P o r q u e l e r C a p i s t r a n o d e A b r e u ?
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Robério Am érico Souza Universidade Federal Flurninense
RESUM O
Este artigo pretende desenvolver um a abordagem crítica da narrativa histórica de Capistrano
de Abreu, num esforço por explorar sua proposta para a escrita da história do Brasil,
discutindo a contem poraneidade de seus objetos e fontes, bem com o a arguta contribuição
que ela traz para form ação de novos historiadores. PAIAVRAS-CHA VE
Capistrano de Abreu, historiografia, narrativa.
RÉsUM É
Ce article prétend développer un abordage critique du récit historique de Capistrano de
Abreu, cherchant àexplorer sa proposition d ' écriture de I' histoire du Brésil en discutant Ia
contem poraneité de ses objets et sources, bien com m e Ia subtile contribution qu ' elle
apporte dans I' optique de Ia forrnation de nouveaux historiens. M OTS-CLÉS
Capistrano de Abreu, historiographie, récit,
A originalidade é im possível. No m áxim o, podem os variar m uito ligeiram ente o passado, dar-lhe um novo m atiz, um a nova entonação. Cada geração escreve o
m esm o poem a, conta o m esm o conto. Com um a
pequena diferença: a voz. (jorgeLuís Borges)
Só é cantador quem traz no peito o cheiro e a cor de sua terra, a m arca de sangue de seus m ortos e a certeza de luta de seus vivos ... (François Silvestre)
Escrever sobre Capistrano de Abreu. Com plicado? Um pouco. Repetitivo? Talvez. Desnecessário? Nunca. Sem pre acreditei que a paixão, as afinidades, assim com o o ódio, pudessem levar a águas profundas, m uito
T r a j e t o s . Revista de História UFC. Fortaleza, vol. 3, n? 5, 2004.
em bora tragam consigo o risco de nos pôr perdidos. Esse perigo, no entanto, é inerente a qualquer ação que nos perm ita voar, e bem vindo, enquanto m eio de questionar nossas certezas. O filósofo alem ão W alter Benjam in já dizia, com singular propriedade, que só chegam os à idéia se chegarm os aos extrem os.I Nesse sentido, perscrutar a obra de João Capistrano de Abreu,
historiador de estilo extrem ado e apaixonante, apresenta-se com o um desafio sem pre renovado.
M eu prim eiro contato com os escritos do célebre historiador cearense, ainda nos tem pos de escola, não foi de identificação im ediata, nem de repúdio absoluto, m as sim , ora um , ora outro, num a relação em blernática daquilo que, acredito, seja um fator chave dentro de seu pensam ento: a tentativa de fugir ao dualism o esquem ático, característico da cultura ocidental.
A leitura dos textos de Capistrano de Abreu é, acim a de tudo, um excitante convite à reflexão de nossa conduta, tanto com o historiadores, com o na qualidade de filhos da m estiça cultura brasileira.
Partindo de fontes até pouco tem po consideradas de m enor valor para escrita da história - elem entos do cotidiano, com o práticas alim entares, histórias e lendas populares, arquitetura, entre outras -, e tendo com o objetivo a com preensão da form ação sociocultural do povo brasileiro, Capistrano de Abreu realizou, já nas prim eiras décadas do século passado, um a narrativa histórica que tom a, com o tarefaprecípua da sua reflexão, a investigação da cultura, sua form ação e seu desenvolvim ento. Seu enfoque sobre aspectos do com portam ento e dos costum es do cotidiano estavaà m argem da pauta de preocupações da ciência histórica tal com o era entendida e praticada nos centros de excelência do m eio acadêm ico ocidental, com o qual, aliás, ele pouco ou nada sim patizava.
Atualm ente o olhar dos historiadores volta-se para as m aneiras de vestir, de com er, de am ar, para os gestos e cerim oniais, num franco esforço por desnaturalizar o que foi, e em parte ainda o é, percebido com o banalidades, tem as de m enor interesse para o saber histórico. Dessa form a, ao passar à
com preensão/ aceitação dos tem as acim a elencados, com o objetos valiosos para o estudo do hom em e das sociedades, m uito tem os a aprender com a obra de Capistrano de Abreu.
Com o já aqui m encionado, a escrita de Capistrano de Abreu é orientada por um esforço inom inável de historicizar a form ação do povo brasileiro, pelo que foi cham ada pelo historiador José Carlos Reis de "redescoberta do Brasil", posto que reescreve a colonização do país sob um inédito ponto de vista: o ponto de vista dos brasileiros.'
