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A Reforma do Direito das Contraordenaes - II Jornadas Tribunal da Concorrncia, Regulao e Superviso

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Academic year: 2021

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Resultado da colaboração estabelecida entre o Centro de Estudos Judiciários e a

Comarca de Santarém, surge este e-book que junta os textos das comunicações

apresentadas nas II Jornadas do Tribunal da Concorrência, Regulação e

Supervisão.

A matéria das Contraordenações e do Direito que a regula tem aqui abordagem e

desenvolvimento que abre caminho a novas reflexões, sempre úteis para a

comunidade jurídica.

É mais um e-book da “Coleção Caderno Especial” que continua a cumprir o

objectivo do Centro de Estudos Judiciários: disponibilizar em forma de acesso

universal conteúdos de excelência.

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Ficha Técnica Nome:

A Reforma do Direito das Contraordenações – II Jornadas Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão Coleção: Caderno especial Conceção e organização: Comarca de Santarém Coordenação executiva

Luís Miguel Caldas – Juiz Presidente da Comarca de Santarém Colaboração:

Edição e publicação:

Gravação vídeo:

Intervenientes:

João Manuel da Silva Miguel – Juiz Conselheiro, Diretor do Centro de Estudos Judiciários Orlando Nascimento – Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa

Luís Miguel Caldas – Juiz Presidente da Comarca de Santarém

José Lobo Moutinho – Professor Associado da Universidade Católica Portuguesa, Advogado José António Barreiros – Advogado

Catarina Varajão Borges – Membro da Equipa vencedora da 1.ª edição do Moot Court Português de Direito da Concorrência, Faculdade de Direito da Universidade do Porto

Inês Neves – Membro da Equipa vencedora da 1.ª edição do Moot Court Português de Direito da Concorrência, Faculdade de Direito da Universidade do Porto

Ricardo Tavares – Membro da Equipa vencedora da 1.ª edição do Moot Court Português de Direito da Concorrência, Faculdade de Direito da Universidade do Porto

Tiago Monfort – Membro da Equipa vencedora da 1.ª edição do Moot Court Português de Direito da Concorrência, Faculdade de Direito da Universidade do Porto

Revisão final:

Edgar Taborda Lopes – Juiz Desembargador, Coordenador do Departamento da Formação do CEJ

Ana Caçapo – CEJ – Departamento da Formação Lucília do Carmo – CEJ – Departamento da Formação

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Notas:

Para a visualização correta dos e-books recomenda-se o seu descarregamento e a utilização do programa Adobe Acrobat Reader.

Foi respeitada a opção dos autores na utilização ou não do novo Acordo Ortográfico.

Os conteúdos e textos constantes desta obra, bem como as opiniões pessoais aqui expressas, são da exclusiva responsabilidade dos/as seus/suas Autores/as não vinculando nem necessariamente correspondendo à posição do Centro de Estudos Judiciários relativamente às temáticas abordadas.

A reprodução total ou parcial dos seus conteúdos e textos está autorizada sempre que seja devidamente citada a respetiva origem.

Forma de citação de um livro eletrónico (NP405‐4):

Exemplo:

Direito Bancário [Em linha]. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 2015. [Consult. 12 mar. 2015].

Disponível na

internet: <URL: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Direito_Bancario.pdf. ISBN 978-972-9122-98-9.

Registo das revisões efetuadas ao e-book

Identificação da versão Data de atualização

1.ª edição –19/10/2018

AUTOR(ES) – Título [Em linha]. a ed. Edição. Local de edição: Editor, ano de edição.

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A Reforma do Direito das Contraordenações -

II Jornadas Tribunal da Concorrência,

Regulação e Supervisão

Índice

1. Discurso de abertura do Juiz Presidente da Comarca de Santarém 9

Luís Miguel Caldas

2. Discurso de Abertura do Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa Orlando Nascimento

15

3. Regime Jurídico das Contraordenações: Revisão, Sistematização e Novas Soluções 21

José Lobo Moutinho

4. Regime Jurídico das Contraordenações: Revisão, Sistematização e Novas Soluções 29

José António Barreiros

5. O artigo 69.º, n.º 2, da Lei da Concorrência, Lei n.º 19/2012, de 8 de maio 37

Catarina Varajão Borges

6. O lugar da proteção de dados na efetividade necessária ao Direito da Concorrência Inês Neves

43

7. Responsabilidade da empresa-mãe por infrações das subsidiárias 51

Ricardo Tavares

8. Breves Notas sobre o art. 71.º, n.º 1, al. a), da LdC 57

Tiago Monfort

9. O lugar da proteção de dados na efetividade necessária ao Direito da Concorrência 63

Catarina Varajão Borges, Ricardo Tavares, Inês Neves, Tiago Monfort

10. As Garantias Fundamentais do Direito das Contraordenações à luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem

João Manuel da Silva Miguel

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1. DISCURSO DE ABERTURA DO JUIZ PRESIDENTE DA COMARCA DE SANTARÉM

Luís Miguel Caldas

- Exmo. Senhores Presidentes dos Tribunais da Relação de Lisboa e de Évora, e Exma. Sra. Vice-Presidente da Relação de Coimbra, por si e em representação do Sr. Vice-Presidente.

- Exmo. Senhor Magistrado do Ministério Público Coordenador da Comarca de Santarém; - Exmos. Senhores Vogais do CSM, Juiz Desembargador Dr. Sousa Pinto, por si e em representação do Senhor Vice-Presidente do CSM, e Vogal Distrital de Évora, Dr. Rodolfo Serpa - Exmo. Senhor Dr. José António Barreiros, por si e em representação do Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados;

- Exmos. Senhores Juízes Conselheiros, Desembargadores e Juízes de Direito, com um cumprimento especial para os colegas Juízes Presidentes;

- Exmos. Senhores Magistrados do Ministério Público; - Exmos. Senhores Advogados;

- Exmos. Senhores Representantes de Autoridades Administrativas;

- Ilustres Conferencistas, a quem agradeço penhoradamente o terem aceitado participar nestas Jornadas;

- Minhas Senhoras e meus Senhores.

Sr. Presidente, com a sua permissão, dirijo umas breves palavras ao auditório, antes de V.ª Ex.ª declarar oficialmente abertas as II Jornadas do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão.

Quando, há cerca de 2 meses, os meus colegas do Tribunal da Concorrência enviaram o memorandum contendo o programa deste evento, cuja realização o Conselho Superior da Magistratura autorizou, e tomámos a iniciativa de levar a cabo as Jornadas, estava longe de imaginar que hoje, dia 20 de Abril, estaríamos aqui reunidos na presença de mais de 150 pessoas…

É um momento marcante para a Comarca de Santarém e para o Tribunal da Concorrência, a concretização das suas II Jornadas, sobretudo, permitam-me dizê-lo, pela inegável qualidade do conjunto de oradores e moderadores que se logrou concertar nesta data e neste local. Recordo perfeitamente que um dos primeiros telefonemas que fiz – por entender que seria tarefa votada ao fracasso limitar-me a dirigir convites formais escritos a cada um dos convidados – foi para o Sr. Professor Lobo Moutinho.

Não conhecia pessoalmente o Sr. Professor.

* Juiz de Direito, Juiz Presidente da Comarca de Santarém.

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A REFORMA DO DIREITO DAS CONTRAORDENAÇÕES - II JORNADAS TRIBUNAL DA CONCORRÊNCIA, REGULAÇÃO E SUPERVISÃO 1.Discurso de abertura do Juiz Presidente da Comarca de Santarém Pensei, nesse momento, até que ponto conseguiríamos definir o painel de conferencistas e qual seria a reacção dos vários contactados.

Não esqueço o entusiasmo sincero e amigo que o Sr. Professor me expressou, e que me fez avançar, um a um, mais confiante, para os restantes convidados.

