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Canção popular e cultura de massa em La importancia de llamarse Daniel Santos, de Luis Rafael Sánchez

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Academic year: 2020

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EM LA IMPORTANCIA DE LLAMARSE DANIEL

SANTOS, DE LUIS RAFAEL SÁNCHEZ

Wanderlan da Silva ALVES*

„ RESUMO: Este artigo procura analisar a configuração estrutural híbrida do romance La importancia de llamarse Daniel Santos (1988), do porto-riquenho Luis Rafael Sánchez, centrando-se nos processos dialógicos que a narrativa desse romance estabelece com a canção popular de feição romântica latino-americana, especialmente o bolero, e na reelaboração ficcional de elementos potencialmente factuais da experiência do autor como apreciador de produtos culturais de massa que, no entanto, são transpostos para a estrutura desse romance sem que se configurem como dados autobiográficos. Desse modo, a narrativa faz uma leitura crítica do contexto mais amplo dos produtos culturais massivos na América Latina dos anos 1980, ao mesmo tempo em que reivindica sua potência crítica e expressiva para a narrativa literária.

„ PALAVRAS-CHAVE: Luis Rafael Sánchez. Hibridação. Cultura de massa. Romance latino-americano. Pós-boom.

O romance La importancia de llamarse Daniel Santos, do escritor porto-riquenho Luis Rafael Sánchez, foi publicado em 1988 e apresenta uma constituição estrutural híbrida, na qual a narrativa de ficção e os ensaios literários e sociológicos entrelaçam-se, complementando-se. Essa narrativa constitui-se de um conjunto de fragmentos em que um narrador e (por vezes ensaísta) homônimo ao autor recolhe e organiza diversos relatos (ficcionais) acerca da vida de Daniel Santos (1916-1992) – cantor porto-riquenho popularizado nos anos 40 do século XX, em toda a América Hispânica. Tais relatos, por sua vez, mesclam história e ficção a tal ponto que se torna difícil apontar os limites do dado factual, na narrativa, que, desse modo, ganha o status de “fabulação”, que é como o autor classifica o romance, em sua folha de rosto. A narrativa está organizada em cinco partes: apresentação, primeira, segunda e terceira partes e despedida.

A primeira parte é constituída de um conjunto de relatos supostamente recolhidos pelo narrador por meio de um procedimento característico das técnicas * UEPB – Universidade Estadual da Paraíba. Centro de Ciências Humanas e Exatas – Departamento

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jornalísticas de investigação, como a gravação, na qual, a partir de relatos fragmentados, se resgatam “[...] voces de una memoria social colectiva, de lo ausente o reprimido en los discursos oficiales de la cultura y de la política [...]” (ZAYAS, 1989, p. 515), num discurso pautado no falar popular e coloquial porto-riquenho, que, no entanto, “[...] no pretende crear una obra realista o costumbrista que recree la lengua del país tal como la usa el parlante promedio [...]” (BARRADAS, 1978, p. 233), mas, sim, elevá-la à categoria de símbolo da cultura suburbana caribenha e do ideologema da mestiçagem, perpassados pela presença da negritude e pelo sentimento de pertencimento à cultura latino-americana.

A segunda parte, por sua vez, apresenta as canções de Daniel Santos e seus temas recorrentes, além de oferecer um panorama de seu público e de definir os gêneros musicais cantados pelo artista. Essa parte “[…] fragmenta y descompone una estética oficial moralizadora, y la reemplaza por una estética urbana, soez, de la cotidianidad. Es la estética de los que sufren la opresión militar, el hambre, el terror y la violencia de las ciudades.” (ZAYAS, 1989, p. 515). Por fim, a terceira parte, constituída por uma narrativa ficcional propriamente dita, recria experiências de personagens que representam o público que escuta as canções de Daniel Santos: um veterano da guerra do Vietnã, Marisela (uma venezuelana que sofre pelo amor perdido numa boate em Caracas), um garçom de Cali, e um casal.

Desse modo, a narrativa desse romance toca no universo cultural dos desclasados, e a opção pela ênfase no bolero reforça esse ponto de vista. Narram-se, na última parte, não só “cinco boleros aún por melodiarse”, como os intitula o autor, mas, em tom bolerizado e melodramático, experiências de guerra e consequências psíquicas e pessoais para o ex-soldado, experiências de contrariedade e desamor, sentimentos ternos e nostálgicos em relação à pátria e, ainda, a idealização amorosa de indivíduos que almejam um salto que os leve “de la realidad amorosa y el deseo al deseo realizado con plenitud” (SÁNCHEZ, 2000, p. 207), temas que se coadunam aos discursos das letras dos boleros cantados por Daniel Santos, mas que, além disso, encontram ressonância, também, na história social e cultural de toda a América Latina.

Na narrativa do romance, a canção popular constitui-se no eixo fundamental que associa todos os demais elementos temático-formais do texto, vinculando personagens, situações motivacionais e temas, e redimensionando os textos e as vozes mobilizados em sua elaboração, uma vez que projeta enunciados já conhecidos para a articulação de uma enunciação instalada em outro nível discursivo. Desse modo, o cantor Daniel Santos é a peça-chave que, recriada na narrativa, orienta o discurso ficcional desenvolvido na diegese, num processo narratológico em que a literatura procura aproximar-se do universo da canção popular em suas diversas instâncias, pela via dialógica.

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O diálogo com a canção popular

São três os principais modos por meio dos quais a fabulação de La importancia de llamarse Daniel Santos dialoga com a canção popular, no plano narrativo, e tais modos são todos intertextuais e polifônicos, em diferentes níveis. Do procedimento mais simples ao mais complexo, temos:

a) Canções referidas por personagens ou pelo narrador apenas pelo título de sua letra;

Trata-se de um processo intertextual estabelecido por meio de referenciação, em que os títulos das canções aparecem mencionados, em geral, em meio às considerações das personagens ou do narrador a respeito de Daniel Santos ou de uma situação à qual ele e a (sua) música se vinculam, como em:

Hay prueba abundante de que a los burdeles bajó. Por brillar la hebilla a los compases de un repicado danzón sería. Por bailarse un bolero en el infinito turbulento de una loseta sería. Por treparse a las dulzuras de otra Señora Tentación sería – Señora Tentación garantizada por la mucha lentejuela y la cicatriz que le posaron en la nuca. (SÁNCHEZ, 2000, p. 10).

