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SOBRE A IDEIA DE ARQUEOLOGIA EM AS PALAVRAS E AS COISAS.

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Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar SOBRE A IDEIA DE ARQUEOLOGIA EM AS PALAVRAS E AS COISAS.

Fernando Sepe1

“O que tentei fazer foi introduzir análises de estilo estruturalista em domínios nos quais elas ainda não tinham ainda penetrado, ou seja, no domínio da história das ideias, da história dos conhecimentos, da história da teoria.” (FOUCAULT, 2001a, p.611). É

assim que Foucault define seu propósito em uma entrevista de 1967, portanto, pouco depois da publicação de Les mots et le choses. Declaração desconcertante, uma vez que sabemos como mais tarde Foucault irá negar veemente tal selo. Porém, nos parece que sem o recurso a ideias comuns ao estruturalismo e – principalmente – aos métodos empregados de análise em linguística estrutural, pouco podemos compreender da experiência arqueológica. Dessa forma, deixemos de lado as polêmicas de Foucault com seus contemporâneos e experimentemos pensar – incialmente - seguindo esta indicação dada por ele antes da cisma com a estrutura.

I

A grande tese do livro de 1966 é que cada uma das epistemes descritas (renascimento, classicismo e modernidade) partilham diferentes sistemas de regras, de normas, de premissas, que definem os encadeamentos lógicos dos argumentos, os valores cognitivos que devem ser observados, a razão de veracidade dentro do campo de enunciação do saber, o funcionamento da linguagem. A arqueologia insiste que o que é possível de ser dito, ou mesmo percebido, por um discurso racional marcado pela pretensão à veracidade, encontra-se delimitado por regras anônimas sobre as quais o sujeito do enunciado não pode ter plena consciência, ou apresentar-se como pleno pólo constituinte de sentido. Pois para Foucault, o pensamento nunca encontra seu começo absoluto em uma subjetividade fundante, ou em uma experiência perceptiva originária, antes, “encontra-se determinado por condições e regras (...) como qualquer discurso

que tenha pretensão racional”. (FOUCAULT, 2001a, p.1152). Ao descrever tais

condições e regras a arqueologia se distancia das pretensões fundacionista de um sujeito soberano, enfatizando como o jogo do pensar se arma anteriormente a distinção sujeito-objeto: há sempre um pensa-se (on pense) anterior ao eu penso (je pense). A ideia de

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uma primazia do discursivo, deste inconsciente impessoal e autônomo do pensamento, faz com que o sujeito sempre esteja situado dentro de um espaço relacional que lhe é determinante.

Em seu belo texto - Em que se pode reconhecer o estruturalismo? - Gilles Deleuze mostrava que a principal inovação do pensamento estruturalista baseava-se na descoberta desta ordem do simbólico. Pois o pensamento tem a tendência de oscilar na dialética entre real e imaginário. Como quando a filosofia clássica nos fala do entendimento puro – de sua natural aptidão para a apreensão plena do real, da verdade - em contraste com os enganos poderosos da imaginação e dos sentidos. Ou quando no romantismo, ao contrário, damos plenos poderes à imaginação como única força criadora capaz de se colocar para além da finitude de nosso conhecimento.

Ora, com o estruturalismo, trata-se de evitar tanto a fusão entre real e imaginário, quanto sua dispersão autônoma. Pois entre eles desdobra-se uma costura, uma terceira ordem – relacional - que dá necessidade lógica intrínseca a um conjunto de elementos dispostos de forma estrutural: “a estrutura se encarna nas realidades e nas

imagens segundo séries determináveis; mais ainda, elas as constitui encarnando-se, mas não deriva delas, sendo mais profundas que elas, subsolo para todos os solos do real como para todos os céus da imaginação.” (DELEUZE, 2002, p.223) É assim que

em linguística o objeto estrutural irá aparecer irredutível à palavra e suas partes sonoras; ou ainda, que Jacques Lacan encontrará um terceiro pai - o Nome-do-pai - para além do pai real e de suas imagens fantasmáticas. Por detrás da história das ideias e de sua representação, também Foucault encontrará “um solo mais profundo, subterrâneo, que

constitui o objeto daquilo que ele chama de arqueologia do pensamento.” (DELEUZE,

