Religião, Religiosidade e Espiritualidade na perspectiva do Budismo
Texto
(2) 383 Na categoria da religiosidade – aquela cuja definição reconhecemos ser a mais problemática, por abranger um número mais vasto de fenómenos e possibilidades – incluímos todas as formas de difusa e não plenamente reflectida aspiração à felicidade e à plenitude, por uma inquietação que visa a transcensão e transformação do existente, numa escala ascendente de amplitude, consciência e consequências, em que cada nível é como que a cristalização, mas também o trampolim, de um impulso que genesíaca e intrinsecamente tende para mais além: 1) a nível elementar, transcensão e transformação das limitações mentais, emocionais e materiais do indivíduo; 2) a nível intermédio, e integrando o primeiro numa abertura ética, transcensão e transformação das limitações morais, culturais, sociais, económicas e políticas das comunidades humanas; 3) a nível superior, e integrando os dois anteriores, transcensão e transformação das limitações da própria condição humana, ou mesmo das limitações da própria existência, abrindo para um horizonte mais vasto, no limiar do qual se questiona, divisa ou experimenta o absoluto, o sagrado, o divino, a natureza fundamental de todas as coisas ou o sentido último da existência, como algo que não surge apenas como um mero objecto intelectual, mas antes ou também como um alvo do amor mais apaixonado, a suscitar uma intensa exaltação, entrega e compromisso da vida. Como se constata, é apenas neste terceiro e mais depurado nível de religiosidade, inaugurado pela questão, inquietação ou visão metafísica, ou já pelo arrebatamento ou contemplação místicos, que se podem integrar, entre outras expressões, alguns aspectos das formas tradicionais das religiões históricas, verificando-se que os dois anteriores podem consistir em tão diversas determinações e limitações do originário ímpeto religioso como a busca do sucesso material ou sentimental do indivíduo e da transformação das condições comunitárias de existência, quando desligada da profunda transformação da consciência individual e de qualquer concepção e/ou experiência do sentido global e último da existência, do mundo e da realidade. Na categoria da religião entendemos todas as formas de orientação e determinação doutrinal e/ou dogmática, ritual e institucional do impulso da religiosidade, num estatuto ambíguo que, visando depurá-la dos níveis mais elementares, menos amplos e menos conscientes onde, como vimos, pode cristalizar, corre frequentemente o risco ou resvala na tentação de a conter, condicionar e desvirtuar no que tem de mais profundo e genuíno, ou seja, e como igualmente se referiu, a sua inquietação metafísica e mística,. 384 que frequentemente a religião, isto é, as religiões, sacrificam na tentativa de adequarem as suas mensagens às dominantes condições sociais, culturais e históricas da sua recepção, procurando torná-las acessíveis a todos os homens, mas onde se torna por vezes difícil discernir uma positiva intenção ético-pedagógica e um problemático, senão perverso, proselitismo, enquanto tentativa de obter o poder e a hegemonia sobre as consciências e as vidas, primeiro em termos espirituais e morais e depois políticos. A religião, no particular sentido que aqui lhe atribuímos, é pois a religiosidade organizada em religiões, em ismos, com toda a estrutura dogmático-institucional que implicam e manifestam. Todavia, e esta é uma inquietante evidência que importaria não ser escamoteada pelos aderentes de toda e qualquer religião, nenhuma religião existiria sem um fundador, revelador ou profeta primeiro, divino, divino-humano ou apenas humano, e, mais essencialmente, sem uma experiência primeira, os quais, apesar de se proporem como exemplos e fins absolutos a seguir e a atingir, não parecem conformar-se com os quadros da experiência mediana que estrutura as religiões positivas. Em termos muito crus, como já se tem dito, e para não falar senão dos exemplos mais evidentes: Buda não foi nem é budista, Cristo não foi nem é cristão; e a experiência da Iluminação, ou da Morte e da Ressurreição, ambas pelo Bem do mundo, não são necessariamente o que estrutura, ao menos como ideal, as vidas de muitos ou da grande maioria dos auto-designados e supostos budistas ou cristãos, nem sobretudo o que se exige e aplica, por parte das respectivas instituições, como critério para o levantamento estatístico do número dos seus fiéis e praticantes (o qual, se este critério pudesse ser objectivável, ou seja, se as intenções do coração pudessem ganhar visibilidade, seria natural e drasticamente diminuído!). O que é que isto significa, para além da irrelevância espiritual das estatísticas acerca do número de praticantes e fiéis de cada uma das religiões, da evidência das imperfeições humanas ou da necessidade da perfeição implicar um longo e gradual caminho para a grande maioria dos homens? Significa, a nosso ver, o carácter meramente mediador da religião e das chamadas religiões, que, na sua mesma origem e como garantia da sua autenticidade, enquanto fidelidade a essa origem, dependem de uma instância superior, aquilo que aqui designamos como experiência-cume – patente nos seus fundadores, no acontecimento da sua fundação e em todos aqueles que na sua vida o renovam e até aprofundam –, e que não é apenas.