As canções referidas por tal procedimento atualizam, no discurso da narrativa, o repertório musical com o qual o texto literário empreende diálogo, de modo a apontar para o universo imaginário em que se dão as relações entre as personagens na diegese. No fragmento, temos o narrador em meio às suas hipóteses acerca da trajetória de Daniel Santos, tentando compreender seu caráter mulherengo e afeito à vida boemia. A canção remete à feição romântica (“la dulzura”) do bolero, no entanto Daniel Santos recorre a essa característica desse gênero musical para conquistar as mulheres em sua vida boemia, e a “Señora Tentación” se converte em “otra Señora Tentación”, a tentação pelas mulheres em geral. O procedimento de Daniel Santos completa-se quando se nota que ele próprio converte-se na “outra tentação” para os demais presentes no bar ou prostíbulo onde se encontra, por seu estilo de vestir-se, carregado de lantejoulas, e pela cicatriz em sua nuca. Desse modo, as canções referidas pelo título em La importancia de llamarse Daniel Santos (re)colocam em circulação a canção popular de feição romântica difundida no imaginário do público latino-americano desde, aproximadamente, os anos 30 do século XX, marcando uma espécie de trilha sonora do relato. De certa maneira, a canção referida e a história narrada se sobrepõem, por vezes, na narrativa, para a constituição de uma linguagem cujos sintagmas são, também, de natureza híbrida.

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b) Trechos de letras de canções inseridos no discurso literário em meio à fala de personagens;

Trata-se de um procedimento intertextual em que trechos de letras de canções aparecem no discurso como parte integrante da fala das personagens ou do narrador, enquanto eles relatam suas experiências, suas lembranças e tudo o que sabem acerca de Daniel Santos ou vivenciaram com ele. O processo intertextual em questão constitui um tipo de inserção da canção popular na narrativa do romance que não se limita à incorporação de sua letra ao discurso da narrativa e à história narrada. Uma vez que o narrador ou as personagens rememoram o passado ao falarem de Daniel Santos, acabam cantando trechos de suas canções preferidas cantadas por ele ou trechos associados a algum acontecimento específico que as relaciona a Daniel Santos. Recupera-se, nesses casos, parcialmente a performance do cantor, no texto literário, por meio do procedimento mimético assumido pelas personagens, como no trecho a seguir:

Y su seguro servidor, el Chile Verde, que era un convencido de que la ranchera le lubrica la mecánica a los días y me la pasaba escuchando a Lucha Villa cantar – Amanecí otra vez, Entre tus brazos. Pues, como le venía diciendo cuando me distraje, pues tras pleitesías verbales a las cancioneras que se estuvieron en su pedestal de señoras, el hombre les fue haciendo la segunda voz, una a una. (SÁNCHEZ, 2000, p. 35).

Os trechos incorporados por meio desse procedimento cumprem a função de distração, porém também constituem um modo de, efetivamente, aproximar a canção do texto literário, buscando uma maior integração entre ambos, na medida em que verso e música da canção sobrepõem-se na textualidade da narrativa do romance. Por um lado, a incorporação de tais trechos afirma, na fala das personagens, os valores culturais associados ao universo das canções em questão, como o machismo – “Muy hombremente se arrancó con – Te vas, Porque yo quiero que te vayas que es ranchera propia del varón castigador” (SÁNCHEZ, 2000, p. 36) – e, por outro lado, tais trechos expressam, também, os desejos e os anseios das próprias personagens, metaforicamente representados no universo narrativo das canções.

Nesse sentido, o procedimento consiste “[...] em abandonar a forma docu-mental, isto é, a visão exterior, substituindo-a por sua própria expressão: as letras dos boleros [...]” (SANTOS, 1993, p. 167), como expressão do submundo urba-no latiurba-no-americaurba-no e dos indivíduos que fazem parte dele e que encontram, em Daniel Santos, um emblema representativo de sua condição marginalizada. Em outros casos, os trechos incorporados integram a narrativa, e a canção ocupa o lugar do discurso direto, de modo que as vozes dos cantores com os quais a narrativa dialoga são, de certo modo, incorporadas à diegese:

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Hay Daniel Santos para la dulcedumbre del enamorado que susurra – Oye, te digo en secreto, que te amo de veras. Hay Daniel Santos que sirve de casa de convalecencia del enamorado que suplica – Prométeme, que aunque vivas muy lejos, Siquiera mis besos recordarás. Hay Daniel Santos para propiciar el clima en que el enamorado claudica – No es necesario que cuando tú pases, Me digas adiós. (SÁNCHEZ, 2000, p. 101).

O universo melancólico das letras das canções associado à narrativa do romance cria um efeito paradoxal, em que estilemas da tradição lírico-amorosa herdeira do amor cortês são recuperados, por sugestão das canções e do comportamento dos amantes que recorrem a elas em suas investidas sedutoras (“susurra”, “suplica”, “claudica”), mas, no âmbito das relações para as quais os boleros servem de pano de fundo, na diegese, trata-se, na verdade, da afirmação dos códigos de conduta masculinos que, por uma perspectiva machista, orientam o indivíduo (o homem) sobre como comportar-se dentro do tecido social para manter sua reputação de macho e, ao mesmo tempo, ser aparentemente doce e romântico com as mulheres. Tal procedimento constitui, por vezes, no entanto, um meio de conceder voz ao outro, que se associa tanto ao lugar institucional que a canção popular ocupa na tradição cultural de nossa literatura considerada culta, quanto ao lugar que algumas categorias sociais tradicionalmente ocupam no tecido social, na América Latina, entre elas a mulher, na diegese.