2002, p.222)

Tal irredutibilidade da ordem simbólica à ordem do real e da imaginação desdobra-se no pensamento francês do pós-guerra em diversas direções de investigação. Com o estruturalismo podemos dizer, de forma esquemática, trata-se de pensar diversos campos de nossa vida social e cultural – como as trocas matrimoniais (Lévi-Strauss), os processos de determinação de valor de mercadorias (Althusser), a articulação entre subjetividade e linguagem (Lacan) – através destas estruturas formadas por elementos diferenciais que se organizariam tal como um sistema linguístico autônomo. Isto levava o estruturalismo a derivar três consequências maiores para o campo das ciências humanas:

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(1) a compreensão da ordem estrutural como um campo transcendental entendido no sentido kantiano do termo, ou seja, como uma ordem que funciona tal como um a priori para a construção de qualquer objeto da experiência;

(2) O caráter inconsciente das estruturas, caráter que determina o movimento reflexivo pelo qual se toma consciência de tal ordem. Isso traz duas consequências centrais à atividade crítica: em primeiro lugar, toda estrutura é constituinte da consciência. Por isso, por mais que um “eu” realize, por exemplo, uma epoché, nunca ele pode ter uma experiência fenomenológica imediata de tal campo; em segundo lugar, se apenas através de uma experiência reflexiva posso trazer à consciência tais estruturas, isso se dá sempre dentro dos limites cognitivos da consciência, limites dados pela própria estrutura. Ou seja, há a possibilidade de objetivá-la, porém, tal objetivação paradoxalmente será contida dentro da organização a ser objetivada. A reflexividade é reconhecida, porém encontra-se limitada;

(3) daí a crítica à forma antropológica do pensamento. Pois o que o questionamento que parte sempre da posição do sujeito como referência positiva da presença de sentido não percebe é como antes de ser constituinte, o sujeito apresenta-se determinado como suporte da ordem estrutural. Dessa forma, o problema é exatamente um trabalho reflexivo sobre estruturas formais cujas regras determinam a configuração do campo de discursos possíveis, o que problematizará toda filosofia que insiste na unidade e primordialidade fundante da consciência, seja a partir da transparência autoevidente de um cogito, seja a partir da questão de direito da unidade da apercepção.

A ideia de uma exterioridade constituinte do saber é trabalhada de forma original por Foucault e mostra-se de fundamental importância para a compreensão da singularidade da arqueologia quando contrastada com as análises em história da ciência, como fica claro neste preciso comentário de sua introdução à tradução para o inglês de

As palavras e as coisas:

Eu não opero no mesmo nível que habitualmente é o dos historiadores da ciência. (...) na verdade, o historiador refaz o progresso das descobertas, a formulação dos problemas, registra o tumulto das controvérsias; ele analisa também as teorias em suas economias externas. Em suma, ele descreve os processos e os produtos da consciência científica. Por outro lado, entretanto, ele busca restituir aquilo que escapou desta consciência: ele descreve o inconsciente negativo da ciência. (...) Eu gostaria, de minha parte, de expor o

inconsciente positivo do saber: um nível que escapa à consciência do

pesquisador, e, entretanto, faz parte do discurso científico. (FOUCAULT, 2001a, p.878-879)

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O que entender por “inconsciente positivo do saber?” Lembremos como em As

Palavras e as coisas, Foucault pôde aproximar história natural, economia e gramática,

mostrando como estruturalmente há uma partilha de regras entre estes diferentes campos do saber empírico, como uma ordem simbólica subjacente à história das ciências humanas. Por exemplo: a partir de uma descrição comparativa entre épocas, Foucault sustenta que é apenas na idade clássica que uma ciência geral da ordem se coloca como horizonte possível para o conhecimento. Fundadas sobre uma distinção rigorosa entre identidade e diferença – que rompe com a ordem da semelhança renascentista - há o estabelecimento da evidência como valor cognitivo superior aliado ao primado da representação: a filosofia e a ciência como espelhos da natureza, a verdade como correspondência direta entre ser e ideia adequada. Possibilitadas pelo surgimento de um novo regime de signo, a análise aparece como método capaz de ordenar as naturezas simples, enquanto a taxonomia organiza o campo de representações complexas. Esta configuração do saber abre um horizonte do pensamento que permite o surgimento da história natural, da gramática geral e da análise das riquezas, discursividades que compartilham um solo comum de ordenação. Sistema de organização do pensamento que historicamente fora recoberto “pelas

positividades que pertencem ao nosso saber, deformamo-lo e mascaramo-lo através de categorias que são nossas. Esquece-se que nem o homem, nem a vida, nem a natureza são domínios que se oferecem espontânea e passivamente à curiosidade do saber.”

