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A RELAÇÃO RURAL/URBANO NO DESENVOLVIMENTO REGIONAL

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Academic year: 2022

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II Seminário Internacional sobre Desenvolvimento Regional Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional Mestrado e Doutorado

Santa Cruz do Sul, RS – Brasil - 28 setembro a 01 de outubro.

A RELAÇÃO RURAL/URBANO NO DESENVOLVIMENTO REGIONAL

José Eli da Veiga http://www.econ.fea.usp.br/zeeli/

Resumo

Este texto é uma síntese de quatro recentes esforços do autor na busca da necessária clarificação sobre os sentido atual das noções de “rural” e “urbano”, sem a qual dificilmente surgirão programas e redes de pesquisadores mais voltados aos vínculos urbano-rurais do que ao estudo especializado - e geralmente isolado - de apenas um desses dois componentes. A partir de uma discussão sobre os possíveis destinos da ruralidade no processo de globalização, e de uma reavaliação da dimensão rural do Brasil, o texto reafirma a atualidade da contradição urbano-rural e chama a atenção para suas mais evidentes implicações históricas e teóricas.

Abstract

This paper is a synthesis of four recent efforts by its author in search of a needed explanation of current definitions of “rural” and “urban”, without which new programs and networks of researchers devoted to urban and rural studies, rather than the especialized and isolated study of only one of the two, will hardly come to exist. Based on a debate on the likely fate of rurality in the context of globalization and a reassessment of the Brazilian rural dimension, the text reaffirms the current urban-rural contradiction and call our attention to its more patent historical and theoretical implications.

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1 Introdução

Sob o prisma do desenvolvimento regional, a abstrata relação rural/urbano se manifesta em pelo menos três tipos básicos de situações concretas: a) a de regiões essencialmente urbanas, como é o caso das áreas metropolitanas ou protometropolitanas;

b) a de regiões essencialmente rurais, quase sempre remotas, nas quais os ecossistemas originais foram preservados ou passam a ser conservados; e c) a de numerosas regiões intermediárias, ou ambivalentes, nas quais são extremamente heterogêneas as participações relativas de ecossistemas parcialmente alterados e ecossistemas dos mais artificializados, como são os casos das aglomerações, cidades, e mesmo certas vilas.

A esses três principais tipos concretos de “espaços de lugares” sobrepõem-se cada vez mais inúmeros “espaços de fluxos”1, fenômeno que foi intensificado nas recentes fases do processo de globalização.2 Se, por um lado, pode ser fácil entender e descrever os fluxos entre regiões essencialmente urbanas e regiões essencialmente rurais, por outro, também é certo que aconteça exatamente o contrário com a complexidade dos vínculos entre esses dois extremos e as áreas rurais mais acessíveis e adjacentes a aglomerações urbanas. Trata-se de um problema ainda obscuro, que exigirá muita pesquisa interdisciplinar antes que sejam vislumbradas conclusões que realmente possam fazer avançar o conhecimento científico sobre o desenvolvimento regional. E, no Brasil, essas investigações exigem uma clarificação preliminar das próprias noções de “rural” e

“urbano”, sem a qual dificilmente surgirão programas e redes de pesquisadores mais voltados aos vínculos urbano-rurais do que ao estudo especializado - e geralmente isolado - de apenas um desses dois componentes. Por isso, as considerações aqui propostas constituem uma síntese de quatro recentes esforços do autor na busca dessa almejada clarificação.3

1 Ver Castells (1999:404).

2 Tanto faz aqui a idéia de “nova onda” (a partir de 1980) ou de “globalização contemporânea” (desde 1945). A primeira é do Banco Mundial (2002), que considera três ondas: ‘1870-1914’, ‘1945-1980’ e a

“nova onda” (desde 1980). A segunda é a de Held et al. (1999), que separam o processo em quatro fases, das quais três “modernas”: ‘1500-1850’, ‘1850-1945’ e a contemporânea (desde 1945).

3 Ver Veiga (2004), para tabelas e referências bibliográficas não reproduzidas aqui. Os quatro textos estão disponíveis na página http://www.econ.fea.usp.br

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2 Destinos da ruralidade na globalização

Na atual etapa da globalização, a ruralidade dos países avançados não desapareceu, nem renasceu. O mais completo triunfo da urbanidade engendra a valorização de uma ruralidade que não está renascendo, e sim nascendo. Nos últimos vinte anos tornou-se cada vez mais forte a atração pelos espaços rurais em todas as sociedades mais desenvolvidas. Mas esse é um fenômeno novo, que pouco ou nada tem a ver com as relações que essas sociedades mantiveram no passado com tais territórios. É uma atração que resulta basicamente do vertiginoso aumento da mobilidade, com seu crescente leque de deslocamentos, curtos ou longos, reais ou virtuais. A cidade e o campo se casaram:

enquanto ela cuida de lazer e trabalho, ele oferece liberdade e beleza.4

Nesse contexto, os desempenhos econômicos e sociais das áreas rurais têm sido vistos como respostas locais à globalização. A explicação para o sucesso ou insucesso sempre se volta a interdependências entre diversos fatores-chave do processo de desenvolvimento que estão inextricavelmente ligados às oportunidades e ameaças colocadas pela globalização. Quais seriam, então, essas oportunidades e ameaças que a atual globalização oferece à ruralidade?