(3) 385 o seu factor originário, mas, acima de tudo, o seu fim último. A autenticidade da religião, e logo a autoridade e legitimidade ético-espiritual das religiões, só pode existir enquanto promovam a depuração das dimensões menores da religiosidade e a realização do sentido último do seu impulso mais genuíno, aquela mesma experiência-cume que antecipamos como o acesso de cada consciência, tão directo, imediato e íntimo quanto possível, a uma plena vivência do sentido ou natureza última das coisas, convertida em fonte da sua irrestrita partilha com a totalidade dos seres. É por isso que os mais autênticos praticantes de cada religião foram, são e serão sempre os chamados sábios, místicos e santos, exactamente aqueles que mais se libertam da mediania – ou mediocridade – das multidões de fiéis e que, cumprindo plenamente o sentido da sua religião e da religião enquanto tal, simultaneamente mais as transcendem naquela latente universalidade da experiência do sagrado, do divino ou do real, em que o próprio dogma ou doutrina, não sendo necessariamente rejeitados, se transfiguram pela conversão da letra, que mata, no espírito, que vivifica (cf. São Paulo, 2ª Coríntios, 3, 6). São eles que, na mesma medida em que transcendem a religião em espiritualidade, renovam e preservam a autenticidade das religiões, impedindo que totalmente se convertam em fins em si, em sistemas fechados de auto-gratificação que se auto-reproduzam não como vias para a transcendência, mas como obstáculos à mesma, sempre que julgam poder possuí-la na letra morta do dogma e no hábito não menos defunto do rito ou, pior, na eficácia e privilégios do poder mundano. São eles, por vezes em latente ou aberto conflito, como a história amplamente o mostra, com os administradores e funcionários do sagrado, com os polícias do divino e do espírito, com os burocratas da salvação ou da iluminação, com os intelectuais e doutrinadores sem experiência vivida do que pregam, que têm garantido e garantem hoje, para a religião e as religiões, outro futuro que não o de “cadáveres adiados que procriam”, conforme dizia Pessoa. Mas como indicar melhor, até onde os conceitos e as palavras são vias e não obstáculos, a natureza e o sentido dessa experiência-cume, que apresentámos como a plena vivência, quanto possível directa, imediata e íntima, do sentido ou natureza última das coisas, oferecida à totalidade dos seres? Naturalmente que as respostas vão depender de se seguir ou não uma religião, e de qual a religião que se siga, como via, porventura ainda a transcender, para o pleno cumprimento do sentido mais profundo da religiosidade. Procurando uma fórmula abrangente de várias possibilidades,. 386 diremos que essa experiência culminante da religiosidade e da religião, essa experiência-cume de todas as experiências possíveis, se caracteriza, num caso, e numa primeira vertente, pelo progressivo ou súbito reconhecimento e vivência da afinidade e união, ou, numa segunda vertente, da identidade, entre o sujeito, o objecto da actividade religiosa e essa mesma actividade; e, noutro caso, pelo progressivo ou súbito reconhecimento da ausência de qualquer referente objectivo para essas noções de sujeito, objecto e actividade religiosa, denunciadas como meras imputações conceptuais, funcionais num plano provisório, mas ilusórias se confrontadas ou, ainda mais, se confundidas, com a natureza última das coisas. Estão no primeiro caso, na sua primeira vertente, as experiências religiosas ou místicas da união da alma com Deus, dominantes nas religiões teístas criacionistas e mais marcadas pela dualidade, em que predomina o imaginário da união nupcial e afectiva entre um Deus e uma alma afins mas não idênticos, embora o movimento da busca humana seja já o influxo da graça e do amor divinos. E pertencem ainda ao primeiro caso, na sua segunda vertente, as experiências, já mais místico-contemplativas do que religiosas e afectivas, da identidade ou consubstancialidade entre a alma e a divindade, mais raras e consideradas com fortes reservas ou como heterodoxas nas religiões teístas criacionistas, como no caso de Mestre Eckhart no cristianismo e de Hallâj no islamismo, e mais estimuladas nas formas de religião teísta não-dualista como a tradição vedântica no chamado hinduísmo, sobretudo