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Mulheres Avieiras - porta-vozes da memória de um povo

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Academic year: 2021

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Instituto Politécnico de Santarém

Escola Superior de Educação

MULHERES AVIEIRAS – PORTA-VOZES DA MEMÓRIA DE UM POVO

Dissertação apresentada para obtenção do grau de Mestre na área de Educação Social e Intervenção Comunitária

Mestranda: Maria de Lurdes Véstia Orientador: Dr. Luís Vidigal

Coordenador de Mestrado: Doutor Paulo Dias

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Conteúdo

Agradecimentos ... 5

Resumo ... 6

Abstract ... 7

Résumé ... 8

Apresentação ... 9

Capitulo 1 - Fundamentação teórica ... 13

1.1 - O Património Cultural Imaterial ... 13

1.2 - Contextualização histórica do estado das pescas em Portugal - século XIX-XX ... 14

1.3 - As origens das comunidades Avieiras do Tejo ... 21

1.3.1 - O rio Tejo ... 21

1.3.2 - Causas e consequências das migrações internas dos pescadores do litoral norte de Portugal ... 22

1.3.3 - Migração da Praia da Vieira para o rio Tejo ... 26

1.3.4 - A vida nas comunidades Avieiras da Borda-d’Água Tagana ... 28

1.3.5 - Assentamentos Avieiros ... 29

1.4 - Avieiro sem alcunha não é Avieiro ... 31

Capitulo 2 - Metodologia ... 33

2.1 - Público-alvo ... 33

2.2 - História de vida ... 34

2.3 - Observação-Participante ... 37

2.4 - Investigação e análise documental ... 38

2.5 - Materiais e Instrumentos ... 40

2.5.1 - Inquérito por entrevista ... 40

2.6 - Procedimentos ... 42

2.6.1 - A gravação das narrações ... 42

2.6.2 - A transcrição das gravações ... 43

2.6.3 - A análise dos dados recolhidos ... 43

Capitulo 3 – Resultados e Discussão ... 45

3.1 – A narração de cada uma ... 45

3.1.1 – Aldeia Avieira do Touco ... 45

3.1.2 – Iria do Touco ... 46

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3.1.4 – Aldeia Avieira da Barreira da Bica ... 50

3.1.5 – Emília da Bica ... 51

3.1.6 – A história de Emília ... 52

Capítulo 4 – Mulheres Avieiras - Porta-vozes da memória de um povo . 57

4.1 - Mulheres pescadoras da Vieira ... 57

4.2 – Cerzindo as duas narrações ... 58

4.2-“Retrato” das duas protagonistas enquanto mulheres representativas das memórias da comunidade Avieira ... 68

Conclusões ... 70

Notas finais ... 73

Bibliografia ... 74

Anexo de Fotografias ... 77

Anexo I ... 83

Anexo II... 86

Anexo III ... 89

Índice de Quadros

Quadro 1..………...28

Quadro 2……….37

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4 Fui embalada pelo Tejo, Nunca o poderei esquecer, Eu nasci filha do Tejo, Serei dele até morrer.

Sim! Sou filha de Avieiros! Não renego o meu nascer, Eles foram meus Doutores, Mesmo sem saberem ler,

Deles herdei o carinho, A ternura, e os amores, Este jeito de viver, E sei que tenho valores que muitos queriam ter."

Odete Fernandes (Lobo) Mulher Avieira de Azinhaga (Golegã)

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Agradecimentos

Neste momento de imensa alegria agradeço… Á minha família por ter acreditado em mim.

Ao Dr. Luís Vidigal, da Escola Superior de Educação de Santarém, a tutoria que prestou e as facilidades concedidas para a elaboração deste trabalho.

Ao Coordenador do Mestrado em Educação Social e Intervenção Comunitária, Doutor Paulo Dias, por todos os esclarecimentos prestados e conhecimentos partilhados e pela inteira disponibilidade que sempre demonstrou quer como Professor quer enquanto conselheiro e amigo.

Aos/Às Professores/as que tornaram possível esta minha caminhada até ao Mestrado, a todos/as um sincero obrigada pela amizade e afecto que me transmitiram em momentos decisivos da minha vida académica.

Ao Instituto Politécnico de Santarém, a disponibilidade concedida para a investigação dos documentos e utilização de fotos do arquivo bibliográfico existente no Gabinete da Cultura Avieira, com um reconhecimento, muito especial, ao Dr. João Serrano, Coordenador do Projecto de Candidatura da Cultura Avieira a Património Nacional e da UNESCO, por todo o acompanhamento que prestou enquanto investiguei e pelas reflexões conjuntas que tão preciosas foram para a redacção e concretização deste trabalho. Sem a sua colaboração não teria chegado às “minhas” Porta-vozes. Obrigada !!!

Cabe ainda um agradecimento, imenso, às Porta-vozes da Memória Avieira (a quem em momentos de puro egoísmo apelido de “minhas”), Dona Iria e Dona Emília, pescadoras Avieiras, que concederam as entrevistas para recolha e análise de dados e com quem aprendi bastante sobre o modo de vida tão peculiar dos Avieiros do Tejo. Para elas um enorme obrigada pela generosidade infinita de me confiarem as suas histórias, memórias e até, por momentos, as suas “almas”. Com elas aprendi que só é feliz quem transmite o que sabe e aprende com o que ensina.

A todos/as aqueles/as que, apesar de não estarem mencionados/as aqui, se fizeram presentes na minha vida académica, ajudando-me das mais diferentes maneiras para me refundir naquilo que sou….Muito Obrigada !!!!

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“Mulheres Avieiras - Porta-vozes da memória de um povo”

Resumo

O objectivo deste estudo é o de caracterizar os significados que orientaram a identificação de mulheres Avieiras enquanto grupo de Porta-vozes da memória do seu povo. Para tal, realizámos entrevistas individuais a duas mulheres, idosas, de diferentes comunidades.

Gravámos as entrevistas e trabalhámos os dados recolhidos, integralmente transcritos, que foram submetidos a várias leituras e a uma análise temática dialógica, que resultou na construção de significados das histórias de vida de cada uma, e finalmente cerzimos as duas histórias.

Os resultados apurados indicaram que: 1) as histórias das informantes estavam fortemente ligadas a histórias de vida da família e da comunidade, assim como a diferentes noções de tempo e espaço; 2) Estas mulheres transformam-se em Porta-vozes a partir do momento em que são reconhecidas enquanto repositórios e transmissoras de saberes, fazeres e saberes-fazer da comunidade Avieira.

Podemos dizer que as identificações como Porta-vozes da Memória Avieira foram construídas pelos dinamismos que estas mulheres desenvolveram nas suas vidas, nas suas famílias e nas suas comunidades.

Palavras-chave: Histórias de vida; Identificação; Património Cultural Imaterial; Porta-vozes da memória; Significados.

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“Avieiras Women - Spokespeople for the memory of a People”

Abstract

The aim of this study is to characterize the meanings that guided the identification of women as spokespeople of the memory of its people. To this end we held individual interviews with two elderly Avieiras fisherwomen of different communities.

After recording interviews and working the gathered data, fully transcribed, we have undergone several readings and a dialogical thematic analysis which resulted in the construction of meanings of life stories of each, and, finally, we sewed the stories.

The results indicate that: 1) the stories of the informants were strongly linked to family and community life stories, as well to different concepts of time and space; 2) these women become spokespeople from the time they are recognized as repositories of knowledge, and knowledge-hands on of the Avieira community.

We can say that their identification as spokespeople of the Avieira memory was built by the dynamics that these women have developed in their lives, families and communities.

Keywords: Life stories; Identification; The Intangible Cultural Heritage; Memory spokespeople; Meanings.

