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Na fenda da letra, o gozo: da canção Beatriz aos confins do pas tout

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Academic year: 2021

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Na fenda da letra, o gozo: da canção “Beatriz” aos confins do pas tout

Taina Cavalcanti Rocha Mestranda em Pesquisa e Clínica em Psicanálise da UERJ Rita Maria Manso de Barros Professora Associada da UERJ e da UNIRIO Programa de Pós-graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise da UERJ Antes de iniciar a leitura da escrita do artigo que se segue, gostaríamos de convidá-los à escuta e também à escrita da canção Beatriz, de Chico Buarque de Hollanda e Edu Lobo (1983):

Olha

Será que ela é moça Será que ela é triste Será que é o contrário Será que é pintura O rosto da atriz

Se ela dança no sétimo céu Se ela acredita que é outro país E se ela só decora o seu papel E se eu pudesse entrar na sua vida Olha

Será que é de louça Será que é de éter Será que é loucura Será que é cenário A casa da atriz

Se ela mora num arranha-céu E se as paredes são feitas de giz E se ela chora num quarto de hotel E se eu pudesse entrar na sua vida

Sim, me leva pra sempre, Beatriz

Me ensina a não andar com os pés no chão Para sempre é sempre por um triz

Aí, diz quantos desastres tem na minha mão Diz se é perigoso a gente ser feliz

Olha

Será que é uma estrela Será que é mentira Será que é comédia Será que é divina A vida da atriz

Se ela um dia despencar do céu E se os pagantes exigirem bis E se o arcanjo passar o chapéu E se eu pudesse entrar na sua vida

A linguagem que humaniza é a mesma que, em psicanálise, subverte a humanidade deslocando da anatomia o destino de homens e mulheres. Onde estará então o traçado do caminho a seguir? Apostamos que o traço jaz ali na letra que traça a um só tempo o sujeito e seu gozo. Do gozo resta apenas o matema, se assim podemos ilustrar, de cada falasser entremeado em suas questões que, como Dora já nos avisara, parecem sempre se imiscuir em meio aos manuais da vida, nos mistérios da morte ou, até mesmo, e aqui com especial atenção, nos sabores da arte. Estamos, portanto, sempre

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nos questionando: “Afinal, quem eu sou?”. Saber-se quem se é está longe das afirmações calcadas de mestrias e verdades. Afinal, como nos instiga Lacan (1972/2008), “aonde isso fala, isso goza e nada sabe” (p. 112). Fala-se para saber-se, no entanto, o não saber ali se descobre em vias de gozo. No jogo de ser ou não ser – homem ou mulher – a letra, “a face real do significante” (BARROS e CALDAS, p. 3), ali se espelha: “Mas, afinal, como isso goza?”. Talvez “Beatriz” possa desvendar a esfinge, ou vendá-la, mais ainda...

Faltam palavras para o gozo. Aonde a palavra falta, o gozo fala. Fala através da linguagem, que é seu aparelho para abordar a realidade, como pontua Lacan (1972-73/2010). Mas fala de que modo? Pelo processo de ciframento e decifração de uma escrita Outra, já nas malhas do inconsciente. O gozo fala pelas bordas de um corpo de linguagem e, também, pela repetida presença do real (BARROS e CALDAS, 2013). Jacques Lacan, na lição de 13 de fevereiro de 1973, de seu Seminário, livro 20, encore, começa por transmitir que as necessidades do ser falante estão implicadas em uma ‘outra satisfação’. O gozo, por sua vez, depende dessa outra satisfação. Estamos aqui no terreno de um gozo marcado em seu limite pela e na linguagem, ou melhor, através do significante do desejo, o falo, em sua natureza finita. Reiteramos com Lacan (1972-73/2010, p. 128) que “o gozo, também, talvez em si mesmo ele também mostre que está em falta”. Linguagem e gozo, portanto, estão em falta, já que a inserção da linguagem do Outro, de antemão, desencadeia perda de gozo ao falante, pois a castração ali desponta.

