvida, o pronunciamento político de maior peso no processo de instituição da ELSP. Expressa a posição do segmento mais

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10 avançado da elite paulista na primeira metade dos anos 30 e, como já afirmamos, marca um rico momento em que o esforço pela modernização do País congregou as mais ativas lideranças paulistas, num processo em que os limites e as já consolidadas tradições institucionais tornaram-se, de maneira incomum, elásticos.

Como todo documento dessa natureza, o Manifesto é, e não poderia deixar de ser, sintético. Nele, as linhas de estruturação do projeto da ELSP encontram-se condensadas em proposições que remetem imediatamente à conjuntura do Brasil dos anos 30.

O projeto da ELSP surge mais elaborado em Rumo à verdade, discurso de abertura da Escola, pronunciado por Roberto Simonsen no dia 27 de abril de 1933 e depois publicado em livro (SIMONSEN, 1933). Em suas 43 páginas, distribuídas em 11 seções, aborda com propriedade assuntos que vão da crise mundial de 1930 a um balanço da produção sociológica até aquele momento, chegando à indicação do tipo de Sociologia que melhor se amoldaria à nascente Escola. Os assuntos tratados e a profundidade em que esse tratamento se deu — particularmente no que se refere à Sociologia — indicam um considerável período de reflexão e debate coletivos, que levaram à maturação e consolidação das propostas, depois sistematizadas em texto.

Carone (1977, p. 365), Silva (1994, p. 21) e Maza (2004, p. 55) sustentam a tese de que Simonsen “[...] não é autor do projeto da escola, mas apresenta-se como porta-voz dos fundadores” (MAZA, 2004, p. 55). Tal tese faz eco às afirmações de Cyro Berlinck, que assenta sua interpretação sobre a constituição da ELSP em duplo registro:

1) A criação da Escola teria sido uma reação à derrota de 1932, que, em essência, significava uma tentativa de conduzir, pela via da insurreição política, um processo de modernização nacional alternativo ao chefiado por Vargas: “Mas, com o malogro [da Revolução Constitucionalista], qualquer veleidade de liderar politicamente a nação, na trilha do desenvolvimento, desapareceu. Restava uma solução apenas: a solução pedagógica”. (BERLINCK, 1973, p. 252).

2) Além disso, a articulação que resultou na criação da ELSP foi obra de um grupo de jovens ligados aos movimentos renovadores dos anos 20; a ação desses moços teria origem na criação da comissão do Partido Republicano Paulista “[...] formada para estimular a Música e as Artes Plásticas pela

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11 concessão de bolsas de estudo na Europa a jovens artistas nacionais” (BERLINCK, 1973, p. 252).

O presidente da comissão era o senador Freitas Valle, cuja residência, a Vila Kyrial, foi sede desse movimento. Sob a liderança de Freitas Valle, jovens como o próprio Cyro Berlinck, Sérgio Milliet e Tácito de Almeida teriam se envolvido na 1ª Semana de Arte Moderna e na fundação do Partido Democrático.

Segundo a percepção de Berlinck, esse grupo teria elaborado o “projeto” da Escola, angariando posteriormente apoio de membros proeminentes da “geração mais velha”, entre os quais Roberto Simonsen, “o mobilizador-chefe da indústria paulista em 32” (BERLINCK, 1973, p. 252).

A interpretação de Berlinck, essencialmente incorporada por Carone, Maza e Silva, merece ao menos um reparo.

O projeto da Escola Livre de Sociologia e Política é obra complexa, que certamente demandou esforços de um grupo de tamanho e qualificação consideráveis, por um período relativamente curto, compreendido pelo lapso de tempo de dez meses, entre a derrota em julho de 1932 e a fundação da Escola em abril de 1933. Num tempo tão restrito e com a requisição de grande investimento intelectual e político, o projeto não poderia estar concluído senão em momento próximo à fundação da Escola, e é certo que somente depois desse momento adquiriu contornos mais definidos. Nessa medida, a afirmação de que Simonsen “não seria autor do projeto” deve ser relativizada. São incontestados os fatos de que ele exerceu decisiva influência na conformação inicial da instituição e de que tal influência expressou-se em aspectos que vão do perfil dos titulados até a definição dos próprios temas das pesquisas que viriam a ser desenvolvidas. Isso fica mais evidente quando se focalizam as primeiras pesquisas da ELSP. Nada casualmente, estão concentradas em torno do tema das condições de vida dos operários, que surge com destaque em Rumo à verdade (SIMONSEN, 1933, p. 15). Essa questão era alvo das preocupações de Simonsen desde a década de 10.

Entre os anos de 1916 e 1931, Simonsen proferiu uma série de discursos, nos quais aborda o desenvolvimento industrial brasileiro (SIMONSEN, 1932). Neles, a relação entre as condições de vida e o salário do trabalhador surge em perspectiva que articula a adoção progressiva de métodos racionais de organização da atividade produtiva

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12 e a justa remuneração do trabalho. Na visão de Simonsen, o equilíbrio entre esses fatores possibilitaria a superação do conflito entre capital e trabalho.

Em discurso de 9 de dezembro de 1918, dirigido a trabalhadores que colaboraram no combate à “gripe espanhola” em Santos, ele destaca:

O barateamento da produção, em todos os seus aspectos [ou seja, o resultado da racionalização da produção, para o qual a cooperação dos operários era fundamental], precisa e deve ser almejado constantemente no vosso e no nosso

interesse. Esse barateamento, porém, deverá ser conseguido, não à custa de

vossos salários, mas sim pela obtenção da maior eficiência no trabalho! [...] Nos Estados Unidos as empresas mais bem organizadas, isto é, as que conseguem produzir mais barato, são as que pagam os mais altos salários (SIMONSEN, 1932, p. 20; grifo nosso).