exemplificada por Shankara. Se nestes dois aspectos do primeiro caso a diferença do sujeito, do objecto e da acção religiosa tende, em última instância, a subsumir-se numa unidade ou não-dualidade realizada ou reconhecida como desde sempre existente, já no segundo caso, de que o exemplo mais típico e radical é o da experiência não tanto budista, mas búdica – a própria experiência do Despertar ou da Iluminação –, verifica-se que nela nada se passa senão o reconhecimento de que o sujeito, o objecto e a acção religiosa que supostamente os relaciona nunca existiram verdadeiramente, quer como distintos, quer como idênticos. Não lhes podendo ser aplicada, tal como a qualquer fenómeno, nenhuma das quatro possibilidades da predicação lógica, contidas no tetralema – A, não A, A e não A, nem A nem não A, ou ser, não-ser, ser e não-ser, nem ser nem não-ser –, a mente pacifica-se na vacuidade de si e de todos os fenómenos, o bem-aventurado abandono de todas as posições conceptuais, ou seja, de todas as reificações e entificações movidas pelo desejo de posse e pela ignorância e insegurança de onde.
(4) 387 procede. Como diz Nagarjuna: “Abençoada é a pacificação de todo o gesto de apropriação, a pacificação da proliferação das palavras e das coisas”1. Naturalmente que aqui se deve dizer que a plenitude do desvendamento da natureza última das coisas e do sentido último da existência, coincidindo com o fim de todos os conceitos, inclui os de natureza última das coisas ou sentido último da existência, e bem assim os de Buda, Nirvana, Vacuidade ou Iluminação, os quais, por serem budistas, não são menos conceitos, ou seja, ilusórias formas de dar forma, id-entidade e de-finição, ou seja, limite, ao que o não tem. É neste sentido que aponta o paradoxal dito Zen: “Se encontrares o Buda, mata-o!”. Seja como for, e seja qual for o aspecto que esta experiência-cume assuma, o que avulta é que, confrontados com ela, os três níveis da experiência anterior – a irreligiosidade, a religiosidade e a religião –, se revelam em diverso grau mas identicamente afectados de imperfeição. O que os parece caracterizar é a insuficiente reflexão sobre o sentido de uma aspiração vivida predominantemente a nível instintivo, emocional e conceptual, e assim condicionada pelos hábitos e mecanismos inconscientes de dualidade conceptual geradores e reprodutores da aversão e atracção típicas do que se pode chamar a consciência mundana, caracterizada pela experiência da separação e pela noção da sua existência enquanto tal, como entidade independente num mundo composto de entidades igualmente independentes, traduzida num egocentrismo primeiro metafísico e depois existencial e psicológico. Egocentrismo que faz com que o centramento do desejo no bem do sujeito, individual ou colectivo – entendido como a posse de algo que não traga já oculto em si, só susceptível de descobrir por uma profunda transformação interior –, o torne dependente das projecções que faz do objecto desse desejo, que tende a reificar e divinizar como a entidade exterior da qual depende toda a sua felicidade (ao mesmo tempo que tudo o que se oponha, a esse objecto e à felicidade do sujeito que se crê dele depender, é implicitamente diabolizado, pelo reverso do mesmo fenómeno que é a aversão). A religiosidade, neste sentido, e enquanto não for suficientemente depurada pela razão crítica e analítica, está na origem de todas as formas de idolatria e conflito que frequentemente se substituem à, ou confundem com a, religião propriamente dita, tal como esta, igualmente idólatra, tende a confundir as suas visões conceptuais e dogmáticas do divino ou da iluminação com a experiência-cume de que falámos. É assim que podemos observar, ao longo dos tempos, e talvez mais visível e. 388 predominantemente hoje em dia, a divinização do dinheiro e da riqueza, do sucesso profissional, desportivo e político, do sucesso intelectual, sentimental e sexual, da transformação social, política e económica, e bem assim de imagens do divino, do paraíso ou da espiritualidade construídas à medida dos desejos e aversões, dos medos e expectativas, de uma humanidade e de uma mente que, num assomo extremo de materialismo, tão mais grave quanto espiritual, tudo quer possuir sem que nada aceite sacrificar, preferindo alimentar a