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DIÁDINEY HELENA DE ALMEIDA HEGEMONIA E CONTRA-HEGEMONIA NAS ARTES DE CURAR OITOCENTISTAS BRASILEIRAS

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Casa de Oswaldo Cruz

FIOCRUZ

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde

DIÁDINEY HELENA DE ALMEIDA

HEGEMONIA E CONTRA-HEGEMONIA NAS ARTES DE CURAR OITOCENTISTAS BRASILEIRAS

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DIÁDINEY HELENA DE ALMEIDA

HEGEMONIA E CONTRA-HEGEMONIA NAS ARTES DE CURAR OITOCENTISTAS BRASILEIRAS

Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz - Fiocruz, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: História das Ciências.

Orientador: Prof. Dr. Fernando Sérgio Dumas dos Santos

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2 A447 Almeida, Diádiney Helena de.

Hegemonia e contra-hegemonia nas artes de curar oitocentistas brasileiras. / Diádiney Helena de Almeida.– Rio

de Janeiro : s.n., 2010. 209 f .

Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) - Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz,

2010.

Bibliografia: f. 199-209.

1. Medicina Tradicional 2. História 3. Cura 4. História da Medicina. 5. Prática Médica 6.Brasil

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DIÁDINEY HELENA DE ALMEIDA

HEGEMONIA E CONTRA-HEGEMONIA NAS ARTES DE CURAR OITOCENTISTAS BRASILEIRAS

Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz - Fiocruz, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: História das Ciências.

Aprovado em 25 de Março de 2010.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________ Prof.Dr. Fernando Sérgio Dumas dos Santos (COC-Fiocruz) – Orientador

______________________________________________________________

Prof.Dr. Sidney Chalhoub (IFCH-Unicamp)

___________________________________________________________________ Prof.Dra. Dilene Raimundo (COC-Fiocruz)

Suplentes:

___________________________________________________________________ Prof.Dra. Tânia Salgado Pimenta (COC-Fiocruz)

___________________________________________________________________ Prof.Dra. Anna Beatriz de Sá Almeida (COC-Fiocruz)

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Agradecimentos

Inicialmente, a Deus graças por tudo! Este é um momento singular. Lembrar das pessoas que fizeram parte dessa trajetória é pra mim uma grande emoção e satisfação. Depois de dois anos de muito trabalho (e muitos chás de camomila e passiflora!), chego ao fim deles, com a satisfação de ter vencido uma importante etapa. Sinto-me abençoada porque, nesse caminho, pude contar incondicionalmente com a minha família e com grandes amigos.

Agradeço aos meus pais, pelo apoio e incentivo que sempre dedicaram à minha formação; pela compreensão das minhas inúmeras ausências; pelo carinho e pelo conforto de que sempre pude desfrutar; pelas horas de silêncio dedicadas aos meus estudos; pelo amparo do dia-a-dia; pelo alicerce e equilíbrio que pude compartilhar. No término deste mestrado, recebam vocês os meus aplausos. Sou grata também aos meus irmãos Vagner, Diógenes, Wiliam Sérgio e Josildes pelo companheirismo que, de longe ou de perto, sempre pude contar.

Os amigos são inumeráveis. Amigos que sempre apoiaram e estiveram ao meu lado, torcendo pelas conquistas, vibrando com elas ou então renovando as esperanças. Agradecimentos especiais para Fábio Valentim, Rafael Fonte, Aline Ventura, Sulamita Brás, Jorge Esteves, César Agnelo e família, Jorge Pereira e família, Eliane Bianchi e família. Foram inúmeras as vezes que celebramos a vida juntos. Sempre pude contar com vocês, portanto, neste momento recebam meu afeto e a minha gratidão por fazerem parte da minha história.

O mestrado também consolidou amizades. Agradeço com carinho descomedido à Danielle Coutinho. Companheira desde os tempos do Laboratório de História Antiga, nunca esquecerei aquela conversa na Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) quando me incentivou a fazer a seleção pro mestrado da Casa de Oswaldo Cruz. Compartilhamos alegrias, angústias, expectativas, medos, e horas a finco de muitas traduções, discussões e revisões. Nessa trajetória, sua amizade me foi preciosa.

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6 (o Ministro da Felicidade), Estreliane Vidal, Leonardo Bento e Rogério José, os meus sinceros

agradecimentos pelos momentos de descontração na “Igreja” e pelo carinho sincero.

Tão fundamentais também foram as novas amizades com cara de antigas que pude descobrir na Casa de Oswaldo Cruz. À mineira Polyana Valente, sou grata pelo compartilhar não

apenas das músicas do Lenine, mas por me fazer perceber que a “vida é tão rara” na sua

simplicidade. Seu companheirismo e otimismo me motivaram a vencer os dias de desânimo.

Nossas “experiências antropológicas” no Chile também foram inspiradoras para renovar as forças

após a Qualificação. À cearense Georgina Gadelha e à paulista Elizabete Kobaiashi pelo carinho e pelas conversas que sempre animaram e renderam boas gargalhadas. Enfim, a toda a turma de 2008, pelo compartilhar das angústias e expectativas ao longo desses dois anos.

Aos professores do Programa, em especial à Tânia Salgado Pimenta e Dilene Raimundo, sou grata pelas importantes contribuições dadas no Exame de Qualificação. À Professora Lorelai Kury pela leitura crítica do segundo capítulo. Professores do IFCS também foram importantes nesta jornada, e, entre eles, destaco o Prof. André Leonardo Chevitarese, pelo incentivo desde a Iniciação Científica e pela amizade de sempre.

Ao meu orientador e amigo, Fernando Sérgio Dumas, ou simplesmente, Dumas, sou grata pela competência com que orientou esta pesquisa. Ademais, agradeço pelos incentivos nos momentos mais difíceis, e pelo companheirismo que sempre acompanhou nossas conversas. Tenho certeza que aprendi muito, não apenas sobre a História Social, mas também sobre as sutilezas da vida acadêmica. Espero, sinceramente, ter correspondido às expectativas de sua orientação.

Agradecimentos carinhosos também ao Paulo Henrique e Maria Cláudia da Coordenação do Programa que acompanharam essa jornada dando o suporte administrativo. Incluo também, os agradecimentos aos funcionários da Xerox, Cléber e Nelson, e da Biblioteca do Programa. Também não posso deixar de citar o amparo financeiro da Capes, fundamental para a realização dessa pesquisa.

Enfim, são incontáveis as pessoas que passaram por mim e tornaram alguns instantes em momentos densos de significados. Esta conquista é parte do que me constitui hoje enquanto pessoa, de como enxergo o mundo e de como me relaciono com ele. Esta conquista, conta em minhas experiências como uma fase rica de aprendizado, reflexão e composição.

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7 ―O que lhes vale ainda um pouco é não

terem perdido o governo da multidão. Escondem-se; vão por noite negra e vias escuras levar a droga ao enfermo, e,

com ela, a consolação‖.

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Resumo

No decorrer da primeira metade do século XIX, os curadores populares que atuavam no Rio de Janeiro estiveram inseridos num processo de desqualificação de seus saberes de cura, ao mesmo tempo em que a medicina acadêmica empreendia um projeto de construção da sua hegemonia nas artes de curar. Objetiva-se aqui ampliar a compreensão sobre os curadores que nunca se licenciaram e, por fim, sobre todos os curadores que tiveram suas práticas de cura desqualificadas a partir de então. Busca-se demonstrar como os médicos da Academia Imperial de Medicina, ao se apropriar dos conhecimentos das ervas medicinais, descontextualizaram um saber próprio do universo cultural de práticas e saberes dos curadores a fim de transformá-lo em conhecimento científico caracterizando um processo de tradução científica. Por fim, a análise das evidências acerca da identidade dos curadores e de suas práticas de cura levará a uma interpretação do processo contra-hegemônico identificado pela resistência representada nas ações cotidianas e culturais da sociedade brasileira, apontando para a permanência das práticas de cura populares ao longo do tempo.