Há pelos menos duas grandes dimensões da globalização contemporânea que atuam de forma contraditória sobre os possíveis destinos das áreas rurais. A dimensão econômica – que envolve as cadeias produtivas, comércio e fluxos financeiros – age essencialmente no sentido de torná-las cada vez mais periféricas, ou marginais, no âmbito daquilo que é chamado de “geografias da centralidade”. Ao lado das novas hierarquias regionais há vastos territórios que tendem a se tornar cada vez mais excluídos das grandes dinâmicas que alimentam o crescimento da economia global. Simultaneamente, a

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No caso da União Européia, de longe o mais significativo, a consciência coletiva desse fenômeno manifestou-se bem cedo, desde seu “alargamento para o sul”, em 1981 e 1986. A superação do foco exclusivamente setorial (agrícola) de suas políticas rurais, e a conseqüente transição para uma abordagem territorial, começaram a surgir em meados dos anos 1980, e se materializaram pela primeira vez na reformas dos “fundos estruturais” de 1987. O aprofundamento dessa tendência pode ser avaliado a partir de dois documentos que se tornaram emblemáticos: a) o comunicado da Comissão Européia ao Conselho e ao Parlamento intitulado “O futuro do mundo rural”, de 1988; e b) e a famosa “Declaração de Cork”, que saiu da conferência “A Europa Rural – Perspectivas de Futuro”, realizada em Novembro de 1996.

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dimensão ambiental – que envolve tanto as bases das amenidades naturais, quanto fontes de energia e biodiversidade – age essencialmente no sentido de torná-las cada vez mais valiosas à qualidade da vida, ou ao bem-estar. Foi somente no período mais recente da globalização que o alcance das responsabilidades cívicas sobre as condições naturais do desenvolvimento humano passou a fazer parte da agenda das relações internacionais.

A ação simultânea dessas duas tendências parece estar tendo um duplo efeito sobre a ruralidade. Por um lado, faz com que aquele rural “remoto”, ou “profundo” (que predomina nas regiões que a OCDE classifica como “essencialmente rurais”), seja cada vez mais conservado, mesmo que possa admitir várias das atividades econômicas de baixo impacto. Por outro, faz com que o rural “acessível” (característico das regiões que a OCDE classifica de “significativamente rurais”), abrigue novas dinâmicas sócio- econômicas que fazem parte das tais “geografias da centralidade”. Vale lembrar que foi a identificação de constelações econômicas localizadas que venciam a recessão em áreas relativamente rurais como a Toscana e Emilia-Romagna (Itália), Baden-Württemberg (Alemanha), Cambridge (Inglaterra), Smäland, (Suécia), e até essencialmente rurais, como West-Jutdland (Dinamarca), que levou um grupo de pesquisadores ligados à OIT a se perguntar, desde meados dos anos 1980, se essa virtuosa combinação entre eficiência e altos níveis de emprego poderia se tornar um modelo para outras regiões.

É por não perceber esse duplo caráter da influência exercida pela globalização sobre as áreas rurais que alguns analistas são levados a subestimar, e até descartar, as possibilidades de que elas possam reagir positivamente ao processo. No entanto, desde os anos 1960, a mais poderosa tendência locacional na distribuição do emprego e da atividade econômica do Reino Unido foi a mudança de produção e dos postos de trabalho das conurbações e grandes cidades para pequenas vilas e áreas rurais.

São dois os elementos básicos da interpretação científica desse fenômeno: a) a capacidade de certas áreas rurais atraírem os potenciais empreendedores devido às características ambientais de residência; b) um dinamismo empreendedor voltado para mercados emergentes, com muita inovação, e que explora as vantagens competitivas que resultam de condições de vida e de trabalho das mais amenas, além de mais estabilidade,

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qualidade e motivação da força de trabalho por menor custo. E não poderia ter deixado de causar surpresa constatar que, em termos de inovação, as firmas situadas no rural mais

“remoto” não ficam atrás das que estão no rural mais “acessível”.

Nas últimas décadas foram as amenidades naturais que passaram a ser a principal vantagem comparativa das áreas rurais dos Estados Unidos. Nos últimos 25 anos do século XX, as variações da população rural estiveram altamente correlacionadas com amenidades naturais, principalmente características de clima, de relevo e de acesso a águas (lagos, rios e mar). As variações do emprego rural também mostraram forte correlação, mas inferior, principalmente devido à influência de outros fatores concorrentes que também criaram muito emprego em condados rurais americanos, como, por exemplo, cassinos e prisões. E no processo de crescimento econômico de parte das áreas rurais o principal fator foi a capacidade de atrair aposentados, trunfo diretamente ligado às amenidades rurais.