Todos, todos sem excepção – Dr. José António Barreiros, Dr. Beça Pereira, Dr. João Miguel, Dr. Cura Mariano, Prof. Faria Costa, Prof. João Caupers, sem esquecer, evidentemente, os alunos da Faculdade de Direito do Porto (a Catarina Borges, o Ricardo Tavares, a Inês Neves e o Tiago Monfort) – manifestaram o mesmo entusiasmo e profundo empenho em aqui estarem, apesar dos seus múltiplos afazeres profissionais e de estudo, reconhecendo que as Jornadas – eram e são –, uma iniciativa da única e exclusiva responsabilidade do Tribunal, sem qualquer tipo de financiamento, gratuita e absolutamente voluntária.

Neste momento – e embora seja hábito endereçar os agradecimentos no final –, não posso deixar de saudar o Sr. Professor Miguel Ferro (e, na sua pessoa, o Professor Pereira Coutinho), tendo nós coordenado a realização das Jornadas com outro acontecimento relevante, que é a concretização da 2.ª edição do MOOT COURT Português de Direito da Concorrência.

A final dessa competição terá lugar amanhã, nas salas de audiência do Tribunal da Concorrência, e contará com a presença de 24 alunos das Faculdades de Direito da Universidade de Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, Universidade do Porto e Universidade Europeia.

Esta é uma das notas distintivas da concertação das iniciativas: abandonámos, deliberadamente, o arquétipo mais escolástico que caracteriza, por vezes, alguns destes eventos e integrámos os mais novos para também nos ensinarem.

Por isso mesmo, um dos painéis de hoje consistirá na apresentação de um tema pela equipa vencedora da 1.ª Edição do MOOT COURT, a qual é constituída, em exclusivo, por estudantes da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, que, estou convicto, será um sucesso. É esta a abordagem que queremos: os mais velhos e os mais novos aprenderem uns com os outros, pois o conhecimento e, porque não dizê-lo, a ciência jurídica, só podem avançar se se abandonar a postura doutoral e se existir abertura para absorver com a experiência de uns e a vontade de apreender dos que há menos tempo se começam a interessar por estas temáticas. Agradeço, igualmente, ao Senhor Presidente da Câmara Municipal de Santarém, a amabilidade e interesse que desde a primeira hora manifestou em apoiar este evento, tendo acolhido, de imediato, o pedido que lhe enderecei para a cedência deste maravilhoso espaço.

E falando neste espaço, recordo que o Convento de São Francisco, onde hoje nos encontramos, fundado no ano de 1242 por D. Sancho II, constitui uma das Jóias do gótico mendicante em Portugal.1

1 Cf. O Convento de São Francisco de Santarém, Gérard Pradalié, 1992.

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A REFORMA DO DIREITO DAS CONTRAORDENAÇÕES - II JORNADAS TRIBUNAL DA CONCORRÊNCIA, REGULAÇÃO E SUPERVISÃO 1.Discurso de abertura do Juiz Presidente da Comarca de Santarém

No Séc. XIV, outro monarca, o Rei D. Fernando I, patrocinou obras de ampliação deste notável edifício, designadamente a construção deste lindíssimo coro-alto, no qual o próprio Rei viria a ser sepultado em 1382.

Infelizmente, o tempo passou e com ele a decadência do monumento avolumou-se…

A machadada final, com a extinção das Ordens Religiosas (1834), conduziu a que todo o conjunto monumental entrasse em declínio, assistindo-se à transformação do convento em aquartelamento militar, da igreja em depósito de palha, do claustro em cavalariça, e do coro-alto em refeitório…

Ainda há poucos dias, em conversa, o meu pai recordava que nas “Viagens na Minha Terra”, Almeida Garrett, ao falar da degradação do país e da miséria do povo português no Séc. XIX, aludia, com tristeza, ao estado decadente em que se encontrava o Convento de São Francisco de Santarém.

Em meados do século passado, no ano de 1940, o Convento foi destruído por um incêndio, que determinaria a trasladação dos túmulos de D. Fernando I (e da sua mãe D. Constança), para o Museu Arqueológico do Convento do Carmo, em Lisboa.

Fecho este parêntesis histórico, para relembrar o simbolismo que ocorre em, passados quase 8 séculos, estarmos aqui reunidos para debater um dos ramos mais recentes do Direito, o Direito das Contra-Ordenações, no mesmo local onde foi enterrado o pai da famosa Lei das Sesmarias.

Lei das Sesmarias, promulgada nas Cortes de Santarém, no Séc. XIV (28 de Maio de 1375) e que é um marco do Direito Português e uma verdadeira Lei Moderna, manifestando profundas preocupações, políticas e sociais, ainda hoje tão actuais, ao pretender fixar os trabalhadores rurais às terras e diminuir o despovoamento, estancando as constantes migrações para os grandes centros urbanos.

A propósito desta Lei, o Professor Adriano Moreira, com a sua Excelência, escreveu que “a leitura das circunstâncias em que foi promulgada (…) talvez desperte o talento governativo para a necessidade de hoje, que não é totalmente diferente da data daquela lei, olhar para a interioridade como um critério não apenas de contabilidade orçamental, mas antes com atenção à urgência de impedir que se agrave o desequilíbrio do território nacional”.2

Regressando ao presente, e ao tema que hoje nos reúne – o Direito das Contra-Ordenações –, relembro a intervenção do Senhor Juiz Conselheiro Dr. Henriques Gaspar, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, aquando da abertura das I Jornadas do Tribunal da Concorrência, neste mesmo local, há cerca de 2 anos:

2 Diário de Notícias, 6 de Dezembro de 2011.

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A REFORMA DO DIREITO DAS CONTRAORDENAÇÕES - II JORNADAS TRIBUNAL DA CONCORRÊNCIA, REGULAÇÃO E SUPERVISÃO 1.Discurso de abertura do Juiz Presidente da Comarca de Santarém “O direito de mera ordenação social nasceu historicamente ligado à concretização do princípio da subsidiariedade do direito penal e ao momento de descriminalização. A construção do direito de mera ordenação social pretendeu responder, através de um modelo mais maleável, à necessidade de protecção de interesses, ditos eticamente neutros, de natureza estritamente administrativa, e cuja afectação justificaria meios de natureza administrativa, com o sentido de mera advertência, despojada de toda a mácula ético-jurídica. (…)

Porém, o direito de mera ordenação social tem sofrido nos tempos mais recentes – podemos dizer o tempo da última década – profundas derivas, de primeiro e segundo grau, na razão da sua natureza e dos seus fundamentos dogmáticos.

Da razoabilidade intrínseca de sentido, que ultrapassava a dificuldade dogmática em retirar do juiz a competência sancionatória, justificada na natureza administrativa dos interesses e na menor gravidade das infracções, sem «ressonância ética», destinadas a assegurar a eficácia de comandos normativos da Administração, o ilícito de mera ordenação social tem vindo a assumir uma dimensão dificilmente imaginável num movimento de neo-punição, com o alargamento exponencial das acções que passaram a constituir ilícitos administrativos, a fixação de sanções pecuniárias muito elevadas e a previsão de medidas acessórias de consequências especialmente severas.

A evolução revela uma erosão impensável do princípio da subsidiariedade em matéria penal, problemática e plena de riscos, com desvios insuportáveis na construção axiológica fundamental da constituição penal.”

Seguramente, hoje, assistiremos a um rico e interessante debate sobre esta problemática, que o Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, há 2 anos, tão bem assinalou.

Sei que já estou a ocupar um pouco mais de tempo do que aquele que pretendia, mas com a autorização do Sr. Presidente, gostava de endereçar uma palavra, também, ao Sr. Administrador Judiciário, por todo o esforço e dedicação que demonstrou na boa concretização das Jornadas, e a todos os Srs. Funcionários que ajudaram a montar este evento. Por fim, um cumprimento muito especial a todos que hoje se deslocaram a Santarém para assistir às Jornadas, designadamente aos Senhores Juízes, Magistrados do Ministério Público, Oficiais de Justiça, Advogados, Estudantes, e Profissionais das Autoridades Administrativas aqui presentes.