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Abstract

During the first half of XIX century, the popular curators in Rio de Janeiro were inserted in a process that disqualified their knowledge, at the same time that the academic medicine undertook a project to construct its hegemony at the arts of cure. Thus, the objective of this work is to understand that process from the analysis of the historical vestiges of the popular curators recognized by Fisicatura-mor, between 1808 e 1828, amplifying the comprehension about the curators that never been licentiate, and, at the end, about all the curators that had their practices of cure disqualified. We will demonstrate how the doctors from the Academia Imperial de Medicina, when they appropriate of the medicinal herbs knowledge, took out of context this knowledge from its own cultural universe to transformer it in a scientific knowledge,

characterizing a process of scientific translation. Finally, the analysis of the curators‟ identity

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Sumário

Introdução...11

1. De saberes legítimos a charlatanices: a desqualificação oficial dos curadores...24

1.1 Os “curandeiros” na Fisicatura-mor: um saber reconhecido... 25

1.2 Os que “aviltão a difícil, nobre e util arte da medicina”...... 50

1.3 A construção de uma identidade médica... 78

2. Uma ciência patriótica e útil: os saberes da terra apropriados pela medicina acadêmica... 91

2.1 O lugar do conhecimento científico no discurso médico... 92

2.2 O papel da Academia Imperial de Medicina e dos periódicos médicos no processo de tradução científica ...110

2.3 O processo de hegemonia da medicina acadêmica: a valorização do conhecimento dos curadores versus a desqualificação de suas práticas de cura.. ... 131

3. O processo contra-hegemônico nas artes de curar oitocentistas... 147

3.1 A assimilação da medicina acadêmica como estratégia de contra-hegemonia dos curadores licenciados pela Fisicatura-mor... 148

3.2 Contra-hegemonia: o reconhecimento social dos curadores numa longa duração... 167

Considerações Finais... 190

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12 A trajetória dessa dissertação foi inicialmente motivada por reflexões e indagações feitas a partir de uma pesquisa realizada no Laboratório de História Antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro durante a graduação. Sendo bolsista de Iniciação Científica CNPq-Pibic, com um projeto de estudos sobre o cristianismo antigo ancorado na História Cultural, tive acesso a uma bibliografia especializada na análise da literatura cristã que, esporadicamente, abordava o tema da cura e dos milagres feitos pelo judeu Jesus de Nazaré e seus companheiros enquanto curandeiros no século I da Era Comum.

Naquele momento, eram apenas questões. Quando decidi estudar História do Brasil no mestrado, eu pretendia refletir sobre as questões que perpassavam pelo sentido da cura nas variações dos tratamentos e nas diferentes percepções diante da doença e, principalmente, na função social de certas curas entrelaçando o indivíduo com a sociedade, a doença e os processos de cura. Ao pensar no universo simbólico que envolvia a busca pela cura, procurei compreender as discussões sobre história da medicina e práticas de cura populares no Brasil.

Ao me deparar com uma bibliografia que tratava desse tema, no século XIX, discutindo a história da medicina sob diferentes perspectivas, a saber autores como Tânia Salgado Pimenta, Nikelen Acosta Witter, Gabriela Sampaio, Márcio de Souza Soares, Sidney Chalhoub e Luiz Otávio Ferreira, comecei a me interessar por esse campo de estudos e pensar na possibilidade de uma pesquisa histórica que abordasse as práticas de cura realizadas pelos curandeiros nas primeiras décadas do século XIX.

A aprovação do pré-projeto, referente ao estudo das relações interculturais entre médicos e curandeiros no início do século XIX, pela Casa de Oswaldo Cruz incentivou o desenvolvimento dessa pesquisa. Desse modo, desenvolveu-se um projeto ancorado na História Social da Cultura com o objetivo de analisar o processo de construção da hegemonia da medicina acadêmica e as estratégias de contra-hegemonia desenvolvidas pelos agentes de cura populares na primeira metade do século XIX.

Tal interpretação teve como propósito estar bem situada num espaço e tempo definido entre a criação da Fisicatura-mor em 1808 e os primeiros anos da década de 1850 na corte do Rio de Janeiro. Desse modo, os sujeitos dessa história estão ambientados no fluxo das mudanças ocorridas no país a partir da chegada da Família Real em 1808. A transferência da corte portuguesa para o Brasil representou uma mudança significativa nas dimensões políticas,

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interiorizada”1. O período de “enraizamento” do Estado Português na América é justamente o que

caracteriza os primeiros anos da presença da Família Real, do governo metropolitano juntamente com toda sua administração trazendo mudanças significativas à cidade do Rio de Janeiro. Um governo com referências políticas e culturais européias passou a compartilhar do cotidiano marcado pela dinâmica urbana da escravidão. Neste contexto, o Rio de Janeiro configurou-se

como um “pólo civilizador da nação”, conforme aponta Alencastro2. Assim, inserido dentro de

um projeto civilizador, procurou-se dar ao Rio de Janeiro uma identidade mais próxima e compatível com a presença de seus mais novos e ilustres habitantes.

Pretendeu-se, contudo, compreender os costumes, assim como identificá-los a partir de suas diversas articulações no comportamento dos indivíduos envolvidos nas artes de curar, especialmente entre médicos, curadores e seus doentes. O objetivo perseguido foi examinar os

acontecimentos e tentar “descrever com densidade”3 as práticas de cura a partir das relações entre

os médicos e os curandeiros.

As fontes documentais usadas neste trabalho, em grande parte já pesquisada por outros

estudiosos da área, foi revista sob uma nova perspectiva histórica. As licenças para o “ofício de curandeiro” da Fisicatura-mor, documentação levantada e analisada pela primeira vez por Tânia Salgado Pimenta em 1997, foram revisitadas a fim de se reconstituir o processo de hegemonia da medicina, assim como o de contra-hegemonia realizado por aqueles curadores.

Órgão responsável, principalmente, pela fiscalização do exercício das artes de curar, a Fisicatura-mor esteve em vigência, na Corte do Rio de Janeiro, no período de 1808 a 1828. A documentação produzida por esse órgão é rica em indícios a serem estudados sob um ponto de vista que considere os pormenores de cada “curandeiro” e os indícios de suas práticas de cura. Tal análise teve por objetivo compreender quem eram esses agentes de cura e como atuavam, naquele período, na cidade do Rio de Janeiro. Ademais, articuladas a outras fontes, essa documentação permitiu a compreensão da permanência de muitas dessas práticas e concepções, na longa duração, em torno da doença e da cura.

Segundo Pimenta, as cartas e licenças expedidas demonstraram que havia oficialmente uma hierarquia entre os agentes de cura daquele período. Os curandeiros, assim como os

1 DIAS, Maria Odila Silva. A interiorização da Metrópole (1808-1853). In: MOTA, Carlos Guilherme (org.).

1822: Dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972.

2 ALENCEASTRO, Luiz Felipe de. Vida Privada e Ordem Privada no Império. In: História da Vida Privada no

Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 10.

3 GEERTZ, C.

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14 sangradores e as parteiras, faziam parte da classe dos “terapeutas populares”, conceito cunhado

pela autora, os quais eram os menos valorizados do ponto de vista da Fisicatura-mor. Pode-se perceber, entretanto, que as práticas de cura realizadas, em sua maioria, por escravos, forros e mulheres eram reconhecidas como um saber legítimo na medida em que licenças eram aprovadas para que pudessem exercer suas atividades. Sendo assim, na visão da autora, o objetivo da Fisicatura-mor se limitava a ajustar tais práticas às relações de dependência pessoal à medicina4. A compreensão dos “curandeiros” se deu pela análise dessas licenças, na medida em que elas possibilitaram uma descrição densa de seus saberes de cura, impregnados pelos costumes e culturas de seu tempo, num processo de assimilação da medicina.