Enfim, durante o século XX, a dinâmica da economia rural dos países que mais se desenvolveram passou por três grandes etapas. Na primeira, ela era determinada por riquezas naturais como solo fértil, madeira ou minérios. Essas vantagens comparativas não desapareceram, mas foram sendo substituídas por outros fatores de produção, como mão-de-obra barata, frouxa regulamentação e debilidade sindical. Foi assim que, entre 1960 e 1980, a fatia rural do emprego fabril passou nos Estados Unidos de um quinto para mais de um quarto. Todavia, nas últimas duas décadas do século XX as principais vantagens comparativas voltaram a ser riquezas naturais, mas de outro tipo. São os encantos do contexto rural – beleza paisagística, tranqüilidade, silêncio, água limpa, ar puro – todas ligadas à qualidade do ambiente natural. E a possibilidade de participar integralmente dessa terceira geração do desenvolvimento rural é diminuta para localidades que antes tenham se comprometido com sistemas produtivos primário- industriais de negativo impacto ambiental. Além disso, as regiões mais dinâmicas do Primeiro Mundo – leia-se, que geram mais postos de trabalho – não são as essencialmente urbanas, nem as essencialmente rurais, mas sim aquelas nas quais a adjacência entre espaços urbanos e rurais se faz mais intensa. Isto é, as regiões que a

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OCDE classificou como significativamente rurais, nas quais entre 15 e 50% dos habitantes vivem em localidades rurais.

Por se tratar de fenômeno inteiramente novo, esse rural tem sido chamado de “pós- industrial”, “pós-moderno”, ou “pós-fordista”. Tal compulsão de usar o prefixo “pós” não deve ser desprezada, pois reflete a necessidade de exprimir uma mudança que não é incremental, mas radical. A atual ruralidade da Europa e da América do Norte não resulta de um impulso que faz voltar fundamentos de alguma ruralidade pretérita, mesmo que possa coexistir com aspectos de continuidade e permanência.

O que é novo nessa ruralidade pouco tem a ver com o passado, pois nunca houve sociedades tão opulentas quanto as que hoje tanto estão valorizando sua relação com a natureza. Não somente no que se refere à consciência sobre as ameaças à biodiversidade ou à regulação térmica do planeta, mas também no que concerne a liberdade conquistada pelos aposentados de escolherem os melhores remanescentes naturais para locais de residência. Enfim, o que a fase mais recente da globalização parece estar indicando é que a ruralidade terá diversos destinos. Por enquanto, está claro que há diferenças substanciais entre o rural “remoto” ou “profundo” (conforme se adote inclinações anglo- saxônicas ou francesas) e o rural “acessível” ou “adjacente”.

3 A dimensão rural do Brasil

O Brasil é bem mais rural do que oficialmente se calcula, pois a essa dimensão pertencem 80% dos municípios e 30% da população. Um atributo que nada envolve de negativo, já que algumas das principais vantagens competitivas do século XXI dependerão da força de economias rurais. São estas as duas principais conclusões a que se chega quando se analisa a atual configuração territorial do país tendo presente os mais recentes indicadores sobre o destino da ruralidade nas sociedades humanas mais avançadas. Para isso é preciso superar a abordagem dicotômica, mas sem cair na ilusão de que estaria desaparecendo a histórica contradição urbano-rural.

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Infelizmente, o entendimento do processo de urbanização do Brasil é atrapalhado por uma regra que é única no mundo. O país considera urbana toda sede de município (cidade) e de distrito (vila), sejam quais forem suas características estruturais ou funcionais. O caso extremo está no Rio Grande do Sul, onde a sede do município União da Serra é uma “cidade” na qual o Censo Demográfico de 2000 só encontrou 18 habitantes.

Nada grave se fosse extravagante exceção. No entanto, é absurdo supor que se trate de algumas poucas aberrações, incapazes de atrapalhar a análise da configuração territorial brasileira. De um total de 5.507 sedes de município existentes em 2000, havia 1.176 com menos de 2 mil habitantes, 3.887 com menos de 10 mil, e 4.642 com menos de 20 mil, todas com estatuto legal de cidade idêntico ao que é atribuído aos inconfundíveis núcleos que formam as regiões metropolitanas, ou que constituem evidentes centros urbanos regionais. E todas as pessoas que residem em sedes, inclusive em ínfimas sedes distritais, são oficialmente contadas como urbanas, alimentando esse desatino segundo o qual o grau de urbanização do Brasil teria atingido 81,2% em 2000.

Muitos estudiosos procuraram contornar esse obstáculo pelo uso de uma outra regra. Para efeitos analíticos, não se deveriam considerar urbanos os habitantes de municípios pequenos demais, com menos de 20 mil habitantes. Por tal convenção, que vem sendo usada desde os anos 1950, seria rural a população dos 4.024 municípios que tinham menos de 20 mil habitantes em 2000, o que por si só já derrubaria o grau de urbanização do Brasil para 70%.

A grande vantagem desse critério é a simplicidade. Todavia, há municípios com menos de 20 mil habitantes que têm altas densidades demográficas, e uma parte deles pertence a regiões metropolitanas e outras aglomerações. Dois indicadores dos que melhor caracterizam o fenômeno urbano. Ou seja, para que a análise da configuração territorial possa de fato evitar a ilusão imposta pela norma legal, é preciso combinar o critério de tamanho populacional do município com pelo menos outros dois: sua densidade demográfica e sua localização. Não há habitantes mais urbanos do que os residentes nas 12 aglomerações metropolitanas, nas 37 demais aglomerações e nos outros

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77 centros urbanos. Nessa teia urbana, formada pelos 455 municípios dos três tipos de concentração, estavam 57% da população em 2000. Esse é o Brasil inequivocamente urbano.