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"Femmes Avieiras – Porte-parole de la mémoire d´un peuple"

Résumé

Le but de cette étude c´est de caractériser les significations qui ont guidé l'identification des femmes Avieiras comme un groupe de porte-parole de la mémoire de son peuple. À cette fin, nous avons intervenue deux femmes âgées, de différentes communautés. Nous avons enregistré les entrevues et les données recueillies, intégralement transcrites, qui ont fait l'objet de diverses lectures et une analyse thématique dialogique, qui a abouti à la construction de significations des récits de vie et enfin on à articulé les deux histoires qui nous avons travaillé. Les résultats indiquent que: 1) les récits des informateurs étaient fortement liés à des récits de vie de famille et des communautés, ainsi que a des différents concepts de temps et l'espace; 2) Ces femmes se transforme en porte-parole au moment quelles sont reconnus, en tous que transmettant des savoirs et des référentiels de connaissances, de pratiques et de connaissances communautaires Avieira. Nous pouvons dire que l´ identification comme porte-paroles de la mémoire Avieira a été construit par la dynamique que ces femmes ont mis au point dans leur vie, dans leurs familles et leurs communautés.

Mots-clés: Histoires de vie; Identification; Patrimoine culturel immatériel; Porte-paroles de la mémoire; Significations.

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Apresentação

“Mulheres Avieiras – Porta-vozes da memória de um povo” contempla a preservação e a interpretação do património imaterial das comunidades piscatórias Avieiras a partir da história de vida de duas pescadoras, Iria Fragata Grilo, por alcunha “Iria do Touco” que lhe foi atribuída após o casamento, e pelo facto de ter ido viver para a aldeia Avieira do Touco no município de Alpiarça, e Emília Branha Lameira, conhecida como “Emília da Bica” natural da Barreira da Bica, freguesia de Vale de Figueira, município de Santarém, onde sempre viveu. Este estudo pretende caracterizar os significados que orientaram a identificação destas mulheres Avieiras enquanto grupo de Porta-vozes da memória do seu povo.

O património imaterial, pela sua natureza essencialmente efémera torna-se altamente vulnerável, uma vez que toca cada aspecto da vida de um indivíduo e integra todos os materiais da sua herança cultural, artefactos, costumes e paisagens. Tudo aquilo que é criado pelo Homem é um produto do seu talento e criatividade, que permite conhecimento, seguro e reprodutivo, e habilidade para ser realçado e transmitido de uns para outros, de geração em geração. O património imaterial representa, para muitas populações, a fonte vital de uma identidade profundamente enraizada na história. A filosofia de vida, os valores, os códigos morais e as maneiras de pensar, transmitidos pelas tradições orais, pela língua, usos e costumes, constituem as bases da vida em comunidade, tal como é reconhecido pela Unesco na Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial e está inscrito na Recomendação de Paris de 17 de Outubro de 2003.

A presente dissertação de mestrado insere-se num percurso investigativo que se iniciou com o trabalho final de licenciatura, em Animação Cultural e Educação Comunitária, na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Santarém, “Avieiros - Dores e Maleitas”. Durante os estágios finais da licenciatura desenvolveram-se processos investigativos que permitiram explicar, compreender ou interpretar, por correlações diversas, realidades e fenómenos vividos pelos pescadores Avieiros e seus familiares, quando acorriam ao Hospital de Santarém na procura de remédio para as suas moléstias. Terminada

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10 a licenciatura, depressa se compreendeu que a investigação realizada e as problemáticas que emergiram exigiam que se encetassem novos percursos investigativos, pois durante a pesquisa foi despontando um conjunto de questões que exigiam respostas que não foi possível obter no âmbito da licenciatura.

O repto que se coloca agora é o de descobrir, de ar corpo a um percurso de vida em que sujeito e realidade se ligam por meio de relações variadas, entender a maneira como se organizaram estas relações, a habilidade e capacidade construtiva destas pescadoras Avieiras para contornar as interdependências (familiares, comunitárias e até discriminatórias) a que estavam sujeitas, investigar as transformações pelas quais passaram ao longo do percurso das suas vidas, a forma como se apropriaram das vivências, as emoções, os afectos, os sentimentos e outras dimensões relacionais.

A pertinência da dissertação de mestrado aqui proposta emana do facto de estudar uma problemática situada temporal e historicamente num período em que são publicadas várias teses e monografias sobre as comunidades Avieiras do Tejo e do Sado, que irão ser incluídas no Dossier de Candidatura da Cultura Avieira a Património Nacional, a apresentar à Secretaria de Estado da Cultura e à UNESCO.

O espaço temporal da investigação medeia entre o ano de 1927, quando nasceu Iria do Touco, e o ano de 2012, quando se realizaram as entrevistas para a construção das suas histórias de vida.

De alguma maneira, uma história de vida é sempre individual e única, sendo contada a partir da perspectiva e à luz da vivência do indivíduo que se encontra a narrar a sua história. Ela está, portanto, sempre impregnada da subjectividade inerente ao narrador. Neste sentido, uma história de vida não se constitui como um relato objectivo e exaustivo dos factos ocorridos na vida do narrador, nem extrínsecos a ele. A narração não é nunca uma descrição desapaixonada, pelo contrário, é dotada de uma sentimentalidade particular, justamente porque é através dela que o protagonista se reconta e se reafirma como indivíduo diferente dos outros, apresentando testemunhos mediados pela passagem do tempo.

O objectivo geral do estudo das histórias de vida destas mulheres Avieiras, a que apelidámos de "Mulheres Avieiras - Porta-vozes da memória de

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11 enquanto grupo de informantes privilegiadas da memória do seu povo, por meio da oralidade. O processo de construção desta identidade, que nos propusemos fazer, partindo do pressuposto de que a memória é um processo activo de construção de lembranças sobre si e sobre os outros, passa por preservar as aptidões e técnicas necessárias às manifestações Avieiras, no feminino, consideradas de valor histórico e cultural.

Hoje já se considera que o património cultural imaterial é uma fonte essencial de identidade, profundamente ligada ao passado. Infelizmente, um certo número das suas manifestações, como o trajo, a música, a dança, os festejos, certas tradições orais e línguas de âmbito regional, desapareceram ou estão em vias de extinção.

Os objectivos específicos foram traçados pela natureza imaterial do património Avieiro, que incrementa a sua vulnerabilidade, tornando-se urgente:

1- Evitar novas perdas;

2- Salvaguardar o património imaterial Avieiro mediante registos e arquivos; 3- Garantir que aos portadores deste património seja reconhecido o seu

saber, fazer e saber-fazer e a sua transmissão para as gerações seguintes, como meio eficaz de preservar o património imaterial Avieiro e uma identidade cultural relevante no contexto do vale do Tejo.

O trabalho foi estruturado segundo a seguinte ordem:

Capitulo 1 - Fundamentação teórica - Faz-se a discussão em torno dos conceitos e relaciona-se com a literatura existente sobre a matéria; apontam-se as causas e as consequências das migrações internas dos pescadores do litoral norte e centro de Portugal; relatam-se as origens das comunidades Avieiras do Tejo; dá-se uma visão do que era a vida nas comunidades Avieiras da Borda d´Água Tagana; refere-se o facto de os Avieiros serem identificados pelas suas alcunhas e explicam-se as razões para as alcunhas de Iria e Emília, enquanto traços identitários específicos.

Capitulo 2 - Metodologia - Apresentam-se os métodos de investigação e os contextos.

Capitulo 3 - Resultados e discussão - Faz-se a apresentação das significações, divididas por grupos temáticos, construídas na análise de cada história de vida, costumes, discriminações, etc.

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12 Capítulo 4 – Considerações finais – Cerzem-se as histórias de vida das protagonistas e “pintam-se os seus retratos” enquanto mulheres representativas das memórias da comunidade Avieira.

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Capitulo 1 - Fundamentação teórica

O tema da presente tese de dissertação de mestrado foi escolhido pelo facto de existir motivação para o trabalho no contexto do património imaterial e também porque a proponente se encontra a colaborar com o gabinete do Projecto Nacional da Cultura Avieira, do Instituto Politécnico de Santarém, onde participa em linhas de investigação e intervenção e tendo acesso privilegiado a todos os documentos ali existentes.