O processo burocrático necessário para a oficialização dos “curandeiros” junto à medicina acadêmica era realizado a partir do pedido do suplicante, ou seja, da pessoa que fazia o requerimento de licença à Fisicatura-mor. Este, para ser levado a exame, não era obrigado a apresentar uma certidão de mestre comprovando seu aprendizado, mas deveria comprovar sua prática através de testemunhos de indivíduos socialmente respeitáveis5. Segundo Pimenta, esses documentos que poderiam variar entre um atestado, um abaixo-assinado ou uma declaração, deveriam fornecer informações sobre a conduta moral e a necessidade de tais serviços dado a ausência de médicos no local em que seriam exercidas as atividades. Muitas vezes, afirma a autora, esses documentos eram suficientes para que a licença fosse concedida sem que o suplicante passasse pelo exame de seus conhecimentos no ofício6.

O suplicante para atuar legalmente no “ofício de curandeiro” recebia uma licença provisória, que durava um ano, e era assinada pelo físico-mor ou o delegado deste. Sangradores e parteiras também precisavam renovar anualmente suas licenças, porém essas eram assinadas pelo cirurgião-mor. Por outro lado, médicos, cirurgiões e boticários recebiam cartas definitivas para atuarem em suas artes, e estas eram assinadas pelo rei, príncipe ou imperador. Portanto, essas assinaturas os distinguiam socialmente. Conforme afirma Pimenta, “isso aponta para a diferença

entre a importância conferida a essas atividades, pois as mais valorizadas teriam sua carta

4 PIMENTA, Tânia Salgado. Barbeiros-sangradores e curandeiros no Brasil (1808-28). História, Ciências,

Saúde-Manguinhos, v. 5, nº 2, Rio de janeiro, Julho/Outubro, 1998. [2].

5 Para obter a licença para curar de medicina (destinada àqueles que não haviam concluído os estudos em medicina

nas universidades estrangeiras), os procedimentos eram os mesmos.

6 PIMENTA, Tânia Salgado. Artes de curar: um estudo a partir dos documentos da Fisiatura-mor no Brasil do

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assinada pela autoridade máxima da sociedade”7.

Assim, a pesquisa apresentada por Pimenta revelou que alguns escravos e forros entraram com pedidos para serem licenciados como “curandeiros” ou sangradores e, ao serem aprovados, tinham seus saberes de cura considerados legítimos8. Apesar disso, a atuação possuía regras e limites e os colocava diretamente submetidos àqueles que estavam no topo desta pirâmide hierárquica, os médicos. Estes, não possuíam reconhecimento social, mas estavam construindo a legitimidade política através da Fisicatura-mor e com o apoio do governo imperial a partir de 1835.

Configura-se, então, uma tensão, uma vez que os indivíduos que foram licenciados

como “curandeiros” pertenciam a um nível social inferior em relação aos médicos, cirurgiões e boticários. Eram escravos e forros contornando os limites impostos pelo regime político da sociedade em que estavam inseridos tornando-se agentes de cura licenciados pelo órgão representante da medicina acadêmica. A classe dominante desta sociedade legitimava um conhecimento popular que, após alguns anos, passaria a desqualificar acusando de charlatanice. O reconhecimento social das práticas dos curadores tornou-se, portanto, um dos maiores desafios da medicina acadêmica.

Serão consideradas, nesse trabalho, as licenças, para o “ofício de curandeiro”,

encontradas nos pacotes da Fisicatura-mor pesquisadas no Arquivo Nacional. Segundo os gráficos de Tânia Salgado Pimenta, os pedidos de licenciamento representavam apenas 1% do total das especialidades de cura que eram aceitáveis pela Fisicatura-mor9. No entanto, é interessante apontar para uma constatação de Pimenta:

Analisando a documentação pude perceber três categorias que exerciam atividades semelhantes: médicos, licenciados a curar de medicina prática e curandeiros. Os primeiros eram considerados os profissionais competentes por excelência; os segundos seriam capazes de substituí-los na sua ausência, porque já exerciam alguma especialidade (cirurgia ou farmácia) e tinham adquirido certo conhecimento sobre assuntos médicos de modo empírico; e os terceiros eram os menos valorizados no quadro hierárquico da Fisicatura, que se via obrigada a oficializar as suas práticas, segundo o seu discurso, principalmente em função da demanda da população, e da escassez de médicos e mesmo de

7 PIMENTA, 1997 [1], op. cit., p. 19, 20. 8 Ibidem, p. 21.

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cirurgiões aprovados em medicina. Na verdade, como vimos, a interferência dessa instituição se dava no sentido de colocar sob seu controle o exercício de todas as práticas de curar, alegando estar assim protegendo a saúde do povo10.

Desse modo, percebe-se que apesar da baixíssima procura por licenciamento desses

“curandeiros”, já que foram encontradas 25 (1, 2%) licenças, seu ofício era semelhante, segundo descrito acima, à arte de curar da medicina acadêmica. Mas esta também não tinha muitos pedidos, pois segundo os dados quantificados foram encontrados 59 (2,8%) pedidos para médicos e 24 (1,1) para “curar de medicina”11.

Ainda é preciso destacar que a aceitação dos curadores também tinha implicações para outro grupo de agentes populares de cura. Conforme assinalou Marques, os a manipulação de medicamentos, prática dos boticários, também era realizada pelos curadores12. Segundo Pimenta,

“os curandeiros representavam a contrapartida do conhecimento dos boticários sobre

medicamentos”. Constam nos pacotes da Fisicatura-mor, 535 (25, 2%) pedidos de licenças para boticários13, ou seja, havia um contingente considerável de pessoas que manipulavam medicamentos.

As restrições impostas pelo Regimento de 1810 aos “curandeiros” obrigava-os a curar apenas com ervas do país as moléstias mais simples exercendo apenas sua atividade na ausência de médicos e cirurgiões aprovados. Ficava também estabelecido que o mesmo deveria consultar o médico em caso de dúvida e, além disso, relatar à Fisicatura-mor todos os seus “curativos” assim

como os resultados dos mesmos14.

É possível considerar que muitos sangradores eram “curandeiros”. Do total de pedidos, 244 (11,5%) eram para sangradores, e 14 (0,7%) para sangrador e dentista. Ademais, tendo em vista que “ter a carta da arte de sangria era pré-requisito para quem quisesse prestar exame na arte

de cirurgia”, com exceção de escravos e forros, os de melhor condição social visavam o exame de

cirurgia posteriormente. Segundo os dados de Pimenta, 84% dos pedidos eram claramente requeridos por escravos (101) e forros (63), e estes não poderiam alcançar a posição de

10 PIMENTA, 1997 [1], op. cit., p. 69. O grifo é meu. 11 PIMENTA, 1997 [1], op. cit., p. 143.

12 MARQUES, Vera Regina Beltrão Marques.

Natureza em Boiões: Medicinas e Boticários no Brasil Setecentista.

Campinas: Editora da Unicamp, 1999. 13 Ibidem, p. 143.

14Colleção das leis, alvarás, decretos, cartas régias, &c. promulgadas no Brasil desde a feliz chegada do príncipe

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17 cirurgião15.

A proposta principal, deste trabalho, é fazer uma leitura a contrapelo dessas licenças, compreendendo-as dentro de um contexto histórico específico em que a medicina acadêmica se apropria de elementos do universo cultural dos curadores com o interesse nos seus conhecimentos das ervas medicinais. Desse modo, busca-se apreender os costumes em torno da cura tendo em vista os aspectos dessa experiência, que foram transformados pela medicina em conhecimento científico, assim como apreender a dinâmica das mudanças ocorridas nesse saber ao longo do tempo.

Portanto, essas licenças não representam uma imagem exata dos agentes de cura populares daquele período, mas apontam indícios de um grupo de curadores que estabeleceu contatos expressivos com a medicina acadêmica ao ponto de se apropriar de conhecimentos e incorporá-los, a partir de suas próprias referências, em sua prática de cura cotidiana.