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Em "Capítulos de história colonial", de 1907, e "Cam inhos antigos e povoam ento do Brasil", artigo publicado originalm ente em três partes pelo Jornal do Com ércio, nos m eses de agosto e setem bro de 1899, se vê, com clareza, a valorização dos costum es, das lutas populares, abordados com o inequívoco intuito de atribuir ao povo brasileiro a condição de sujeito de sua própria história, que não m ais deveria vir de cim a, nem m uito m enos de fora, m as dele próprio.
Ao fazer a opção por esse cam inho, Capistrano de Abreu alm ejava não apenas a satisfação de um a problem ática histórica, m uito m enos o cum prim ento de exigências para obtenção de títulos e honras acadêm icas, distinções que em nada o abalavam . M ais que tudo, buscava subsídios, fontes, para com preender a si m esm o, sertanejo, caboclo m atuto, de origem m odesta e rude.' Sua investigação era, então, m ovida por interesse pessoal, m as nem por isso m enos legítim a, pois, com o bem afirm ou o sociólogo alem ão M ax W eber, "é a paixão que um valor desperta em um cientista que guiará seu interesse entre o infinito m aterial ernpirico da realidade"." Por isso, talvez, sua narrativa possua um vigor e um a qualidade discursiva difíceis de ser encontrados nos trabalhos contem porâneos, posto que as exigências do am biente acadêm ico por vezes nos levam a fazer um a escolha m ais
"científica" e m enos apaixonada dos cam inhos que devem os trilhar. M uito em bora apaixonado pela aventura do povo brasileiro povoando o sertão do Brasil, Capistrano de Abreu não se deixa enredar pela teia do apologism o, escapandoànarrativa fácil dos sucessos e vitórias. Ao contrário, sua interpretação - bem ao gosto dos cantadores do sertão - se desdobra preferencialm ente sobre os m ales, lutas e fracassos desse povo, construindo um a história calcada na crítica precisa e bem fundam entada, que desnuda as sociabilidades, num a arguta reflexão sobre as práticas culturais, que vão sendo construídas um as, destruídas outras, no conflituoso m ovim ento de m isturas étnicas do período colonial.
Em seus trabalhos, o historiador cearense busca apresentar um a história do Brasil que aponte para pluralidade do povo e de sua cultura. Por isso se esforça por abarcar o m aior núm ero de fatores em seu cam po investigativo. Em m eio a essa variada gam a, um em especial cham a a atenção, por seu caráter provocativo: o recurso intenso dos brasileiros à violência com o form a de m ediação de seus conflitos.
Fruto da m iscigenação entre brancos e índios, o brasileiro descrito em "Capítulos de história colonial" e "Cam inhos antigos ..." nasce sob o signo da violência, que em regra m arcou os contatos entre conquistadores e nativos ao tem po da colonização portuguesa. Foi sob a am eaça da perda da
própria vida que, em m uitos casos, jovens índias se entregavam ao prazer daqueles que as arrestaram nas m atas. Para Capistrano de Abreu a brutalidade
de sua concepção, som ada à condição de m arginalidade que lhe im porá a
sociedade do pai branco, m arcará profundam ente o m estiço e o m undo que ele irá construir.' Neste ponto, o autor m ais um a vez evidencia seu
vanguardism o, na m edida em que tom a com o objeto de sua investigação
elem entos da form ação psicológica de seus personagens, apontando para
necessidade de se com preender, dentro de um a perspectiva histórica, as transform ações da personalidade e do com portam ento hum anos, analisadas
desde suas funções m ais elem entares até aquelas norteadoras de sua conduta."
Outro elem ento im portante para com preensão desse com portam ento violento diz respeito ao clim a e à terra. Nas duas obras já citadas, Capistrano
de Abreu propõe que as agruras do clim a e o caráter pouco hospitaleiro da
vegetação e do relevo levaram à form ação de um povo rústico, que se
em bruteceu pela necessidade de se adequar às exigências de um triste viver cotidiano, agastado pela pobreza e pelos perigos de um a natureza pouco
conhecida". Um a experiência em tudo distante do ideal cortês das cortes européias. Essa linha de reflexão, no entanto, não deve, nem pode, ser
concebida com o inspiração de determ inism os geográficos, ou de qualquer
outra espécie. O que a m otiva é a necessária com preensão de com o se
estabelece, no interior do Brasil, um a relação entre o hom em e o m eio
natural. Entender de que m aneira o m eio atua com o um fator de m olde do indivíduo e de com o este o transform a de acordo com suas necessidades.