Termino, esperando não ter maçado muito, aguardando com grande expectativa que os trabalhos decorram, como estou seguro acontecerá, num clima vivo, participado e desafiante. Obrigado Sr. Presidente pelos minutos que me concedeu e obrigado a Todos!

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A REFORMA DO DIREITO DAS CONTRAORDENAÇÕES - II JORNADAS TRIBUNAL DA CONCORRÊNCIA, REGULAÇÃO E SUPERVISÃO 1. Discurso de abertura do Juiz Presidente da Comarca de Santarém

Vídeo da apresentação

13 https://educast.fccn.pt/vod/clips/1z2mxpxf9r/link_box_h?locale=pt

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2. DISCURSO DE ABERTURA DO PRESIDENTE DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

Orlando Santos Nascimento

I. Agradeço o convite para estas II Jornadas do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, como Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, mas também a título pessoal, porque volto a Santarém, esta bela cidade, onde comecei cheio de idealismo e entusiasmo nas coisas da Justiça, que tenho tentado não perder ao longo do meu percurso.

O Tribunal da Relação de Lisboa aparece no iter das contraordenações, quase sempre no final, posição que poderia gerar a ideia da obrigação de idealizar e apresentar um projeto de alterações no âmbito do respetivo regime jurídico.

Não obstante, neste ato de abertura, mais do que certezas dogmáticas, cumpre-me apresentar-lhes algumas interrogações, de observador interessado, retiradas da minha experiência como juiz - que começou como Juiz de instrução (JIC) de quase todo o Ribatejo, da ponte de Vila Franca à ponte da Chamusca - sem a veleidade de apontar caminhos.

II. A criação do regime das contraordenações remonta ao final da década de setenta e princípio da década de oitenta, do século passado1, e teve como pressuposto a ideia,

comumente aceite, de que um vasto conjunto de ilícitos se situava num grau inferior de gravidade aos ilícitos penais, devendo por isso ter um regime sancionatório diferente.

Como sanção paradigmática para estes ilícitos foi recuperado o termo COIMA reservando-se o termo MULTA até aí em uso corrente, para, a sanção pecuniária penal.

III. Com o decorrer dos tempos, não só a fronteira entre o ilícito penal e o ilícito contraordenacional, que nunca chegou a ser claramente estabelecida, se veio a revelar tarefa difícil, senão impossível, como as alterações da economia e da organização empresarial conduziram a que os interesses sociais em causa em algumas das contraordenações sobrelevassem os interesses objeto da proteção criminal.

O direito contraordenacional deixou de se ocupar de coisas pequenas.

Talvez por isso tenha surgido a ideia comum de uma eventual insuficiência do respetivo processo e as pretensões de aproximação aos institutos do processo penal, por exemplo, ao nível da recolha da prova e respetiva sindicância pelo tribunal, que é o ponto onde nos encontramos.

* Juiz Desembargador, Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa.

1 Que se cristalizou no regime jurídico aprovado pelo Dec. Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, ainda em vigor, apesar de decorridos 35 anos.

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A REFORMA DO DIREITO DAS CONTRAORDENAÇÕES - II JORNADAS TRIBUNAL DA CONCORRÊNCIA, REGULAÇÃO E SUPERVISÃO 2.Discurso de Abertura do Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa Tenho para mim que este grau de evolução é natural, significando que muitas destas contraordenações atingiram um tal nível axiológico que as afasta de meras contraordenações e as aproxima aos ilícitos penais.

IV. Aliás, em muitas delas não se vislumbram valores sociais a proteger com a manutenção de dois níveis de ilícitos, sendo que a duplicação da atividade sancionatória, para além de dispendiosa, dificulta a sua interligação e pode até neutralizar qualquer delas ou mesmo as duas.

O desperdício de meios e as dificuldades de coordenação de ambas as matérias são por demais evidentes.

Guiando-me pela experiência das coisas processuais, afigura-se-me que deveríamos fazer a opção: ou contraordenação ou crime, podendo este consumir aquela, paralisando e absorvendo os seus meios de reação.

Com efeito, para cada comportamento social desviante a comunidade dispõe de:

(1) Um tempo de reação, findo o qual a justiça deixa de o ser, assemelhando-se a vingança; e de

(2) Uma quantidade de energia (sancionatória) disponível, que uma vez esgotada torna socialmente penosa e inútil a insistência no seu sancionamento.

Em muitas situações o procedimento contraordenacional pode entrar em concorrência com o direito e o processo penal, suscitando questões de relevância dos atos praticados em qualquer deles no outro, induzir na tentação de atrasar as respetivas reações e/ou desgraduar o ilícito penal para mero ilícito administrativo.

Aliás, não será por acaso que muitas vezes se tem colocado a questão da competência dos tribunais judiciais ou dos tribunais administrativos.

Neste âmbito, gostaria ainda de chamar a atenção para uma questão que, demasiadas vezes, se tem esquecido no processo penal, relativamente à prova pericial e que é a diferença substancial entre os procedimentos de Auditoria e de Inspeção de legalidade.

Em traços largos, a primeira (auditoria) basta-se com o não seguimento de determinados procedimentos técnicos, as legis artis de determinadas atividades, enquanto a segunda (inspeção de legalidade) pressupõe a existência de uma norma legal e a sua violação.

Não se pode pedir ao auditor a declaração de ilegalidade que compete ao julgador, não se pode substituir a intervenção valorativa deste pelo juízo técnico, de legis artis, do primeiro.

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A REFORMA DO DIREITO DAS CONTRAORDENAÇÕES - II JORNADAS TRIBUNAL DA CONCORRÊNCIA, REGULAÇÃO E SUPERVISÃO 2.Discurso de Abertura do Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa No processo penal demasiadas vezes ficamos com a convicção que o Ministério Público e o Tribunal esperam da auditoria aquilo que ela não pode dar, que é um veredicto de legalidade ou ilegalidade.

V. A aplicação do atual regime jurídico das contraordenações tem ganho relevância e visibilidade social com o modelo económico de concorrência (entre entidades privadas), cuja atividade é supervisionada/regulada por entidades públicas, ditas Entidades Reguladoras. Este modelo, pela sua própria conceção, baseado em atividades económicas, pressupõe e aponta para uma ideia de especialização. Especialização da atividade, especialização da regulação/supervisão, especialização da intervenção administrativa e judicial.

É o modelo da concorrência que determina a especialização.

Este modelo económico, baseado na concorrência, não deixa de ser isso mesmo, um modelo, convivendo com outros modelos, podendo ser alterado ou questionado.

Pelo nosso modelo de concorrência privada fomos obrigados a vender as nossas melhores empresas a entidades de economias fortemente estatizadas, atuando fora do modelo de concorrência.

E tendo adotado este modelo já há algum tempo será que encontramos nele valor social acrescido em atividades estruturantes da economia, como sejam os setores financeiro, energético, vias de comunicação, comunicações, ou em setores vitais para a cidadania, como o abastecimento de água, habitação, saúde?

A própria especialização, tanto a determinada por este modelo económico como qualquer outra, apresenta vantagens e desvantagens.

As vantagens podem reunir-se em dois grupos, sendo o primeiro, o aprofundamento técnico das questões e o segundo a economia de escala potenciado pelo primeiro.

Entre as principais desvantagens se contam:

(1) A possibilidade de perda de uma noção de conjunto das questões em face da totalidade da ordem jurídica; e

(2) O afastamento dos cidadãos destinatários da justiça pela incompreensibilidade da sua linguagem hermética.

Já seria tempo de alguém se penitenciar publicamente pelo uso repetido de “IMPARIDADES” e outros termos técnicos, cuja utilização pode ter o efeito de esconder aquilo que devemos saber!