Na análise crítica das fontes documentais, o “curandeiro”, como foi definido um

determinado ofício de cura pela Fisicatura-mor, é compreendido e definido, nesse trabalho, como um curador. Essa mudança é explicada pelo fato de que as fontes pesquisadas representam, em grande parte, o discurso da medicina acadêmica e implicam na formalização de suas práticas e na inserção desse ofício numa hierarquia que tem por parâmetro a ciência médica. “Curandeiro”,

segundo o Regimento de 1810, era o agente de cura que tinha a mesma função do médico. Contudo, suas curas estavam restritas ao uso das ervas do país no tratamento das doenças mais comuns do lugar onde residiam e, sobretudo, ficavam impedidas na presença de um médico ou cirurgião licenciado.

Entende-se como curador, portanto, um agente de cura popular que atuou no início do século XIX manipulando ervas medicinais, fazendo uso desses recursos vegetais, pelo domínio que possuíam do conhecimento empírico das suas propriedades curativas, e também pelo seu caráter simbólico. Por um lado, a manipulação das ervas do país estavam associadas a rituais religiosos compartilhados com a sociedade. Por outro lado, o conhecimento empírico se constituiu como uma área de interesse da medicina que, no decorrer de seu processo de hegemonia política, entre as décadas de 1820 a 1850, foi apropriada e transformada em conhecimento científico.

Os periódicos médicos, estudados anteriormente por Luiz Otávio Ferreira e também por

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18 Tânia Salgado Pimenta, serão apresentados, neste estudo, a partir de uma análise dos discursos médicos daquele período tendo em vista o processo de desqualificação dos curadores, enquanto agentes de cura, e a desautorização de suas práticas de cura identificadas às dos curadores. A discussão sobre os diversos charlatanismos médicos após a extinção da Fisicatura-mor, momento em que o processo de hegemonia se tornou mais evidente, está baseada principalmente nas posições dos médicos apresentados nesses jornais.

Entendidos como um campo de afirmação da medicina acadêmica no país16, os periódicos médicos publicados no período estudado são: Propagador das Sciencias Medicas

(1827); Semanário de Saúde Pública (1831-1833); Diário de Saúde (1835-1836); Revista Médica

Fluminense (1835-1841); Revista Médica Brasileira (1841-1843). Também incluo a análise dos

Annaes da Medicina Brasileira (1845-1851).

A pesquisa desses jornais também foi importante para a compreensão do processo de tradução científica a partir da análise das discussões sobre as propriedades medicinais de diversas plantas usadas popularmente. Com o mesmo objetivo, também foram incorporados nessa pesquisa as Atas das reuniões da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro e, posteriormente, Academia Imperial de Medicina no período entre a sua criação em 1829 até 1850. De suma importância para o debate acerca da apropriação dos conhecimentos das ervas medicinais dos curadores, essas Atas demonstraram o processo de descontextualização desse saber, e sua incorporação no discurso científico. Nesse sentido, os discursos médicos também sugerem indícios das práticas de cura e dos costumes da sociedade brasileira daquele período.

A partir da análise de algumas teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, entre os anos de 1840 e 1853, pretendeu-se demonstrar o que os médicos estavam definindo como charlatanismo e, do mesmo modo, identificar traços das práticas populares de cura presentes nas atividades desses esculápios. Desse modo, pretendeu-se fazer uma análise crítica em torno do conceito de charlatanismo. Foram encontradas, nessa documentação, importantes evidências sobre a falta de consenso entre os médicos no período de maior mobilização corporativa da medicina. O apelo para a criação de uma legislação que garantisse o controle das práticas de curar pelos acadêmicos foi uma constante nesses discursos que visavam estratégias para desqualificar as práticas de cura populares.

16 FERREIRA, Luiz Otávio. Negócio, política, ciência e vice-versa: uma história institucional do jornalismo médico

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19 Os estudos clássicos de folcloristas como Alceu Maynard de Araújo e Jósa Magalhães foram incluídos entre as fontes documentais a fim de realizar uma comparação em relação a usos e práticas dos tratamentos realizados pelos curadores populares. Busquei utilizá-los como recurso para encontrar novos problemas, como sugere o historiador inglês Thompson17. Na busca pela reconstituição dos curadores que atuavam no início do século XIX, esses trabalhos desenvolvidos no contexto do século XX deram indícios da memória social e coletiva18 das práticas e dos

“remédios” usados por esses agentes de cura.

Ao forjarem uma tradição para uma medicina “folclórica”, para Magalhães, ou

“rústica”, para Araújo, esses autores discutem a permanência de práticas de cura, praticadas pelos povos do interior nordestino, diferentes das práticas de cura dominantes. É como se tratassem os dados observáveis como reminiscências de memórias. As informações colhidas sobre as formas de curar e seus diferentes agentes são associadas a uma matriz que está muito bem apoiada numa memória comum do povo, mas é compreendida a partir dos pressupostos de uma medicina acadêmica já consolidada politicamente, porém ainda em busca de sua hegemonia social.

Magalhães e Araújo retomam a descrição das práticas de curadores e outros agentes de cura populares, outrora oficialmente reconhecidos. E os autores se dividem em apresentar, classificar, repudiar certas práticas e até mesmo reconsiderar algumas delas à luz da ciência médica atual. Descrevem os hábitos relacionados ao adoecer e ao processo de cura comum aos sertanejos sempre estabelecendo uma raiz histórica para cada prática considerada supersticiosa. Assim, eles afirmam que essas comunidades se encontram atrasadas em sua forma de lidar com a doença.

A leitura interpretativa dos indícios encontrados nesse material associada à construção das evidências históricas é o que permitiu a análise historiográfica de práticas de cura, de concepções de doenças, de relações políticas, sociais e culturais entre a medicina e os curadores populares. O objetivo foi desvendar com densidade tais relações e percepções de mundo pelo

17 THOMPSON, E. P. Folclore, Antropologia e História Social. In:

As Peculiaridades dos Ingleses e outros artigos.

Campinas: Editora da Unicamp, 2001, p 229.

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20 ponto de vista do observado, ou seja, os próprios curadores.

Reafirmo novamente a orientação desta pesquisa: além de centrar a análise das fontes e sua articulação com uma bibliografia atualizada no tema na perspectiva dos curadores e não da medicina acadêmica, não se fará referência aos médicos memorialistas geralmente citados em grande parte dessa historiografia. Sendo os médicos os detentores de grande parte dos discursos da documentação, argumento que esta pesquisa empreendeu o desafio de encontrar indícios das práticas dos curadores do início do século XIX na tentativa de descrevê-los densamente.

Pretende-se com esse instrumento teórico tornar possível uma interpretação histórica mais próxima das práticas dos curadores e das relações destes com o conhecimento médico, e vice-versa. Sendo assim, objetiva-se relacionar os discursos médicos presente nas teses e nos periódicos com o processo de desqualificação dos curadores, considerando os esforços pela construção da hegemonia da medicina e atentando para as ações dos sujeitos envolvidos nessas relações culturais.

Também é preciso enfatizar que este trabalho não pressupõe um processo de monopólio, nas questões referentes à saúde, por parte da medicina acadêmica do século XIX. Entende-se que houve um processo de construção pela hegemonia no âmbito das artes de curar brasileiras. Tal postura busca valorizar, portanto, as estratégias de resistência dos curadores e dos doentes que compartilhavam de concepções distintas daquelas preconizadas pela medicina acadêmica. Nesse sentido, os sujeitos históricos desta pesquisa estão centrados, principalmente, nos curadores que são compreendidos a partir da análise das relações de dominação e da organização social da medicina acadêmica no Brasil.

Ressalta-se que, neste trabalho, a cultura é o principal objeto de estudo. Compreendida como um

conjunto de diferentes recursos, em que há sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole, é uma arena de elementos conflitivos, que somente sob uma pressão imperiosa (...) assume a forma de um „sistema‟19.