Contudo, perseguir a conciliação entre capital e trabalho mediante a racionalização do processo produtivo não implicava extinguir a tensão entre empregados e patrões, mas reconhecê-la. Em relatório aos diretores e acionistas da Companhia Construtora de Santos, relativo aos anos de 1918 e 1919, Roberto Simonsen é enfático ao afirmar que o advento da economia industrial trazia consigo o germe desse conflito, realidade esta que impunha

[...] a utilização econômica do trabalho. A indústria moderna tem evoluído, como tudo. Os industriais têm hoje de abandonar os moldes antigos para considerar como uma força nova, existente realmente, o descontentamento operário; e proporcionar com desassombro, a justa remuneração do trabalho, se não quiserem assistir ao entravamento da produção pela tentativa de decisão desse problema, erradamente, por vias políticas, quando poderia ser resolvido, com acerto, por vias econômicas (SIMONSEN, 1932, p. 49).

Entretanto, “a utilização econômica do trabalho” não era algo que decorresse do simples bom senso. Havia que lançar mão dos mais avançados progressos da ciência, do conhecimento das leis que determinam o curso da economia, de forma a buscar “[...] a viabilidade em ser obtida a solução harmônica dos interesses das duas classes por investigações científicas das condições reais de trabalho e pela aplicação inteligente das leis econômicas que regem a produção” (SIMONSEN, 1932, p. 49; grifo nosso).

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13 Este procedimento impediria que tal tensão, de natureza eminentemente econômica, extravasasse seu âmbito próprio, derivando em luta política. A moderna ciência era, assim, o instrumento, senão de superação, ao menos de confinamento no âmbito exclusivamente econômico, da luta de classes, termo, aliás, não empregado por Simonsen.

Tais investigações demandavam uma ciência que não estava compreendida pelas velhas disciplinas acadêmicas, somente acessíveis aos ilustrados. Era nova, e sua difusão pelo corpo da sociedade permitiria a cada cidadão a percepção e o desfrute de uma era de progresso e de emancipação econômica individual. Quando esse conhecimento fosse de domínio de todos, “predominarão difundidos os ensinamentos da economia política e, todos, individualmente, poderão conquistar a sua independência econômica como já o podem hoje a sua independência política” (SIMONSEN, 1932, p. 53). A nova ciência era, então, a Economia Política, instrumento da emergência da “[...] consciência nacional [criado] pelo esforço da inteligência”. (SIMONSEN, 1932, p. 65).

Somente a nova disciplina científica permitiria a apreensão dos problemas nacionais, os quais, uma vez elucidados mostrariam a face oculta de um Brasil profundo e autêntico, em tudo diverso do que até então afirmava a “aristocracia da palavra, o mandonismo literário” vigente (SIMONSEN, 1932, p. 114). Em discurso aos formandos de 1920 da Escola Politécnica, Simonsen expressou larga confiança na ciência do social.

Divulgados esses conhecimentos, verificaremos então que os caipiras, os jagunços e os cangaceiros não são a prova da inferioridade de nossa raça: são

“corpos de prova”, vivos, em que os que sabem estudar, vão aprender as

hostilidades cósmicas e os meios para combatê-las! Heróis inconscientes oferecidos em holocausto à ciência, até termos evoluído a ponto de fazermos acompanhar, os que se embrenham em nossos sertões, pelos conhecimentos precisos para aproveitar as nossas riquezas e para combater os malefícios, que são muitas vezes apenas reações da natureza contra os que a desbravam sem ciência e inconscientemente destroem a sua produtividade (SIMONSEN, 1932, p. 65; grifo nosso).

Redimir os caipiras, jagunços e cangaceiros, assim como elevar o padrão de vida proletário, através da aplicação e difusão dos conhecimentos da Economia Política não

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14 implicava, contudo, rumar ao encontro do socialismo, sistema que “[...] diminui em larga escala a produção encarecendo a vida...” (SIMONSEN, 1932, p. 109).

O termo exato de equilíbrio entre a acumulação de riqueza e sua distribuição poderia ser atingido sob certas condições. “Agindo com esse idealismo prático [...] se poderá chegar a tão almejada conjugação de interesses entre o patrão e o operário, alcançando este o horário e o salário mais convenientes e o patrão a máxima eficiência na mão de obra e conseqüentemente na produção”. (SIMONSEN, 1932, p. 118)

O “idealismo prático” e a economia política eram assim, nos anos 20, os instrumentos desse empreendedor intelectual — adverso ao comunismo e crítico das formas capitalistas vigentes —, linhas de pensamento que, em 1933, adquiriram expressão numa disciplina presente no primeiro programa da ELSP: a Economia Social. Pertencente à

[...] grande categoria das ciências político-morais [...] a Economia Social deve iniciar suas investigações pelo descobrimento das causas do atraso e do mal-estar dos povos e deve, portanto, buscar os remédios para tais situações e estabelecer as regras para sua aplicação oportuna (RODRIGUES, 1990, p. 84, apud CHAVES, 1999, p. 119).

A Economia Social, ao lado da Psicologia Social, da Sociologia Geral, da Estatística, da Fisiologia do Trabalho, da Biologia Social e da Psicotécnica, compunha o primeiro currículo da ELSP (ESCOLA LIVRE DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1934, p. 149-156). Sob a direção de Horace Davis, a disciplina de Economia Social era composta por tópicos que expunham os fundamentos econômicos da sociedade e debatiam a “economia dirigida” sob o capitalismo e sob o socialismo. Não obstante as possibilidades de debates a respeito de princípios e regimes — ou, como queria Simonsen, “a discussão escolástica de doutrinas” — que o programa de Economia Social propiciava, as atividades acadêmicas e pedagógicas foram orientadas no sentido de desenvolver-se um exercício de campo, que, ao mesmo tempo em que iniciava os alunos na prática da pesquisa, gerava subsídios para a solução prática de um problema social relevante: a precária condição de vida dos operários paulistanos.