(FOUCAULT, 2007, p.99).

O motivo principal da arqueologia é derivar de análises históricas precisas e rigorosas a organização imanente ao campo das problematizações da verdade e do desenvolvimento dos conceitos. Há sem dúvida aqui uma multiplicação discursiva, linhas heterogêneas que não podem ser absolutamente reduzidas a um fio de força único. Mas há também – pressuposição de base da arqueologia que fica absolutamente claro por todo o livro de 66 – uma estruturação relacional determinante que confere necessidade ao campo do saber de uma época. O que a arqueologia descreve é precisamente esta espaço heterogêneo em que uma pluralidade de organizações discursivas, aparentemente independentes, entrelaçam-se tecendo com o atrito de suas fibras um grande plano discursivo, o campo do saber. Estes planos são as epistemes, conjunto de enunciados que funcionam como o fundo do pensamento de uma época. Em outras palavras, as empiricidades constituintes da história das ciências humanas são

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lidas como signos que encarnam um campo transcendental de determinação que não se confundem com elas. É exatamente esse campo imanente e, ao mesmo tempo, constituinte dos saberes, que Foucault chamou de inconsciente positivo do saber.

Note-se, entretanto, que apesar do uso do termo inconsciente, Foucault sempre renegará um método hermenêutico: a questão não é o jogo de intepretações de um sentido suposto, velado, ou dissociado, mas sim o espaço de surgimento e definição da positividade própria ao enunciado que produz o saber. Um a priori que, como George Canguilhem bem percebeu (CANGUILHEM, 1967, p.600-618), insere obliquamente Foucault em uma tradição de pensamento marcado pelo estilo transcendental de Kant e Husserl. Lebrun também chega a comparar tal inconsciente positivo do saber com as estruturas eidéticas desveladas pela redução fenomenológica de Husserl (LEBRUN, 1989, p.49). Porém, tais comparações devem ser limitadas a uma semelhança de

família, pois como deixaremos bem claro, o a priori em Foucault tem duas

características que o levam para bem longe das aventuras do transcendental em solo alemão: ele é marcado, sobretudo, pela contingência histórica e pela impessoalidade.

II

Podemos agora melhor nos perguntar onde se passa a descontinuidade dentro da arqueologia de Foucault. Questão importante que nos lança ao coração do problema arqueológico. A descontinuidade que importa ao arqueólogo, afinal, não se dá no nível

superficial do corpo do discurso, mas sim entre os diferentes sistemas de possibilidade

do pensamento. Isso marca uma distância importante entre arqueologia e a problemática estritamente epistemológica. Esta se instala na interioridade de um discurso científico, marcando as descontinuidades intrínsecas à história de uma ciência. Daí que em uma reflexão fortemente historicista, como por exemplo a de Thomas Khun, nos deparemos com a problemática da tradução entre paradigmas; ou ainda, que sobre a exigência de uma posição judicativa, a epistemologia francesa - com Koyré, Bachelard e Canguilhem - possa emitir juízos partindo do presente da atividade científica. Em Foucault, porém, o foco de suas análises não está direcionado propriamente às rupturas históricas, mas sim, às transformações na ordem estrutural que permitem tal ruptura. Foucault faz pesquisa histórica, mas o questionamento é absolutamente filosófico, podemos mesmo dizer, crítico transcendental. As regularidades e transformações dentro de campos específicos

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como da linguística, da biologia e da economia são atravessadas pelas busca de suas condições de possibilidade.