O problema, então, é distinguir entre os restantes 5.052 municípios existentes em 2000 aqueles que não poderiam ser considerados urbanos dos que se encontravam no

“meio-de-campo”, em situação ambivalente. E para fazer este tipo de separação, o critério decisivo é a densidade demográfica. É ela que estará no âmago do chamado

“índice de pressão antrópica”, quando ele vier a ser construído. Isto é, o indicador que melhor refletiria as modificações do meio natural que resultam de atividades humanas.

Nada pode ser mais rural do que as áreas de natureza praticamente inalterada, e não existem ecossistemas mais alterados pela ação humana do que as manchas ocupadas por megalópoles. É por isso que se considera a pressão antrópica como o melhor indicador do grau de artificialização dos ecossistemas e, portanto, do efetivo grau de urbanização dos territórios.

A maior dificuldade não está, contudo, na seleção desse critério. A principal incógnita é a “dose”. Como saber qual seria o melhor corte (ou os melhores cortes)? Isto é, qual seria, por exemplo, o limite de densidade demográfica a partir do qual um território deixaria de pertencer à categoria mais rural e passaria a alguma outra categoria?

Durante muito tempo foi considerado razoável 60 hab/km2 como um bom critério de corte. No entanto, um exame dos dados do Censo de 2000 parece justificar uma atualização dessa convenção para 80 hab/km2.

Quando se observa a evolução da densidade demográfica conforme diminui o tamanho populacional dos municípios, não há como deixar de notar duas quedas abruptas. Enquanto nos municípios com mais de 100 mil habitantes, considerados centros urbanos, a densidade média é superior a 80 habitantes por quilômetro quadrado (hab/km2), na classe imediatamente inferior (entre 75 e 100 mil habitantes) ela desaba para menos de 20 hab/km2. Fenômeno semelhante ocorre entre as classes superior e inferior a 50 mil habitantes (50-75 mil e 20-50 mil), quando a densidade média torna a cair, desta vez para 10 hab/km2. São esses dois “tombos” que permitem considerar de

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pequeno porte os municípios que têm simultaneamente menos de 50 mil habitantes e menos de 80 hab/km2, e de médio porte os que têm população no intervalo de 50 a 100 mil habitantes, ou cuja densidade supere 80 hab/km2, mesmo que tenham menos de 50 mil habitantes.

Com a ajuda desse dois cortes, estima-se que 13% dos habitantes, que vivem em 10% dos municípios, não pertencem ao Brasil indiscutivelmente urbano, nem ao Brasil essencialmente rural. E que o Brasil essencialmente rural é formado por 80% dos municípios, nos quais residem 30% dos habitantes. Ao contrário da absurda regra em vigor - criada no período mais totalitário do Estado Novo pelo Decreto-lei 311/38 - esta tipologia permite entender que só existem verdadeiras cidades nos 455 municípios do Brasil urbano. As sedes dos 4.485 municípios do Brasil rural são vilarejos e as sedes dos 567 municípios intermédios são vilas, das quais apenas uma parte se transformará em novas cidades.

O principal, contudo, não é a abordagem instantânea da configuração territorial do Brasil. Mais importante é ressaltar uma tendência que não deveria ser tão ignorada.

Mesmo que se acrescente ao Brasil urbano todos os municípios intermédios, considerando-os como vilas de tipo ambivalente que poderão se transformar em centros urbanos, chega-se a um total de 1.022 municípios, nos quais residiam em 2000 quase 118 milhões de pessoas. Nesse subconjunto ampliado, o aumento populacional entre 1991 e 2000 foi próximo de 20%, com destaque para as aglomerações não-metropolitanas e para os centros urbanos. Em ambos houve crescimento demográfico um pouco superior. Mas não se deve deduzir daí, como se faz com extrema freqüência, que todos os outros municípios - de pequeno porte e características rurais - tenham sofrido evasão populacional. Isto ocorreu na metade desses municípios. Todavia, em um quarto deles houve um aumento populacional de 31,3%, bem superior, portanto, aos que ocorreram no Brasil urbano. E mais do que o dobro do crescimento populacional do Brasil como um todo, que foi de 15,5% no período intercensitário de 1991-2000.

Muito pouco se sabe sobre os fatores que levaram esses 1.109 municípios com características rurais a terem um crescimento populacional tão significativo. Há casos que

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se explicam pelo dinamismo econômico de pequenas empresas, principalmente nas regiões Sul e Sudeste. Há casos que se explicam pelo dinamismo político de Prefeituras, particularmente no Nordeste. Mas se está muito longe de uma interpretação satisfatória sobre esse fenômeno, espalhado por todo o território nacional.

Mesmo assim, o que já se sabe é suficiente para que se rompa com a visão de que todo o Brasil rural é formado por municípios que estão se esvaziando. Não é admissível que se considere a maior parte do território brasileiro, 80% de seus municípios, e 30% de sua população como mero resíduo deixado pela epopéia urbano-industrial da segunda metade do século 20. Pior, não é possível tratá-lo como se nele existissem milhares de cidades imaginárias.

