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Introdução A razão de ser do presente trabalho

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Academic year: 2019

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Introdução

A razão de ser do presente trabalho

O trabalho que me proponho realizar nasceu da minha prática letiva, no âmbito da disciplina de português, e da vontade de partilhar, com os alunos do ensino básico e secundário, a leitura de textos literários que pudessem desenvolver o seu sentido crítico e promover comportamentos eticamente fundamentados. Portanto, esta dissertação parte do pressuposto de que a leitura literária (nomeadamente aquela que é fruída em contexto de ensino) contribui de forma intensa para o desenvolvimento pessoal e para a assunção refletida e consciente de um conjunto de atitudes e valores.

A ideia de que a sociedade está a falhar na dimensão ética da educação tanto percorre os nossos mass media como a obra de Aristóteles1. Uma vez que a crítica atual é do domínio público, limitar-me-ei a citar o filósofo estagirita:

A melhor coisa que pode acontecer é haver uma preocupação comum com um fim correto [e que haja o poder de o pôr em prática]. Mas quando isto é completamente negligenciado pela comunidade, parece evidente que cabe a cada um contribuir para que os seus filhos e amigos obtenham uma orientação em direção à excelência, ou pelo menos para se decidirem nessa direção.2

Enquanto professora, este apelo não me deixou indiferente. Para Aristóteles, a «excelência» não correspondia ao termo que hoje encontramos tão conotado. Era uma qualidade a partir da qual o ser que a detinha se podia desenvolver plenamente. Um cavalo podia tornar-se um excelente cavalo, se fosse ensinado a galopar e a combater, assim como uma pessoa podia alcançar «a excelência do

1 ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco, (tradução de António Castro Caeiro), Lisboa, Quetzal, 2004. 2

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Humano»,3 se a sua «disposição do caráter» se orientasse para essa função específica, de um modo correto.

Aristóteles acreditava que todos nascemos «lançados para a felicidade» e que esse caminho se faria através de «um processo de habituação»4 e de aperfeiçoamento das excelências éticas. Pessoalmente, considero que compartilhar da opinião de Aristóteles constitui um requisito mínimo para a prática da docência.

No meu caso específico, a disciplina que leciono apresenta-se como uma fonte inexaurível de oportunidades de reflexão no domínio da ética e, para além disso, serve de treino virtual para a vida, como mais adiante se procura demonstrar. A literatura convoca o mundo, abre-nos os horizontes através do acesso a pontos de comparação, interpela-nos e infiltra-se subtilmente no que somos.

Todavia, será lícito pedir à literatura que sirva para alguma coisa, ainda que a nossa intenção seja benevolente? Nas primeiras páginas da sua obra Como Ler e Porquê?, Harold Bloom dizia que permanecia cético perante a tradicional esperança social, segundo a qual a solidariedade pode ser estimulada pela expansão da imaginação individual, e que desconfiava de quaisquer argumentos que relacionassem os prazeres da leitura solitária com o bem comum.5

Ora, ao longo do meu trabalho, tentarei coligir alguns argumentos que sustentem – minimamente - a legitimidade dessa esperança em quem faz do ensino da literatura uma forma de vida.

3 ARISTÓTELES, idem, 1106a.

4 ARISTÓTELES, idem, 1103a. Diz-se que foi Aristóteles quem primeiro usou o termo «ética». Nesta passagem, o filósofo associa a palavra grega éthos a «hábito», referindo que naquele momento a palavra já se tinha «desviado um pouco da sua forma original»

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As duas partes constitutivas do trabalho

Primeira parte

Numa primeira fase, serão definidos conceitos e evidenciadas algumas cumplicidades de longa data entre a literatura e a ética. Esta área levanta algumas questões inerentes ao teor filosófico da literatura. Para tal, serão convocados vários autores que abordaram o tema. Nesta parte do trabalho, poderia dizer à maneira de Montaigne:

Que, no que eu tomo de empréstimo, se veja se eu soube escolher o que realça o meu propósito, pois faço dizer aos outros o que não sou capaz de dizer tão bem, quer por causa da fraqueza da minha linguagem, quer por causa da do meu intelecto.6