E o gozo que não se deixa capturar pela finitude? Aquele que se dá pelas vias da infinitude, de um modo suplementar? Haveria, então, outro gozo que não o implicado na ‘outra satisfação’? Na mesma lição, Lacan (1972-73/2010) afirma que não há outro gozo senão o fálico. E a partir desta visada, o que se operará no falante, em termos de gozo, será um posicionamento diante do gozo ‘todo’ ou diante do gozo ‘não-todo’, sendo que este apresenta uma extensão fora da linguagem operada pela rede simbólica. Há aí uma indicação fundamental para as questões que circundam a sexualidade em psicanálise. Do gozo não-todo inscrito na linguagem, abre-se a via dos confins do escuro de um continente, o feminino.

Da paridade homem/mulher, destacamos outro par: gozo fálico e gozo Outro (ou gozo feminino). Como se diante destes dois pares - que definitivamente não se encontram e que, pudera, nem se relacionam pois “não há relação sexual” (LACAN, 1972-73/2010, p.131) – estivéssemos tropeçando entre a finitude e a infinitude. Nas

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fórmulas quânticas da sexuação, Lacan (1972-73) assinala que do lado homem o suporte está no gozo fálico - ali habita o sujeito do discurso - enquanto que, do lado mulher, a ancoragem é na ex-sistência, isto é, “uma existência inteiramente indeterminada” (LACAN, 1972-73/2010, p. 221), que ultrapassa o próprio ser mulher, estando dentro e fora a um só tempo, no intervalo do instante. Só se pode falar das mulheres uma a uma, tendo em vista seu caráter inominável, de onde se extraem a castração, o furo, a falta, a falha e, mais ainda, o objeto a, que nada obtura. A mulher desfila seu gozo sem nome e sem face, mas não sem corpo! Há de se gozar de um corpo de pura escrita, na qual o significante, ao avesso, revela sua face real de puro nonsense. Por assim dizer, as mulheres são mais amigas do real, eterniza Lacan.

Entre o homem e a mulher há a radicalidade do gozo e, por fim, uma ‘escolha forçada’ de ‘como isso goza’. O termo isso já nos remete à segunda tópica freudiana – Es – e nos alerta para a potência inconsciente (FREUD, 1923/2006). Ou, com Lacan, isso nos endereça ao inconsciente como o discurso do Outro. Portanto, como isso goza é a chave-mestra de cada sujeito subsumida no real. Como encontrá-la? Nos efeitos da escrita, uma vez que “[...] a escrita deixa pistas, vestígios do percurso da pulsão, rastros do pensamento” (BARROS e CALDAS, 2013, p. 4). A escrita ressoa o real.

No artigo Écriture et sexuation, da revista Scilicet, o autor anônimo admite que entre a escrita e o ato existe um espaço de distanciamento, assim como entre aquele que escreve e aquele que lê. Questiona-se sobre o que será uma literatura feita por homens e outra feita por mulheres já que o escritor, como o analista, não pode escapar às dificuldades da sexuação, isto é, de ser homem ou ser mulher (LACAN, 1976, p. 343-344). Embora alguns pensem que não há uma escrita feminina, já que quem escreve o faz sempre da posição fálica, admitimos que há diferenças no conteúdo traçado por alguém posicionado do lado masculino do de um sujeito posicionado do lado feminino. A escrita produz assim esse espaço entre Um e Outro no qual o jogo da identificação e da significação sexual é da maior relevância (BARROS e CALDAS, 2013, p. 3).

O que há no ressoar de Beatriz pela escritura de Chico Buarque e Edu Lobo? Qual é a escrita desta figura-mulher? Beatriz surge em corpo-poesia pela letra de uma canção. O rosto da atriz está pintado, como uma persona de si mesma, pronto a encarar as peças da vida. De seu drama, de suas narrativas, nada sabemos, apenas sentimos os rastros de pés que não pisam no chão e se aventuram no arranha-céu. Beatriz nos oferece apenas seu nome e seu rosto de atriz. Carregar a máscara da dramaturgia

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revela-a não-todrevela-a. Por trás drevela-a mrevela-ascrevela-arrevela-adrevela-a “que só decorrevela-a o seu prevela-apel” (HOLLANDA e LOBO, 1983) há de se enfeitar Outra mulher.