Resumindo, esta primeira aproximação propõe que os municípios brasileiros sejam separados em cinco escalões, dos quais os três primeiros correspondem exatamente à caracterização da rede urbana e os dois outros distinguem os municípios que ficaram fora da rede urbana como “ambivalentes” e “rurais”, mediante combinação do tamanho e da densidade populacionais. Resultam, portanto, cinco tipos de municípios cuja classificação decorre do cruzamento de três critérios: a localização, o tamanho e a densidade. Estimou- se, assim, que algo como 4,5 mil sedes de municípios brasileiros sejam cidades imaginárias, o que parece ser agora confirmado por indicadores funcionais.

Até seria possível aceitar que, no Brasil de 2001, um autêntico núcleo urbano ainda não tivesse sua página na internet, não dispusesse de provedor, não oferecesse ensino superior, e só escutasse rádio FM. Mas será que faz algum sentido imaginar que eram cidades as sedes de município que não tinham sequer lei de zoneamento, plano diretor, coleta de lixo domiciliar, IPTU progressivo, varredura de ruas, manutenção de vias, e esgoto (para nem falar de museu ou casa de espetáculo)? Será possível que seja apenas uma mera coincidência o fato desses municípios terem poucos e esparsos habitantes, além de estarem distantes de aglomerações?

Mesmo que esta hierarquia em cinco andares permita concluir que o Brasil rural está concentrado em cerca de 4,5 mil municípios, nos quais residem pouco mais de 30%

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de seus habitantes, isso ainda não é suficiente para que se tenha uma boa visão da configuração territorial do país. Para tanto, parece ser bem melhor a hierarquia de suas microrregiões.

É simples perceber que as 12 aglomerações metropolitanas afetam diretamente 22 microrregiões, que as 37 outras aglomerações afetam diretamente 41 microrregiões, e que os 77 centros urbanos estão localizados no interior de 75 microrregiões. Bem mais difícil é estabelecer distinções no interior das outras 420, isto é, de 75% das microrregiões. É inevitável que se pergunte, então, qual poderia ser um bom critério de classificação desse oceano de microrregiões que não abrigam sequer um centro urbano. Provavelmente nunca haverá resposta consensual a esta questão, pois ela depende dos inevitáveis pressupostos que condicionam qualquer construção de tipologia. O fundamental, então, é que tais pressupostos sejam bem explicitados na justificação do critério adotado.

Esta estimativa admite que a densidade demográfica também é um critério razoável para diferenciar essas microrregiões que sequer abrigam um centro urbano. Por isso, no exercício proposto mais adiante será usado o mesmo critério de corte – 80 hab/km2 – para separar essas microrregiões que não contêm sequer um centro urbano. Isto é, diferenciar as 420 microrregiões distantes de aglomerações e de centros urbanos em duas categorias separadas por esse corte de densidade demográfica.

Percebe-se facilmente que o comportamento populacional do quarto tipo - formado por microrregiões que não têm centros urbanos, mas que têm mais de 80 hab/km2 - é mais próximo do constatado para os anteriores, onde há centros urbanos e aglomerações.

Ou seja, essas poucas 32 microrregiões certamente têm significativo grau de urbanização, mesmo na ausência de um município com mais de 100 mil habitantes. Parece mais razoável, portanto, que a estratificação das microrregiões agrupe esses cinco tipos em apenas três grandes categorias:

a) microrregiões com aglomeração (metropolitana ou não);

b) microrregiões significativamente urbanizadas (com centro urbano ou com mais de 80 hab/km2); e

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c) microrregiões rurais (sem aglomeração, sem centro urbano e com menos de 80 hab/km2).

O peso populacional relativo do Brasil rural estava, em 2000, em torno de 30%, como também havia indicado a abordagem anterior de caráter municipal. Enfim, o que parece poder variar é o peso das outras categorias, a depender dos critérios que se utilize para hierarquizar o Brasil urbano. Mas o lado rural do Brasil tende nos dois casos a se situar em 30% da população.

É preciso enfatizar que o uso dessa tricotomia para visualizar a configuração territorial do Brasil se baseia numa hierarquia que combina vários critérios funcionais e estruturais. Começa pelo reconhecimento de que as aglomerações são fatores marcantes - seja em termos funcionais como estruturais - e que este é um critério suficiente para definir o topo da hierarquia. O extremo oposto é definido pela menor pressão antrópica, razoavelmente detectada pelo critério da densidade populacional e, de certa forma, também pelo menor crescimento populacional. Finalmente, na categoria intermediária estão as microrregiões que atingiram um grau ainda ambivalente de urbanização ou, o que dá no mesmo, mantêm-se relativamente rurais.