Enfim, a diretiva que apontava para a capacitação de praticantes da Sociologia Aplicada realizava-se pela observação dos programas disciplinares, mas, acima disso, pela forma como se conduziam as atividades da Escola. Neste ponto, novamente a

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15 atuação de Simonsen foi decisiva, pois, além de ser um grande líder, tinha clareza quanto à natureza da ciência social que queria implantar na ELSP.

Em Rumo à verdade, apresenta ampla gama de autores e correntes, situando as respectivas contribuições de uma linhagem de pensadores iniciada por Vico — que teria concebido “a idéia de uma ciência da história do homem [...] com a sua ‘Nova Ciência’ em 1725” (SIMONSEN, 1933, p. 15) — e que se desenvolveria de acordo com uma dinâmica cumulativa a qual, passando por Saint-Simon, Kant, Adam Smith, Comte e Spencer, desembocaria na Sociologia do século XX, em suas vertentes européia e americana.

Simonsen não declara afiliação a qualquer escola nem perfilha com as idéias de qualquer autor. Sua exposição é a de um cultor da ciência, em especial, da Sociologia. Assim, o debate que resulta da prevalência de determinadas correntes sobre outras teria para ele menor importância e escassa contribuição. Sua visão da ciência era cumulativa, de tal modo que as novas contribuições somavam-se às anteriores e, ao mesmo tempo, as superavam, sem, no entanto, anulá-las.

Dessa forma, em lugar da prática bachaleresca, que desencadeava duelos retóricos e metodológicos, seria mais proveitoso lançar mão de métodos e técnicas de investigação capazes de apresentar soluções para problemas sociais bem definidos. Simonsen vê em Frederic Le Play um autor que contribuiu nesse sentido;

[...] empreendeu um estudo meticuloso sobre os trabalhadores europeus, inventariando e monografando para mais de trezentas famílias proletárias, observadas nas indústrias mais características em várias localidades da Europa. Foram os seus trabalhos que libertaram a Sociologia do ponto de vista puramente dialético e acadêmico, trazendo-a, ao lado da biologia, para um lugar determinado na hierarquia das ciências (SIMONSEN, 1933, p. 15).

Simonsen referia-se ao livro Ouvriers européens. Études sur les travaux, la vie domestique et la condition morale des populations ouvrières de l’Europe (LE PLAY, 1855), no qual o autor observa e inventaria o orçamento familiar de metalúrgicos, ferreiros e fundidores da planície saxônica do Hartz, tendo percorrido 6.800 km a pé em 200 dias seguidos. Le Play, que considerava a família a unidade social irredutível, pretendia com seu inquérito entender a complexidade social a partir da análise desse grupo elementar. Ao enfrentar os problemas decorrentes dessa extensa pesquisa, criou o

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16 método monográfico, primeiro mecanismo científico para a compreensão das sociedades. Segundo suas próprias palavras, constantes da introdução de Les ouvriers..., ele aplicara “à observação das sociedades humanas regras análogas às que haviam dirigido meu espírito no estudo dos minerais e das plantas. Eu construí um mecanismo científico [...]” (apud AZEVEDO, 1958, p. 189).

A hipótese que aqui sustentamos é a de que a preferência de Simonsen por Le Play decorre menos da afinidade doutrinária do que da identidade do objeto com o qual, como vimos, o próprio Simonsen defrontava-se desde meados da segunda década do século XX: a condição de vida operária. A escolha metodológica ou a preferência eletiva por esta ou aquela escola dependiam sempre do objeto a ser investigado, de modo que Simonsen não professava uma Sociologia, mas buscava na produção dos sociólogos a prática sociológica que mais se adequava aos problemas a serem resolvidos. Não buscava nesse sentido uma Sociologia a priori positivista, compreensiva, analítica ou pragmática, mas poderia adotar qualquer vertente em função do tema a ser pesquisado e da aplicabilidade do conhecimento produzido.

Em sentido contrário, Maza (2004, p. 58) sustenta que “a Sociologia defendida por Simonsen pode ser denominada de positivista, evolucionista e pragmática, pois valoriza sobremaneira o método”.

Como afirmamos, Simonsen havia escolhido claramente uma modalidade de Sociologia para a realização da missão institucional da ELSP. Se tal modalidade poderia merecer algum qualificativo, este não se referiria à corrente teórica perfilhada. Talvez devesse um pouco mais ao método e muito mais às possibilidades de superação efetiva dos problemas sociais pesquisados. Deste ponto de vista, a proposta de Simonsen era menos ambiciosa e talvez mais profunda do que alguns de seus analistas propõem: voltava-se para a Sociologia Aplicada.

Essa é a principal razão de, por sua decisão, não implantar inicialmente a Sociologia européia na ELSP. Em rápida apreciação da produção dos sociólogos do “Velho Continente”, o autor de Rumo à verdade reconhecia que eram “numerosos os homens de ciência que na França, nos últimos anos desenvolveram os estudos sociológicos, detendo-se ora no seu aspecto objetivo, ora no psicológico, no histórico e no filosófico [...]” (SIMONSEN, 1933, p. 16).

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17 Essa possibilidade multifacetada, “dialética e acadêmica” fugia em tudo ao imperativo de aplicação que ele havia delineado para a Escola que então se criava. E foi no Novo Continente que ele encontrou o que buscava.