Assim, é apenas “abaixo” deste primeiro nível discursivo que a arqueologia revela uma descontinuidade constitutiva: é o inconsciente do saber que surge entrecortado por diferenças incomensuráveis, o que significa dizer que a diferença marcada pela arqueologia não é intrínseca ao discurso, mas sim uma forma de

exterioridade. É nisto que Foucault chama de a ordem das coisas que a descontinuidade

aparece, não como um pressuposto, mas sim como uma síncope que marca as rupturas visíveis na superfície do saber, cismas na espessura da história. Daí a necessidade de

rachar as palavras e as coisas para extrair dos discursos suas leis de formulação, seus

espaços de articulação, seus horizontes de inscrição. Extração que permite vislumbrar o local de necessidade de um pensamento, assim como seu limite, erosão e impossibilidade. A dificuldade de compreensão encontra-se exatamente aqui: pois, extrair um enunciado não pressupõe que ele esteja velado, ou oculto. A estrutura tecida no entrecruzamento discursivo nada esconde, ao mesmo tempo em que exige uma reflexão que evite fazer de um discurso mera rapsódia de acontecimentos dispersos. A arqueologia do saber se atém àquilo que é visto e dito em uma época, às palavras e às coisas. Porém, sua orientação é para aquilo que torna algo possível de ser dito, ou visto. Foucault não confunde o fluxo do rio do pensamento com seu leito, ainda que estes estejam sobrepostos. É isto que está em jogo na pitoresca citação de Borges que encontramos no prefácio de As palavras e as coisas:

Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que e com sua leitura, perturba todas as familiaridades do pensamento – do nosso: daquele que tem nossa idade e nossa geografia – abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro. Este texto cita “uma certa enciclopédia chinesa” onde está escrito que “os animais se dividem

em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas.” (FOUCAULT, 2007, p.IX)

Tal fantástica taxionomia possibilita a Foucault expor seu problema. Pois, indaga de forma astuciosa, em que consiste a estranheza de tal descrição? “Não são os

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pensamento possível, é simplesmente a série alfabética (a,b,c,d) que liga a todas as outras cada uma dessas categorias.” (FOUCAULT, 2007, p.X) A enciclopédia chinesa

de Borges, com seus absurdos categoriais, expõe a destruição do lugar de ordenamento do saber, sintaxe de classificação que permite o estabelecimento seguro de operações de identidade e diferença, fundamento para toda organização taxinômica. Não conseguimos nos orientar no pensamento neste caso, pois a série alfabética apresenta-se como pura opacidade: “A monstruosidade que Borges faz circular na sua enumeração

consiste, (...) em que o próprio espaço comum dos encontros se acha arruinado”.

(FOUCAULT, 2007, p. XI) A impossibilidade não está nas coisas mesmas, ou em suas denominações – por mais reais, ou imaginárias que elas pudessem ser - mas sim em sua vizinhança incompreensível. Como diz Rabinow e Dreyfus, em As palavras e as coisas Foucault irá buscar “(...) o espaço lógico na abertura do qual um discurso de produz.” (RABINOW e DREYFUS, 1995, p.56) Este espaço é a ordem estrutural que constitui previamente o falar, classificar e trocar de determinada época. É a ordem das coisas2 que o arqueólogo procura para compreender as formações discursivas das ciências empíricas, pois os saberes positivos de uma época encontram sua configuração dentro deste espaço relacional do pensável. Não conseguimos encadear o raciocínio de forma coerente sem apoiarmo-nos em uma tábua de identidades, similitudes e analogias através das quais adquirimos uma forma de pensamento como por hábito. Mas, “que

coerência é essa – que se vê logo não ser nem determinada por um encadeamento a priori e necessário, nem imposto por conteúdos imediatamente sensíveis?” (FOUCAULT, 2007, p.XV) Aqui, cabe notar como Foucault define a noção de “ordem” de forma próxima ao estruturalismo:

A ordem é ao mesmo tempo aquilo que se oferece nas coisas como sua lei interior, a rede secreta segundo a qual elas, de uma certa forma, se olham entre si e que só existe através do crivo de um olhar, de uma atenção, de uma linguagem; e é apenas nas casas brancas deste esquadrinhamento que ela se manifesta em profundidade como já presente, esperando em silêncio o momento de ser enunciada. (FOUCAULT, 2007, p.XVI)