A Outra, a mulher barrada, será moça? Será triste? Será o contrário? Nada de respostas, nada que nos possibilite alcançar seu fim. Sabe-se apenas que ela dança no sétimo céu e, como a bailarina, confronta a materialidade do corpo, seu próprio limite. A Outra Beatriz pode ser de louça, de éter, de loucura. Feita de arte, de evocações do vazio, de criação, ela bem pode ser! Beatriz divide-se em duas ou mais, para além da linguagem. Da linguagem, ela é atriz e admite um nome, um chamado. Do feminino, ela é mais. Ela é aquela que mora no arranha-céu de paredes feitas de giz. Beatriz nasce do significante e furta-se na letra.

Beatriz é uma arte encarnada, encenada e cantada por diversas vozes. A arte em muito contribui ao campo da psicanálise e disto resulta em uma psicanálise aplicada à arte (REGNAULT, 2001). A perspectiva de uma redução da arte à psicanálise subtrairia a grandiosidade do universo artístico em seu vazio central que, por escapar às palavras, revela-nos sua evanescência atemporal. O campo da arte demonstra, desta feita, a criação do artista com o vazio, com o furo, com uma dimensão em que linguagem e toda sua afirmação fálica não são suficientes, ao contrário, é como pensar que no meio da palavra há a letra e seu fora do sentido. O artista é aquele que talvez possa trabalhar na dimensão do gozo Outro em suas tramas e enlaces com o real. A canção Beatriz assim nos invade com seu estatuto inominável.

A voz que enreda Beatriz lhe clama:

Sim, me leva para sempre, Beatriz/

Me ensina a não andar com os pés no chão/ Para sempre é sempre por um triz/

Aí, diz quantos desastres têm na minha mão/

Diz se é perigoso a gente ser feliz (HOLLANDA e LOBO, 1983). Não somente a voz que canta e baila por Beatriz é quem lhe pede. Há, em uma aposta nossa, uma voz que entoa o corpo de Beatriz e a conduz ao para sempre, fazendo-a caminhar fora do chão, por dentre desastres e perigos. Seria a voz do gozo feminino pronto a desaguar na devassidão da vida da atriz? Ah! Se eu pudesse entrar na sua vida...

A letra que ressoa em “Beatriz” é escrita feminina. Sua atuação está de passagem entre a lógica fálica e seu gozo - ilustrada pela própria persona da dona dos versos – e as dimensões do gozo não-todo em seu fora do sentido. A escritura refaz a

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história do sujeito, revendo e permitindo novas reinscrições. Isso leva o autor a dar à luz a si próprio, e assim “o trabalho do escritor é trabalho de luto, no sentido freudiano do termo” (LEMOINE-LUCCIONI, 1982, p. 117).

Criada por quatro mãos, Beatriz ganha o corpo de tantas indagações pela mestria de Chico Buarque e Edu Lobo. Mas há de se ter uma mulher aí, afinal trata-se de uma escrita feminina, ainda que Chico e Edu respondam por nomes masculinos. Em sua excentricidade, Beatriz responde pela ex-sistência desta mulher na criação de dois homens: “Para sempre é sempre por um triz!”. Beatriz está de passagem. Ela é breve, efêmera e fugaz. É também letra e gozo. É Outra. É não-toda. As mulheres são loucas... mas pas tout.

Referências bibliográficas:

BARROS, R. M. M.; CALDAS, H. Escrita no corpo: gozo e laço social. Ágora: Estudos em teoria psicanalítica. Vol.16, p. 1-15, abril, 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1516-14982013000300008&script=sci_arttext. Acesso em: 16/08/2013.

FREUD, S. (1923). O Ego e o Id. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 2006, v. 19.

LACAN, J. (1972-73). Seminário, livro 20: Encore. Rio de Janeiro: Escola Letra Freudiana, 2010.

LEMOINE-LUCIONI, E. El escrito. In: El grito: el sueño del cosmonauta. Barcelona, Buenos Aires: Paidos, 1982, 101-124.

REGNAULT, F. Em torno do vazio: a arte à luz da psicanálise. Rio de Janeiro: Contracapa, 2001.

HOLLANDA, C. B.; LOBO, E. Beatriz. In: O grande circo místico. LP. Gravadora EMI. 1983.

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