Ao insistir na oposição entre os pontos de maior artificialização ecossistêmica e as áreas de menor pressão antrópica, esta abordagem tricotômica evita uma ingenuidade tão comum quanto traiçoeira: a de se basear exclusivamente no critério do tamanho municipal. No México, por exemplo, o Indesol (Instituto Nacional de Desarrollo Social) diferencia os municípios em quatro categorias definidas exclusivamente pelo tamanho populacional. Considera urbanos todos os municípios com mais de 50 mil habitantes;

como “semi-urbanos” os que ficam na faixa entre 10 mil e 49.999; como “semi-rurais” os que ficam na faixa entre 2.500 e 9.999; e como rurais os que têm menos de 2.500 habitantes. No entanto, um pequeno município de poucos milhares habitantes, mas que seja adjacente a uma aglomeração, pode ser muito mais urbano que um município com população bem maior, mas que tenha baixíssima densidade populacional e que esteja distante das aglomerações e dos centros urbanos. Mesmo assim, não deixa de ser

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surpreendente que 61% dos municípios mexicanos fiquem na categoria rural e 19% na categoria “semi-rural”.

Enfim, esse critério de tamanho populacional nem de longe reflete o que mais interessa: as alterações dos ecossistemas provocadas pela espécie humana. E já estão disponíveis estimativas que permitem que se agregue mais uma dimensão – a espacial - a esta estimativa da importância relativa do Brasil rural.

A primeira observação a ser feita é sobre o contraste entre o grau de artificialização dos ecossistemas da Europa e do resto do mundo. Estão intensamente alterados uns 65%

do território europeu (tanto por assentamentos humanos quanto por agropecuária intensiva). Nos demais continentes essa fração não chega a um terço, e atinge mínimos 12% na América do Sul e na Australásia. Em seguida, é importante notar que mais da metade dos territórios das Américas e da Australásia foram considerados praticamente inalterados, pois mantêm a vegetação primária, com baixíssimas densidades demográficas. Finalmente, pode-se dizer que metade da área planetária permanece praticamente inalterada, e mais uma quarta parte parcialmente alterada com formas extensivas de exploração primária. Ou seja, apenas uma quarta parte da área global está mais artificializada pela urbanização e pelas formas mais intensivas de agropecuária.

Informações recentemente disponibilizadas pela Embrapa Monitoramento por Satélite mostram que a repartição do território brasileiro segundo essas três intensidades de alteração humana está a meio caminho, entre as situações da América do Sul e da América do Norte. A parte das áreas inequivocamente artificializadas (urbanas e agropecuárias) não chega a 20%. Outros 18% ficam na categoria intermediária, constituída essencialmente por mosaicos de vegetação alterada, outras formas ultra- extensivas de lavouras e pastoreios (mas também por rochas e solos nus, ou com vegetação dispersa, e corpos d’água). E nos demais 63% estão as florestas úmidas (43,2%), florestas secas (6,4%), florestas inundáveis (1,7%), florestas de transição (2,9%), e campos ou savanas (8,6%).

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4 A atualidade da contradição urbano-rural

O debate sobre a superação da chamada “dicotomia urbano-rural” continua a opor, em seus extremos, a hipótese de completa urbanização, lançada pelo filósofo e sociólogo Henri Lefebvre, à hipótese de um renascimento rural, contraposta pelo geógrafo e sociólogo Bernard Kayser. Passados mais de trinta anos, será possível saber qual dessas duas hipóteses extremas está sendo confirmada? Ou será necessário constatar que ambas são precárias e precisam fazer emergir outra, que se fundamente em evidências mais recentes, tanto sobre novas formas de urbanização, quanto sobre novas formas de valorização dos ecossistemas menos artificializados? Neste caso, quais seriam, então, as evidências disponíveis sobre as tendências atuais de distribuição espacial das pressões antrópicas? O que elas sugerem sobre o(s) futuro(s) do chamado “mundo rural”? Quais serão seus destinos no processo de globalização?

A hipótese lançada em 1970 pelo filósofo e sociólogo marxista francês Henri Lefebvre se baseia numa definição: ele denomina sociedade urbana aquela que resulta da urbanização completa, “hoje virtual, amanhã real”. A expressão é reservada à sociedade que nasce da industrialização. “Essas palavras designam, portanto, a sociedade constituída por esse processo que domina e absorve a produção agrícola”. O conceito de sociedade urbana é proposto para denominar “a sociedade pós-industrial, ou seja, aquela que nasce da industrialização e a sucede”. E por “revolução urbana”, o autor designa o conjunto de transformações que a sociedade contemporânea atravessa para passar do período em que predominam as questões de crescimento e industrialização ao período no qual a problemática urbana prevalecerá decisivamente, “em que a busca das soluções e das modalidades próprias à sociedade urbana passará ao primeiro plano”.

No final do livro A revolução urbana o autor avisa que o desenvolvimento do conceito de sociedade urbana, antecipado desde a primeira página a título de hipótese, não poderia ser entendido como acabado. “Pretendê-lo seria dogmatismo. Seria inserir o conceito de ‘sociedade urbana’ numa epistemologia da qual convém desconfiar: porque prematura, porque põe o categórico acima do problemático e porque detém e talvez desvie o movimento que eleva o fenômeno urbano ao horizonte do conhecimento”.

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Quatro anos depois, nas 423 páginas do livro The production of space, que culminou intensa fase de investimento intelectual em sociologia urbana (1968-1974), não surge qualquer referência ao livro de 1970, e são raríssimas, e das mais indiretas, as alusões à hipótese de urbanização completa. Em vez dela, menciona uma ‘revolução do espaço’

que - entre parênteses - subsumiria a ‘revolução urbana’, análoga às grandes revoluções camponesa (agrária) e industrial. Não seria despropositado, portanto, especular que a hipótese de “completa urbanização” já não mais estaria seduzindo, em 1973, seu próprio formulador. Todavia, não é essa a opinião de muitos de seus admiradores, como demonstra a recente tradução e reimpressão do livro A revolução urbana, com prefácio e

“orelhas” cobertos de rasgados elogios, além da anterior adesão de Otávio Ianni.