Busca-se compreendê-la em sua densidade e dinâmica atentando para suas

19 THOMPSON, E. P.

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21

“contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto”20. O

universo cultural dos curadores e dos doentes que a eles recorriam só pode ser visto pela relação de conflito e resistência caracterizada pela tentativa de dominação da medicina no que se refere ao entendimento da doença, à intervenção no corpo enfim, aos modos de se restabelecer a saúde. Nesse conjunto de múltiplos significados, busquei identificar os principais componentes, sendo eles as necessidades e as expectativas21 dos curadores e dos doentes que tentavam aliviar os males trazidos pela doença. A compreensão do processo de luta da medicina acadêmica visando a hegemonia social foi um terreno fértil para a descrição densa dos costumes em torno das experiências vivenciadas pela busca da cura naquele período.

A hegemonia foi aqui entendida como uma via de mão dupla. As relações de dominação entre as classes foram apreendidas também pelas estratégias de resistências que caracterizam um processo de luta constante. Nesse sentido, prioriza-se, dada as circunstâncias históricas e políticas em que estão inseridos médicos e os curadores em contraposição, as resistências culturais informadas pela “cultura costumeira”. Assim, os esforços da medicina acadêmica com a criação

de uma Sociedade, da publicação de periódicos, da luta pelo reconhecimento oficial de sua pertinência nas questões de saúde do país são encarados como um processo de implantação de uma nova ordem que será respondida a partir das estratégias de contra-hegemonia dos curadores e de seus doentes.

O texto que segue está organizado em três capítulos. No primeiro capítulo “De saberes

legítimos a charlatanices: a desqualificação oficial dos curandeiros”, a análise está centrada nas

licenças da Fisicatura-mor para os curadores. Buscou-se entender como o conhecimento e a prática de cura dos curadores no momento em que eram reconhecidos e, portanto, considerados legítimos pela medicina foi interpretado por aquele órgão. Para alcançar esse objetivo, a análise dos folcloristas, tendo em vista a descrição de determinadas práticas de cura e dos remédios usados pelos curadores nordestinos, foi essencial para permitir pensar na identidade do curador e no significado de suas práticas de cura. Através da análise de algumas teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e dos periódicos médicos do mesmo período foi também apreendido

as diversas faces dos denominados “charlatanismos”. Os curadores, desautorizados após a extinção da Fisicatura-mor em 1828, eram considerados charlatães. No entanto, parte de seus

(23)

22 conhecimentos foram apropriados pelos médicos da época que, por essa postura, também foram tachados de charlatães. A análise do processo de desqualificação oficial dos curadores, e dos esforços por distinguir o conhecimento médico das denominadas charlatanices leva a refletir sobre o início da formação de uma identidade médica. A luta pelo reconhecimento oficial e pela hegemonia política será intensa após 1828 a partir do processo de desqualificação do curador na busca pelo controle e pela consolidação na medicina acadêmica.

A análise sobre o conhecimento científico daquele período, assim como dos ideais que faziam parte do discurso médico estão no segundo capítulo “Uma ciência patriótica e útil: os saberes da terra apropriados pela medicina acadêmica”. A valorização do conhecimento da terra,

particularmente da flora brasileira, estava baseada na crença de uma ciência com características próprias que traria desenvolvimento e civilidade ao país. Será apresentado, além da análise dos periódicos médicos, um estudo atento das atas das reuniões da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro e, posterior, Academia Imperial de Medicina. Os debates em torno da experimentação das ervas medicinais foram aqui estudados a fim de se compreender a tradução científica, empreendida pelos médicos, dos conhecimentos dos curadores. Nesse processo, determinados saberes de origem popular foram selecionados, descontextualizados e transformados em discurso científico. O desenvolvimento da química e a preocupação dos médicos com o mercado de remédios será um tema também explorado nesse capítulo. Finalmente, o processo de descontextualização dos elementos do conhecimento dominado pelos curadores sobre as ervas medicinais, assim como seu uso no tratamento de diversas doenças foi desenvolvido pelos

médicos que buscavam a formação de uma “medicina brasileira”, reconhecida pelas suas

singularidades.

O terceiro capítulo intitulado “O processo contra-hegemônico nas artes de curar

oitocentistas” está centrado nas estratégias de resistência utilizadas pelos curadores para

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23 capítulo retoma-se a análise dos folcloristas num esforço de historicização das doenças que eram tratadas e das práticas de cura realizadas pelos curadores da primeira metade do século XIX considerando tais práticas como fragmentos da memória coletiva em torno dos remédios usados e das curas cercadas de rituais religiosos que permaneceram na longa duração.

(25)

24

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25

1.1 Os “curandeiros” na Fisicatura-mor: um saber reconhecido

A discussão historiográfica desenvolvida nesse capítulo sobre os curadores das primeiras décadas do século XIX exige um esclarecimento: quem eram e o que representavam esses agentes de cura na sociedade carioca desse período? Tal debate se constituirá aqui a partir de uma análise crítica do conceito de “curandeiro” na documentação consultada, delineando

historicamente o ofício e as práticas daqueles que se dedicaram a curar.

É importante notar que a documentação da Fisicatura-mor é constituída por um restrito número de licenças requeridas por indivíduos que decidiram se oficializar como “curandeiros”

entre 1808 e 1828. Contudo, essa documentação não representa a realidade do cotidiano daqueles que adoeciam nas primeiras décadas do século XIX e que se serviam largamente dos serviços dos curadores. Ela indica que alguns desses curadores procuraram, como afirma Pimenta, se adequar à medicina acadêmica22. Tal adequação, entende-se aqui, como uma forma de cooptação desses curadores pela medicina acadêmica. Mesmo assim, são fragmentos da existência de práticas ainda tão comuns nos dias de hoje, e que, por certo período, foram legitimadas pela medicina acadêmica.

Ao mesmo tempo, tem-se um dado implícito nessa reflexão. A maioria dos curadores ativos nesse período não buscou a autorização da Fisicatura. O acesso a essa grande parcela de indivíduos que prestavam serviços de cura apenas pode ser possível por indícios através de uma

“leitura a contrapelo” das fontes. Essa restrição é justamente o desafio lançado nesse trabalho.

Para se compreender como se deram as relações entre curadores e médicos, é imprescindível entender quem eram essas pessoas e quais as suas práticas e hábitos que, num primeiro momento, alcançaram o reconhecimento dos médicos e, logo depois, seu repúdio. Entender o curador significa ir além das licenças, já que essas representam a exceção.

Sobre as licenças, Pimenta argumenta:

o seu pequeno número talvez possa ser entendido como ignorância (em regiões

22“A Fisicatura não se preocupava em entrar em detalhes sobre as terapias populares, até porque, para os requerentes serem aprovados, suas práticas deveriam se adequar, pelo menos na petição e no exame, às linhas da medicina

(27)

26

mais afastadas dos centros urbanos) ou indiferença (principalmente na corte) de seus praticantes em relação às normas da instituição que defendia a medicina acadêmica, o que neste caso poderia caracterizar esse grupo como seguro de seu papel e importância na sociedade23.

Os curadores sabiam que suas práticas de cura tinham prestígio entre a população, e a aceitação das regras oficiais, por alguns deles, deve ser entendida também como uma estratégia para continuar a atuação de forma mais tranqüila e segura, evitando uma punição. A licença tornava o profissional mais bem conceituado apenas diante da Fisicatura-mor, tendo em vista que uma grande maioria de curadores não era licenciada, mas atuava cuidando da população. Não há indícios na documentação de que a população preferisse um curador licenciado24. Ao contrário, as evidências indicam que buscavam estes serviços de cura, independentemente da licença. Portanto, para a sociedade não fazia sentido as regras impostas por um órgão do governo que pretendia controlar e fiscalizar costumes que eram privados. A presença de um curador, ou outro agente de cura popular, era comum e estava arraigado em seu cotidiano. Diferente era a intenção dos médicos de controlar a assistência à saúde da população.