Desde o arranque da pesquisa, para a elaboração da tese de licenciatura,

“Avieiros – Dores e Maleitas”, logo se constatou que existiam importantíssimos

vestígios culturais, como as casas das aldeias Avieiras (algumas em ameaçadora ruína), os pontões-ancoradouros, os barcos (bateiras, saveiros e caçadeiras), as alfaias e artes de pesca, os trajos, e também saberes, crenças, gastronomia, folclore e sobretudo ainda alguns, mas muito poucos, vestígios vivos de pescadores Avieiros a exercer a sua actividade no Tejo, com forte possibilidade de poderem fornecer uma variedade de informações pertinentes sobre o seu característico modo de vida.

Para a construção deste capítulo apropriámo-nos de alguns dos textos produzidos aquando da realização da tese de licenciatura “Avieiros - Dores e

Maleitas” com as pertinentes alterações e melhorias consideradas importantes

para o aprofundamento do tema.

1.1 - O Património Cultural Imaterial

Para compreender a importância estruturante do Património Cultural Imaterial Avieiro, há que contextualizá-lo com a definição utilizada pela Unesco na Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial e inscrita na Recomendação de Paris, de 17 de Outubro de 2003, no artigo 2:

(…) as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas, e também os instrumentos, objectos, artefactos e lugares que lhes são associados e as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos que se reconhecem como parte integrante do seu património cultural (...) que se transmite de geração em geração e é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu ambiente, da sua interacção com a natureza e da sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade.

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14 Pela definição apresentada reconhece-se que o património cultural imaterial Avieiro traz associado o conjunto de todos os instrumentos e artefactos utilizados na arte da pesca, os assentamentos palafíticos estabelecidos ao longo do rio Tejo e os “ indivíduos que se reconhecem como parte integrante do seu

património cultural”, ou seja, os pescadores Avieiros que são a base deste

trabalho.

1.2 - Contextualização histórica do estado das pescas em Portugal - século XIX-XX

A primeira metade do século XIX em Portugal foi um período de grande instabilidade política, económica e social. As invasões francesas e mais tarde as revoluções liberais, com as consequentes revoltas, perseguições e exílios, foram circunstâncias adversas que muito contribuíram para acentuar o atraso do país.

O Estado não garantia a segurança dos cidadãos. O país permanecia essencialmente agrícola, praticava-se uma agricultura de subsistência, tecnicamente rudimentar, a área inculta era enorme, os adubos químicos eram pouco usados e a maquinaria inexistente. A indústria era incipiente e tecnologicamente obsoleta e os modos de transformação artesanais eram ainda os dominantes (Villaverde Cabral, 2000, pp. 27 e 145-146).

Encontrando-se o sector das pescas num estado lastimoso, o Rei de Portugal, D. João VI, em 1820, promulga uma portaria com o seguinte conteúdo:

El-rei nosso senhor, considerando o quanto se fazem dignos de favor os pescadores, e que as pescarias, não só devem ser alimentadas para poderem sair do estado de verdadeira inanição em que se acham, mas também que merecem ser favorecidas pelos bons resultados que da sua prosperidade sai consequentes do augmento da marinha marcante e de guerra, e que muito devem ser apreciados em um estado que possue domínios dispersos e alguns de longa extensão de costa: Houve por bem determinar que de 13 de Maio corrente anno de 1820 em diante e emquanto não mandar o contrario, o pescado fresco em Lisboa e em toda a província da Extremadura pague somente meios direitos de qualquer impostos de Siza, dizimas e cestaria, ou qualquer outro que até ao presente devesse pagar. Ficando qualquer donatário por esta sabia medida, que tanto interessa o bem publico, sem acção para pedir compensação. (Franzini, 1821, p.54)

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15 Nesta época, e ao longo do século XIX, os pescadores eram tidos como:

(…) um tipo sem nome, maior que a realidade, de músculos como cordas. A sua missão no mundo é remar. De trilhar o remo ficou curvo, e tem as palmas tão encortiçadas que nelas enfia a navalha como numa pedra de amolar. O mar denegriu-o e engrandeceu-o. Não sabe exprimir-se e mal nos conseguimos entender. Mas não mete medo…e só lhe leio nos olhos ingenuidade (...). (Brandão, 1920, p.51)

O pescador só começou a ser visto como um agente produtivo a partir da altura em que o sector das pescas foi tributado.

Durante o século XIX, o país era basicamente rural, analfabeto, tradicionalista e o clero tinha uma enorme influência na sociedade. As más vias de comunicação e as deficientes condições de transporte inviabilizavam a criação de um mercado interno e a concorrência dos produtos estrangeiros limitava o desenvolvimento da indústria nacional (Pedro Lains, 1986, pp. 413-414).

Os liberais, durante a guerra civil de 1832-1834, que opôs os liberais de D. Pedro aos absolutistas de D. Miguel, através de Mouzinho da Silveira(1) promulgam uma legislação que se consubstanciou na transferência das propriedades, anteriormente pertencentes às ordens religiosas, para uma nova burguesia ligada às actividades financeiras. O Estado Liberal, que tinha como ideal politico e económico acabar com os condicionamentos à livre troca de bens e produtos dentro e fora do país, extinguiu as portagens, as licenças de circulação, os monopólios municipais, os privilégios, parte das sisas e as dízimas (Decreto de 26 de Março de 1832).

O pequeno comércio sentia-se oprimido pelos tributos e posturas municipais que restringiam a circulação de bens e lutava com a precária utilização das vias fluviais, para facilitar a livre circulação de bens e produtos. Assim, é promulgado, em 1833, o Código Comercial e são criados os Tribunais Comerciais de Primeira Instância, em Lisboa e Porto (Mendes, 1993, p.54).

1

- José Xavier Mouzinho da Silveira (1780 -1849) foi estadista, jurisconsulto e uma das personalidades da revolução liberal, operando algumas das mais profundas modificações institucionais nas áreas da fiscalidade e da justiça.

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16 Cabe aqui destacar o artigo nº 19 do Decreto-Lei de 6 de Novembro de 1830, que veio estimular o futuro das pescas em Portugal, dispensando os pescadores de pertencerem às Confrarias, Irmandades e Compromissos assim como do pagamento de dízimas, gabelas, caldeiradas, entre outros.

(…) ficam abolidos de hoje em diante todos os privilégios que possam estar concedidos a alguma pessoa, corporação ou companhia para exercer ou mandar exercer qualquer ramo de pescaria, com a exclusão de todos os mais que o quisessem exercer. Fica portanto livre a todos os portugueses e pessoas legalmente domiciliadas em domínios de Portugal, pescar toda a sorte de peixe e com qualquer armação, rede ou arte, que não seja proibida pela lei geral; salgá-lo, empilhá-lo, secá-lo ou derretê-lo como mais lhe convier. (artigo nº 19 do Decreto-Lei de 6 de Novembro de 1830)

Por via da eliminação de privilégios e de corporações, assim se contribuiu para a liberdade de pesca e a constituição de um mercado nacional. A consequência decorrente desta lei de 1830 passou pelo cadastro do sector das pescas, quer em termos de recursos humanos, quer de infra-estruturas, deu visibilidade ao ofício da pesca e ao pescador e converteu-o em contribuinte fiscal uniformizado, lançando o imposto de 6% sobre os quinhões da pesca de cada pescador (Silva & Regalla, 1888, pp.15 e16).

Após a Revolução de Setembro, mais conhecida por Setembrismo (1836), (2) a rainha D. Maria II foi obrigada a demitir o governo autoritário do Duque da Terceira (3) e nomeou um novo executivo, chefiado pelo Conde de Lumiares (4) e composto, entre outros, pelo marquês de Sá da Bandeira (5) e Passos Manuel.

2

- Setembrismo é a designação dada à corrente mais à esquerda do movimento liberal.

3

- O Duque da Terceira foi herói das Guerras liberais e quatro vezes Presidente do Conselho de Ministros.

4

- Conde de Lumiares, José Manuel Inácio da Cunha e Menezes da Gama e Vasconcelos Carneiro de Sousa Portugal e Faro (1788-1849). Em 1836 foi escolhido para presidente do Conselho de Ministros, após a revolução de Setembro, acumulando também as pastas da Guerra e da Marinha.

5

- Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo (1795-1876),foi um político português longevo na Monarquia Constitucional e um importante líder do movimento setembrista em Portugal. Assumiu

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17 Este Governo adoptou e praticou uma política económica que visava sobretudo o desenvolvimento industrial.