A boa compreensão deste difícil trecho passa pela definição da ordem como

“casa branca”. Lévi-Strauss nos lembra de forma rigorosa que os elementos de uma

estrutura não têm significação intrínseca e nem mesmo designação extrínseca. Eles têm

2 Ordem das coisas é, inclusive, o título tanto da versão americana, quanto alemã, de Les mots et le choses.

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apenas um sentido que é definido de forma relacional a partir única e necessariamente de sua posição (LÉVI-STRAUSS, 1963). Obviamente não se trata de uma extensão real, mas sim de um topos estrutural: “Aquilo que é estrutural é o espaço, mas um espaço

inextenso, pré-extensivo, puro spatium constituído cada vez mais como ordem de vizinhança, em que a noção de vizinhança tem precisamente, antes, um sentido ordinal e não uma significação de extensão.” (DELEUZE, 2002, p.225) Em outras palavras, há

uma primazia da “casa branca”, espaço quadriculado de organização das palavras e

das coisas. O que importa a Foucault não são as palavras em si, ou as coisas nelas

mesmas, mas sim suas vizinhanças, o espaço pela qual elas se refletem e se entrecruzam, sua topologia:

“É o espaço do fora (...) espaço no qual nós vivemos, pelo qual somos lançados fora de nós-mesmos, no qual se desenrola precisamente a erosão de nossa vida, de nosso tempo e de nossa história, este espaço que nos tormenta e nos marca é em si-mesmo também um espaço heterogêneo. Dito de outra forma, não vivemos dentro de uma espécie de vazio, ao interior do qual poderíamos situar os indivíduos e as coisas. Não vivemos no interior de um vazio que se colore de diferentes reflexos, vivemos no interior de um conjunto de relações que definem posições irredutíveis umas as outras (...)” (FOUCAULT, 2001b, p.1575)

Uma arqueologia do pensamento deve nos desvelar este espaço heterogêneo no qual os objetos dos saberes empíricos aparecem, se transformam e desaparecem. Palco em que o eterno jogo de verdade entre sujeito e objeto é encenado. Espaço da costura, da necessidade e da contingência, da relação sempre infinita, sempre impossível, entre as palavras e as coisas, entre linguagem e mundo. Tal empreitada é indissociável de uma reformulação do questionamento transcendental. Isso explica porque, já nos últimos capítulos de As palavras e as coisas, quando Foucault comentar a finitude moderna a partir de determinações como a vida, o trabalho e a linguagem, elas não serão consideradas primeiramente como dimensões da vida empírica do homem, mas sim como espaços onde a finitude se desenvolve, posições estruturais que fazem do homem um “vivente”, “um trabalhador, “um ser falante.” A finitude não é inerente ao humano – ilusão fundamental do humanismo – mas sim derivado do locus ocupado pelo sujeito objetivado das ciências humanas, resultado da costura histórica entre discursos sobre o homem a partir da modernidade:

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Em certo sentido, o homem é dominado pelo trabalho, pela vida e pela linguagem: sua existência concreta encontra neles suas determinações; só se pode ter acesso a ele através de suas palavras, de seu organismo, dos objetos que ele fabrica – como se eles primeiramente (e somente eles talvez) detivessem a verdade; e ele próprio, desde que pensa, só se desvela a seus próprios olhos sob a forma de um ser que, numa espessura necessariamente subjacente, numa irredutível anterioridade, é já um ser vivo, um instrumento de produção, um veículo para palavras que lhe preexistem. Todos esses conteúdos que seu saber lhe revela exteriores a ele e mais velhos que seu nascimento antecipam-no, vergam-no com toda a sua solidez e o atravessam como se ele não fosse nada mais do que um objeto da natureza ou um rosto que deve desvanecer-se na história. (FOUCAULT, 2007, p.432)