Há, ainda, um terceiro e im portante fator no estudo da violência
presente na obra de Capistrano de Abreu: o Estado, ou m elhor, a ausência dele. Para ele a população brasileira, internada sertão adentro, vivia entregue
a si, sem o devido am paro institucional que lhe regulasse as relações e a
subm etesse a um ordenam ento social rígido. A Coroa Portuguesa e, m ais tarde, o Im pério Brasileiro tardaram em interiorizar os braços da
adm inistração pública, especialm ente dos órgãos de justiça, responsáveis
pelo controle e punição dos atos de violência. Disso em ergiu um m undo sem lei, onde "reinava o respeito natural pela propriedade; ladrão era e
ainda é hoje o m ais afrontoso dos epítetos, a vida hum ana não inspirava o
m esm o acatam ento. Questões de terra, m elindres de fam ília, um a descortesia
m esm o involuntária, coisas às vezes de insignificância inapreciável,
desfechavam em sangue. Por desgraça não se dava o encontro em cam po aberto: por trás de um pau, por um a porta ou janela aberta descuidosam ente,
na passagem de algum lugar erm o ou som brio, lascava o tiro assassino, às
vezes m arcando o com eço de longa série de assassinatos e venderas".'
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Aspectos psicológicos, relação hom em -m eio
N natural, .atuação do Estado, na análise de apenas um aspecto da form ação da sO?led.ade e da cultura brasileiras, Capistrano de Abreu lança m ao de tres linhas de
investigação entre si bastante distintas, m as que se com pletam em sua apura~a
narrativa, que reclam a a im periosidade de um a :bordagem que recne
integralm ente a vida, que realize um ~ com preens~o tota,l e cnadora do m ovim ento histórico. Só assim , acreditava ele, sena possível perceber as
transform ações nas estruturas e as características que diferenciam cada
m om ento histórico e a form ação de cada povo. .'
Essa idéia de com preensão total e criadora fica talvez m ais pertm ente
se pensarm os em Capistrano de Abreu com o um historiador em penhado
em fundar algo novo, oposto a um a prática histori?gráfi~a fundada ~m
categorias isoladas, im itâveis, na busca por m odelos um v~rsals. Send~ ~s~m ,
era necessário enunciar a diferença, a m udança, o surglm ento d~ l~e.dlto,
do povo brasileiro. Por isso critica a ~er~ã? ~e ~ar:~~gem para história ~o Brasil, na qual o papel de sujeitos da histona e privilégio do Estado Im perial
e das elites luso-brasileiras. .'
Capistrano de Abreu continua a ter m uito a nos dizer. Ele.dedlcou
sua vida não apenas a estudar o Brasil, m as, acim a de t~d~, a m ven:ar form as de fazê-lo. Contrariando seus contem porâneos, substituiu o conceito
de "raça" pelo de "cultura" na investigação da m is:igenação~ nu~ salto
qualitativo que som ente seria seguido décadas depois, Aos historiadores
revelou novas fontes e desenvolveu para elas abordagens críti~as" apontando cam inhos m etodológicos ainda hoje pertinentes, e que contribuíram para o
sucesso das pesquisas de m uitos dos historiadores q~e o sucederam . Nos
ensinou a desconfiar do passado oficialm ente estabelecido, narrado ?e ~orm a
a perpetuar situações que, não raro, atentam ~ontraNo pov.o e sua digm dade,
ao m esm o tem po em que revelou, em prim eira m ~~,. a nque~ ~ultu:~ do universo m estiço brasileiro. Ao leitor com um possibilita u~a visao cntica e lúcida de um país que insiste em negar sua cultura m estiça, m as que, ao
m esm o tem po, encontra nela a m atriz para construção de um futuro novo,
verdadeiram ente independente.