Além disso, o procedimento corrobora a transposição da oralidade para o texto literário. Nesse sentido, as canções a que recorrem as personagens lhes oferecem, também, o suporte para que elas elaborem um discurso que, sendo o discurso do(s) outro(s) é, também, o seu. As canções que aparecem como intertexto inserido nas falas das personagens, em La importancia de llamarse Daniel Santos, formam, também, modos de pensar e de representar o mundo que elas têm por baliza para a configuração de seu imaginário, pois tais modos encontram na canção popular de feição romântica um receptáculo para desejos que, muitas vezes, já se encontram institucionalizados. Mas tais modos de pensar e de representar o mundo aparecem transpostos para a narrativa do romance de Luis Rafael Sánchez de maneira paródica, numa perspectiva potencialmente crítica, marcada por algum distanciamento, que desestabiliza, na narrativa, os efeitos alienadores associados ao entretenimento. c) Trechos de canções em estrofes separadas do corpo textual da narrativa do romance;

Em La importancia de llamarse Daniel Santos há, sempre, entre dois fragmentos narrativos ou ensaísticos, uma estrofe formada pela letra de uma canção, a partir da primeira parte do romance. Além de apontar para a fragmentação textual da narrativa e a ausência de uma estrutura orgânica, pautada numa lógica linear, baseada numa sucessão que expresse relações de causa e consequência, a

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recorrência das estrofes entre os fragmentos cumpre, também, uma função rítmica. Nesse sentido, por tratar-se de letras de canções populares, não deixa de ser um princípio que também corrobora o diálogo da narrativa com matrizes escriturais provenientes da canção. Tais estrofes funcionam, então, como fragmentos nexivos, ou seja, nexos coesivos que conectam momentos e trechos distintos da narrativa do romance, que assumem funções pragmaticamente definidas por sua relação com o fragmento que as antecede. Em La importancia de llamarse Daniel Santos, tais funções podem ser reunidas em quatro grupos, que são:

1. Síntese não metalinguística do fragmento antecedente:

Há um total de cento e vinte e uma (121) estrofes intercaladas aos fragmentos, em La importancia de llamarse Daniel Santos, das quais setenta e quatro (74) constituem uma espécie de conclusão poética dos fragmentos que as antecedem. Desse modo, confirmam a função de marca rítmica já apontada anteriormente para a totalidade dos fragmentos da narrativa, além de apontar, sem exceção, para uma permanente expressão da necessidade do outro por parte dos indivíduos representados na diegese do romance pelas personagens. O procedimento consiste em apropriar-se, no plano narrativo, de um princípio formal característico do bolero: a configuração dual de seu conflito dramático, marcada pela tentativa de estabelecer um diálogo ou uma relação afetiva plena entre um “eu” e um “tu” separados um do outro em uma relação, em geral, polarizada e marcada pelas amarras sociais, por vezes apresentadas como sendo o destino (ZAVALA, 2000). É o que temos, por exemplo, no trecho abaixo:

Marisela está para consagrarse, con amadísimas cegueras, a un instante que se eterniza cuando se renueva, que se renueva cuando se reitera. Marisela está para escuchar, hasta el infinito turbulento, un bolero de contrariedad y desamor. Cada noche un amor,

Pero, dentro de mí,

Sólo tu amor quedó (SÁNCHEZ, 2000, p. 166).

Trata-se do fim de um dos fragmentos em que se narra a história do amor entre Marisela (moça rica) e Maracucho (rapaz pobre). A situação dramática é um dos tópicos literários do bolero e aparece na parte intitulada “Cinco boleros aún por melodiarse”. As personagens chegaram a amar-se, mas a relação acabou, e o que sobrou para Marisela foi uma melancolia que “produjo la última estrofa del bolero de la contrariedad y el desamor” (SÁNCHEZ, 2000, p. 171), metáfora da solidão da personagem.

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2. Síntese metalinguística do fragmento antecedente:

As estrofes que constituem sínteses metalinguísticas do fragmento que as antecede funcionam, de certo modo, como dispositivos por meio dos quais a narrativa do romance volta-se para si mesma, ocorrendo, desse modo, a sobreposição de seus eixos fundamentais (seleção e combinação). Por um lado, tais estrofes comentam os fragmentos que as antecede e, por outro, ao conduzir a narrativa de volta a si mesma, funcionam, também, como um modo de reforçar a função poética das estrofes citadas, para a configuração da narrativa. Note-se:

Yo tuve un sueño feliz, Quise hacer una canción. Y mi guitarra cogí. Puse todo el corazón, Me inspiré pensando en ti, Volaron las palomas del milagro

Y escucha, mi bien, lo que escribí (SÁNCHEZ, 2000, p. 72).

O trecho é uma estrofe do bolero “Bajo un palmar”, do qual Luis Rafael Sánchez extrai a expressão “las palomas del milagro” para intitular a primeira parte da narrativa. A estrofe aparece finalizando a primeira parte do romance. Constitui, pois, tanto uma glosa da narrativa feita até então quanto uma conclusão poética para o capítulo. Mas tais processos dialógicos passam por adequações pragmáticas que implicam ressignificações tanto do texto incorporado quanto do fragmento ao qual se relacionam dentro do novo contexto em que se encontram. Nesse caso, por exemplo, o “tu” a que a canção se refere é a amada, porém, na relação que se estabelece entre a estrofe citada e o trecho de La importancia de llamarse Daniel Santos, esse “tu” passa a ser a própria figura de Daniel Santos, além de remeter, também, à diegese.