Havia muito que Simonsen era entusiasta da maneira como os norte-americanos resolviam os problemas do desenvolvimento (SIMONSEN, 1932, p. 20). O entusiasmo traduziu-se em admiração da experiência de construção do capitalismo industrial nos EUA e estendeu-se à esfera do conhecimento e da ciência. Para ele, o mérito até então inigualável da Sociologia norte-americana seria consistir de um conjunto de pesquisas onde predominava o “[...] estudo mais objetivo e comparativo dos fenômenos do grupo social, tornando ao mesmo tempo salientes os fatos da psicologia social” (SIMONSEN, 1933, p. 15). Tal objetividade seria condição necessária para a transposição das conclusões e descobertas da ciência social para a prática de reforma social.

Ao comparar as matrizes da Sociologia européia e da norte-americana, Werneck Vianna aponta as raízes históricas que as diferenciam e ressalta precisamente esse ponto:

Foi nos EUA que a Sociologia, ao ganhar estatuto de ciência universitária, não perdeu seu impulso originário de compromisso com a reforma social, traduzindo, na academia, o movimento de reformadores, religiosa e moralmente orientados, que nasce com o abolicionismo e se aprofunda com a crise do pós-Guerra de Secessão (VIANNA, 2004, p. 198).

Objetividade e compromisso com reformas sociais eram, pois, as características que a Sociologia praticada na ELSP deveria ter, e a vertente norte-americana satisfazia a tais requisitos. Eis a principal explicação para o programa de Sociologia Geral ter por tópico inicial e mais importante as “Características e métodos da Sociologia norte-americana” (ESCOLA LIVRE DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1933, p. 11).

Nos idos de 30, o centro mais influente de Sociologia dos Estados Unidos era a Escola Sociológica de Chicago, à época dirigida por Robert Ezra Park. A posição ocupada pelo departamento de Sociologia de Chicago era de liderança e hegemonia incontrastáveis no meio acadêmico americano. Os famosos estudos de ecologia humana, que tiveram por origem a pesquisa e intervenção em situações de inadaptação social na Chicago das três primeiras décadas do século passado projetavam os sociólogos de Chicago em escala mundial, de forma que tanta era a sua preponderância que naquele momento a Sociologia foi considerada “a ciência americana” (EUFRÁSIO, 1995, p. 40).

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18 O próprio Simonsen, ao arrolar os mais notáveis sociólogos norte-americanos, cita principalmente os membros do Departamento de Chicago (SIMONSEN, 1933, p. 15).

Entretanto, Davis e Lowrie, os dois professores norte-americanos contratados pela ELSP em 1933, não provinham da prestigiosa Chicago, mas da Universidade de Colúmbia.

Qual seria a razão para esta escolha, em boa medida surpreendente?

Embora as respostas à questão exijam uma investigação detalhada, podemos aventar ao menos duas hipóteses.

A primeira remete ao fato de que a hegemonia de Chicago vinha sendo contrastada pelo Departamento de Sociologia da Universidade de Colúmbia, desde 1929, quando o professor Robert Morrison MacIver assumiu a direção da Escola, em substituição ao seu fundador, Franklin Giddings, adepto e grande difusor das teorias de Spencer e Adam Smith. MacIver rompeu com o padrão científico consagrado por seu antecessor e implantou em Colúmbia uma Sociologia de talhe humanista (HALAS, 2001, p. 28), revalorizando a demografia e a estatística e atraindo para o departamento sociólogos de renome e capacidade de inovação, como Theodore Abel (Sociologia Sistemática), Robert Lynd (Cultura Americana), Alexander Von Sheling (Metodologia em Weber), Willard Waller (Relações de Família e Psico-Sociologia) (BECKER; ELMER, 1962, p. 217).

Sob tais estímulos, a Sociologia de Colúmbia ampliou fortemente sua influência no período entre-guerras e se constituiu em um importante centro de formação e difusão, afirmando-se como pólo alternativo ao ainda dominante Departamento de Sociologia de Chicago. Esta circunstância explica em parte a decisão de Simonsen em contatar o cônsul geral do Brasil em Nova York, Sebastião Sampaio, no sentido de que ele procedesse à seleção de dois pesquisadores de Colúmbia para ministrar aulas na ELSP (BERLINCK, 1964, p. 283).

Outra linha de explicação refere-se à temática do padrão de vida dos operários, sobre a qual Simonsen desejava que se desenvolvessem as pesquisas na ELSP cujos resultados deveriam subsidiar ações públicas. Embora Chicago sustentasse um “compromisso com a reforma social” e muitas de suas pesquisas sobre a inadaptação de grupos sociais tenham resultado em políticas públicas, o fundamento de tais intervenções vinculava-se a práticas que visavam à integração de tais grupos numa sociedade

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19 industrial paradigmaticamente estruturada. De certa forma, a sociedade norte-americana dos anos 30 não só era claramente diversa da brasileira, como seu processo de desenvolvimento servia de modelo para empreendedores brasileiros de visada mais generosa, como era o caso de Simonsen, um admirador confesso do capitalismo ianque.

Tais condições impõem à Sociologia um percurso sui generis em solo brasileiro. Ao contrário do ocorrido nos países de

[...] capitalismo originário, [onde] as Ciências Sociais nascem e se desenvolvem no terreno da sociedade civil — em geral fora da universidade —, vocacionadas para o tema da reforma social, e em um contexto de democracia política, conquistando posteriormente a sua institucionalização na vida acadêmica, aqui,

surgem do projeto intelectual de uma elite conservadora, como a de São Paulo,

com existência universitária antes de encontrarem expressão na vida social, com seus praticantes isolados dos seres subalternos e dos seus problemas, inclusive pela situação repressiva às liberdades imposta pelo Estado Novo (VIANNA, 2004, p. 195; grifo nosso).