Em sua obra não encontram os um m étodo, um m odelo acabado de
pesquisa e escrita, m as um fazer-se ininterrupto, caract~rístico do "~om em
de personalidade aberta" - defendido por Norbert Elias com o o lde~l ~e
cientista social - que lia tudo o que, de algum a form a, pudes,se ~ontr:b.Ulr para seus estudos, não lhe i.m portando quem , ou com que tendência política,
ou ideológica, tivesse escnto. . . )
Devem os, então, tom ar Capistrano de Abreu com o um rruto. Ler
seus escritos com o m anuais de boa conduta do historiador? Definitivam ente, não. A leitura de seus escritos deve ser feita sem nenhum tipo de pudor, ou reverências sacralizadoras, m as num ato de recriação, de busca pela originalidade. O que nos rem ete a citação de Jorge Luis Borges que abre este artigo, e que nos desafia com um a questão m ais que pertinente: onde está a originalidade? Ela ainda é - ou nunca foi - possível? Talvez por piedade de nós pobres m ortais, que não desfrutam de sua genialidade, ele próprio nos fornece a resposta: a voz; o olhar próprio de cada cultura, de cada indivíduo.
O
que acabo de fazer é exercer a m inha liberdade de criação,existente no justo intervalo entre o texto de Borges e a interpretação que faço, a m inha apropriação, possível a partir do encontro dos universos de autor e de leitor. Essa é a visão de Roger Chartier, para ele cada um lê o que pode e com o pode, de acordo com suas possibilidades e experiências."
Ao nos apropriarm os de algo já existente, de um a m aneira ou de outra com um a todos, construím os algo novo, original, fruto de nossa intervenção. Dessa m aneira, refletir sobre autores clássicos com o Capistrano de Abreu, Sérgio Buarque de Holanda ou Gilberto Freyre, significa não um ato de repetição do que outros tantos fizeram antes de nós, m as sim a construção de um a novidade, pois, com o nos assevera M ichel de Certeau, a
leitura é sem pre um ato criativo10 , além de ser a atividade
RQPONMLKJIHGFEDCBA
s i n e q u a n o n de quem tom a a com preensão da aventura hum ana com o profissão.NOTAS
1BENJAM IN, W alter. "O surrealism o. O últim o instantâneo da inteligência européia". In
M a g i a e t é c n i c a , a r t e e p o l í t i c a . E n s a i o s s o b r e l i t e r a t u r a e b i s t ô r i a d a a r l u t r a . Vol. 01, São Paulo:
Brasiliense, 1994.
2 REIS, João Carlos. A s i d e n t i d a d e s d o B r a s i l : d e V a r n b a g e n a F H C . 2" ed., São Paulo:
Fundação Getúlio Vargas, 1999.
) cÂM ARA,J. S.C a p i s t r a n o d e . A b r e u . Rio de janeiro: José Olym pio, 1969. Está é se não a
m elhor, com certeza m ais com pleta biografia já publicada de João Capistrano de Abreu, o
que torna sua leitura um a fonte de ricas inform ações que contribuem inestim avelm ente
para com preensão de certas escolhas do historiador.
4 W EBER, M ax. Apud. SAINT-PIERRE, Háctor L. M a x I l : í 'e b e re n t r e a p a i x ã o e a r a z à o
Cam pinas: EDUNICAM P, 1994, pág.11.
5Em seu livro Op o v o b r a s i l e i r o . A j o r l l l a ç à o e o s e n t i d o d o B r a s i l , o antropólogo Darcy Ribeiro
realiza um interessante desenvolvim ento desta proposição de Capistrano de Abreu, na
qual defende que o m estiço nascido da m istura de brancos e índios possui um caráter esquizofrênico, que o leva agir violentam ente contra os povos indígenas, ao m esm o tem po em que absorve e preserva fortes traços de sua cultura.
6O m elhor trabalho sobre as possibilidades e os lim ites de se abordar historicam ente tem as
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relativos à form ação psicológica dos hom ens é seguram ente Op r o c e s s o c i v i l i i p d o r , do
sociólogo alem ão Norbert Elias, publicado pela prim eira vez em 1939, o que m ais um a
vez denota a ousadia do estudo feito por Capistrano de Abreu décadas antes.
7 C f. ABREU, Capistrano. C a m i n h o s a l l t i g o s e p o v o a l J l e J / t o d o B r a s i l . 2" ed., Rio de
Janeiro: Sociedade Capistrano de Abreu, 1960.
8 ABREU, Capistrano. C a p i u d o s d e b i s t á r i a c o l o n i a l . 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1976, p. 131 e 132.
9 c ;r CHAR TIER, Roger. Do livro a leitura. In: P r á t i c a s d a L e i t u r a . São Paulo: Estação
Liberdade, 1996.
10 C f CERTEAl1 M ichel. Ler: um a operação de caça. In: A i l l v e l / ç ã o d o C o t i d i a n o : a r t e s
d o J a z e r . Petrópolis: Vozes, 1994.