VI. Como decorrência do atual modelo concorrência/regulação muitas vezes se tem colocado a questão de saber se intervenção das entidades administrativas no recurso da decisão judicial

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A REFORMA DO DIREITO DAS CONTRAORDENAÇÕES - II JORNADAS TRIBUNAL DA CONCORRÊNCIA, REGULAÇÃO E SUPERVISÃO 2.Discurso de Abertura do Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa do tribunal de 1.ª instância deve ser autónoma ou subordinada à do Ministério Público, mas outras questões se poderão colocar, como a de saber se o recurso da decisão sancionatória da entidade administrativa deve ser interposto diretamente para o Tribunal da Relação, se deve ser feita uma segregação de funções entre as atividades de supervisão (da atividade) e de sancionamento (dos comportamentos desviantes), pelo perigo de uma afrouxar a outra.

A concentração de poderes é por si mesma uma coisa má, como diariamente podemos observar no direito do urbanismo, em que a reunião de poderes (legislativo, executivo e sancionatório) na mesma entidade tem dado os resultados que conhecemos.

VII. Por último, afigura-se-me incontornável abordar a questão dos conflitos de interesses/acumulação de funções entre público e privado, entre regulador e regulados.

Respeitando os princípios constitucionais do direito ao desenvolvimento da personalidade, consagrado no art.º 26.º, n.º 1 da Constituição, e do direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, previsto no art.º 47.º, n.º 1, da mesma Constituição, como este último preceito constitucional permite, não podemos deixar de prestar uma especial atenção à permeabilidade de trabalho entre as entidades reguladas e as entidades de regulação e sancionamento, com o trânsito de reguladores para o privado e vice-versa, como se de uma carreira única se tratasse2, em ordem a que o interesse público não seja prejudicado pelo

interesse particular de cada um dos intervenientes, ainda que seja pelo monolitismo da visão com que são abordados os atos a analisar.

VIII. Partilhadas estas minhas dúvidas, não posso deixar de registar o avanço social que o direito das contraordenações tem proporcionado, ao debruçar-se e desenvolver várias áreas de relevante interesse coletivo, temperando o engenho criativo da iniciativa económica e acautelando os valores de cidadania, não só pelo sancionamento de atos desviantes como pela formação de uma consciência coletiva do que é o interesse comum.

E se hoje podemos aspirar a uma reforma e melhoramento do regime jurídico das contraordenações, tal só é possível pela persistente ação dos diversos intervenientes, desde as Entidades Administrativas, ao Ministério Público e aos Tribunais, no prosseguimento das suas missões, mas também pelo esforço de compreensão dos papéis de cada um deles.

E é este esforço mútuo de compreensão que aqui deixo como mensagem para o novo paradigma de intervenção que não deixará de resultar deste colóquio.

Aceitando-nos e compreendendo-nos uns aos outros estaremos no caminho certo para a melhoria da nossa ação.

2 Cfr., v. g., Luciano Alvarez: “A “porta giratória” que captura reguladores para o privado”, jornal “Público”, de 12 de abril, de 2018.

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A REFORMA DO DIREITO DAS CONTRAORDENAÇÕES - II JORNADAS TRIBUNAL DA CONCORRÊNCIA, REGULAÇÃO E SUPERVISÃO 2.Discurso de Abertura do Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa

Vídeo da apresentação

https://educast.fccn.pt/vod/clips/9vsnp4mca/link_box?locale=pt

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3. REGIME JURÍDICO DAS CONTRAORDENAÇÕES: REVISÃO, SISTEMATIZAÇÃO E NOVAS SOLUÇÕES

José Lobo Moutinho

* Professor Associado da Universidade Católica Portuguesa, Advogado.

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A REFORMA DO DIREITO DAS CONTRAORDENAÇÕES - II JORNADAS TRIBUNAL DA CONCORRÊNCIA, REGULAÇÃO E SUPERVISÃO 3.Regime Jurídico das Contraordenações: Revisão, Sistematização e Novas Soluções

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A REFORMA DO DIREITO DAS CONTRAORDENAÇÕES - II JORNADAS TRIBUNAL DA CONCORRÊNCIA, REGULAÇÃO E SUPERVISÃO 3.Regime Jurídico das Contraordenações: Revisão, Sistematização e Novas Soluções

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A REFORMA DO DIREITO DAS CONTRAORDENAÇÕES - II JORNADAS TRIBUNAL DA CONCORRÊNCIA, REGULAÇÃO E SUPERVISÃO 3.Regime Jurídico das Contraordenações: Revisão, Sistematização e Novas Soluções

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A REFORMA DO DIREITO DAS CONTRAORDENAÇÕES - II JORNADAS TRIBUNAL DA CONCORRÊNCIA, REGULAÇÃO E SUPERVISÃO 3.Regime Jurídico das Contraordenações: Revisão, Sistematização e Novas Soluções

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A REFORMA DO DIREITO DAS CONTRAORDENAÇÕES - II JORNADAS TRIBUNAL DA CONCORRÊNCIA, REGULAÇÃO E SUPERVISÃO 3.Regime Jurídico das Contraordenações: Revisão, Sistematização e Novas Soluções

Vídeo da apresentação

https://educast.fccn.pt/vod/clips/236hjlgse/html5.html?locale=pt

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4. REGIME JURÍDICO DAS CONTRAORDENAÇÕES: REVISÃO, SISTEMATIZAÇÃO E NOVAS SOLUÇÕES

José António Barreiros

Venho tratar de um tema que parece residual, mas, passe a imodéstia, contém em si a totalidade de muitos problemas: as normas remissivas do regime geral das contraordenações. No plano substantivo, determina o artigo 32.º do RGCO:

«Em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão, subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal» Não era assim na formulação originária do regime do ilícito de mera ordenação social, emergente do determinado pelo Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho, porquanto aí o que se previa era uma equiparação às contraordenações das transgressões previstas na lei «a que sejam aplicadas sanções pecuniárias» [artigo 1.º n.º 3], equiparação que – devido à impossibilidade de adaptação tempestiva da Administração Pública para passar a tramitar as contraordenações – levou à revogação daquele n.º 3 [e também do n.º 4] do artigo 1.º em causa.

No ângulo processual, vigora o artigo 41.º do mesmo diploma, o qual, na sua redacção actual, ditada pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, o seguinte [itálico nosso]:

1. Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.

2. No processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma.

Não era rigorosamente assim na formulação inicial do regime, tal como o consagrou o artigo 57.º do citado Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho, pois então a remissão era – com a mesma ressalva do «salvo disposição em contrário deste diploma» - para o previsto no Código de Processo Penal em matéria de «processo de transgressões, não havendo, todavia, lugar à redução da prova a escrito»

São típicas normas remissivas, em que o determinante e o consequente não estão determinados [Oliveira Ascensão, O Direito, página 517], e o conteúdo normativo só se alcança pelo funcionamento da operação imposta pelo legislador ou permitida ao aplicador.

* Advogado.

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A REFORMA DO DIREITO DAS CONTRAORDENAÇÕES - II JORNADAS TRIBUNAL DA CONCORRÊNCIA, REGULAÇÃO E SUPERVISÃO 4.Regime Jurídico das Contraordenações: Revisão, Sistematização e Novas Soluções

Não se trata de lacuna em sentido próprio, e é importante que se clarifique, pois isso sucederia se o legislador não tivesse previsto o que deveria ter regulado, sim de o legislador determinar, regulando o caso, que outro conjunto normativo se aplique à zona do Direito que tomou como seu objecto de normação, espécie de complemento geográfico numa lógica de arquipélago legislativo: não há vazio que o intérprete tenha de preencher, substituindo-se ao legislador omissivo, construindo a norma aplicável. Há, sim, autoridade legislativa a impor um plus ultra legal à lei compendiada.

Mas mais: é que a remissão, no caso, é em bloco para todo um Código, seja o Penal ou o de Processo Penal, consoante seja, e não reenvio para preceito específico.