Se o processo de constituição da disciplina científica obedece a esse percurso histórico singular, as questões com que se defronta e para as quais deve apresentar solução também são de natureza diversa daquelas dos países de desenvolvimento capitalista clássico. Não se trata ainda de incluir ou adaptar setores ou grupos à sociedade industrial, mas de construir essa mesma sociedade como imperativo para a afirmação da nação.

A questão não se apresentava como nova no pensamento social brasileiro, e estava na

primeira manifestação do que seria considerado Sociologia no Brasil [...] na

Introdução à história da literatura brasileira (1881), onde Silvio Romero

estabelece as diretrizes que orientaram por muito tempo os estudos sociais no Brasil, ao interpretar o sentido da evolução cultural e institucional segundo os fatores naturais do meio e da raça (CÂNDIDO, 2006, p. 273).

Sem enraizamento social forte, a Sociologia, desde seus primórdios, teve que se haver com o problema da conclusão do processo de edificação da nação. Ainda que surgisse em diversos registros, tais como “sentido de nossa evolução” ou “construção do

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20 Estado brasileiro”, tal problema impunha-se como pauta necessária à disciplina científica.

No momento de sua institucionalização acadêmica, nossa Sociologia carrega para o novo solo o tema de origem, e neste o “compromisso com a reforma social” deve se materializar como processo de construção nacional. Gláucia Villas Bôas sintetiza esse momento:

Quando a Sociologia surge no Brasil como disciplina acadêmico-científica, não indaga o fundamento da associação entre os homens, à maneira dos franceses, nem a possibilidade teórica e metodológica de conhecer a sociedade, à maneira dos alemães. Tampouco a ela interessam as reformas sociais ou a integração de grupos de diferentes origens étnicas, a exemplo dos sociólogos norte-americanos que fundaram o Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago. A pergunta que funda a disciplina já estava inscrita na tradição sobre o Brasil e dizia respeito à identidade da sociedade brasileira. Interessava investigar os problemas concretos do país, principalmente conhecer suas peculiaridades e para saber de suas possibilidades de integrar-se ao concerto das nações modernas (BÔAS, 1997, p. 74).

Ou seja, os problemas brasileiros levam a Sociologia a percorrer um caminho diferente daqueles trilhados pelas sociologias estrangeiras, porém, com o auxílio dos mestres fundadores oriundos de outros países. No caso da ELSP, a grande admiração de Simonsen pelos Estados Unidos, por seu desenvolvimento econômico e social, faz com que os mestres norte-americanos sejam os preferidos. Contudo, dada a preocupação com o tema da condição de vida dos trabalhadores, a Sociologia desenvolvida em Colúmbia no início dos anos 30 confluía para o propósito de Simonsen (SIMONSEN, 1934). Desta forma, os primeiros mestres estrangeiros, Horace Davis e Samuel Lowrie, aportaram em terras paulistanas em 1934.

Apesar de terem se graduado na mesma universidade, Davis e Lowrie seguiram caminhos diferentes em suas vidas intelectuais, assim como tiveram trajetórias diversas em suas passagens pela ELSP.

Pode-se dizer que Horace Davis tenha sido, a seu modo, um “intelectual orgânico do proletariado”. Filho de ativistas políticos progressistas, associou o interesse pela militância em prol da causa dos trabalhadores ao seu tratamento científico. Antes do

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21 ingresso em Colúmbia, foi trabalhador metalúrgico e jornalista na área do trabalho. Esta experiência certamente lhe ofereceu motivação e cabedal para a escolha do objeto e desenvolvimento de sua tese de doutorado sobre os metalúrgicos norte-americanos, editada em livro em 1933 sob o título Labor and Steel, na coleção Labor and Industry Series (cf. DAVIS, 1933). Membro do Partido Comunista Americano, há notícias sobre o engajamento de Davis em várias das ações do PCA, como a campanha eleitoral de 1932 do secretário-geral do PCA, Willian Zebulon Foster, à Presidência da República, bem como o auxílio aos comitês de ajuda a greves e também às vítimas do fascismo alemão.5

A militância de Davis não arrefeceu com a vinda ao Brasil. Logo ele se adaptou e, praticamente no momento de sua chegada, iniciou um ciclo de “Conferências proferidas na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo no outono [boreal] de 1933” (DAVIS, 1934, p. 3), nas quais discorreu sobre a National Recovery Administration (NRA), um dos programas que compuseram o New Deal do presidente Franklin Roosevelt. Postando-se claramente no campo socialista, Davis concluiu que “[...] o ‘New Deal’ de Roosevelt e o Fascismo de Mussolini e de Hitler procuram a mesma coisa: salvar o capitalismo. Mas o método de Roosevelt é diferente. Em lugar de suprimir o movimento operário, procura amansá-lo” (DAVIS, 1934, p. 184).

No início, as atividades políticas e acadêmicas de Davis puderam ser conciliadas na ELSP. No entanto, seja pela prevenção criada entre os dirigentes da Escola, seja pela radicalização do processo político, a participação política do professor tornou-se progressivamente um obstáculo à sua atuação profissional, campo em que sua competência sempre foi reconhecida.

Ao avaliar as passagens de Davis e Lowrie pela instituição, Cyro Berlinck, em depoimento que espelha o espírito dos fundadores da ELSP, assevera:

O primeiro causou logo de início grande problema educacional. Era marxista e o programa que apresentou visava um estudo comparado entre o quadro de referência do método de análise da economia clássica em confronto com o quadro de referência do método dialético (BERLINCK, 1964, p. 283).

5

Davis participou também do National Committe to Aid Striking Miners Fighting Starvation, criado em 1931 por um grupo de intelectuais comunistas. Em 1933, participou do National Committee to Aid Victims of German Fascism, organizado pelo Workers International Relief (DILLING, 1934).