De modo semelhante, depois de fazer uma crítica à modernidade, num dos trechos ensaísticos do romance, condenando-a por sua natureza de “batalla permanente contra sí misma” (SÁNCHEZ, 2000, p. 81), metáfora para a expressão de Octavio Paz (1984), para quem a modernidade é uma tradição marcada por interrupções, a tradição da ruptura, a narrativa de La importancia de llamarse Daniel Santos encerra o fragmento com uma estrofe do antológico bolero “Usted”: “Usted es la culpable/De todas mis desdichas/Y todos mis quebrantos” (SÁNCHEZ, 2000, p. 81). Nesse ponto da narrativa, o “usted” deixa de referir-se a amada (na letra do bolero) e passa a referir-se à modernidade, por meio de um sema comum a ambas, segundo a ótica do relato: sua capacidade de fazer com que o indivíduo representado sofra em razão de suas transformações e do desenraizamento que tal movimento provoca.

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3. Síntese da relação texto-autor-leitor na narrativa do romance:

As estrofes que estabelecem esse tipo de relação são relativamente poucas – apenas sete –, contudo são importantes pelos sentidos que projetam para o todo da narrativa de La importancia de llamarse Daniel Santos. Trata-se de um desdobramento do bloco das estrofes que exercem função metalinguística, entretanto, no caso em questão, elas se põem em relação a narrativa e o leitor, ao mesmo tempo em que, duplicando-se, colocam em relação, também, a canção e seus ouvintes. Tais estrofes funcionam como “atos de fala” (AUSTIN, 1962), por meio dos quais a narrativa delega voz ao próprio Daniel Santos (quem as canta), que, simbolicamente, ajusta e atualiza sua relação com o público, com a cultura e com a própria fama, o que justifica, de certo modo, o próprio romance de Luis Rafael Sánchez e a releitura que faz do cancioneiro popular latino-americano, a partir de canções, cantores e grupos musicais difundidos junto ao grande público, uma “Cultura latinoamericana de la noche que, en la década del treinta, distribuye sus esclavitudes y seducciones, desde tres puertos metropolitanos que parecen equidistar: La Habana, Buenos Aires, Ciudad de México.” (SÁNCHEZ, 2000, p. 121).

4. Síntese da relação homem-mulher na narrativa do romance:

Tal situação é representativa de um tópico literário na canção popular latino-americana de feição romântica: a temática amorosa cuja realização plena dos amantes se manifesta no nível do desejo, porém geralmente é cerceada pelas amarras sociais. A narrativa explora essa tendência para representar, de modo ambivalente, a natureza das relações afetivas tradicionais do universo da canção de feição romântica entre o homem e a mulher na América Latina, segundo a ótica popularizada.

Por um lado, tais canções tematizam o amor a partir de uma tradição lírica que remonta às cantigas trovadorescas e costumam apresentar um “eu” masculino que lamenta a perda da amada ou a impossibilidade de fruir o amor que sente por ela. Por outro lado, em La importancia de llamarse Daniel Santos a relação inverte-se, e o bolero passa a conotar o desconsolo das mulheres – especificamente em relação a Daniel Santos, mas, por sinédoque, em relação ao homem de um modo geral, já que a personagem Daniel Santos funciona como uma paródia da representação simbólica do macho latino-americano em seu exercício de vivir en varón – em suas experiências amorosas marcadas pela submissão, a não realização pessoal e o abandono.

As estrofes que exercem essa função encerram fragmentos que apresentam relatos de mulheres em suas experiências amorosas com Daniel Santos ou fragmentos ensaísticos nos quais se discute a natureza das relações interindividuais orientadas por um prisma machista que, tradicionalmente, põem em contato homens e mulheres na América Latina, como o universo ao qual se circunscrevem

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as canções que o romance adota como matrizes de sua estruturação temático-formal (o bolero e o tango, por exemplo). Há, pois, a repragmatização de um discurso de origem machista (o discurso típico das letras de bolero e tango) que é mobilizado para a constituição de uma crítica do próprio machismo.

O que a estrutura do romance faz é colocar num mesmo plano de representação vozes por vezes conflitantes ante um mesmo elemento da tradição cultural latino-americana dos anos 1930-1950, aproximadamente: os lugares de fala do homem e da mulher, um em relação ao outro, em suas relações amorosas ou sociais. Por essa via, a narrativa convida o leitor a repensar os comportamentos do homem e da mulher mitificados no imaginário popular difundido pela canção popular de feição romântica. Nesse sentido, as histórias narradas no capítulo “Cinco boleros aún por melodiarse” configuram-se como paródias das histórias de amor que as personagens femininas tinham contado anteriormente ao narrador, e que ele recolheu em suas gravações.

Luis Rafael Sánchez: vida e literatura mediadas pela cultura de massa

Há, na elaboração de La importancia de llamarse Daniel Santos, um elemento significativo difícil de mensurar que, entretanto, não pode ser descartado: a relevância do vivido na constituição da narrativa desse romance. Não se trata de buscar correspondências biográficas para a leitura do romance, mas de observar os interstícios de sentido entre certas experiências que marcaram a vida de Luis Rafael Sánchez e a ficção que ele escreve nesse romance, as quais, no texto literário, se determinaram mutuamente a tal ponto que, por vezes, passam despercebidas na leitura de sua prosa narrativa.

Em seu ensaio “Hacia una poética de lo soez”1, em meio às reflexões que tece acerca da cultura de massa e da cultura popular em Porto Rico, Luis Rafael Sánchez relata que sua vida esteve, desde muito cedo, marcada pela presença dos meios de comunicação massivos e de produtos culturais agenciados pelo mercado – como o rádio, as radionovelas, a canção popular, o cinema hollywoodiano etc. –, que, como podemos notar, são produtos que estão, também, presentes na base em que se estrutura a textualidade de La importancia de llamarse Daniel Santos. De certo modo, a configuração temático-estrutural da narrativa emula um conjunto de sensações, percepções, pensamentos e sentimentos que, em alguma medida,

1 Este ensaio foi lido em diversas universidades norte-americanas e em Porto Rico antes de ter sido

publicado em livro. A versão que empregamos aqui é uma cópia transcrita a partir do original em VHS de uma leitura realizada pelo autor em 29 de abril de 1987, em um evento do Departamento de Estudos Hispânicos da Universidade de Porto Rico. Uma cópia da fita foi cedida a Julio César Sánchez Rondón pela bibliotecária da Universidade de Humacao (Violeta Guzmán) e, dessa fita foi transcrita e recolhida em anexo no trabalho de Rondón (2006), versão que empregamos aqui.