Em geral, as normas remissivas são aquelas que num diploma legal determinam a aplicabilidade de outras, situadas dentro do próprio normativo legal [remissão intra-sistemática] ou em outro compêndio jurídico [remissão extra-intra-sistemática]; é desta segunda categoria que tratamos e isso coloca desde logo um problema que desde já introduzimos. É que, no plano substantivo, o legislador configurou as contraordenações como zonas de ilícito diferenciado dos ilícitos criminais – e diversas, logo por isso, das transgressões ou contravenções, que tinham natureza penal e no Código Penal encontravam expressão e no Código de Processo Penal tramitação adequada – mas, em contradição, previu que subsidiariamente à regulação da ilicitude contraordenacional se aplicasse, subsidiariamente, o regime jurídico dos crimes. Do mesmo modo, ao ter estruturado uma arquitetura do processo contraordenacional que não tem paralelo com a do processo criminal – e assim se aproxima do procedimento disciplinar, público ou laboral privado -, determinou que fosse o Código de Processo Penal o diploma para o qual se remetia no que respeita à demais regulação do processo pelo qual se aplicam coimas.

Na remissão, enquanto técnica legislativa, é frequente o recurso ao princípio da adaptabilidade, como na fórmula do artigo 41.º que citámos, ou outros afins, que exprimem o princípio do mutatis mutandis, tão caro à teoria geral das alterações de circunstâncias pelo decurso do tempo, mas que encontra expressão também ante o concurso de preceitos legais diferenciados decorrente da remissão legal.

Trata-se de normas indirectas [na expressão de João Baptista Machado, Introdução, página 105], pelas quais o legislador regula uma situação prevista numa fonte de Direito através da previsão em outra fonte desse mesmo Direito, onde se encontra o preceito ad quam.

Existem, porém, vários tipos de formas remissivas e, ao enunciá-las, ganhamos consciência dos problemas que se suscitam.

Quando a remissão é determinada e assim exacta [a norma remetida é preceito individualizado pelo seu nomen iuris ou pelo seu número ordinal], o normativo é localizável e a tarefa do aplicador está facilitada, a não se colocarem problemas de compatibilização entre a norma remetente e a remetida, como por exemplo a manutenção da vigência da remetida, a congruência normativa face à literalidade ou ao espírito dos preceitos em causa.

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Mas quando a remissão é indeterminada [como nos casos em apreço em que se remetem para «os preceitos reguladores do processo criminal», ou «as normas do Código Penal», ou seja, supostamente todos ou ainda para «os direitos e deveres das entidades competentes para o processo criminal»], já o aplicador tem de se assumir como intérprete e encontrar as normas passíveis de aplicação, expurgando as inaplicáveis: aqui, não havendo lacuna directa, ela surge indirectamente, pois a situação em que o aplicador da lei é colocado tem zonas de semelhança com o que tem de vencer quando se trata de ele construir a norma, localizando-a, por analogia, em outra zona do ordenamento jurídico.

Mais: quando à indeterminação se acrescenta a regra da adaptabilidade [mais uma vez como aqui «devidamente adaptados» explicita o artigo 41.º, citado ou «em tudo o que não for contrário à presente lei», como o dita o artigo 32.º] aí o aplicador tem, assumindo-se então claramente como intérprete, tarefa acrescida, porque, não só lhe cabe selecionar os artigos da lei remetida abstractamente aplicáveis, como está adstrito a escolher os que são passíveis de concreta aplicação.

Ou seja, trata-se de uma primária devolução, feita pelo legislador de um diploma em benefício de outro legislador de diverso diploma, mas também uma consequente devolução legislativa feita pelo legislador de um diploma a favor do aplicador, o qual terá de localizar a lei em outro diploma ou construi-la a partir do imperativo que a remissão determina.

Tudo isto gera amplas margens de ambiguidade e incerteza.

Daí que na legística se refira reiteradamente que o recurso à remissão deve garantir certeza e ter natureza excepcional.

Assim o diz o manual de Regras de Legística editado em 2008 pela Assembleia da República: «As remissões para artigos e números do mesmo acto ou de outros actos normativos devem ser usadas apenas quando indispensáveis, indicando primeiro as alíneas e depois os números dos artigos em causa».

E o mesmo diz o diploma que publica as regras de legística a observar no processo legislativo do Governo [artigo 8.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 90 B/2015].

Ora o que vemos é que no diploma que estamos a apreciar encontramos não uma excepção, mas sim uma regra, pois a remissão, se bem que efectuada duas vezes, é para diplomas de âmbito e extensão muito significativos, espécie de remissão em bloco.

E estando, como estamos, em sede de normas jurídicas de Direito e de processo criminal tenho dificuldade em contabilizar tudo isso com as garantias inerentes ao princípio da legalidade dos actos de processo que a Constituição salvaguarda e da tipicidade dos ilícitos e respectivas punições.

E isto num quadro legal em que o próprio RGCO estabelece no seu artigo 43.º que «o processo das contraordenações obedecerá ao princípio da legalidade» e em que a Constituição, no seu

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artigo 266.º, n.º 2 determina que «os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé». Desta perniciosa técnica conflituante se deu conta o legislador quando, em 1995 [através do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro], alterou o diploma que desde 1982 regulava o regime geral do ilícito de mera ordenação social, pois no seu preâmbulo estatuiu: «Por último, afigura-se adequado, no momento presente, proceder ao aperfeiçoamento da coerência interna do regime geral de mera ordenação social, bem como da coordenação deste com o disposto na legislação penal e processual penal.»

Cotejando as modificações efectuadas verifica-se que elas incidiram:

(i) Por alteração da redacção dos artigos 1.º, 3.º, 4.º, 9.º, 13.º, 16.º a 19.º, 21.º a 27.º, 29.º, 33.º, 35.º, 38.º, 39.º, 41.º, 45.º, 49.º a 51.º, 53.º, 56.º, 58.º a 62.º, 64.º, 65.º, 68.º a 76.º, 78.º a 83.º, 85.º e 87.º a 95.º

(ii) Por revogação dos artigos 84.º e 86.º

(iii) E por aditamento dos artigos 21.º A, 27.º A, 30.º A, 48.º A, 65.º A, 72.º A e 89.º A. Isso mesmo já sucedera quando a Lei n.º 4/89, de 3 de Março, autorizou o Governo a legislar em matéria do regime geral do ilícito de mera ordenação social, nomeadamente [artigo 2.º, alínea g)] no sentido de «adaptar o processo de contraordenações ao novo Código de Processo Penal e à nova orgânica dos tribunais», o que seria efectivado pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro.

Ou seja, em ambos os casos a remissão tinha-se tornado incoerente.

Tem sido, porém, na prática, que a consciência da incongruência se fez sentir, gerando decisões divergentes, acumulando insegurança para os cidadãos e entidades colectivas e desprestígio para as autoridades reguladoras e para o sistema judicial.

No fundo, e eis-nos centrados no problema, tudo decorre da remissão decretada naqueles artigos 32.º e 41.º do Regime Geral das Contraordenações e retomada nos diplomas específicos que legislaram em sede de ilícito de mera ordenação social nos sectores vários da economia e da vida social e sobre os quais não terei oportunidade de me pronunciar.

É que à indeterminação na devolução [remete-se, não para preceitos específicos da lei, mas para todo um sistema legal junta-se a ductilidade da remissão [«devidamente adaptados», se diz para a remissão em favor do processo criminal e «em tudo o que não for contrário à presente lei», se afirma na remissão para o Código Penal] e – eis o ponto de agonia do sistema – tratando-se de sistemas normativos que, não comungam da mesma natureza pois se o sistema remetido é sancionatório criminal e processo criminal, sistema remetente é algo sobre cuja natureza ainda não se ganhou sequer certeza jurídica, tanto na literatura como na jurisprudência, pois sobre ele encontramos inúmeras soluções contrastantes.

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É que, para usar uma expressão que penso terá tido origem no pensamento de Manuel Lopes Rocha, «o ilícito de mera ordenação social é um aliud em relação ao ilícito penal».