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22 Talvez o problema fosse menos de natureza educacional do que política, pois o envolvimento de Davis com as lutas operárias não passou despercebido de nossos vigilantes serviços de informação. Em relatório do DOPS datado de 27 de maio de 1934, um agente não identificado observou:

No meio intelectual, tem surgido ultimamente uma minoria entusiasta pelas concepções marxistas. Uns são quase inofensivos, pois não efetuam propaganda alguma ou qualquer ação prática, guardando para si as suas idéias. Outros, porém, vão logo as massas. São estes que merecem especial atenção. Eis o caso do Prof. Davis: prevalecendo-se do lugar que ocupa e pelo fato “de ter sido convidado para ir às massas” propagar sua ideologia, realiza constantes conferências, dando ainda entrevistas. Convidado agora pelos bancários para realizar conferência referida, no dia 26, após ter aceito, vem a renunciar, renúncia essa que se parece basear numa possível disciplina, confirmando assim que obedece ele ao controle de alguma organização (DEPARTAMENTO DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL, 1934).

A despeito das reservas de fundo político, o próprio Cyro Berlinck reconhece a importância da contribuição de Davis à Sociologia em sua curta estada de um ano no país. Aponta a importante inovação que o sociólogo norte-americano realizou, ao introduzir “[...] conceitos marxistas de ‘classe social’, ‘ditadura do proletariado’, ‘sociedade sem classes’ e muitos outros e também expôs os fatos posteriores à revolução de 1917 na Rússia, especialmente a Nova Política Econômica (NEP)” (BERLINCK, 1964, p. 283).

Berlinck sustenta que a pesquisa “O padrão de vida dos operários da cidade de São Paulo” gerou subsídios para que a equipe coordenada pelo estatístico Bruno Rudolfer, também professor da ELSP, elaborasse um índice do custo de vida dos operários paulistas. Este índice foi adotado pelos Tribunais do Trabalho, para a arbitragem dos dissídios salariais e serviu de base para os cálculos que estabeleceram o salário mínimo nacional em 1º de maio de 19406.

Desta forma, ao introduzir conceitos da economia política, o prof. Davis auxiliou no processo de compreensão da relação capital-trabalho, de modo que “a atuação do Professor Horace B. Davis foi o início de um processo social, tendendo para que o

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23 problema salarial, que anteriormente era resolvida em ambiente emocional, passasse a ser resolvido de forma racional” (BERLINCK, 1964, p. 284). Ademais, após sua estada no Brasil, Horace Davis construiu vasta obra, na qual persistiu por mais uma década trabalhando sobre o tema das condições de vida dos trabalhadores, para depois dedicar-se ao estudo da questão nacional (DAVIS, 1940, 1967, 1976 e 1978).

A saída de Davis não significou o abandono das pesquisas sobre o padrão de vida dos trabalhadores. Samuel Harman Lowrie, que havia sido contratado pela ELSP conjuntamente com Davis, as retomaria, procedendo a algumas correções metodológicas.

Lowrie, cuja tese de doutorado em Colúmbia tratava da colonização anglo-americana do estado do Texas, teve um período de trabalho de cinco anos na ELSP que foi marcante em diversos sentidos. De uma parte, trouxe uma importante inovação teórica e metodológica ao quadro da Sociologia e das ciências sociais praticadas no Brasil. Além de difundir o padrão sociológico norte-americano e de treinar praticantes desta Sociologia, introduziu pioneiramente no país um tratamento específico para a cultura, para cujo domínio certamente contribuiu a pesquisa que sustentou sua tese de doutorado, publicada como Culture and conflict in Texas (LOWRIE, 1932).

Por ter ficado mais tempo no Brasil, Lowrie contribuiu diretamente com as pesquisas produzidas pela Escola em parceria com o Departamento de Cultura do Município de São Paulo. Muitos destes trabalhos foram publicados na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, órgão que, na década de 30, foi o principal veículo de publicação dos estudos produzidos pelas Ciências Sociais paulistas.7

Entre estes, dois textos se destacam. O primeiro é o artigo publicado no volume 15 do ano de 1935 da Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, sob o título “Informações sobre a ELSP de São Paulo” (LOWRIE, 1935). Trata-se de um memorial entregue aos deputados estaduais de São Paulo com o objetivo de diferenciar a Escola Livre de Sociologia e Política da então recém-nascida Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, bem como trazer para a ELSP recursos da administração pública que permitissem a continuidade das atividades, pois as dotações iniciais estavam prestes a se esgotar. No memorial, Lowrie enfatiza o caráter diverso e

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Alguns trabalhos de Samuel Lowrie que foram publicados pela RAMSP: Previsão da população (RAMSP, v. XV, 1935); Que é cultura? (RAMSP, v. XVIII, 1935); Assistência filantrópica na cidade de São Paulo (RAMSP, vols. XXVII, XXVIII e XXIX, 1936); Ascendência das crianças registradas no Parque Dom Pedro II (RAMSP, v. XXXIX, 1937).

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24 complementar das duas instituições, com destaque para o caráter aplicado que se pretendia imprimir à Sociologia praticada na Escola Livre. Este artigo/memorial revela a liderança que o professor exercia no âmbito da ELSP, pois, com pouco mais de um ano no País, tornara-se representante de uma escola que abrigava, em seu quadro docente, intelectuais nativos de renome.

O outro trabalho é considerado por muitos sociólogos como um marco divisor nos temas das Ciências Sociais no Brasil, pelo criterioso tratamento metodológico que empregou: o estudo “Pesquisa do padrão de vida das famílias dos operários da Limpeza Pública da municipalidade de São Paulo”, publicado no volume 51 do ano de 1938 na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo (LOWRIE, 1938).