Ou seja, o remanejamento da questão transcendental é realizada a partir da busca de um campo de determinação anterior ao sujeito: “Essa busca das condições constitui

uma espécie de neokantismo característico de Foucault. Há, entretanto, diferenças essenciais em relação a Kant [...] elas estão do lado da formação histórica, e não de um sujeito universal;(...) são formas de exterioridade.” (DELEUZE, 1990, p.69). Em

clara sintonia com o estruturalismo, Foucault busca retirar a consciência de seu caráter constitutivo – fundante - relegando essa posição a sistemas de regras e leis historicamente definidos (vida, trabalho e linguagem). Tal passagem revela, ao separar o campo empírico do transcendental, a autonomização dos códigos de significação e interpretação em estruturas e, ao mesmo tempo, nos mostra paradoxalmente como tal autonomização pode ser compreendida como consequência de uma nova configuração e distribuição entre o locus do sujeito, do objeto e da verdade que se inicia com a revolução copernicana operada por Kant. Tal disjunção operada por Foucault, porém, é problemática e deve ser pensada em sua dimensão paradoxal e aporética, uma vez que não se trata de uma autonomização completa e ideal de uma estrutura de signos (como no estruturalismo stricto sensus), mas sim de um questionamento que oscila, entre a reflexão transcendental e a descrição histórica – portanto empírica.

Nesse sentido, atentemos à frase “um rosto que deve desvanecer-se na história” que talvez seja uma das proposições mais mal entendidas da arqueologia foucaultiana. Pois, quando Foucault falar da perspectiva do desvanecimento do “homem”, ele na verdade não está desintegrando a posição do sujeito, mas sim marcando a historicidade própria de nossa finitude, uma vez que para a arqueologia ela não é originária, mas sim decorrência da ordem constituinte dos saberes modernos. Muito já foi dito sobre a crítica foucaultiana ao humanismo, porém há o risco de que com a sedução da polêmica fácil, percamos de vista um dos aspectos mais inovadores do questionamento

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arqueológico. Pois o que em última análise está fadado a desvanecer na história é a forma-homem, ou seja, a episteme moderna. Profetismo? Não, mera constatação feita ao longo das quase quinhentas páginas do livro, em que uma ordem do conhecimento sucede a outra. O que Foucault faz é tirar uma consequência da descontinuidade entre diferentes épocas: a arqueologia de nosso pensamento nos mostrou que até hoje houve sucessões nas estruturas do saber, ora, por que seria diferente com o pensamento antropológico moderno?

Aqui, arma-se uma das consequências maiores do livro de Foucault. Pois, com a noção de episteme, Foucault propõe outra solução para a dicotomia entre estrutura e história, abandonando a noção de estruturas atemporais, como as que encontramos na obra de Lévi-Strauss em seus estudos sobre as narrativas míticas, ou em George Dumézil e seus estudos sobre a origem das religiões indo-europeias. Tudo se passa como uma reapropriação criativa por parte de Foucault, em que a “manière de faire” da

descontinuidade histórica da epistemologia é atualizada dentro de um quadro fortemente

influenciado pela análise estrutural dos discursos. A formalização rigorosa de uma estrutura relacional encontra-se paradoxalmente lançada ao vir-a-ser do acontecimento histórico. Na tensão entre história e estrutura, Foucault busca colocar-se de um só golpe para além de ambas as posições, criando outra opção de historicização do transcendental, para além da dialética hegeliana ainda dominante em sua época. Nem historicismo, nem formalismo, a arqueologia busca costurar diferentes jogos de verdade com a temporalidade de uma história descontínua. É neste atrito entre contingência e necessidade que o saber que nos constitui se expõe. Dobras e rachaduras: esta superfície infinita e sincopada do pensamento.

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Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Obras Michel Foucault:

______. As palavras e as coisas, Martins Fontes, São Paulo, 2007

______. Dits et écrits, vol. I, Gallimard, Paris, 2001A;

Outras obras citadas:

CANGUILHEM. G. (org.) Michel Foucault Philosophe. Paris: Seuil, 1989.

______. “Mort de l’homme ou épuisement du Cogito?”. IN : Critique, no 242, julho de 1967.

DELEUZE. Foucault, les editions de minuit, Paris, 2004

______. “Em que reconhecemos o estruturalismo”, in A ilha Deserta. São Paulo, Iluminuras, 2002.

DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além

do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

LEBRUN, G. « Notes sur la phénoménologie dans Le mots et le choses », IN : Michel

Foucault philosophe, Editions du Seil, Paris, 1989.

Referências

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