Há, de facto, quem considere que as normas substantivas e processuais atinentes ao ilícito de mera ordenação social são formas de Direito punitivo ou sancionatório administrativo, mas existem os que opinam tratar-se de uma outra categoria jurídica atípica.

Fernanda Palma, por exemplo, fala na existência de um Direito Penal especial, secundário, «disfarçado no poder da Administração Pública, mais por conveniências práticas, do que por preocupações de rigor da sua natureza jurídica». No mesmo sentido Manuel Ferreira Antunes [Reflexões] ao considerar que não é hoje possível considerá-lo como «ilícito penal administrativo», como o tinha considerado, por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07.01.86 [sumariado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 355, página 447], na sequência do que expendera Cavaleiro de Ferreira [Lições, 1979/1980, página 9].

De facto, o Direito Penal administrativo se encontra hoje «falecido» [expressão de Figueiredo Dias, Direito e Justiça, IV, 1989/1990, página 22] pelo que o Direito contraordenacional não pode ser «a sua máscara» [ibidem] é hoje ponto assente.

Que se trata de um Direito sancionatório de carácter punitivo, reconhece-o o Tribunal Constitucional [Acórdão n.º 366/2008, de 19.06.2008].

Mas, a tentar um critério de diferenciação, o Supremo Tribunal de Justiça, notando que o Direito Penal, ainda quando secundário, se centra sobre condutas ético-socialmente relevantes, enquanto o Direito contraordenacional se refere a condutas ético-socialmente indiferentes, não deixa de reconhecer que «(…) muitas vezes o traço distintivo radique num elemento aparentemente formal, que não material e axiológico» [Acórdão do STJ de 12.10.2006, processo n.º 05P4118]; e eis-nos de novo em pleno território de ambiguidade numa área em que deveria haver da segurança a certeza.

Já o Tribunal Constitucional, evidenciando a relatividade da situação, fez notar em 1993 [Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 344/93, de 12.05.93] que tal distinção entre os dois tipos de ilícito «terá, em última instância, se ser jurídico-pragmática e, por isso, também necessariamente formal», remissão para a casuística, forma de evitar um problema, gerando problema maior.

Assim se tem feito apelo a «uma diversidade ontológica entre o direito de mera ordenação social e o direito penal, da natureza de censura ético-penal correspondente a cada um e da distinta natureza dos órgãos decisores» [Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.04.2012, processo n.º 2122/11.3TBPVZ.P1], mas sem que, vista a relatividade da distinção e o seu carácter, afinal, pragmático, se alcance depois, no plano prático, soluções que resistam à dúvida.

Por isso, com inteligente ironia, José Lobo Moutinho refere o carácter «banal» da distinção entre ambos os direitos e no carácter tendencial dessa dicotomia.

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Na expressão de Henriques Gaspar, actual Presidente do Supremo Tribunal de Justiça:

«A gravidade dos comportamentos, medida e avaliada segundo os critérios da severidade, intensidade e consequências das sanções aplicáveis, imporia que lhes fosse atribuída dignidade e natureza penal, com julgamento em primeira ordem de jurisdição nas instâncias constitucionais de jurisdição que são os tribunais.

«A razão constitucional dificilmente suportará a contradição nos valores e a desconsideração de princípios fundamentais, como o princípio da proporcionalidade que se pressente em algumas manifestações dos movimentos de neo-punição.»

Mas mais: é que o núcleo essencial do problema já não é a existência de diversidade entre os ilícitos criminais e contraordenacionais e, por isso, dos respectivos processos, mas sim poder não existir denominador comum que os considere parte daquele Direito sancionatório ou punitivo em que haja regras que sejam comuns não direi por paridade, mas, ao menos, por um mínimo de razão.

Certo é que, esta divisão de conceitos não é mera questão académica, de relevo estritamente teórico, pois dela promana uma solução diferenciada no que se refere à determinação das normas jurídicas aplicáveis em concreto de entre as que estão clausuladas no sistema jurídico remetido.

Ou seja, uma técnica, a remissiva, que, numa visão gentil, se diz necessária ou útil para que se evitem «repetições inúteis» [Larenz, Metodologia, página 312], torna-se de uma inutilidade quase total, porque ao facilitismo para o legislador, sucedem as dificuldades para os aplicadores e, como não o acentuar como primeira questão – pois não se trata de mero problema técnico-profissional – para os destinatários das normas em causa, o decantado povo em nome do qual se administra justiça.

E não se fantasie que se trata de bagatelas – era essa a génese do ilícito de mera ordenação social, o visar substituir-se às contravenções e transgressões – nem, porque se aplicando, na área económico-financeira, aos fartos e poderosos, estes bem podem suportar o risco de esportularem lautas somas em troca de abdicarem de discutirem questões que são tão essenciais como de legalidade e tão graves como de constitucionalidade.

Está fora de questão enunciar aqui a extensa zona de ambiguidade e incerteza que disto decorre.

Exemplificativamente, eis zonas de diferenciação relativamente ao processo criminal:

- Ausência da garantia do princípio do juiz natural, vista a admissibilidade dos acordos sobre a competência natural [artigo 37.º, n.º 2] e definições de competência a posteriori [artigo 34.º, n.º 2];

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- Inexistência da garantia do acusatória, antes pelo contrário, cumulação «em promiscuidade» [expressão de José Veloso] na mesma entidade do poder de investigar, avaliar a prova da defesa e sentenciar, mesmo quando se trata de violação de normas de que foi o legislador, assim se atingindo o máximo exasperante da sobreposição de competências;

- A audiência e defesa a não comportar a judicialização da instrução nem o princípio da estrutura acusatória do processo em termos idênticos ao que a CRP reserva ao processo criminal;

- Arguido e o seu mandatário a não terem direito a assistir aos actos de produção de prova na fase administrativa;

- Não poder o arguido impugnar o despacho que indefere as diligências de prova por ele requeridas na fase administrativa;

- Finda a produção de prova da defesa sem lugar obrigatório a alegações, salvo o direito de apresentar memoriais que tentem ser um sucedâneo;

E tantas mais, que se torna impraticável citá-las aqui, mas que abrem sucessivas dúvidas, como, a título de exemplo saber se:

- O prazo para impugnação judicial da decisão que aplicou a coima não ter natureza judicial, mas administrativa;

- Poder não haver lugar à suspensão ou interrupção da prescrição do procedimento criminal;

- Ter sido necessário fixar em jurisprudência obrigatória que ocorre prescrição do procedimento criminal quando ao prazo de prescrição em causa se somou metade [Acórdão do STJ para fixação de jurisprudência n.º 6/2001, o que seria previsto na Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro];

- Se acusação em processo criminal deve respeitar os requisitos da acusação em processo penal, nomeadamente a indicação dos factos que integram o tipo de ilícito da prova em que se estriba;

- Se a decisão condenatória em processo de contraordenação deve respeitar os requisitos de uma sentença penal;

- Possibilidade de aplicação da apresentação electrónica de peças processuais;

- Aplicação do regime de apresentação para além do prazo, mediante o pagamento de multa, de peças processuais;

- Enfim, haver ao menos como princípio absoluto, um princípio de presunção de inocência em matéria contraordenacional.

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E, por igual no plano substantivo estão também em causa, as seguintes questões em que se põe em crise a aplicabilidade, a final, do Código Penal:

- Possibilidade de suspensão de execução da coima [inviável segundo um Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18.09.2002 e outro do Tribunal da Relação de Coimbra de 23.04.2008, mas admitida por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.12.1987 «quando o condenado não tiver possibilidades de a pagar» e decretada por um acórdão do TC n.º 628/99 em matéria de infracções eleitorais], se bem que regimes específicos prevejam a possibilidade de dispensa da coima [RBIT, artigo 32.º, n.º 1 e CT, artigo 560.º];

- Possibilidade de aplicação às coimas de prisão em alternativa [como teve de ser decretado impossível por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.04.1988 [recurso n.º 22 829-3.ª Secção, BMJ, n.º 376, página 645];

- A aplicação das causas de justificação, e de exclusão da culpa, bem como o regime de atenuação especial da pena [admitidos por Simas Santos e Lopes de Sousa, 2011];

- Possibilidade de, fora dos regimes específicos, mas dentro do regime geral do ilícito de mera ordenação social, proceder à responsabilização dos órgãos ou agentes faz pessoas colectivas [Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 31.01.2005, proferido no processo n.º 219/04];

- Efeitos do pagamento voluntário da obrigação pecuniária [Acórdão do TC n.º 245/2000, de 12.04.2000].