Pimenta afirma que alguns curadores se dirigiram à Fisicatura-mor “por estarem

inseridos na concepção da medicina acadêmica, outros apenas devido à ameaça de serem

punidos”25. Para demonstrar essa proximidade entre certos curadores e a medicina acadêmica, a

autora utiliza algumas licenças desses agentes de cura, que afirmavam ter conhecimentos de medicina como Galdino de Amorim Boanova e José Fernandes Coelho. Em outras licenças, nas quais os suplicantes afirmavam ter conhecimento da lei que obrigava a aprovação no exame para atuar ou então que apontava para o temor do curador de ser punido, a autora chama a atenção para a concorrência existente entre os curadores principalmente quando era decretada a devassa26. Segundo o Regimento de 181027, as devassas ocorriam anualmente. No entanto, o que se busca,

23 PIMENTA, 1997 [1], op. cit

., p. 116.

24 Existem algumas exceções, pois no caso da população se indispor com o cirurgião-mor licenciado ou apenas não

preferir seus curativos, faziam abaixo-assinados que serviriam como atestados da competência do curador com o objetivo de que a Fisicatura o licenciasse e ele praticasse seus curativos sem nenhum impedimento legal. Ver tópico 3.2.

25 PIMENTA,1997 [1], op. cit

., p. 121.

26 Ibidem, p. 121-123.

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27 nesse trabalho, é compreender porque a maioria dos curadores não se adaptou à medicina acadêmica, mas apenas um pequeno número de indivíduos se licenciou para curar. Tal associação também inclui os interesses da medicina em se aproximar dos conhecimentos desses agentes de cura populares.

Todo o saber de cura que os curadores do início século XIX dispunham tinha sido acumulado empiricamente a partir do encontro das três culturas desde os tempos da Colônia. Ribeiro afirma que

apresentando certos traços de prolongamento em relação à medicina européia, a arte médica colonial, muitas vezes era confundida com a feitiçaria e as práticas mágicas exercidas cotidianamente. Daí, a grande dificuldade de saber se determinada aplicação era fruto da influência desta ou daquela etnia que formou o Brasil. Tanto para o saber tradicional transportado ao Novo Mundo como para as culturas indígenas e africanas, não havia distinção no emprego de substâncias naturais e simbólicas28.

Portanto, as primeiras décadas do século XIX representam um momento em que a medicina ainda não tinha sido desvinculada completamente dos elementos mágicos e religiosos a que esteve associada até fins do século anterior, mas se encontrava em vias de mudanças. No período de vigência da Fisicatura-mor, ela não teve dificuldades de aceitar os conhecimentos dos curadores assentados na transmissão oral de saberes de cura e na experiência cotidiana. Contudo, a busca pela hegemonia política e social das artes de curar pela medicina acadêmica, incluía a adaptação desses agentes de cura, de modo que ficassem acentuadas apenas suas qualidades terapêuticas baseadas nos usos da flora brasileira, deixando de lado os aspectos mágicos contidos nessas práticas anteriormente. No entanto, cabe ressaltar que a maioria dos curadores nesse período não se preocupava em adquirir uma licença para atuar, assim como sua clientela não validava o serviço do curador através de tal documento.

Em se tratando de uma definição técnica, segundo a Fisicatura-mor, o curador era aquele que tinha adquirido sua experiência empiricamente. Curavam com ervas do país as doenças mais simples das regiões onde residiam, ficando impedidos de manipular medicamentos.

estes estados com hum índice chronologico. Rio de Janeiro: Na Impressão Régia, [1810], cap. XV. Esse documento

será citado adiante como Regimento de 1810.

(29)

28 E um aspecto era ressaltado em todas as licenças: ficavam obrigados a curar apenas na ausência de médicos e cirurgiões aprovados, tendo que consultá-los em caso de dúvida. As licenças tinham validade de um ano e, ao fim desse tempo, era preciso requerer nova licença à Fisicatura.

O Regimento de 1810 afirmava:

Os que não sendo cirurgiões se tiverem applicado ao estudo da medicina, e observação dos medicamentos do país, e que forem julgados necessarios nos lugares remotos, onde não há, nem póde haver Medico, nem Boticário, nem Cirurgioes, que bastem segundo a população, o Juiz Commissário com seu escrivão, e unicamente com hum Medico os examinará de medicina, e farmacia segundo os seus poucos conhecimentos, e lhes passará licença de Curadores (...)29.

Assim, uma das principais ressalvas para os curadores era atuar apenas na ausência de médicos, boticários e cirurgiões aprovados. Tal controle não tinha efeito real na sociedade, uma vez que a população não reconhecia a validade de tal decreto.

Na licença do preto forro Raimundo Joaquim da Silva30 em 1826, foi encontrada a

ressalva de que o curandeiro deveria, de seis em seis meses, “dar conta do que tem praticado, e

dos casos dignos de comunicação”. Tal exigência, incomum na maioria das licenças, estava

expressa no Regimento de 1810:

Os cirurgiões e curadores de fora serão obrigados de seis em seis mezes a remetter ao Juiz Commissario huma relação fiel dos enfermos, de que tem tratado; dos medicamentos, que lhes suplicarão, e o seus resultado; e ele lhes enviará a sua correção, ou louvor, segundo o seu merecimento; e vendo que algum tem praticado erros taes, que mostrem ignorancia prejudicial á vida dos povos, o suspenderá logo, e não o admittirá mais a exame sem passar hum anno31.

Essas medidas de controle não tinham significado sobre as artes de cura populares no cotidiano de quem as buscava, mas estabeleciam uma hierarquia entre as diversas categorias de cura e, tinham como pretensão forjar a preeminência da medicina acadêmica e a hegemonia política dos médicos nas artes de curar. A Fisicatura-mor restringia a atividade dos curadores

29 Regimento de 1810, XXV.

(30)

29 porque queria controlar suas atividades, e forjar a valorização dos médicos e de suas terapêuticas em detrimento daqueles.

Entretanto, a imagem do curador apresentada nas licenças da Fisicatura não é representativa da identidade desses agentes de cura populares. As atividades desse grupo eram muito mais complexas do que aquela descrição técnica e limitada presente nas licenças. Para reconstituir a atmosfera de disputa nas esferas política, social e cultural entre médicos e curadores, inicialmente descreverei as impressões dos curadores deixadas pelos funcionários da Fisicatura-mor e por alguns contemporâneos que testemunharam a favor deles ou então que opinaram sobre o assunto por outros meios. Principalmente em relação aos médicos, é necessário ler em seus discursos, caracteristicamente apologéticos pela construção da hegemonia política da ciência médica, os indícios de práticas daqueles curadores. Esses são os rastros iniciais que serão seguidos e interpretados à luz do contexto político da construção da hegemonia pela medicina no espaço da cidade do Rio de Janeiro a partir de 1808.

As informações compiladas por Jósa Magalhães e Alceu Maynard Araújo são significativas na reconstrução histórica do curador do Rio de Janeiro no século XIX. Com suas diferenças de análise, essas obras são significativas na reinterpretação dos elementos simbólicos de usos e mecanismos das práticas de cura que dão identidade aos curadores.

Considerando o projeto da medicina acadêmica e o comportamento da população em geral diante dessa pretensa autoridade sobre o corpo, a doença e a morte, esse material, contendo as observações e descrições dos autores supracitados, comparado aos indícios encontrados nas fontes do século XIX, auxiliam no entendimento dos curadores e dos costumes que embasam a relação de aceitação com os doentes. Ao problematizar essas interpretações da cultura nordestina é possível, através das evidências históricas construídas a partir dessa análise, reconstituir a imagem do curador.