A hipótese inversa surgiu dois anos depois (1972), segundo o geógrafo e sociólogo Bernard Kayser, que fez parte do grupo fundador da revista Espace et Societé (1970- 1980), junto com Henri Lefebvre. Na conclusão de seu livro La renaissance rurale, Kayser relata as circunstâncias em que usou pela primeira vez a expressão “renascimento rural”, muito antes de sua emergência na literatura científica americana, no contexto do debate sobre o significado de tendência demográfica oposta ao chamado “êxodo rural”, que se manifestara desde os anos 1970 na maioria dos países desenvolvidos. Debate que passou a ser mais polarizado pela expressão “counterurbanization”, a partir de 1976.

Na verdade, em seu livro de 1990 Kayser já não considerava que o “renascimento rural” fosse apenas uma hipótese. Ao contrário, dizia que se tratava de uma “situação”.

Não era a situação de todo o espaço rural, mas recorrente o bastante para mostrar as potencialidades até ali escondidas pela predominância de visões pessimistas e

“catastrofistas” nas esferas mediáticas e tecnocráticas. Sinais que só podiam condenar os profetas da “desertificação”.

Apesar desse tom conclusivo, quase de “favas contadas”, há no início um “avant- propos” bem mais prudente, no qual o autor declara que seu objetivo seria atingido se o conteúdo do livro fosse tomado como um conjunto de hipóteses (“corps d’hypothèses”).

Um reconhecimento que é imediatamente seguido por uma confissão de duas sérias lacunas: a economia e a ecologia. O autor reconhece que uma análise dessa amplitude

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deveria estar apoiada em conhecimentos produzidos por essas duas disciplinas, mas que isso teria tornado muito penosos, tanto o preparo quanto sua leitura.

O argumento central de Kayser é que a alteração da tendência demográfica não deveria ser vista como um fenômeno superficial ou passageiro. Para ele, algo que até poderia parecer acidental, ou localizado, se revelava um verdadeiro fenômeno “societal”.

O repovoamento, os modos de vida, a recomposição da sociedade em vilarejo (“villageoise”), as atividades não-agrícolas, as políticas de ordenamento, a políticas de desenvolvimento local, e as práticas culturais estariam mostrando que a dimensão demográfica seria apenas um indicador do que já estava ocorrendo nos países desenvolvidos: um renascimento rural.

As hipóteses lançadas por Lefebvre e Kayser parecem ser refutadas pelas evidências dos últimos trinta anos, mas por razões bem diferentes. A mais equivocada é a primeira, sobre a completa urbanização. E a única maneira de entender que um pensador tão brilhante quanto Lefebvre tenha sido levado a incorrer em tamanho engano, certamente está ligada ao vício de se resumir o rural ao agrário. Havia muitas razões no início dos anos 1970 para se prever o inexorável desaparecimento do tipo de sociedade agrária que ele tão bem conheceu e analisou em sua fase de sociólogo rural. Mas a ruralidade nunca se resumiu às relações sociais ligadas às atividades agropecuárias, mesmo na curta fase histórica em que esse setor econômico foi dominante nos territórios extra-urbanos. A segunda hipótese poderia parecer mais correta, já que todas as evidências parece que vão no sentido de confirmar aqueles indícios que levaram Kayser a vislumbrar um renascimento rural. Todavia, o termo renascimento não parece ser apropriado para caracterizar um fenômeno que é inteiramente novo.

5 Implicações

Apesar da separação urbano-rural ter começado a se dissolver na Europa a partir do ano 1180, essa dicotomia não perdeu seu poder cognitivo até finais do século XX, quando começaram a desaparecer contrastes básicos (sanitários) entre populações residentes no interior e no exterior das cidades (pelo menos no que se refere ao punhado de países nos

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quais o capitalismo realmente se desenvolveu). Hoje, tais diferenças até podem permanecer idênticas em países do mundo periférico, mas já não são tão marcantes nos países ditos “emergentes”. Isto é, que não conseguiram se tornar desenvolvidos, mas que já não podem ser confundidos com a maioria dos países do chamado “Sul”.

As alternativas à dicotomia são classificações que não eliminam os pólos que a constituem. Podem ser até mais dicotômicas, ao subdividirem as classes originais em outras duas, ou podem ser ímpares, como são os casos dos exercícios aqui apresentados sobre o Brasil, que utilizam três ou cinco estratos hierárquicos. No entanto, em nenhuma dessas várias formas empíricas de abordar a configuração territorial foi possível prescindir do contraste urbano/rural. Nenhuma das opções apresentadas conseguiu “se libertar” do jugo dessa oposição. Tudo se passa como se a dicotomia resistisse a todas a tentativas de superá-la, permanecendo onipresente, mesmo que criticada e rejeitada.