Ante este panorama há que encontrar uma via que garanta um mínimo de segurança e, sobretudo, critério.

Ora a remissão legislativa pode ser configurada como se o legislador assumisse, no diploma onde efectua a remissão, a existência de lacuna voluntária que, ao remeter, integraria, ele próprio, por analogia através de preceito(s) que localiza ou entende existir ou poderem existir, ainda que tudo mediado por adaptação, no diploma remetido, isto [como acentua Costa Pinto, 2002, página 617] salvo quando o legislador explicita que não pretende que haja norma e, por isso, estaremos antes não previsão intencional.

Ou seja, a ser assim, estaríamos de pleno ante o previsto, a nível geral, pelo artigo 10.º do Código Civil, segundo o qual, no que se refere à integração de lacunas há que operar pelo seguinte método:

1. Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos.

2. Há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei.

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3. Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.

A norma aplicável nos casos análogos é, quando o legislador o determina, a que ele indique existir no diploma remetido; quando o não faça cabe ao aplicador assumir essa procedência das razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei. Em suma, operando a remissão para diploma em que não possa ocorrer essa identidade de razão, o intérprete cria a norma que se contenha dentro do espírito do sistema.

Tudo, para ser coerente e legal, respeitando as regras decorrentes do artigo precedente do Código Civil, segundo o qual:

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Ora, eis-nos, enfim, em plena constatação da natureza ficcional do Direito.

Ficciona-se haver uma «unidade do sistema jurídico», mas sucede que, como vimos, é de diversidade que se trata, neste caso em que o legislador determina a remissão no quadro de um sistema legal sobre ilícito de mera ordenação social para outro sistema legal de natureza jurídico-criminal em sentido amplo, pois que englobando o processual penal e a execução das decisões.

Ficciona-se fundar-se o sistema numa situação de analogia quando, de facto, ao ter previsto o funcionamento da regra da adaptabilidade, o legislador reconhece que de analogia imperfeita ou até impossível se trata.

Por isso e por procurar evitar estas dificuldades construtivistas inerentes a pensarmos o problema como se de lacuna se tratasse, e por seguramente por lhe percepcionar as consequências, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2014, de 06.03.2104 [Diário da República, 14.04.2104], considerou que o Direito subsidiário aqui em causa «tem a ver com o elenco das fontes de direito mobilizáveis como critério para a sua realização, diferente no problema das lacunas vai ínsita a ausência de uma fonte ou critério positivo para essa objectivação».

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Ficciona-se, mais ainda, que se tenham presente as condições específicas do tempo em que é aplicada a norma, mas estamos hoje a aplicar um sistema legal contraordenacional que foi gizado para suceder ao regime das transgressões e contravenções, ou seja, aplicável às infracções de menor relevo social, que não colocam em causa bens jurídicos fundamentais, isto quando estamos hoje ante a possibilidade de coimas de vários milhões de euros e de sanções acessórias altamente lesivas e estigmatizantes, mais graves até do que é o quotidiano no sistema penal quando opera em se de penas não privativas da liberdade.

Ficciona-se, enfim, que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados quando aquilo de que estamos a curar é de uma devolução indeterminada, maleável, incerta no consequente e imperfeita no antecedente: o que se remete? Para onde se remete? Até que ponto se remete?

Tudo é insegurança: equipara-se o diferenciado, presume-se identidade normativa onde não existe sequer analogia jurídica. E torna-se, isso, lei repressiva. O insuportável não é diferente disto.

Em suma: como o Direito Criminal e seu processo gozam de tutela constitucional, estamos ante a possibilidade de, por acto do intérprete, por mera manipulação de etiquetas, recusar a garantia constitucional a zonas específicas do Direito contraordenacional, bastando que considere e, no caso, a remissão para a norma criminal ou processual criminal não deverá efectuar-se.

Se tudo quando visto nos faz colocar em dúvida a congruência constitucional deste sistema com a Lei Fundamental, este último elemento revela-se decisivo para que a dúvida se reforce, sejam quais forem os critérios pragmáticos e contemporizadores do Tribunal Constitucional [perdoe-se a irreverência], expressos que sejam, e são, pela processualização formalista do seu modo de conhecer as questões que lhe são submetidas para apreciação.

E, se do nosso pequeno espaço nacional, nos içarmos ao espaço europeu onde estamos integrados, e onde se coloca o problema da aplicabilidade do artigo 6.º da CEDH na parte em que clausula o direito a um processo equitativo, urge meditar no honrado aviso de Henriques Gaspar, de novo citado, quando adverte:

«No entanto, as contradições ou desconcertos dogmáticos expostos na fuga para a «jurisdição» sancionatória administrativa (não digo competência, para isolar a aporia), estão patentes nesta matéria, e bem reveladas na descoordenação e na autonomização conceptual entre as perspectivas nacional e a abordagem das instâncias jurisdicionais internacionais – a jurisprudência do TEDH é, e este respeito, de uma clareza assinalável. Em breve síntese, para a instância europeia a «natureza penal» de uma infracção não depende da qualificação e do nomen no direito nacional, mas da integração da chamada «noção penal autónoma europeia».

A natureza penal das infracções resulta da conjugação, alternativa ou cumulativa, de vários critérios; a qualificação jurídica do direito nacional constitui certamente um critério, mas

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outros critérios substanciais devem ser considerados na definição da natureza das infracções, independente da qualificação e mesmo que a qualificação nacional seja administrativa.

Os critérios materiais referem-se ao grau de severidade da sanção aplicável; montantes da sanção pecuniária; efeitos das sanções acessórias; consequências de interdições ou inibições previstas, sempre por aplicação do princípio do primado da materialidade subjacente.

A jurisprudência do TEDH tem qualificado como tendo natureza penal um conjunto vasto de infracções administrativas, sendo consequentemente aplicável aos procedimentos de averiguação e à determinação da responsabilidade e da sanção, o artigo 6.º, par. 1.º da CEDH, que estabelece e garante o respeito do princípio do processo equitativo.»

Concluo.

Mostrei todas as aporias do sistema, as incongruências normativas, as colisões de princípios. Sinto-me obrigado, na modéstia da minha opinião, a sugerir uma via que isto resolva. Atrevo-me: passará por dois pontos.

O primeiro, aprovar uma lei reforçada, que seja, enfim, o regime geral inderrogável do ilícito de mera ordenação social, que obrigue o legislador a respeitar princípios fundamentais uniformes, poupando-nos ao irrequietismo da sua imaginação criadora e aos nefastos efeitos. O segundo, a supressão das remissões em causa, pois nenhum sentido faz, se o Direito de mera ordenação social é um Direito Punitivo não penal que se remeta para as normas do Código Penal e do Código de Processo Penal, antes se faça um esforço para, em nome da tipicidade das infracções e da legalidade dos procedimentos, se rediga um Código que tudo preveja e vede o que não previr.

Um Código de que preveja uma separação de poderes entre quem – a nível administrativo – investiga e acusa e quem, garantindo o contraditório e a defesa na fase da audição do acusado, avalie a prova global e profira a proposta de decisão final, um Código que vede a possibilidade de reformatio in pejús, um Código que garanta efeito suspensivo à impugnação judicial da decisão que aplicou a coima.

Todos ganharemos: defendidos do legislador e protegidos dos entendimentos jurisprudenciais e das entidades reguladores. Com o devido respeito por todos eles.