Com o intento de produzir uma história da medicina folclórica, Magalhães busca o

sentido da doença entre os “povos primitivos”. Os conceitos utilizados pelo autor como “povos primitivos” e “medicina primitiva” já demonstram a concepção histórica, linear e evolutiva, que percorre sua obra. Magalhães apresenta os diversos agentes – vegetais, animais e místicos –

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30

Nos tempos contemporâneos a Astrologia médica está de todo em todo desacreditada. A ciência já lhe não adjudica méritos, nem o povo, tampouco, lhe dá guarida. Todavia, pessoas ignorantes há que, mui de fácil, se deixam embair da despejada solércia dos charlatães. E é por isso que, excepcionalmente, ainda se encontram pessoas que asseguram haja doenças dependentes da influência dos astros32.

Desse modo, Magalhães faz sua primeira alusão aos “curandeiros” das civilizações

primitivas. Esses são aqueles que faziam a leitura dos astros, e que acreditavam na sua influência sobre o corpo. Interessante apontar que apesar de repudiar essas práticas, o autor reconhece nelas uma forma de medicina:

(...) são os feiticeiros, os magos, os pajés, os primeiros agentes da medicina. Indivíduos que, armados de sortilégios e encantamentos, pretendiam predizer o futuro, desvendar os mistérios das coisas incompreensíveis, impetrar os favores dos deuses, espavorir os demônios, e, aos doentes, restituir a saúde transviada33.

Desde o início, segundo o autor, a doença já possuía conotações religiosas, era encarada

como castigo divino, ou como ação dos demônios. E por isso, conclui afirmando que “a medicina não podia menos de resvalar no declive da magia grosseira”34. Para ele, a terapêutica foi inundada

de mistérios e de elementos ritualísticos, sendo a causa das doenças buscada nos astros.

Quando Magalhães inicia a análise do Brasil especificamente, reafirma que os pajés são

“os primeiros representantes na arte de curar”. Esses retiravam “intuitivamente” os elementos da

floresta, afirma o autor, e os usavam associados com sua mística. Acrescenta-se a isso a fusão

com a “medicina dos negros”, no período colonial, repleta de superstições, fetichismo e

empirismo35.

Interessante observar que a atitude dos jesuítas, que vieram para o país desde os tempos

coloniais, é condenada pois, segundo o autor, eles representaram os primeiros “curandeiros” do país misturando fé e medicina, difundindo essa espécie de “medicina espiritual”36. Os rituais e

32 MAGALHÃES, Jósa.

Medicina Folclórica. Ceará: Imprensa Universitária do Ceará, 1966, p.14.

33 MAGALHÃES, Jósa, op. cit., p. 20. 34 Ibidem, p 10-12.

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31 crenças indígenas e negras não são considerados, por Magalhães, como parte de uma cultura

diferente da sua. Elas são sempre interpretadas como “misticismo”, ressaltando o aspecto de

mistério e segredo de forma negativa.

Magalhães data o surgimento dos curandeiros no Brasil:

(...) como se está a ver, a praga social dos curandeiros brotou e se desenvolveu naturalmente na época colonial. Os cirurgiões, os barbeiros e licenciados que Luis Edmundo, com tanto humor lhes retraça a história, outra coisa não foram que notáveis charlatães, com prestígio na sociedade e acobertados da proteção oficial37.

A interpretação de Jósa Magalhães sobre os curandeiros se coaduna com aquela construída pelos médicos logo após a extinção da Fisicatura-mor e ao longo do processo de construção da hegemonia da medicina no Brasil. Muitos curadores, e também as suas próprias práticas de cura foram tomadas como charlatanices após 182838. Porém, no período de vigência

da Fisicatura, ou seja, enquanto eram “acobertados da proteção oficial”, seus conhecimentos e

suas práticas de cura além de desfrutar de “prestígio na sociedade”, ainda eram consideradas

legítimas pela medicina. Somente após a extinção desse órgão e, principalmente após a criação

das Faculdades de Medicina em 1832 que o “ofício de curandeiro” será desqualificado pelos médicos e suas práticas serão consideradas a partir de então como charlatanices.

Magalhães afirma que a medicina de Portugal era decadente39. Assim sendo, e somada à ausência de médicos no Brasil, abria-se espaço para as atividades de cura “cair nas mãos de

cirurgiões, dos curandeiros, dos benzilhões”40 e a autorização oficial para tais práticas teria

facilitado a difusão da medicina popular. O autor trata do assunto sem considerar que essa medicina, uma forma de conhecimento que nunca pretendeu concorrer com a ciência, fazia parte

37 MAGALHÃES, op. cit., p.39.

38 Esse assunto será mais bem desenvolvido no tópico seguinte 1.2.

39 Partindo da premissa de que as novas descobertas em torno dos saberes médicos na Europa não foram descartadas

por Portugal, Jean Abreu se alinha a uma historiografia que defende a idéia de que a tradição ibérica teria preferido modernizar a tradição aristotélico-tomista medieval; que existia uma racionalidade própria que incluía e existência de elementos maravilhosos como bruxas e demônios; ou então que apesar da predominância da escolástica e da recusa do experimentalismo, Portugal não estava isolado do restante da Europa no que se refere aos avanços das ciências. Uma ampla documentação citada pelo autor demonstra como intelectuais portugueses estavam antenados com conhecimentos advindos, por exemplo, de Vesálio e Harvey no que diz respeito à anatomia. ABREU, Jean Luiz Neves. O corpo, a doença e a saúde: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Tese de doutorado. BH:

UFMG, 2006, p.26-30.

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32 da concepção de mundo daquelas pessoas.

O autor demonstra a percepção de que o “curandeiro” que encontra no nordeste

brasileiro em meados do século XX tem sua origem nos tempos coloniais. O autor fala em

“contingências determinantes e universais” presente na memória da população sertaneja:

(...) muito plausível é, pois, que, a favor do determinismo de leis psicológicas, remanesçam estratificados em nosso subconsciente focos residuais dos usos, costumes, abusões, superstições, misticismo e feitiçaria que caracterizaram a prática médica dos nossos avitos41.

A declaração de Jósa Magalhães é clara: a prática médica dos avós e antepassados – os avitos – é, inevitavelmente, povoada das superstições provenientes de práticas populares, dentre

elas a dos “curandeiros”. Tal saber, afirma o autor, constitui uma fusão do conhecimento dos

índios e dos negros e ainda da contribuição dos jesuítas com a associação da medicina e da fé cristã. Assim, para ele, o rezador e o curandeiro nordestino são herdeiros e difusores de uma

“espúria e bárbara medicina”. Agem nas áreas rurais, mas também na cidade atendendo onde “se obnubila a reflexão e o discernimento dos espíritos clarificados”42.

A mesma queixa era feita pelos primeiros médicos formados na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro43. É como se essas pessoas fossem enganadas, uma vez que Magalhães entende o fato de que pessoas instruídas se serviam do tratamento desses indivíduos provindos dos baixos estratos da sociedade, sem estudos nem autorização para fazer curas. Pois segundo sua

concepção, “são os curandeiros indivíduos de rastejante categoria social e calva ignorância, e os

rezadores profissionais, pessoas reservadas, introvertidas, que sempre relutam em revelar a oração forte de que fazem praça”44. Assim, a condição social dos curandeiros populares é

determinante para a desqualificação do seu saber. E, além disso, do ponto de vista científico, toda

e qualquer alusão à “segredo e mistério”, muito presentes nas práticas desses agentes de cura

populares, na interpretação de Magalhães é completamente repudiado. Esses elementos, segundo o autor, são fundamentais para entender a aceitação dessa Medicina Empírica:

41 MAGALHÃES, op. cit., p. 39. 42 Ibidem, p 43.

43A tese de Francisco de Paula Costa, que será analisada adiante, apresenta essa queixa de que “pessoas dotadas de

luzes” também se serviam dos curativos dos “charlatães”. Costa, Francisco de Paula. Algumas reflexões sobre o charlatanismo em Medicina. 1841.