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representam, também, vivências do próprio Luis Rafael Sánchez transfiguradas em ficção literária. Segundo o autor:

Ya eran los recuerdos del porvenir, ya eran la constancia de la mediocridad formadora, ya eran los retazos de mi educación sentimental, entonces atascado en las dudas que sobresaltan la niñez, yo no lo sabía, entonces yo sólo sabía que

a las cinco de la tarde de lunes a viernes comenzaban los deslumbramientos, y los deslumbramientos salían de una cajita de madera complicada por tubos y botones de la marca Phillips a la que no había que frotar para que la magia se propagara, y los deslumbramientos se enmarcaban con golpes musicales de

factura apocalíptica y voluntad de estremecer, golpes musicales que florecían mediante las florituras de los violoncelos, la pertinaz lluvia nocturna que exigía una tétrica y engolada aclaración del narrador: “Era noche y sin embargo llovía”, golpes musicales que describían mediante el galope de los violines y el trote contrapunteado de las trompetas, las andanzas sigilosas de un asesino contratado a destajo, o la agilidad de un vaquero invicto que enlazaba a los ladrones de ganado, o la avalancha de las aguas que colocaba en mortal peligro la vida de la muchacha. ¡Ah la utopía con riveras de encaje y bucle,

zapatito rosado, lindo pie que era la muchacha!, ¡Ah la geografía exenta de sensualidades que encarnaba la muchacha, muchacha librada por el libreto de las blancas colinas y las rosas del pubis de la leche árida y firme. (SÁNCHEZ,

2006, p. 125, grifo nosso).

Ainda segundo o autor, enquanto na infância se deslumbrava com personagens como o Superman, Tarzan ou o pato Donald, com os filmes de faroeste estrelados por Happalon Cassidy (Willian Boyd), entre outros produtos que constituíam sua diversão cotidiana e a de muitos outros, mais jovens ou mais velhos, com o passar do tempo e a chegada à idade adulta e à vida universitária, o seu amadurecimento pessoal e intelectual levaram-no a rever alguns dos pensamentos gestados na infância, no contato diário com “la cajita de madera complicada por tubos y botones” (SÁNCHEZ, 2006, p. 125), metonímia representativa, aqui, de todos os demais mass media. Esse novo arcabouço intelectual por vezes quase punha em xeque a beleza que o olhar e a expectativa do menino Luis Rafael Sánchez criara muitos anos antes em relação a seus ídolos,

[…] pero en aquella sala de vivienda reducida en la urbanización de Antonio

Roy, yo no lo sabía y allí todavía Tarzán era el rey de la selva, como Los tres

Villalobos eran los reyes de la pradera donde sembraban la justicia con el amén de sus revólveres, bravíos hermanos Villalobos traídos a ustedes amiguitos por la leche en polvo Kim y allí el Corsario Negro era el as de la espada vengatriz. Corsario Negro, espada y venganzas en cantidades industriales traídos a su

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cuadrante familiar amiguitos por la nutritiva Emulsión Scott, y el golpe musical que tematizaba sus aventuras opacaba el sonido metálico del espadeo cuando el Corsario Negro quedaba estampado en la punta de una cumbre borrascosa y había que esperar hasta el día próximo para saber si el destino le jugaba finalmente una mala pasada o si nuevamente se inclinaba hacia su virtuoso lado. (SÁNCHEZ, 2006, p. 127, grifo nosso).

Cotejando sua prosa ensaística de “Hacia una poética de lo soez” com sua narrativa de ficção, no romance em análise, nota-se que o autor mantém uma importante relação com um conjunto de suas lembranças da infância e da juventude, mas vê-se questionado quanto ao valor real de tais lembranças quando chega à vida universitária, o que provoca uma mudança de perspectiva em sua relação com o passado simbólico que sua formação sentimental herdou do rádio, do cinema e da TV. No tocante à constituição de sua obra ficcional, é relevante notar que, de certo modo, o autor passa da condição de “o menino” Luis Rafael Sánchez à de Dr. Luis Rafael Sánchez, mas, apesar das reconsiderações acrescentadas à visão do menino pela formação intelectual, o doutor não nega os antecedentes de sua educação sentimental. Essa opção, cuja consciência não pode ser devidamente atestada, corresponde, formalmente, ao procedimento construtivo da narrativa de La importancia de llamarse Daniel Santos: “una prosa danzadísima me impuse, una prosa que bolericé con vaivenes” (SÁNCHEZ, 2000, p. 5), numa dança que é, também, da memória, por meio dos vaivéns do tempo no exercício do lembrar, numa concentração que não se dá de modo totalmente consciente ou deliberado todo o tempo. Essa relação de mão dupla que conecta o menino ao homem, em Luis Rafael Sánchez, representa, pois, a porta de entrada rumo à prosa híbrida e difícil de classificar de La importancia de llamarse Daniel Santos.

Desse modo, aceitando a proposição do autor, para quem “[...] los géneros literarios son calculadas sugerencias de lectura que el escritor propone, llaves para acceder a la habitación independiente que es un poema, un drama, un cuento, una novela [...]” (SÁNCHEZ, 2000, p. 5), e, ainda, que os “[...] sugéneros, los postgéneros, los géneros híbridos y fronterizos, los géneros mestizos [...]” (SÁNCHEZ, 2000, p. 5) encontram-se além dos textos demarcados pela preceptiva e aquém dos textos confiados à tradição, porém pedem, também, uma sugestão de leitura e uma chave de acesso. Notamos que, em La importancia de llamarse Daniel Santo, os fragmentos de signos e produtos simbólicos, provenientes do contato do menino deslumbrado com os produtos da cultura de massa sedimentados na experiência do escritor, associam-se à visão do intelectual Luis Rafael Sánchez, sem, contudo, manifestar-se como dado explicitamente autobiográfico.