Tal como Davis, Lowrie trata do tema do padrão de vida das classes trabalhadoras. Porém, há diferenças entre os dois sociólogos quanto à abordagem do objeto. Segundo Jaime Rodrigues, o prof. Lowrie introduz uma novidade metodológica ao delimitar o objeto a um grupo, no caso, os trabalhadores da Limpeza Pública municipal. Este recorte permitiu maior objetividade no levantamento e na análise dos dados e a possibilidade de construir um perfil do padrão de vida. A construção de tal perfil possibilitou que a metodologia fosse estendida à investigação de outros grupos de trabalhadores, bem como estabeleceu um termo de comparação entre grupos profissionais (RODRIGUES, 2005, p. 10).

Além disso, essas pesquisas demarcam um momento de deslocamento do foco da análise sociológica em relação à estrutura de classes no Brasil. Antônio Cândido, em livro elaborado como homenagem a Florestan Fernandes, considera histórica a pesquisa de Lowrie, que é “[...] a meu ver um sinal da virada temática [...] deslocando a Sociologia do estudo preferencial das classes dominantes para o estudo das classes dominadas” (CANDIDO, 1996, p. 47).

Lowrie, que já havia produzido e publicado na Revista do Arquivo Municipal estudos sobre a população paulistana (LOWRIE, 1935a, 1936, 1936a, 1936b e 1937a), sobre a cultura e o Departamento de Cultura (LOWRIE, 1935b) e sobre a Sociedade de Sociologia de São Paulo (LOWRIE, 1937), voltou, em 1939, aos Estados Unidos, onde se dedicou à investigação de relações familiares (LOWRIE, 1951 e 1961).

Antes de sair do Brasil, teve ainda um derradeiro e fundamental papel na história da ELSP e da Sociologia no Brasil. Foi ele o autor do convite a Donald Pierson, para que

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25 este atuasse como professor e o substituísse não só nas atividades docentes, mas também para que se constituísse na nova liderança intelectual da Escola.

Pierson já estivera no Brasil entre 1935 e 1937, quando realizou os levantamentos para sua tese de doutorado junto à população negra da Bahia, sob a orientação de Robert Ezra Park, expressiva liderança de Chicago, naquele momento atuando na Universidade de Fisk, Tennessee (PEIXOTO, 2001, p. 518). Lowrie e Pierson trocaram correspondências entre abril e agosto de 1939,8

de forma a acertar as condições para a vinda do último em fins desse ano. Berlinck, então diretor da ELSP, informa que havia “[...] contatado por intermédio do referido Dr. Lowrie, um novo professor, o Dr. Donald Pierson, já conhecido no Brasil, onde realizara pesquisa sobre a população afro-brasileira da Bahia, e falava bem o português” (BERLINCK, 1973, p. 253).

Pierson conferiu grande dinamismo à Escola, que, a partir de 1940, vê ingressar em seus quadros professores estrangeiros de grande influência. A criação da Seção de Estudos Pós-Graduados, “[...] por sugestão do professor Donald Pierson Ph.D. (Chicago) com a finalidade de conceder no primeiro estágio, o grau de Mestre em Ciência no campo da Sociologia e Antropologia” (BERLINCK, 1964, p. 292), marca uma nova fase da instituição, que vê ampliar sua influência e consegue aportar fundos que permitem a contratação de renomados mestres estrangeiros.

Podemos dizer que, se Pierson eleva o padrão científico da ELSP, também o faz alterando fundamentalmente o projeto inicial da Escola. A criação da Seção de Estudos Pós-Graduados introduz novo perfil de formação dos alunos em tudo diverso do proposto no Manifesto de 1933.

Se, como expusemos acima, Simonsen havia preferido Colúmbia a Chicago em função do caráter aplicado que queria conferir à ciência produzida e veiculada pela Escola, Pierson praticamente transplanta para os trópicos o modelo de Chicago, no qual ele havia se formado. Peixoto nota que

[...] Pierson tentou fazer em São Paulo uma réplica deste modelo: primazia dos estudos pós-graduados, formação de grupos de trabalho, onde cada estudante corresponde a um sub-tema da pesquisa mais ampla, sob a direção de um professor-doutor; além de seminários, leitura e orientação individual de alunos.

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Cf. correspondência entre Donald Pierson e Samuel Lowrie (Fundo Donald Pierson, Arquivo Edgard Leuenroth, Unicamp). Agradecemos à Profª Drª Mariza Correa, pela autorização para reprodução fotográfica do material.

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Ou seja, com Pierson chega a São Paulo não só uma problemática trabalhada pela Sociologia de Chicago (os estudos de comunidade), mas também um modelo institucional (PEIXOTO, 2001, p. 519).

A capacidade intelectual de Pierson é inegável, mas é certo que também contou com outras circunstâncias favoráveis a seu intento. Entre outras, cabe destacar a espetacular inflexão da diplomacia norte-americana no início dos anos 40, com o abandono da política do big stick pela prática de ações de aproximação com países do continente, em particular o Brasil. Além do fomento ao intercâmbio científico e cultural, um importante fluxo financeiro fez migrar para o “sul do Rio Grande” recursos que, entre outros projetos, financiaram a construção da Usina Siderúrgica de Volta Redonda (TOTA, 2000, p. 27).

Entre tais fontes de recursos, que muitas vezes combinavam pecúlios privados e fundos controlados pelo Departamento de Estado dos EUA, encontravam-se os financiamentos da Fundação Rockefeller e do Institute of Social Anthropology da Smithsonian Institution, que para cá vieram em escala generosa, precisamente no período posterior a 1941.