O Ministro Passos Manuel (6) foi, sem dúvida alguma, a imagem desta prática política. Para tentar travar o afluxo de produtos estrangeiros e estimular os empresários portugueses, de modo a criar competitividade, promoveu uma política de abertura de mais unidades industriais e incrementou sectores decadentes, atribuindo benefícios fiscais e subsídios bancários e impondo pautas aduaneiras.

Por sua iniciativa reformou-se a educação, abrindo em todas as capitais de distrito estabelecimentos de ensino liceal, assim como escolas industriais e comerciais para a formação de técnicos especializados (Vidigal,1996). Com o intento de propagar internacionalmente a produção nacional, promover as exportações e incentivar o espírito inventivo português, organizou-se em 1838, no Porto, a 1ª Exposição Industrial Portuguesa.

O Setembrismo vigorou até ao triunfo do liberalismo conservador da Regeneração (1851) que depôs Costa Cabral (7) e marcou a vida política portuguesa na segunda metade do século XIX.

Este movimento político económico e social teve em Fontes Pereira de Melo (8), então Ministro das Obras Públicas, o seu mais importante impulsionador e veio dar continuidade à política anterior, embora com outros

diversas pastas ministeriais e foi por cinco vezes presidente do Conselho de Ministros do seu país.

6

- Manuel da Silva Passos (1801-1862), mais conhecido por Passos Manuel, foi bacharel formado em Direito, advogado, parlamentar brilhante, ministro em vários ministérios e um dos vultos mais proeminentes das primeiras décadas do liberalismo, tendo assumido o papel de líder incontestado dos setembristas.

7

- António Bernardo da Costa Cabral (1803-1889), conhecido por Costa Cabral, foi ministro do Reino. Durante o seu primeiro mandato, empreendeu um ambicioso plano de reforma autoritária do Estado, lançando os fundamentos do moderno Estado português.

8

- António Maria de Fontes Pereira de Melo (1819-1887) foi um dos principais políticos da segunda metade do século XIX.

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18 contornos eliminando o proteccionismo industrial e incentivando o livre cambismo que favoreceu as exportações industriais inglesas e enfraqueceu as manufacturas portuguesas (Pereira, 1971). Por sua iniciativa foi incrementada uma política de incitamento às obras públicas, de desenvolvimento da agricultura e do comércio, e de reorganização da administração pública e do ensino.

Promoveu a ampliação do número de estradas, mandou construir o primeiro troço do caminho-de-ferro que ligou Lisboa ao Carregado e iniciou a construção de outros dois (Vendas-Novas e Sintra). A instalação do caminho-de-ferro em Portugal originou uma grande controvérsia mas foi incontestável para o desenvolvimento e modernização do país. Foram construídos novos portos e os já existentes foram renovados, iniciando-se a revolução dos transportes e das comunicações fluviais ao estabelecerem-se carreiras regulares de barcos a vapor. Antes das vias terrestres e ferroviárias irromperem pelos solos de Portugal, eram as vias fluviais a quem cabia a responsabilidade de comunicação, fazendo a ligação entre a região agrícola e a do litoral marítimo. O telégrafo eléctrico é aberto ao público (1857), os pesos e medidas são uniformizados (1859), a rede telefónica arranca (1882) e os serviços postais são modernizados.

O Governo alcançou a paz social nas cidades e no meio rural através de uma razoável divisão da carga fiscal, do avanço no sistema de crédito, da normalização do pagamento dos vencimentos aos empregados da fazenda pública, na tentativa de fixação da dívida pública, no progresso e alargamento do ensino público, especialmente através da criação do ensino técnico, comercial, industrial e agrícola.

É nos finais do século XIX que se probabiliza a necessidade de uma protecção dos recursos marinhos, causada pelo processo de industrialização.

Na transição do séc. XIX para o séc. XX, em Portugal, tal como na maioria dos países da Europa, atravessou-se um período de crises políticas, económicas, industriais e tecnológicas, entre outras. A implantação da República, em Outubro de 1910, resultou de um golpe de estado. Após a revolução um governo provisório, chefiado por Teófilo Braga (9) que dirigiu os destinos do país até à aprovação da Constituição de 1911, deu início à 1ª

9

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19 República. Este governo provisório tomou uma medida bastante polémica ao fazer a separação entre o Estado e a Igreja e entre outras mudanças, substituiu o hino nacional e a bandeira.

A participação de Portugal na 1ª Guerra Mundial, do lado dos Aliados, é também uma referência obrigatória mas os custos desta cooperação foram superiores à capacidade nacional, dando origem a uma grave instabilidade política em Portugal.

Por volta de 1928, estando a situação financeira de Portugal em declínio, foi chamado António De Oliveira Salazar para dirigir as Finanças, inaugurando-se o Estado Novo, com a entrada em vigor da Constituição de 1933, o que veio mudar completamente a vida dos portugueses. Durante este período foi restabelecida a censura, os antigos partidos políticos desapareceram, com excepção do Partido Comunista (na clandestinidade). Durante a 2ª Guerra Mundial, sob o domínio de Salazar, Portugal manteve-se neutro no conflito, tendo assim retirado benefícios económicos.

Em Julho de 1936, o Ministro do Comércio e Indústria, Teotónio Pereira, nomeou Henrique Tenreiro representante do Governo junto do Grémio dos Armadores de Navios de Pesca do Bacalhau (Garrido, 1999), iniciativa que tinha como objectivo promover a vigilância política naquele subsector da pesca. Durante trinta e oito anos Tenreiro foi o verdadeiro “senhor” das pescas, sector em que praticou uma orientação forte, carismática e paternalista. Exerceu esta actividade também nos posteriores grémios das pescas: sardinha (1938), arrasto (1939), baleia (1945) e atum (1960). Desta forma o Governo concebeu a Organização das Pescas, uma rede de organismos corporativos, sociedades mútuas de seguros, cooperativas e secções mercantis e empresariais de grémios de filiação obrigatória e que regulou as pescas marítimas entre 1935-1974. Esta centralização das organizações piscatórias em torno de grémios, presididos pelo mesmo representante do Estado, permitiu a normalização de cada um dos subsectores através do controlo exercido. No âmbito de todas as funções exercidas no organigrama das pescas, Tenreiro foi responsável por um irrefutável estímulo das pescas nacionais através da conquista de projectos de ampliação e renovação das frotas.

(20)

20 Em 1970 é criada, na Europa, uma Política Comum de Pescas - PCP (10) ocasião em que foi acordado que os pescadores, independentemente do país de pertença, deveriam ter acesso às águas dos demais estados.

Em 1974 dá-se uma reviravolta política em Portugal e o Movimento das Forças Armadas dá início às operações que conduziram ao derrube do regime ditatorial e à sua substituição por um regime democrático/representativo. Em resultado desta modificação política Portugal torna-se membro de facto da União Europeia, a partir de 1986.

A PCP foi reformulada em 2002 e o seu objectivo é garantir o futuro da pesca assentando em medidas de conservação que estabelecem volumes aceitáveis de capturas, limitação do esforço de pesca, medidas técnicas que contemplam regras sobre as artes de pesca e tamanhos mínimos de desembarque para determinadas espécies, obrigação de registar e declarar as capturas e os desembarques e limitar o impacto ambiental das pescarias. Para dar apoio aos objectivos da PCP foi criado um instrumento financeiro, o Fundo Europeu das Pescas, para o período entre 2007 e 2013, que tem como finalidades o fornecimento do apoio necessário às pessoas empregadas no sector e a promoção do desenvolvimento sustentável das zonas de pesca.

Nos anos sessenta, do século passado, nas províncias ultramarinas, rebenta a Guerra Colonial e o país sofre um gigantesco fenómeno de emigração. Os portugueses partem movidos pelo desejo de melhores condições de vida e como forma de fugirem à mobilização militar para as colónias. Nesta altura também muitos pescadores abandonaram o país com destino a vários países nos quais passaram a exercer todo o tipo de actividades. Esta saída de força de trabalho das zonas litorais representou, para muitas comunidades piscatórias, um decréscimo na actividade, mas manifestou-se, após o regresso, em muitas construções novas e em modernos meios de produção como embarcações e artes próprias.