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Vídeo da apresentação

https://educast.fccn.pt/vod/clips/2e9tyf2rnh/html5.html?locale=pt

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5. O ARTIGO 69.º, N.º 2, DA LEI DA CONCORRÊNCIA, LEI N.º 19/2012, DE 8 DE MAIO

Catarina Varajão Borges

O tema que vos trago relaciona-se com o regime sancionatório no direito da concorrência, especificamente o artigo 69.º, n.º 2, da Lei da Concorrência.

Proponho-me a analisar várias questões nos breves minutos que me pertencem e, por isso, relatarei, em grande medida, apenas as conclusões a que cheguei, de acordo com um estudo mais aprofundado, mas que aqui não o poderei contextualizar, que realizei em ordem a chegar a tais resultados.

I - Direito da Concorrência e o seu enquadramento no direito das contraordenações

Desde logo, é curioso o enquadramento sancionatório do legislador do direito da concorrência no direito contraordenacional. E digo isto porque o direito das contraordenações é tendencialmente associado às bagatelas penais, àqueles ilícitos a que se associam uma neutralidade axiológica.

Ora, esta neutralidade axiológica ou as bagatelas penais não se verificam no direito da concorrência visto que trata de bens constitucionalmente protegidos, sendo aliás uma das principais incumbências do Estado garantir a livre concorrência.

Neste sentido, se ao direito da concorrência fosse aplicável o direito penal, parece-me que seria uma opção legislativa igualmente válida, porque se trata aqui de um bem com dignidade penal.

Todavia, há vantagens na aplicação do direito contraordenacional. Desde logo, a estrutura inquisitória que este processo pode ter e que no processo penal seria até inconstitucional (32.º, n.º 5, do CRP). Permite-se assim a concentração na mesma entidade, neste caso, na Autoridade da Concorrência, dos poderes de regulação, investigação, acusação e sancionatória, entidade esta a que se reconhece a alta competência dos seus quadros e, por isso, permite-se aqui uma especialização importante.

Ora isto dito, também me parece que esta opção legislativa, não deve pôr em causa direitos e mecanismos de defesa dos arguidos visados num processo contraordenacional no âmbito do direito da concorrência, isto porque não deve a opção do legislador determinar medidas mais gravosas com menos direitos por parte dos arguidos, porque mesmo que não esteja em causa uma pena preventiva, podemos estar a falar de uma coima com valores tão ou mais elevados como uma pena de multa.

* Membro da Equipa vencedora da 1.ª edição do Moot Court Português de Direito da Concorrência, Faculdade de

Direito da Universidade do Porto.

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A REFORMA DO DIREITO DAS CONTRAORDENAÇÕES - II JORNADAS TRIBUNAL DA CONCORRÊNCIA, REGULAÇÃO E SUPERVISÃO 5.O artigo 69.º, n.º 2 da Lei da Concorrência, Lei n.º 19/2012, de 8 de maio II - Análise da Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

A Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem sido no sentido de que o direito das contraordenações deve, em regra, considerar-se “matéria penal” nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 6.º (relativo ao direito a um processo equitativo) e 7.º (relativo ao princípio da legalidade) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Diz este mesmo Tribunal que “matéria penal” não é um conceito que esteja na disponibilidade dos Estados definir, sem prejuízo do enquadramento legal que os Estados fazem. Todavia, este enquadramento não é o critério que prevalece, sendo necessário aferir de outros dois critérios: a natureza da infração e a severidade da coima.

A natureza da infração desdobra-se em três subcritérios: o raio de ação da norma de proibição (saber se afeta grupos específicos ou a sociedade em geral, sendo que só neste último caso é que em princípio será matéria penal); a finalidade dissuasora da norma e o cunho repressivo da coima.

Verificando-se este segundo critério nem é necessário aferir do terceiro, considera-se logo que se trata de matéria penal.

No Acórdão Menarini Diagnostics S.R.L. contra Itália, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem entendeu que atendendo à severidade da coima (6 milhões de euros) a norma pertencia ao domínio penal.

III – Não diferenciação dos ilícitos anticoncorrenciais

Focando a análise no artigo 69.º, n.º 2, não há aqui uma diferenciação dos ilícitos anticoncorrenciais. À partida, a censura ético-jurídica dirigida a estes atos é igual, ou seja, releva da mesma forma um abuso de posição dominante; um acordo que, por exemplo, fixe coimas ou o incumprimento das medidas cautelares isto pode levantar a questão se não é conflituante com o Princípio da Culpa, porque todas as práticas anticoncorrenciais são aprioristicamente tratadas da mesma forma.

Fazendo um paralelo com o Direito Penal, a previsão da Lei da Concorrência seria como que o Código Penal apenas dissesse que a pena máxima aplicável não pode ultrapassar os 3.000 dias ao valor diário de no máximo 10.000, 00€ sem depois em cada crime concretizar qual a moldura penal abstrata daquele crime.

IV – Amplitude da norma

Esta questão já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional que decidiu no sentido da não inconstitucionalidade e parece-nos que bem. Apesar do possível distanciamento entre o limite mínimo e máximo da coima, não me parece que haja aqui uma “demissão” do legislador de estabelecer os limites legais. Cabendo depois à Autoridade da Concorrência ou ao juiz determinar segundo o caso concreto qual a coima mais ajustada à situação.

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A REFORMA DO DIREITO DAS CONTRAORDENAÇÕES - II JORNADAS TRIBUNAL DA CONCORRÊNCIA, REGULAÇÃO E SUPERVISÃO 5.O artigo 69.º, n.º 2 da Lei da Concorrência, Lei n.º 19/2012, de 8 de maio Parece-nos que esta norma levanta outros problemas, mas não este em específico da “amplitude da norma”.

V – Volume de negócios como critério e indeterminabilidade do limite máximo da coima Um desses problemas, é a utilização do volume de negócios como critério e a indeterminabilidade do limite máximo da coima.

O artigo 69.º, n.º 2, da Lei da Concorrência diz que o limite máximo da coima é aferido pelo volume de negócios do infrator no ano anterior ao da condenação pela AdC, com o limite de 10% desse volume de negócios.

A indeterminabilidade do limite máximo da coima é contrária ao Princípio da determinabilidade da pena que deve ser um Princípio aplicável no âmbito das contraordenações.

Por outro lado, utilizar o Volume de Negócios como critério para a fixação da coima, é utilizar um critério subjetivo, que depende não só do mercado em que o infrator desenvolve a sua atividade como também de outros fatores, mas fatores que seguramente não são objetivos e abstratos como uma moldura penal abstrata deveria ser.

A fixação de um limite máximo de coima dependente do volume de negócios viola os Princípios da igualdade e da proporcionalidade, porque sem qualquer razão substancial ou de fundo, podemos estar a analisar o mesmo ato anticoncorrencial e a um infrator ser estabelecido o limite máximo de x e a outro de y, ou seja, a coima aplicável é inicialmente diferente. Não parece justificável que para o mesmo ilícito a moldura penal abstrata seja diferente.

Na realidade, de acordo com a previsão legal em vigor, a situação económica do agente é duplamente valorada: num primeiro momento, fixa o montante máximo; num segundo momento, é tida em conta para a fixação da medida concreta da coima.

Não nos parece o melhor sistema, parece-me preferível um sistema semelhante aos dias-de-multa como existe no direito penal e a fixação do limite máximo deveria ser abstrata e objetiva e não nos termos que se configura.

VI – Momento de aferição do Volume de Negócios

A lei estabelece para a verificação do montante máximo o ano anterior à condenação. Exatamente por levar à indeterminação do limite máximo da coima, não nos parece que este momento seja também o mais correto.

Na verdade, não adiro a qualquer critério que determine que o limite máximo de uma moldura penal, que num primeiro momento, deveria ser abstrata, esteja dependente do infrator. Pelo que vim dizendo anteriormente, a moldura abstrata seja penal seja contraordenacional não deve depender de critérios subjetivos.

Referências

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