O procedimento consiste em investir na despersonalização do vivido como dado referencial, elevando-o à condição de lembranças ficcionalizadas que podem ligar-se a uma coletividade – que, em La importancia de llamarse Daniel Santos,

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representa uma parcela da sociedade porto-riquenha que se reconhece na representação, ao ler a ficção do autor, no romance. Nesse sentido, há uma dupla vida que é transposta para o universo da narrativa: uma vida cuja transposição ficcional para o literário assume uma “visão com” (POUILLON, 1974) em relação à “cajita de madera complicada por tubos y botones” (SÁNCHEZ, 2006, p. 125), metonímia, aqui, da presença e da importância que os elementos associados aos mass media portam para a escrita do autor enquanto indivíduo; e uma vida pautada pela reflexão crítica cuja representação narrativa se dá por meio de uma focalização baseada na “visão por detrás” (POUILLON, 1974), com a qual “[...] la vida fuera de la cajita de madera complicada por tubos y botones retomaba su curso.” (SÁNCHEZ, 2006, p. 128).

A associação de ambas as visões resulta em uma focalização descentralizada e sem um ponto fixo em que se situem as vozes enunciativas, o que faz com que a perspectiva escritural da narrativa aproxime-se ora do horizonte das personagens, ora da instância autoral. Em La importancia de llamarse Daniel Santos, além de delegar voz às personagens, tal perspectiva projeta-se como identificação com uma coletividade que representa todos os indivíduos que se reconhecem nos ouvintes e fãs de Daniel Santos e, ao recordarem o cantor, revivem, pela imaginação e pela lembrança, parte de suas vidas, também. Nesse sentido, personagens, narrador e leitor reconhecem-se no “corazón de pueblo” a que remete a narrativa do romance, como no bolero “Llevarás la marca” cuja letra está distribuída ao longo da diegese. O procedimento aponta, ainda, para a influência que as vozes do proletariado e dos estratos mais baixos do tecido social exercem sobre o narrador de La importancia de llamarse Daniel Santos (ZAYAS, 1985) e, por extensão, estende-se a todos os produtos culturais caracterizados pelo sentimentalismo e pela configuração melodramática, cuja aceitação por parte do grande público é muito significativa na América Latina, não só entre as camadas mais baixas da população, conforme, aliás, o próprio Luis Rafael Sánchez (2006) ressalta em seu ensaio e também na própria narrativa do romance. Trata-se da opção por uma prosa pautada nas orientações temáticas, nos versos e no movimento do bolero que possibilitam que a diegese ilumine, ainda que de modo ambivalente, certas tensões relacionadas ao desejo e ao amor, ao kitsch e à estética melodramática na narrativa. É, também, essa perspectiva que alimenta o repertório musical presente na textualidade de La importancia de llamarse Daniel Santos. A enxurrada de emoções que explode na diegese do romance provém das radionovelas e dos filmes que o próprio autor acompanhava na infância e na juventude, e o repertório musical de que se serve talvez também tenha a mesma origem.

Dessa maneira, Luis Rafael Sánchez relativiza “[...] a alienação desencadeada pela cultura de massa, aclarando [ou problematizando] a recepção que deles fazem os estratos pobres das populações latino-americanas, quase sempre incorporando-a à sua cultura, de forma a desenhar uma espécie de cultura de resistência.”

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(SANTOS, 1993, p. 161). No plano escritural, esse recurso funciona como uma forma de ataque contra a própria sensação de inferioridade que a sociedade porto-riquenha (mas talvez isso possa estender-se para a América Latina como um todo) por vezes manifesta em relação a seu modelo mais próximo de desenvolvimento, os EUA (BARRADAS, 1981). O gosto pelos produtos massivos e o consumo afetuoso de seus símbolos e ícones aproximam o texto da narrativa de tais produtos, mas, por outro lado, constituem-se, também, a via de acesso ao olhar reflexivo que caracteriza a outra face de La importancia de llamarse Daniel Santos e que a dota do caráter ensaístico e crítico que apresenta.

Um dos modos por meio dos quais esse olhar crítico manifesta-se na narrativa é pelo humor. Na diegese, o humor porta características de manifestação popular, associado a formas tipicamente porto-riquenhas como o “relajo” e a “guachatifita” (LÓPEZ-BARALT, 1998), o que consiste num dos procedimentos empregados no romance para captar a vida e a linguagem do proletariado urbano (ZAYAS, 1985). Associada ao núcleo temático central da narrativa – a vida de Daniel Santos –, essa perspectiva do humor porta um caráter complexo, pois corresponde, simultaneamente, a uma demonstração de admiração e de burla em relação aos próprios objetos de desejo das personagens. Essa característica permite-nos uma aproximação à configuração ficcional de Daniel Santos representada na narrativa.

Daniel Santos é uma personagem histórica, mas sua configuração ficcional está formada, na verdade, por uma mescla de personagens difundidas pelo rádio, pelo cinema e, ainda, pela TV, que provavelmente marcaram a vida de Luis Rafael Sánchez, também. São eles: o Superman, o Tarzan e Happalong Cassidy2. Como o Superman, Daniel Santos é visto pelas demais personagens como um indivíduo que está ao lado dos justos, dos indefesos e dos pobres, encarnando, nesse sentido, as condições do herói que se vale de seus poderes para amenizar a dor do outro. Há, nisso, também, uma paródia ao paternalismo presente numa das matrizes literários de La importancia de llamarse Daniel Santos, a obra Insularismo (1934), de Antonio Pereira, conforme observa Gelpí (1993).

Na relação entre a personagem e o Superman, nota-se que o poder de Daniel Santos na narrativa é, certamente, a música, que se coaduna a uma espécie de “filosofía vital evasiva y despreocupada” (LÓPEZ-BARALT, 1998, p. 111), a qual, no entanto, não deixa de representar, também, uma controversa via de resistência para os indivíduos representados na narrativa (LÓPEZ-BARALT, 1998; SANTOS, 1993).