10

- Reforma da Politica Comum de Pescas, in http://ec.europa.eu/fisheries/reform/index_pt.htm, visitado em 09-08-2012.

(21)

21 1.3 - As origens das comunidades Avieiras do Tejo

1.3.1 - O rio Tejo

O rio Tejo sempre foi mais reconhecido pela sua importância geográfica que ao longo dos tempos constituiu um reduto de defesa contra os diversos invasores e uma “porta” de entrada no caminho de Lisboa, do que como potencial económico. No entanto, muitos autores são unânimes em realçar a riqueza piscícola do rio Tejo e a sua importância para a economia familiar das populações da Borda d´Água, assim como para o abastecimento às populações das cidades e vilas circundantes.

Nesta óptica, é facilmente compreensível a importância que o Tejo mantinha para as zonas ribeirinhas do distrito de Santarém. A vasta superfície do seu vale fluvial, aliada à fácil navegabilidade, foi essencial no sustentáculo e no desenvolvimento da região e Santarém sempre se arrogou como o mais importante porto do Tejo, através do seu bairro, agora periférico, da Ribeira de Santarém.

A partir do século XVI Lisboa aumentou a sua superioridade económica e as comunidades da Borda d’Água não pararam de crescer em harmonia com o Tejo e com os seus vastos recursos.

O vínculo da região ribatejana com o rio revelou-se tanto a nível económico como social. A diversidade do ecossistema do Tejo permitiu o desenvolvimento de grupos socioprofissionais a ele ligados, como pescadores, cordoeiros, barqueiros (marítimos), tanoeiros, entre outros, e ocasionou o aparecimento de assentamentos ribeirinhos nos seus abrigos fluviais. A estes abrigos chegavam o sal e os tecidos do litoral e deles rumavam a Lisboa minérios, madeiras, vinhos, cereais, azeite, mel e o peixe do rio como o sável, as enguias e as lampreias (Figura 1). Como refere Gaspar (1998) “o movimento

fluvial no rio Tejo era constante” (p.158) e só com o advento do caminho-de-ferro

é que a “estrada” do Tejo começa a perder importância como via de transporte fluvial.

Nos finais do século XIX, para além das espécies próprias do seu estuário, ainda havia relativa abundância de barbo, corvina, robalo, linguado, fataça, boga, sável, lampreia, saboga e enguia, como se pode confirmar pelo relatório mandado elaborar pela Sociedade de Geografia de Lisboa, em 1888,

(22)

22 que indica que “ (…) nos rios Douro, Mondego e Tejo, na época própria,

pescavam-se a lampreia e o sável, com grande valor económico, mas já escasseavam algumas espécies sedentárias de água doce que, pela pequena quantidade capturada, pouco valor tinham nas pescas”. Terá sido porventura

esta abundância de pesca no Tejo que atraiu os pescadores do litoral norte, que perseguiam os ciclos migratórios de espécies como o sável e a lampreia.

No princípio do século XX o número de pescadores era grande e o Tejo via-se pejado de pequenas embarcações de pesca, mas o uso e abuso de aparelhos nocivos para a pesca, como os botirões, zorros e camaroeiros de arrastar, entre outros, contribuiu para a destruição do peixe miúdo e fez-se sentir numa sensível diminuição de pescado. De modo a ultrapassar esta situação, pelo Decreto nº 15420, de 24 de Abril de 1928 (11), foram proibidas no Tejo as artes de pesca cujos efeitos fossem considerados prejudiciais à conservação das espécies, sendo nomeado um Engenheiro Director que teria a seu cargo as funções de diagnóstico, planeamento técnico e execução das intervenções consideradas necessárias e a coordenação dos trabalhos de policiamento do domínio público hídrico, a desenvolver por mestres e guarda-rios de modo a reprimir os abusos.

1.3.2 - Causas e consequências das migrações internas dos pescadores do litoral norte de Portugal

A escassez de trabalho e a falta de recursos económicos, em determinadas regiões do país propiciou, ao longo da história, registar em Portugal diversos movimentos migratórios internos que levaram as populações a deslocar-se temporária ou definitivamente para outra região, em busca de melhores condições de vida.

Durante anos alguns grupos socioprofissionais viram-se obrigados muitas vezes à mendicidade. É o caso dos pescadores da região norte que, em grande parte, ganhavam os seus meios de subsistência diariamente e viam-se obrigados a esmolar quando o temporal os impedia de pescar por algum tempo.

11

(23)

23 Esta situação de miséria cíclica, aliada à escassez do pescado nas múltiplas conjunturas da época, parece ter sido, segundo Alves (1991) “um dos

muitos factores para uma emigração sucessiva da população marítima” (p.167).

Ao analisar-se a década de 60/70 do século XIX, fica bem patente o fiasco das medidas legislativas anteriormente impostas no sector das pescas e que não foram conducentes a um aumento do seu volume. Estas medidas não contribuíram para a resolução do problema nacional do abastecimento piscícola (12), nem tão pouco conseguiram estabelecer entre Portugueses e Espanhóis um acesso igualitário aos bancos de pesca. Esta questão convertera-se num assunto urgente pois tinham de se delinear, rigorosamente, áreas de pesca à escala peninsular.

No princípio dos anos 80 a actividade, na costa portuguesa, das embarcações espanholas a vapor munidas de redes de arrasto gerou um crescente mal-estar nas comunidades piscatórias locais que utilizavam métodos de captura menos intensivos e que acusavam aqueles aparelhos de destruírem o leito do mar, a criação e regeneração piscícola e as suas próprias redes de pesca, impedindo assim as pequenas frotas portuguesas de garantir o provimento dos mercados internos e a própria subsistência dos pescadores (Affreixo, 1902, pp 178-183).

O mal-estar instalado gerou conflitos entre grupos de pescadores de Norte a Sul do país em torno da aplicação de artes da pesca. Estes conflitos eram produto da ignorância frente às mudanças técnicas, sociais e económicas e revelavam o atraso tecnológico que existia no sector das pescas em Portugal.

Em 1878 criou-se a Comissão de Pescarias (13) com a função específica de “propor os preceitos em que devia estar sujeita a pesca nas costas e rios

12

- Na Balança de Pagamentos, observando os mapas estatísticos de 1868, o valor do peixe importado ascendia a 1284 contos até 1880, atingindo o mínimo em 1887, não pela diminuição das importações (aumentaram para 1750 contos), mas pelo aumento das exportações, até atingirem os 1210 contos neste mesmo ano (cf. em Silva, Carlos Augusto de Magalhães e Regalla, Francisco Augusto da Fonseca, 1888, A organização dos serviços das pescas, Lisboa, Sociedade de Geografia, p. 15-16).

13

- A Comissão de Pescarias é criada por Portaria de 2 de Agosto de 1878. (cf. em Silva, Carlos Augusto de Magalhães e Regalla, Francisco Augusto da Fonseca, 1888, A organização dos

(24)

24

portugueses”, que exercia como mediadora entre os pedidos de concessões

elaborados por armadores, empresários, patrões e proprietários individualmente ou em sociedades e que regulamentava segundo as suas atribuições. Paralelamente a esta Comissão foram nomeadas outras, especificamente para os assuntos relacionados com o Algarve, a costa oeste e a área da Ria de Aveiro (Affreixo, 1902, pp 178-183).

Como se pode depreender desta descrição, a escassez do peixe, aliada a outras circunstâncias, reduziu os rendimentos da actividade pesqueira e os homens e mulheres que se dedicavam à pesca e à sua comercialização encontram-se assim na contingência de ficar sem meios de sustento. É por estes motivos que sentem a necessidade de procurar um outro local onde exercer actividades que melhorassem os seus proveitos (Affreixo, 1902, pp 178-183).