esperança vã de que o mundo se transforme, por um golpe da fortuna, por um milagre da Providência ou por uma qualquer New Age astro-cosmológica, a assumir a tarefa árdua de lançar mãos à inevitável tarefa da transformação interior. Cabe aqui lembrar como até hoje sempre morreram frustrados todos aqueles que esperaram o advento histórico e exterior de um mundo ideal, em vez de terem investido na transformação interior que lhes permitiria, limpando a poeira dos próprios olhos, ver melhor o mundo e, a partir daí, beneficiarem realmente os seus próximos... É assim que consideramos a hipótese de que o melhor porvir da religião, porque mais conforme com as superiores possibilidades e aspirações da consciência humana, estaria no reconhecimento e operacionalidade do seu carácter meramente mediador entre a religiosidade e a experiência-cume referida. A ser assim, surge naturalmente a questão de se o horizonte último e ideal da religião, bem como de toda e qualquer religião específica, não será a sua superação num estado da consciência e da vida que, num sentido, se poderá dizer religioso, mas, num outro, porventura mais profundo, se deverá dizer a-religioso, pois nele não há nada a re-ligar, uma vez que tudo já se religou ou, é esta a nossa perspectiva, se reconhece que desde sempre e para sempre nada houve, há ou poderá haver desligado ou separado, para além das aparências de um mundo conceptualmente representado. O que obriga ainda a considerar a possível dimensão a-teia, a-teológica e a-gnóstica da experiência religiosa e/ou espiritual mais profunda. Não podendo aqui desenvolver plenamente esta questão fundamental, diremos apenas que, unificando-se e fundindo-se sujeito e objecto, ou reconhecendo-se a sua irrealidade, nas duas possibilidades da experiênciacume atrás apontada como o alvo supremo do próprio impulso religioso, deixa de haver o termo de alteridade necessário para que qualquer forma de identidade subsista e a si mesma se reconheça. Mesmo na perspectiva teísta, o caso limite de uma plena união com Deus poderia levar, pela fusão do sujeito no seu divino objecto, a abolir o ser Deus de Deus, que pode não.
(5) 389 ser senão um ser para outro, não um ser em si... E, pelo mesmo motivo, uma plena fusão sujeito-objecto, ou um reconhecimento da sua irrealidade última, pode não deixar lugar senão a uma experiência que, sendo num sentido sapiencial e cognitiva, num outro pode revelar-se desprovida de qualquer forma e conteúdo subjectivos ou objectivos, como no ver sem ver de que falam muitas experiências místicas e iluminativas... Enfim, e para concluir, do apontarem-se estes horizontes, possibilidades e cumes, ou abismos, últimos da experiência humana, não se segue que pretendamos ou esperemos que se instaurem como a norma da própria humanidade, numa qualquer Idade de Ouro ou Paraíso terrestre que venham sem que todas as consciências cumpram o longo processo, ou o súbito instante, iniciáticos, da sua radical transformação. Evitando o utopismo e a ingenuidade, mais vale reconhecer que tudo é natural – a irreligiosidade, os vários níveis de religiosidade, a religião e as religiões – em função dos diferentes níveis de evolução dos seres e das consciências. No fundo, para quem saiba ver – ou não ver, conforme a perspectiva –, tudo é uma única e eterna Grande Perfeição. Na forma, ou seja, na superfície, a mesma Grande Perfeição manifesta-se em diferentes níveis, ou seja, em diferentes graus de imperfeição aparente, consoante as limitações das consciências para as quais se manifesta. Mas qual é o problema, se conseguirmos ver que o fundo é a forma e a forma é o fundo? Que a superfície e o fundo são inseparáveis? Ou, na versão búdica do Sutra do Coração, que “as formas são vacuidade e a vacuidade, ela própria, são as formas”2?. Notes: 1. Cf. Nagarjuna, Stances du Milieu par Excellence (Madhyamaka-karikas), 25, 24, traduzido do original sânscrito, apresentado e anotado por Guy Bougault, Gallimard, 2002, p.334. 2. Cf. Sutra do Coração do Conhecimento Transcendente, traduzido do sânscrito por Patrick Carré, in Soutra du Diamant et autres soûtras de la Voie médiane, traduções do tibetano por Philippe Cornu, do chinês e do sânscrito por Patrick Carré, Fayard, 2001, p.77..
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