Mais uma vez, o testemunho de Cyro Berlinck expõe esta situação:

Logo no início dos estudos pós-graduados tivemos a cooperação inestimável da Fundação Rockefeller e do “British Council” que nos auxiliou no contrato do professor A.R. Radcliffe Brown da Universidade de Oxford, que permaneceu dois anos e meio ensinando em São Paulo. Logo depois, recebemos auxílio do governo dos Estados Unidos da América do Norte através do Institute of Social Anthropology da “Smithsonian Institution” (BERLINCK, 1964, p. 293).

Cabe notar que, em função do fato de que a Europa se tornara palco da guerra, muitos de seus intelectuais haviam migrado para a América, alguns sob os auspícios dos próprios governos, como foi o caso de Radcliffe Brown. Esta migração favoreceu o desenvolvimento das ciências no Brasil, em particular das Ciências Sociais.

Entre os institutos que sustentaram acadêmica e financeiramente o projeto de Pierson, cabe ressaltar a já então secular Smithsonian Institution, que implantou no Brasil um programa do Instituto de Antropologia Social, dirigido pelo próprio Pierson. Ainda em 1941, Julian Steward, diretor da Smithsonian, veio ao Brasil com a missão de

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[...] formar três centros de pesquisa social na América Latina, que receberiam cooperação material e humana da Smithsonian Institution e deveriam estudar objetivamente as populações dos países situados ao Sul dos Estados Unidos. Com essa incumbência o Dr. Julian Steward decidiu formar três desses centros. Um em nossa instituição, outro na Universidad Mayor de San Marcos e, o último, na Universidad do México (BERLINCK, 1964, p. 253).

O ciclo virtuoso que se constituiu a partir de então permitiu que a Escola adquirisse a Revista Sociologia, fundada em 1939, por Emílio Willens e Romano Barreto. Com essa aquisição, completou-se a construção de um dispositivo que formava pesquisadores, produzia pesquisas e tinha veículo próprio de divulgação científica.

Desta maneira, em condições favoráveis, Pierson pode levar adiante seu projeto acadêmico e assim implementar um padrão científico e uma modalidade sociológica que se afirmariam de maneira hegemônica nas ciências sociais no País.

Este percurso, bem-sucedido em muitos sentidos, aparentemente obscureceu a proposta e as realizações originais da Escola, de modo a tornar pouco claros os próprios contornos da profissão de sociólogo. Fernando Limongi considera que, com a chegada de Pierson,

A formação e o conhecimento produzidos pela escola passam a se inscrever no interior do mundo acadêmico. Não que esta dimensão estivesse ausente no momento anterior. O que se transforma é o fim do projeto, que deixa de se referir ao Estado e à formação de elites técnicas, para circunscrever-se à formação de sociólogos profissionais. A necessidade e essencialidade da pesquisa empírica são mantidas. O intervencionismo e a aplicação são postergados. E é por

estruturar seu apelo nesse campo que o “projeto” de Pierson foi capaz de obter sucesso nos meios acadêmicos em formação (LIMONGI, 2001, p. 263-264; grifo

nosso).

Não obstante a precisa descrição do processo que se opera na ELSP naquele momento, não nos parece satisfatória a conclusão fundada no estabelecimento de uma relação direta entre o abandono do caráter aplicado da Sociologia praticada na Escola e o sucesso acadêmico.

É certo que a inserção acadêmica amplia-se com Pierson, como também é certo que o próprio campo acadêmico das Ciências Sociais no Brasil conhece expressivo

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28 crescimento com o advento da Seção Pós-Graduada. Ou seja: ao mesmo tempo em que constituiu o primeiro curso de pós-graduação em Sociologia do País, Pierson definiu os limites de um campo acadêmico no qual se colocou em local privilegiado.

É necessário lembrar que entre as condições que lhe possibilitaram tal movimento, além das mencionadas, encontra-se a sólida reputação acadêmica que a ELSP já possuía, para a qual muito contribuíram as pesquisas sobre padrão de vida. De outra parte, estas pesquisas foram realizadas por sociólogos muito bem capacitados nos campos da teoria, da pesquisa e de sua aplicação. Ao envolverem alunos da Escola nesta atividade, promovendo a decantada simbiose entre ensino e pesquisa, não só inovaram as práticas acadêmicas e pedagógicas, como, ao fazê-lo, formaram uma geração de sociólogos igualmente bem capacitados, bons profissionais capazes de desenvolver a almejada aplicação prática da ciência em que se iniciaram.

Ou seja, o período que recobre os anos de 1933 a 1939 revela que essa quadra histórica foi pontuada por uma série de investigações sociológicas, criteriosamente conduzidas. Destacam-se a produção de Josué de Castro (CASTRO, 1932, 1933, 1935, 1935a, 1935b, 1935c, 1936, 1937 e 1937a) e a produção veiculada pela Revista do Arquivo Municipal.

Os temas ali tratados abrangem aspectos etnológicos, da cultura e das festividades populares e, sobretudo, o estudo das populações operárias paulistanas. Os autores envolvidos são Bruno Rudolpher, Sérgio Milliet, Alice Canabrava, Caio Prado, Pierre Monbeig, Artur Ramos, Câmara Cascudo, Herbert Baldus, Mario Wagner Vieira da Cunha, Paul Bastide, Claude Lévi-Strauss e, com especial destaque, os pioneiros da Sociologia Aplicada no Brasil, Horace Davis e Samuel Lowrie.

Tais intelectuais/cientistas, bem como o temário estudado, indicam a necessidade de escrever a página que falta na historiografia da institucionalização da Sociologia no Brasil, na qual surgem em posição de relevo as pesquisas sobre padrão de vida dos trabalhadores.

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