Numa fase embrionária as migrações de pescadores oriundos do litoral norte tiveram lugar apenas durante o Inverno, eram migrações pendulares, época em que fugiam da inclemência do mar (Figura 2) e da concorrência dos arrastões espanhóis, em direcção aos Vales do Tejo e Sado, procurando a subsistência nos locais que sempre atraíram populações em busca de melhores condições de vida. Como afirma Salvado (1985) ” (…) quando o mar lhes nega o

pão, partiam para longe” (p.27). E o Tejo, com a abundância de espécies

lucrativas, em que avultava o sável, prometia riqueza, e desde sempre foi o fulcro atractivo desta corrente migratória movida pelas incertezas da vida do mar.

Estes grupos de pescadores, que ficaram conhecidos por murtoseiros (Murtosa), ovarinos (Ovar), vareiros ou varinos (Aveiro, Ílhavo) e Avieiros [Vieira de Leiria (14)] consoante a zona do país de onde eram oriundos, vinham tradicionalmente desde a região da xávega (15) até às margens tranquilas e férteis dos rios Tejo e Sado, deslocando-se de barco, diligência, comboio, carroça e muitos a pé. Sabe-se ainda que os angariadores iam contratá-los

14 - A zona envolvente à Praia da Vieira era conhecida, em 1808, como “Avieira” (Amorim, 1997).

15

- A xávega é uma técnica de pesca de arrasto onde se pratica o cerco ao peixe com uma rede que varre o fundo arenoso, sendo puxada, depois da faina, a pulso pelos pescadores e mulheres, ou por bovinos, para o areal.

(25)

25 muitas vezes directamente para fazerem as companhas do Tejo e eram depois conduzidos para a Borda-d’Água nas próprias camionetas de transporte do peixe (Baldaque da Silva,1891).

Estas gentes utilizavam, no Tejo e no Sado, artes de pesca idênticas às usadas nos seus locais de origem. O sável era capturado com uma rede designada “saveira”, análoga às redes de arrasto usadas no rio Lis ou no Atlântico, mas com as necessárias adaptações.

Baldaque da Silva (1891) refere:

(…) quarenta barcos varinos, denominados batis-batis, tripulados por oitenta homens, número medio d’estas embarcações, que do districto de Aveiro emigram para o Tejo; trinta barcos ilhavos, tripulados por quatrocentos e cincoenta homens, que depois da pesca costeira à tarrafa, vão pelo rio acima para a pesca do savel (...) e vinte barcos de pesca que ha nas povoações marginaes de Villa Franca para montante, geralmente com dois homens cada um (p.87).

Estes fenómenos migratórios, enquanto acontecimentos socioculturais e económicos, importantes e transversais a toda a sociedade portuguesa captaram a atenção de vários autores, como foi o caso do escritor neo-realista Alves Redol (16). O seu livro Gaibéus (17) retrata a realidade dos jornaleiros do médio Tejo e da Beira Baixa que, durante as mondas, se deslocavam para trabalhar na zona da Lezíria, e mais tarde o seu livro Avieiros relata o quotidiano de uma família de pescadores, oriundos da Praia da Vieira, que habitam na margem do Tejo, mais concretamente no assentamento Avieiro da Palhota, município do Cartaxo.

Como refere Vidigal (2012), na prefação do livro “Avieiros-Dores e

Maleitas”, o movimento histórico da migração genericamente designada de “Varina” marcou a vida ribeirinha de Lisboa e da Lezíria do Tejo nos anos de

16

- Redol, António Alves (1911 - 1969) foi um escritor considerado o expoente máximo do neo-realismo português.

17

- Segundo Redol (2011, p.25) “um povo resignado que luta afincadamente durante o tempo

quente, antes da chegada do Inverno, em condições extremas para fazer render os poucos cobres que lhes pagam por tamanha dureza”.

(26)

26 1850-60, com proveniência genérica da costa Norte portuguesa, de Aveiro, de Ílhavo e da Figueira da Foz.

Na investigação realizada para o estudo “Avieiros-Dores e Maleitas” detectou-se que os casos de origem atribuídos à Marinha Grande (município em que se integram a freguesia da Vieira e o lugar da Praia), atingiram o seu pico na década de 1850, dando depois lugar a uma mais fina identificação da naturalidade, ganhando primazia a freguesia e a Praia da Vieira. Assim, aquele movimento secular de pescadores nortenhos passa a ser excedido pela dinâmica migratória, inicialmente pendular, tendencialmente permanente dos naturais da Praia da Vieira, ainda que esta tenha diferentes ritmos de fixação.

O movimento migratório pendular de Varinos e de Avieiros diminui progressivamente, sendo ultrapassado por volta da década de 1910 pelos casos dos filhos e netos de migrantes oriundos da Praia de Vieira, já nascidos e agora permanentemente estabelecidos nas aldeias ribeirinhas, crescendo sempre o seu número até ao auge dos anos 50 do século XX, momento a partir do qual os factores sociais de mudança exercem a sua acção imperativa, a par da crise da pesca, afastando cada vez mais os avieiro-descendentes da faina familiar tradicional, o que implicou a regressão demográfica e o envelhecimento das comunidades piscatórias Avieiras.

1.3.3 - Migração da Praia da Vieira para o rio Tejo

Um dos movimentos migratórios interno mais importante no país foi o dos pescadores oriundos das praias que se estendem de Espinho a Vieira de Leiria, da chamada zona da Gândara. As migrações de pescadores da Praia da Vieira para o rio Tejo e Sado ocorreram essencialmente em finais do século XIX e na primeira metade do século XX.

A migração pendular dos Avieiros para as regiões da Borda-d’Água Tagana ficou a dever-se principalmente, como tantos outros, à necessidade de abonarem melhores condições de vida para si e para os seus, como afirma Soares (1986):

(...) vinham em Novembro, trazidos pela penúria. Anónimos e tímidos se achegavam às margens do Tejo. Na época de vaivém entre a praia e a lezíria, moravam nas pequenas embarcações de proa alta, quer durante a

(27)

27 faina, quer acostadas. O barco era o berço, a câmara nupcial, a oficina e a tumba (p.7).

Estas migrações, entre a Praia da Vieira e a Borda-d’Água, são referenciadas por Santos (1959) da seguinte forma:

(…) não são de modo nenhum as famílias de pescadores mais necessitadas de Vieira que vivem esta vida errante. Muito pelo contrário, são aqueles que têm dinheiro para viagens tão longas. Pode dizer-se que actualmente para os Avieiros passar um verão em Vieira é um luxo, como passar um inverno no Tejo o é igualmente, na maior parte dos casos, para os que ficaram junto do mar (p.39).

Com o fim das companhas fluviais do sável, lampreia, robalo e enguia, os Avieiros regressavam à Praia da Vieira, mas a fraca subsistência garantida pelo mar durante o estio, fazia-os tornar cada vez com mais frequência ao rio Tejo e talvez por isso, no seu livro “Avieiros”, Alves Redol os alcunhe de “ciganos do

rio” provavelmente por esta situação de nomadismo e precariedade a que eles

estiveram sujeitos durante anos.

Os pescadores Avieiros sondavam o rio e pescavam, lanço após lanço, inúmeros sáveis, o que atesta a fartura da espécie na época. Quando não pescavam sável apanhavam enguia, percorrendo todos os afluentes e valas do rio Tejo. Como refere Baldaque da Silva (1891) “(…) em determinadas épocas do

ano é muito importante a pesca que se faz no rio Tejo, não só em todo o estuário do rio, desde a embocadura até Valada, mas também para cima, até muito a montante de Abrantes” (p.98).

Este movimento que começou por ser sazonal posteriormente levou ao assentamento em várias áreas marginais ao rio, onde construíam palheiros palafíticos, à semelhança dos da Praia da Vieira.

Na década de 1870 emergem, nas margens direita e esquerda do Tejo, as Caneiras (Santarém) e o Patacão (Alpiarça) e na década seguinte, Vale Figueira (Santarém) e os assentamentos de Almeirim. Porto de Muge (Almeirim) referencia-se na década de 1890 e S.Vicente do Paúl (Santarém) já na de 1910. Tratando-se de movimentos seculares, as datas não surgem aqui como fundacionais das aldeias, pois estas são passíveis de ciclos de “ocupação-abandono-retoma” nas suas variantes possíveis e ao longo do tempo.