É que há aqui uma questão básica de lógica. Dicotomia é uma divisão em dois ramos, ou a divisão de um gênero em duas espécies que absorvem o total. É uma classificação em que se divide cada coisa ou cada proposição em duas, subdividindo-se cada uma destas em outras duas, e assim sucessivamente. Contradição não é subdivisão, e sim oposição entre duas idéias, ou duas proposições. Para o senso comum, em qualquer oposição entre duas proposições contraditórias, uma delas exclui necessariamente a outra.

E, neste sentido, de fato, contradição e dicotomia seriam expressões sinônimas. Se a dicotomia é uma divisão em dois ramos, cada um exclui o outro, sendo, pois, também uma contradição.

Todavia, a noção de contradição sempre foi algo bem diferente na filosofia ocidental. Pelo menos desde que Heráclito - há cerca de 2,5 mil anos - transformou em solução o que até ali parecia um grande mistério. Para ele, o mundo deveria ser entendido justamente pela unidade dos contrários, tese que só foi ganhar mais consistência com Kant e Hegel, há menos de duzentos anos. E no século XX ela gerou um imenso e confuso debate – que está longe de se encerrar - sobre a chamada relação Marx/Hegel e seus eventuais desdobramentos sobre os marxismos e seu declínio.

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Desde logo é preciso lembrar que muitos conceitos podem ser diferenciados de forma discreta, no sentido matemático dessa palavra. Entre os conceitos de círculo e de quadrado não há qualquer “zona cinzenta”. São conceitos que simplesmente não se sobrepõem. Todavia, não é desse tipo a relação entre o quadrado e o retângulo. É quase impossível ter certeza de que um retângulo concreto seja de fato um quadrado concreto.

Além disso, o quadrado é “Um” no âmbito das idéias, mas “Muitos” no âmbito dos sentidos. Até os conceitos de “vida” e de “morte” já escaparam da relação binária desde que os biólogos afirmaram que certos vírus/cristais estão na penumbra entre os reinos animado e inanimado. Praticamente todos os grandes conceitos que envolvem julgamento, ou que são valores (como justiça, ou democracia), pertencem à segunda categoria. Não há entre eles fronteiras “arithmomórficas”, pois são cercados por uma penumbra na qual estão sobrepostos aos seus contrários. E não há necessidade alguma de esticar este raciocínio para afirmar que as noções de urbano e rural são desse tipo, mesmo que possam ter sido realmente “arithmomórficas” na Europa dos séculos X a XII.

Como movimento dos contrários, a relação urbano-rural evoluiu tanto nos países mais avançados, que alguns são tentados a imaginar que a sociedade pós-industrial será completamente urbana. Ou seja, que o pólo rural da contradição desaparecerá.

No entanto, encantos como paisagens silvestres ou cultivadas, ar puro, água limpa, silêncio, tranqüilidade, etc., muito valorizados por aposentados, turistas, esportistas, congressistas e alguns tipos de empresários, já constituem a principal fonte de vantagens comparativas da economia rural. Além disso, o crescimento econômico não poderá se basear por muito mais tempo na extração da baixa entropia contida no carvão, gás e petróleo. Logo deverá se basear em formas mais diretas de exploração da energia solar, com destaque para a biomassa. Quando se evoca a necessidade de conservação da biodiversidade, o mais comum é que se pense em espécies que estão mais ameaçadas de extinção e nas conseqüentes perdas de informação genética. Contudo, além de não serem estes os únicos prejuízos impostos pela redução da biodiversidade, talvez nem sejam os principais. Bem pior é o enfraquecimento dos ecossistemas que os torna vulneráveis aos choques. Isto é, uma diminuição da capacidade de enfrentar calamidades ou destruições

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provocadas pelas sociedades humanas sem que desapareça seu potencial de auto- organização.

Em resumo, há muitas razões para se afirmar que está em curso uma forte revalorização da ruralidade, em vez de sua supressão por uma suposta completa urbanização. São rurais as amenidades que já sustentam o novo dinamismo interiorano dos países mais avançados. E também são rurais, tanto as fontes de baixa entropia, quanto a biodiversidade, das quais dependerão as futuras gerações. O valor do espaço rural está cada vez mais ligado a tudo o que o distingue do espaço urbano.

REFERÊNCIAS

BANCO MUNDIAL. Globalização, crescimento e pobreza. S.Paulo: Futura, 2002.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1999.

HELD, David & Anthony McGrew. Prós e contras da globalização. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar editor, 2001.

HELD, David, Anthony McGrew, David Goldblatt & Jonathan Perraton. Global transformations; politics, economics and culture. Stanford University Press, 1999.

VEIGA, José Eli. “Nem tudo é urbano”, Ciência e Cultura, ano 56, n.2, abr.-jun. 2004, pp. 26-29.

______________ “A dimensão rural do Brasil”, Estudos Sociedade e Agricultura, n. 22, Abril 2004, (no prelo)

______________ “Destinos da ruralidade no processo de globalização”, Estudos Avançados, vol. 18, n.51, maio-agosto 2004, (no prelo).

______________ “A atualidade da contradição urbano-rural”, Análise Territorial da Bahia Rural, (Série Estudos e Pesquisas n. 71, Setembro), Salvador: SEI (no prelo).

Referências

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