Ainda em relação ao Superman, o Daniel Santos da narrativa de La importancia de llamarse Daniel Santos apresenta em comum com o herói uma sexualidade ambiguamente exacerbada, idealizada e mal resolvida, que no Superman somente 2 Happalong Cassidy é uma personagem das histórias de faroeste que se tornou muito conhecida nos

anos 40 e 50 do século XX, nos EUA, inicialmente pela programação radialista e, posteriormente, no cinema, interpretado pelo ator William Boyd (GRAMS JUNIOR, 1999).

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se manifesta enquanto potência metaforizada em sua força, sua capacidade de voar e no interesse ou admiração que desperta nas mulheres. Apontando, de certo modo, nesse sentido, Luis Rafael Sánchez relata em “Hacia una poética de lo soez” ter lido, quando estava na universidade, um ensaio sobre as indiscrições do eu alternativo que afirmava que “[...] el vuelo del Superman operaba como metáfora hermética de su sexualidad escabrosa, yo sodomizable de Superman.” (SÁNCHEZ, 2006, p. 126). Quanto a Daniel Santos, a sexualidade ambiguamente exacerbada manifesta-se em suas canções – boleros em geral caracterizados pelo discurso acerca do amor e do desejo entre um homem e uma mulher – e em suas apresentações marcadas por gestos amaneirados que parecem questionar a própria masculinidade que os boatos acerca de seus diversos casamentos e casos amorosos difundem.

Nesse sentido, suas canções e suas performances musicais também operam como metáfora de sua sexualidade não equilibrada (por vezes com conotação homoerótica), em razão da disforia entre o desejo pelo amor pleno que ele canta em suas canções e o descompasso de sua vida amorosa desregrada e, ao mesmo tempo, não realizada. A esse respeito, aliás, uma característica do gênero melodramático aparece parodiada, também, aqui: enquanto no melodrama tradicional há uma forte pressão (em geral, de fundo social) que impede a realização do desejo erótico entre os amantes, na diegese do romance a plenitude erótica não é alcançada, mas não propriamente por causa das amarras sociais, e sim em razão da incapacidade de Daniel Santos de manter um relacionamento duradouro, apesar de ser ele quem canta o amor eterno a toda prova em seus boleros. Enquanto o Superman reinava na terra e no céu, e Tarzan reinava na selva, Daniel Santos parece reinar no universo inteiro, na narrativa, por meio das canções que canta. Contudo, como Tarzan, ele também demonstra insegurança nas relações com o par amoroso, ao mesmo tempo em que apresenta uma permanente necessidade do outro: a amada.

O que em relação ao rei das selvas poderia ser lido como alegoria do complexo de castração, pode ser lido em relação a Daniel Santos como uma necessidade de afirmação da masculinidade segundo os padrões machistas presentes nos códigos do próprio bolero e, por extensão, da cultura latino-americana que o bolero representa. O dado irônico da situação, contudo, está em que a afirmação da masculinidade por parte da personagem acaba por denunciar sua insegurança, e coloca em cheque sua condição de macho emblemático dessa cultura, o que corresponde, de certo modo, a uma crítica aos discursos da sexualidade reprimida, representativa de uma visão latino-americana burguesa da sociedade (BARRADAS, 1981, 2013; ZAYAS, 1985).

Tal posição demonstra, ainda, um sentido histórico por parte do escritor Luis Rafael Sánchez, não só acerca dos acontecimentos que marcam o passado (histórico, social e literário) de Porto Rico, mas da presença, também, de estilhaços desse passado em seu presente. Desse modo, enquanto o procedimento escritural pautado

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nos padrões representacionais da estética melodramática, em La importancia de llamarse Daniel Santos, especialmente no que se refere aos motivos marcados pelo excesso de sentimentalismo no tratamento de questões amorosas, parece tangenciar as questões históricas, amenizando-as em algum nível, pela vivência das personagens pautada numa ideia de passado feliz, embalado por boleros, no fundo o que temos é uma mescla de realidade e fantasia que, no plano diegético, procura reduzir o desencanto do presente da vida das personagens, porém não perde totalmente de vista a complexidade de seu presente histórico. Isso porque a recriação ficcional da biografia de Daniel Santos perpassa, também, a história de várias ditaduras, na América Latina, como a de Trujillo, a de Somoza, a de Fidel Castro, a de Perón, bem como o controle norte-americano sobre o canal do Panamá, a Segunda Guerra Mundial e a influência dos EUA sobre a realidade social e econômica porto-riquenha, questões que aparecem associadas, na narrativa, aos acontecimentos que marcam os relatos sobre Daniel Santos feitos pelas personagens. Tal relação ambígua com o presente histórico e suas contradições coadunam-se à dupla perspectiva a que aludimos anteriormente (uma apegada ao deslumbramento propiciado pelos signos e símbolos da cultura de massa; outra que retoma o curso da vida após breves intervalos de distração).

Por um lado, há o reconhecimento da importância que as personagens e os signos da cultura de massa portam para o autor e para os indivíduos que as personagens do romance representam. Por outro lado, esse olhar paródico funciona, também, como um dispositivo para a denúncia do atraso social latino-americano em relação ao norte desenvolvido. E possibilita, ainda, o desmascaramento dos próprios mitos, signos e símbolos difundidos pela indústria cultural, com os quais a estrutura do romance dialoga diretamente, por meio do consumo dos produtos dos mass media: “El norte es una quimera, Natural, Dolarizado paraíso que es infierno.” (SÁNCHEZ, 2000, p. 38).