(28)

28 Identifica-se igualmente um sentido de progressão Norte-Sul. A montante (e possivelmente na sequência de prévios assentamentos no Médio-Tejo), nascem nas décadas de 1850 a 1870 as comunidades piscatórias dos municípios de Constância, V.N. da Barquinha, Golegã e Chamusca que, a partir de então, permanecem com um carácter residual, denotando talvez a predominância de migrações temporárias e depois a jusante, emergem a partir da década de 1910, as comunidades ribeirinhas dos municípios de Alpiarça, Almeirim e Santarém.

1.3.4 - A vida nas comunidades Avieiras da Borda-d’Água Tagana

As dificuldades encontradas, quer pelas tarefas no rio quer pela vida cheia de complicações, exigiram sempre dos pescadores e dos seus familiares uma dedicação total ao rio e à faina. Esta existência difícil consubstanciou-se na formação de comunidades muito fechadas, com costumes e formas de vida próprias, diferentes e estranhas, relativamente às das comunidades já estabelecidas na Borda d´Água. As suas comunidades estavam, claramente, apartadas como consequência de vários aspectos essenciais como o casamento, o trajo, a religiosidade, o folclore, as crenças, as mezinhas, entre outros. Aliás o apodo de “cigano” pode também ter surgido pelo facto de os Avieiros, enquanto sociedade fechada e repudiada, terem o hábito (forçado) da endogamia, como forma de protecção, de preservar o conhecimento que tinham das artes da pesca e para darem continuidade às suas tradições.

A forma de estar na vida, que caracterizava os pescadores oriundos da Praia da Vieira, era desconhecida, incompreendida e socialmente marginalizada pelas comunidades locais, e por isso os pescadores migrantes, nos primeiros tempos de fixação nas margens do rio Tejo, tiveram de enfrentar a animosidade dos autóctones, vendo-se obrigados a viver muitos anos dentro dos barcos, apelidados de bateiras (18), saveiros (19) e caçadeiras (20) onde guardavam todos

18

- As bateiras são barcos que têm a proa e a ré em bico e viradas para o céu, medindo entre quatro metros e meio e sete metros. Por fora, são pintadas a pês negro e por dentro com cores vivas e alegres.

19

- Os saveiros são embarcações de cinco a sete metros de comprimento, utilizadas pelos Avieiros que faziam os seus próprios barcos para garantirem o sustento da família e que têm

(29)

29 os haveres e os instrumentos necessários à pesca. Barcos que eram o seu principal instrumento de trabalho, o seu lar, o meio de transporte e tantas vezes a tumba. Ali trabalhavam, dormiam e comiam. Era também ali que muitas vezes pariam e eram criados os filhos. Na proa era colocado um toldo para servir de abrigo contra as borrascas e era debaixo dele que a família dormia; depois da

“emparadeira” (21

), dentro de uma caixa de madeira, era colocado um monte de areia para que pudessem fazer lume e que servia de cozinha; a parte da ré era a oficina da pesca e onde se guardavam as redes. (Figura 3)

Relativamente ao meio ribeirinho, partilhando a mesma pobreza, constituíam um universo reservado, com leis próprias.

1.3.5 - Assentamentos Avieiros

Como já se referiu, os Avieiros, com o decorrer do tempo, foram-se fixando, definitivamente, nas margens do Tejo. São várias as causas apontadas para esta fixação, e como refere Salvado (1985) “ (…) cá davam-se melhor,

porque adoeceram dos pulmões e lhes fazia mal o ar do mar” (p.31). Com a

fixação definitiva, surge a necessidade de encontrar um lar mais estável, resistente e confortável. Pouco a pouco na Borda-d’Água Tagana começam a erguer pequenas barracas totalmente construídas em caniço, e logo que as condições económicas o permitiam começavam a comprar madeira; aos poucos iam construindo as suas pequenas casas em comunidades de características muito peculiares.

Assim se foram, aos poucos, fundando os assentamentos Avieiros. Baldaque da Silva (1981), com base nos dados do Inquérito Industrial de 1890, referencia os seguintes portos fluviais no rio Tejo: Vila Franca de Xira,

vindo a desaparecer dando lugar aos barcos de fibra. Restam, apenas, aos pescadores, as memórias e a transmissão dos legados a outras gentes.

20

- As caçadeiras são embarcações tipicamente portuguesas que eram também conhecidas por canoas do alto. Existiam em quase todos os centros de pesca do país, embora com maior relevância para sul do Cabo da Roca e costa algarvia. Tinham muita quilha à ré, proa arredondada e popa de painel.

21

(30)

30 Alcochete, Aldeia Galega, Muge, Santarém, Constância e Abrantes. Por sua vez Micaela Soares (1978) refere no Boletim Cultural da Junta Distrital de Lisboa a existência de cerca de oitenta aldeias de Avieiros desde Sacavém até Abrantes.

Véstia e Rafael (2011) após a observação, recolha e processamento de dados nos documentos do Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Santarém, referenciam a localização de várias comunidades Avieiras no Distrito de Santarém no período entre 1863 e 1957.

Quadro.1

1863 – Ómnias (Santarém)

1871 - Ponte do Vale de Santarém (Santarém) 1871- Patacão (Alpiarça)

1872 – Caneiras (Santarém) 1880 - Vala de Almeirim (Almeirim)

1888 – Barreira da Bica (Santarém) 1893 - Porto de Muge (Cartaxo) 1912 - S. Vicente do Paúl (Santarém)

1957 – Touco (Alpiarça)

Fonte: Véstia, L., Rafael, E. (2011) Avieiros - Dores e Maleitas, p. 53

As primeiras habitações nas margens do Tejo, semelhantes aos palheiros (22) de Mira (Soeiro de Brito, 1981) e da Praia da Vieira (Figura 4), mais tarde transformaram-se em construções palafíticas (23) elevadas do solo e sustentadas por estacas de madeira ou por estacas de pedra, dependendo da zona onde queriam construir a casa, para as manter acima do limite da água, em época de

22

- A referência mais antiga e conhecida de palheiros em Mira data de 1875 (Soeiro de Brito, 1981). A maior originalidade deste aglomerado de pescadores era exactamente a sua arquitectura de madeira em que as casas chegavam a atingir dois e mesmo três andares, possuindo dimensões não encontradas noutras praias e formando a quase totalidade da povoação até ao final dos anos 60.

23

- As construções palafíticas são habitações rústicas de madeira, erguidas sobre estacas resistentes e profundamente enterradas.

(31)

31 cheias ou da subida das marés. As cozinhas eram construídas em madeira e exteriores às casas (Figura 5).

Os Avieiros apelidavam as suas próprias habitações de “barracas”, sem que isso tivesse um sentido depreciativo, tão-somente pelo aspecto que tinham, todas em madeira e bastante rudimentares. Como refere Redol (2011) “(…)

pequenas, talvez para que as não vissem, ou tímidas para que não as mandassem destruir. Ou pequenas e tímidas por causa dos materiais e das agruras do tempo” (p. 195).

1.4 - Avieiro sem alcunha não é Avieiro

Uma, entre muitas, das singularidades dos Avieiros é o facto de quase todos possuírem uma alcunha que lhes é “arranjada” em criança e que se mantém pela vida fora, ou então que a vida se encarrega de lhes proporcionar pelas vivências que vão enfrentando. As alcunhas são marcas identitárias que a família Avieira ostenta com orgulho. É uma tradição de que ninguém sabe explicar a sua generalização, mas todos têm um segundo nome pelo qual são conhecidos pelos outros Avieiros. Nas comunidades Avieiras, como em muitas praias de Portugal, as alcunhas são o verdadeiro nome dos pescadores, nasce-se com a alcunha do pai, da mãe, da família, da terra de nascimento ou de adopção, entre outros, acabando em alguns casos, por se transformar em apelido.