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33

o nosso povo tem o espírito assaz predisposto à receptividade do fabuloso e do sobrenatural. Acredita, sem muito custo, que, dentro do incognoscível e do enigmático, está a verdade. Daí a sua confiança deslindada na medicina empírica, supersticiosa, impregnada de mistérios45.

Na concepção de Magalhães, tal fato ocorre dado à proximidade entre a cultura nordestina e a cultura primitiva, inferindo assim que se trata de uma cultura ultrapassada. O autor demarca a divisão da medicina representada pela pesquisa médica, baseada na observação e crítica, e a medicina popular e folclórica, baseada na empiria. Contudo, para Magalhães, a medicina popular está arraigada nas crenças dos povos do interior:

Esta universalidade empírica e mágica da medicina, como se viu, prosperou, exclusivamente, por muitos séculos a fio e não foi senão quando o homem entrou a munir-se de espírito critico e pôde perceber que a cura das doenças se fazia por processos naturais, que a medicina começou a tomar feição de ciência baseada no crivo da observação e no espírito da pesquisa. Nem por isso, porém, a medicina primitiva deixou de existir com todas as suas nuanças. Nos dias que correm, quando a medicina científica surpreende o mundo com suas conquistas, ao lado dela, em que pese à eminência do seu progresso e à clarificação dos espíritos, não cessa de prosperar a medicina popular. (...) Possível já não é, pois, nesta altura, expungir da cabeça desta gente idéias tão organicamente invisceradas46.

Entretanto, Magalhães admite que as práticas dos “curandeiros” são passíveis de serem validadas, uma vez experimentadas. De outro modo, suas práticas continuavam sendo repudiadas, porque o exercício livre da medicina não poderia ser tolerado. Porém, o conhecimento dos

“curandeiros”, criticados como charlatães, também é relevado quando o autor cita a medicina psicossomática47. Reconhece, portanto, que a medicina empírica dos “curandeiros” e rezadores era composta de elementos que não visavam exclusivamente o corpo, mas também o espírito. Desse modo, a sugestão e o remédio do “curandeiro” poderiam se tornar úteis. Também seus remédios, foram e continuam sendo objeto de pesquisas, dos quais o autor apresenta alguns devidamente comprovados como efetivos. Nesse ponto do texto, o autor encontra e até concorda

com a visão de outros médicos que reconhecem alguma “sensatez e racionalidade” na terapêutica

45 MAGALHÃES, op. cit., p.46. 46 Ibidem, p.50.

(35)

34 empírica. O uso das plantas é a herança mais forte dos indígenas brasileiros, pois esses se curavam a partir do uso empírico da flora associado a um preparo marcado por rituais mágicos, afirma o autor. Isso é indicativo para explicar a disposição do povo em recorrer às plantas medicinais para a cura de suas doenças.

Assim, “curandeiro” para Magalhães é aquele que surgiu nos tempos coloniais, e que se difundiu pela ausência de médicos competentes, mas também por uma “deficiência cultural” do

povo. Tal misticismo, elemento fundamental de uma medicina primitiva, segundo o autor, é tão abraçado pelos sertanejos e está arraigado em sua cultura que a medicina acadêmica moderna tem dificuldades de se impor. Apesar de não fazer uma classificação específica para o “curandeiro”, e se preocupar em descrever os usos dos agentes terapêuticos pela população em geral, o mesmo pode ser definido como aquele que cura com vegetais, com substâncias animais, mas principalmente associando esses elementos com magia. Esta é fundamental na descrição do autor de uma medicina que ele repudia dado o mistério que envolve suas práticas de cura.

Como representante da medicina acadêmica, pois Magalhães escreve como professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, não concorda com a sobrevivência de uma medicina já ultrapassada a que ele atribui caráter folclórico. Dado os avanços da medicina e da indústria de medicamentos, o autor vê um conjunto de atitudes terapêuticas, “Medicina Folclórica”, representando os resquícios de práticas e crenças de uma antiga medicina que ainda sobrevive entre a população nordestina. Ao tratar dos agentes místicos, o autor afirma que são

tratamentos feitos por “feiticeiros e curadores” que enganam “pessoas ignorantes e de espíritos

sensíveis a estes processos deturpadores da nobreza da medicina”48. Portanto, esse folclore ataca

o brio da medicina reunida como um conjunto de “informação e curiosidade”49.

O estudo apresentado por Araújo aborda a “Medicina Rústica” de um ponto de vista sociológico50. Tal conceito, segundo o autor, remete de forma mais completa a uma “série de aculturações da medicina popular de Portugal, indígena e negra”51. As influências do

“curandeiro”, esse prestigiado “oficial da medicina rústica”, provém dessas três tradições, como

48 MAGALHÃES, op. cit., p. 190.

49 A obra de Jósa Magalhães recebeu o Premio Cidade de Fortaleza em 1965. O parecer de Nertan Macedo afirmava

ser o livro rico de “informação e curiosidade”.

50 O autor não é médico, mas advogado e sociólogo. Considera-se esse autor como um folclorista, apesar dele rejeitar

esse título em seu trabalho. Suas concepções o identificam com as obras dos folcloristas brasileiros, tendo em vista que ele aponta para os hábitos de cura como reminiscências concretas de um passado determinado, representando assim as permanências de práticas de cura distintas das dominantes, ou seja, da medicina acadêmica.

51 ARAÚJO, Alceu Maynard Araújo.

(36)

35 afirma também Sérgio Buarque de Holanda, citado por Araújo:

Não faltam, finalmente, aspectos de nossa medicina rústica e caseira que dificilmente se poderiam filiar, seja a tradições européias, seja a hábitos indígenas. Aspectos surgidos mais provavelmente das próprias circunstâncias que presidiram ao amálgama desses hábitos e tradições. A soma de elementos tão díspares gerou muitas vezes produtos imprevistos e que em vão procuraríamos na cultura dos invasores ou na dos vários grupos indígenas. Tão extensa e complexa foi a reunião desses elementos, que a rigor não se poderá dizer de nenhum dos aspectos da arte de curar, tal como a praticam ainda hoje os sertanejos, que é puramente indígena – e só nesse sentido se torna explicável a opinião de Martius52 ou puramente europeu53.

Seu estudo representa “o conjunto de técnicas, de fórmulas, de remédios, de práticas, de gestos” usados pela população de Piaçabuçu, cidade alagoana às margens do Rio São Francisco,

para alcançar a cura54. O autor propõe uma divisão didática: Medicina Mágica, Medicina Religiosa e Medicina Empírica. Tal classificação demonstra, do mesmo modo que Magalhães, a existência de várias formas de medicina. Inicialmente, o “curandeiro” é citado associado à

“Medicina Mágica”, cujo objetivoera “curar o que de estranho foi colocado pelo sobrenatural no doente, ou estirpar o mal que faz sofrer”55. O curandeiro, segundo Araújo, está em primeiro

lugar entre os agentes de cura para os moradores de Piaçabuçu, apesar da perseguição da polícia. Está num nível superior ao do benzedor e da benzinheira – a especialista em rezas para crianças –

e que apesar de suas singularidades está associado ao catolicismo romano56.

Araújo classifica e apresenta os diversos agentes de saúde da comunidade citada. Assim, o “curandeiro” é considerado “uma espécie de oficial sagrado que penetra no mundo do sobrenatural”. E o descreve:

A sua atuação se reveste de gestos, às vezes, de trajes especiais, de orações e o uso de impedimentos religiosos como sejam: cálice, garrafas cheias de certo líquido, com vegetais em infusão ou cobra mergulhada em álcool, velas acesas,

52 Segundo Martius, da Índia várias espécies de Scitaminias foram trazidas às chácaras dos portugueses e são quase

todas empregadas como remédios”. Assim sendo, Araújo conclui que “nem tudo que sabemos da fitoterapia foi ensinado pelo índio” ARAÚJO, op. cit., p.143.

53 MARTIUS, Karl. apud. ARAÚJO, op. cit., p. 141. 54 ARAÚJO, op. cit., p. 57.

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