A complexidade da situação está em que os momentos de iluminação acerca da condição problemática de tais indivíduos no universo em que vivem não apontam para a sua emancipação clara, não encontram nenhuma perspectiva nem possibilidade de transcendência: “¿Será otro síndrome del colonizado el incesable problemar su condición?” (SÁNCHEZ, 2000, p. 179). Nesse sentido, La importancia de llamarse Daniel Santos constitui-se, também, num canto triste cujos momentos de evasão não apagam o luto maior das personagens: luto por um passado idealizado (o da época áurea dos boleros de Daniel Santos); luto por una trajetória de silêncio ante a qual as personagens apelam à(s) voz(es) do(s) outro(s) para glosar sua mudez, por meio dos boleros. Parafraseando a expressão de López-Baralt (1998), trata-se de um romance triste que se lê com alegria. Essa condição problemática em relação ao passado e ao presente, na narrativa, marca, também, o pertencimento do romance à série literária do pós-boom da narrativa latino-americana, pois,

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Os escritores dos anos 70-80, como Luis Rafael Sánchez, parecem haver descartado essa matriz utópica [pautada na retomada dos mitos formadores originários, que recria um passado glorioso, ainda muito presente, por exemplo, na narrativa do boom]. Mergulhados no passado recente, ou no presente, ambos inglórios, dominados pela injustiça e pela alienação fortalecida pela mídia, os personagens desses romances são, na maioria dos casos, mais que anti-heróis, pícaros, porque não conhecem a perspectiva do futuro. (SANTOS, 1993, p. 166).

Além de uma tendência formal associada à vertente escritural do pós-boom, na escrita de La importancia de llamarse Daniel Santos ecoa certo olhar desencantado do autor que, depois da passagem pela infância e pela adolescência, decifra, também, os códigos do amor e do prazer, mas descobre, ainda, que a experiência amorosa também é constituída pelo adultério, pela solidão, num processo em que “[...] la acumulación de los días que uno llama ‘vida’, registró las profecías que hacían los boleros de Daniel Santos.” (SÁNCHEZ, 2006, p. 132). Mais uma vez, então, vida e literatura parecem entrecruzar-se, e a alternativa, no plano da escrita, configura-se numa aproximação aos elementos simbólicos, por vezes agenciados para fins mercadológicos pela indústria cultural, que o menino Luis Rafael Sánchez recolhera em sua memória e que, de certo modo, permaneceram livres em sua mente até que puderam associar-se para formar uma nova composição em dia com o seu próprio tempo histórico: a narrativa de seu romance.

Considerações finais

La importancia de llamarse Daniel Santos constrói-se, assim, como uma narrativa que reivindica uma escrita marcada por campos de vivência e de subjetividade que, por sua vez, constituem muitos dos mesmos motivos temático-formais pertinentes aos produtos melodramáticos que o indivíduo Luis Rafael Sánchez não só consumira ao longo da vida, mas que fazem parte, também, do arcabouço cultural latino-americano elaborado pela sedimentação, por um lado, da tradição hispânica da lírica amorosa popular e, como observa López-Baralt (1998), também do riso que porta um matiz trágico e cáustico. Por outro lado, também fazem parte desse arcabouço cultural os produtos culturais calcados no sentimentalismo provenientes da indústria cultural, especialmente as radionovelas, os melodramas cinematográficos e a canção popular, marcados pela ideia de um destino voraz, o valor da família nos moldes tradicionais, as questões de classe e o humor.

É preciso observar, no entanto, que a isso se relacionam, também, na configuração desse romance, as vozes da crítica cultural acadêmica contrárias à arte de entretenimento e, ainda, os produtos da chamada alta cultura que também alimentaram o imaginário do escritor: do cinema de Orson Wells ao existencialismo de Sartre. Nesse sentido, vozes e valores por vezes conflitantes parecem encontrar-se

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em relativa liberdade para combinar-se em novas emoções que, sem harmonizarem-se, porém apresentando pontos de convergência, concretizam a estrutura híbrida que La importancia de llamarse Daniel Santos apresenta. Apesar de que impressões e experiências importantes da vida de um escritor nem sempre apresentam um papel importante em sua literatura, ou, ao contrário, que, por vezes, experiências banais podem tornar-se importantes na estruturação de seu discurso poético, é preciso considerar, também, uma terceira possibilidade, que está presente, por exemplo, na estruturação desse romance de Luis Rafael Sánchez: a possibilidade de que experiências significativas de toda uma vida possam ser significativas, ainda, na elaboração poética, sem que por isso sua obra se configure como uma autobiografia identificada diretamente com os fatos de sua vida mais conscientemente presentes em sua memória.

Quanto a isso, não é uma perspectiva propriamente conservadora aceitar, como pensa Eliot (2000), que há certas emoções da vida de um escritor que, transpostas para o campo artístico, se tornam emoção impessoal. Mas “[…] el poeta no puede alcanzar esta impersonalidad sin entregarse por completo a la obra por realizar.” (ELIOT, 2000, p. 29). Entre o dado pessoal e sua despersonalização, a narrativa do romance parece constituir-se, pois, como mais uma face de si que não podia mostrar-se de outro modo. Estamos não só diante de La importancia de llamarse Daniel Santos, mas também diante da importância de ser Luis Rafael Sánchez para a configuração dessa narrativa.

ALVES, W. S. Popular music and mass culture in Luis Rafael Sánchez’s novel La importancia de llamarse Daniel Santos. Itinerários, Araraquara, n. 41, p. 137-155, jul./dez. 2015.

„ ABSTRACT: This article aims at analyzing the structural hybridization found in the

configuration of La importancia de llamarse Daniel Santos, a novel by Luis Rafael Sánchez, focusing on the dialogic processes established with the Latin American romantic popular music, specially the bolero, and also emphasizing the fictional recreation of factual elements taken from the author experiences as an appraiser of Mass Culture products, which, however, are transposed to the structure of this novel without taking the shape of autobiographical elements. So, the narrative presents a critical reading of the general context of the mass cultural products in Latin America in the 1980’s, while Sánchez claims the critical and expressive potential of those products for the literary narrative.

„ KEYWORDS: Luis Rafael Sánchez. Hybridization. Mass culture. Latin American novel.

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Recebido em 27/10/2014

Aceito para publicação em 18/04/2015

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