Em muitas regiões e povoações existem alcunhas pelas quais são conhecidas e identificadas algumas pessoas, mas talvez não haja região onde tal facto tenha tanta usança como entre os habitantes da Borda d’Água Tagana. Segundo Teixeira (2007), sendo a alcunha uma das formas de referência por “etiquetagem”, dos membros de uma comunidade, ela tem cabimento sobretudo em espaços geográficos e demograficamente limitados, de modo a permitir o seu reconhecimento dentro da comunidade. O uso generalizado de alcunhas só possível pela facilidade de memorização, mais do que um elementar substitutivo humorístico ou agressivo do nome ou da designação funcional dos afectados, resulta do carácter social da comunidade. As alcunhas têm na sua génese, quase sempre, uma motivação particular, seja de natureza sociocultural ou económica, seja devido a acontecimentos marcantes.

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32 Para melhor percepção do exposto dão-se alguns exemplos de alcunhas de Avieiros: Manuel Sequeira da Silva foi cognominado de “Servo”, pelo facto de ser bastante subserviente, Luís Cosme, conhecido como “Cosminha” por ser o filho mais novo da família Cosme, Mário João Petinga responde pelo nome de “Cientista” por ser dado às experiências e ás reparações domésticas e Manuel João Carriço é apelidado de “Póri” porque no atabalhoado da conversação utilizar esta palavra para abreviar “por isso”.

No caso específico das depoentes, deste estudo, elas são reconhecidas pelas alcunhas de Iria do Touco e Emília da Bica e facilmente se depreende a proveniência, pela clareza do seu significado, que se prende com o facto de Iria ter aceitado como alcunha o nome da comunidade (Touco, Alpiarça) que a recebeu quando se casou e onde fundou a sua própria família, e Emília ter recebido como alcunha o nome da terra que a viu nascer e crescer (Barreira da Bica, Vale de Figueira, Santarém).

(33)

33

Capitulo 2 - Metodologia

2.1 - Público-alvo

Identificaram-se como público-alvo todos os elementos constituintes da comunidade Avieira da Borda d’Água Tagana, tendo-se, no entanto, restringido o estudo a duas mulheres, idosas, pescadoras Avieiras.

Para chegar às duas participantes deste estudo, percorreram-se vários caminhos. Na preparação, durante o mês de Junho de 2012, do 3º Congresso Nacional da Cultura Avieira, o Instituto Politécnico de Santarém e o Gabinete da Cultura Avieira, segundo proposta por nós apresentada, decidiram ser aquele o momento certo para homenagear pescadores Avieiros que, durante o seu percurso de vida, tivessem sido promotores de ensinamentos das aptidões e técnicas que dominam e que são consideradas repositórios de valor histórico e cultural para a comunidade Avieira, com o objectivo de divulgar e preservar esse património (Figura 6).

Durante o 3º Congresso foram promovidos a Porta-vozes da memória Avieira, três homens e três mulheres, que foram criteriosamente escolhidos pela Associação para a Promoção da Cultura Avieira – APCA, baseando a escolha no perfil, percurso de vida dentro da comunidade Avieira, espalhada pela Borda d’Água Tagana, e domiciliados em aldeias distintas. Todos eles apresentavam traços comuns, mesmo não tendo convivência conjunta. Dentre estes, uns mostraram indisponibilidade para serem entrevistados para a elaboração deste estudo e outros não se encontravam em condições físicas para o fazer. Dessa amostra, Iria e Emília mostraram disponibilidade e até algum orgulho pelo facto de alguém se mostrar interessado em conhecer e partilhar as suas memórias e “heranças”.

Os indivíduos, considerados beneficiários do resultado do trabalho, foram tratados enquanto pessoas com sentimentos e necessidades específicas e não como objectos passivos e receptores da intencionalidade externa. Levou-se sempre em conta a participação activa da comunidade Avieira, de acordo com o contexto e com a visão da realidade social como um todo. É forçoso dar prioridade à visão e ao ponto de vista do indivíduo a partir da sua vivência quotidiana e não da necessidade do trabalho em curso, de modo a evitar a

(34)

34 segmentação da realidade, geralmente provocada quando os trabalhos não levam em consideração o público-alvo.

2.2 - História de vida

A recolha de dados é uma das etapas que nos permite preparar e aplicar um instrumento, tendo como intenção obter esses dados através de métodos específicos, que têm em conta as características do público-alvo e os objectivos desejados. Tendo em vista as especificidades do objecto de estudo optou-se por uma abordagem qualitativa, uma vez que o propósito é produzir sentidos caracterizadores que surjam da interacção entre a entrevistadora e as informantes.

Os métodos qualitativos em ciências sociais são compostos, essencialmente, pelas técnicas da entrevista e da observação participante, ou seja, são direccionados para procedimentos centrados na investigação em profundidade, conduzida de acordo com procedimentos regulares, repetidos e levados a cabo, sobretudo, em períodos mais centrados no médio e longo prazos. O objectivo destes métodos é o de permitir que a investigação possa recolher e reflectir principalmente aspectos enraizados, menos imediatos, dos hábitos dos sujeitos, grupos ou comunidades em análise e, simultaneamente, possa sustentar, de modo fundamentado na observação, a respectiva inferência ou interpretação dos seus hábitos. Segundo Moreira (1994) “(…) os dois grandes

métodos de obtenção de dados qualitativos são a observação participante ou etnografia, como é hoje cada vez mais designada, e a entrevista qualitativa, em profundidade ou não estruturada” (p.31).

Dentro da metodologia qualitativa, as abordagens biográficas caracterizam-se por um processo de reviver episódios e por um revisitar da própria vida. A memória é algo presente na existência do Homem, sendo de relevante importância que a sua recuperação seja feita de modo cuidadoso e ético pois pode ser constituída por lembranças vividas a diferentes níveis: da história colhida como memória ensinada (educação escolar); da história recebida oralmente (tradições) e da história como vivência pessoal. É a vivência pessoal que se deve utilizar como fonte de esclarecimento do passado (Vidigal, 1996).

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35 O conceito de “história de vida”, conforme Bertaux (1980) é o relato da vida ou de episódios da vida, contados tal como o indivíduo os vivenciou. Por sua vez, Haguette (1992) sugere que o método de história de vida confronta duas ópticas metodológicas, podendo ser aproveitado como documento ou como técnica de captação de dados.

Ao utilizar o método da história de vida o pesquisador não confirma a autenticidade dos factos, pois o importante é o ponto de vista de quem os relata. Este método é um trabalho de pesquisa que se constrói, basicamente, com uma recolha de dados de carácter biográfico, sobre um ou mais indivíduos, sendo que a principal fonte de informação, mas não necessariamente a única, são os próprios.

O conceito história de vida encerra metodologias e métodos muito distintos, quer pelo carácter da presença do pesquisador na recolha de dados, pela análise dos materiais recolhidos ou pelas hipóteses que avalia.

Este método permite recolher informações do percurso de vida de um determinado indivíduo, ou indivíduos, assim como conhecer a sua experiência, prática e óptica, e não há melhor forma do que obter estas informações através da voz do próprio, ou próprios. O processo serve-se da trajectória individual, procurando divisar as informações contidas na vida pessoal de um ou de mais informantes, proporcionando uma quantidade de pormenores sobre o objectivo da investigação. Deve-se portanto dar ao indivíduo liberdade para conversar livremente sobre a sua experiência pessoal em relação ao que é perguntado.

O Homem é, por excelência, um contador de histórias e essa possibilidade fascina-o desde tempos muito remotos, talvez desde a aquisição da linguagem, pois de todos são conhecidos os vestígios deixados quer do ponto de vista da linguagem, visual, ou oral, expressos em hieróglifos, ícones, ex-votos e fábulas.

Apesar de compreender algumas limitações, a história de vida deve ser entendida como um método capaz de produzir interpretações sobre os processos históricos que se reportam a um passado recente, o qual, muitas vezes, só é transmitido por indivíduos que participaram ou testemunharam algum tipo de ocorrência. Quando um indivíduo relata as suas memórias, transmite emoções e vivências que podem e devem ser compartilhadas,

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Figura 1 – Barcos de água acima no porto da Ribeira de Santarém
Figura 4 – Palheiro da Praia da Vieira de Leiria
Figura 6 – Família Avieira preparada para a faina
Figura 8 – Mulher Avieira a costurar dentro do barco
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Referências

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