Sem cair na instrumentalização do texto literário, sem reduzir a literatura a um mero pretexto, procurarei provar a validade da leitura para uma melhor perceção do mundo. Apresentarei o ato de ler como um treino contínuo do raciocínio e um manancial produtivo de juízos de facto e de valor. Defenderei que a tendência que a maioria dos leitores revela para se metamorfosear nas personagens é, em si mesma, um exercício ético importantíssimo, pois permite sentir o mundo através de outras sensibilidades e, consequentemente, relativiza o próprio sistema de valores adquirido.

A leitura dá acesso ao exercício profundamente enriquecedor de ser outro, de viver noutro sítio, de agir de outra maneira. Isto, por si só, já constitui um treino intensivo do espírito crítico e da tolerância.

Em suma, a primeira parte do texto, será constituída pela análise e interpretação crítica de bibliografia científica referente à problemática escolhida

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(literatura e ética) de modo a ser estabelecido um estado da questão, tal como aparece redigido no documento que regula a redação da dissertação.

Segunda parte

Posto isto, passarei a uma segunda parte, na qual os textos literários serão lidos como exemplos de situações privilegiadas de reflexão e de construção de uma ética pessoal. A partilha da leitura em contexto de ensino é a circunstância implícita na redação deste trabalho.

Por cada conto mencionado, surgirá um texto meu que é, evidentemente, uma interpretação pessoal do mesmo, e que seria um ponto de partida para a tal situação de ensino da literatura. E digo ponto de partida porque a riqueza de uma aula de literatura não se pode traduzir nos discursos de um professor, pois emana da dinâmica dos diálogos.

A escolha do corpus, que se restringe a contos de autores lusófonos do século XX e XXI, consegue ser justificada de várias maneiras.

Em primeiro lugar, acredito que os contos são uma excelente matéria-prima para a formação de leitores. Pela sua concisão e pelas reminiscências da infância, os contos conseguem aliciar jovens que encaram a leitura do romance, ou de outros textos mais extensos, como uma empresa titânica. A leitura de contos é exequível e compatível com a disponibilidade dos neófitos. Desta feita, estão expressamente incluídos nos conteúdos declarativos do 10.º ano e poderão ser lidos, igualmente, como leitura contratual, em qualquer ano do ensino básico ou secundário.

Em segundo lugar, porque concentram o mundo, os contos permitem equacionar alguns dos temas de interesse e de inquietação dos alunos. Será possível, inclusivamente, relacionar estas leituras com a disciplina de filosofia que, no seu programa curricular de décimo ano, prevê o tratamento e o debate de alguns dos grandes temas/ problemas do mundo contemporâneo.

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literários procurará o desvelamento da natureza de cada um. Cada conto será, longa e repetidamente, observado, para que nele se revelem as suas idiossincrasias. A interpretação dos seus possíveis sentidos emergirá da contemplação, mais do que da aplicação de uma teoria preconcebida. Partirei sempre do texto e aceitarei o desafio de pensar.

Paralelamente, esta experiência de leitura também visa criar nos jovens um maior nível de apetência e de autonomia face à leitura dos textos literários em geral.

Os contos serão escolhidos quer pela adequação temática, quer pela qualidade estética o que, confesso, dependerá, em grande medida, das minhas próprias convicções, pois cada leitor é um juiz soberano. Ousarei afirmar que o ensino da literatura é uma possibilidade de exposição direta ao Belo, a única forma que existe de o apreender.

Dois grandes perigos assaltam esta empresa: a tendência moralizadora e a instrumentalização do texto literário. Tentarei passar incólume entre Cila e Caribdes. O gosto pela literatura servir-me-á de guia.

Os contos que mereceram um lugar no presente estudo são os seguintes:

1) O Rosto de valter hugo mãe; 7

2) “Amanhã chegam as águas” de Rui Zink;8

3) “Big brother Isn’t Watching You” de Teolinda Gersão ;9 4) “O marido” de Lídia Jorge e 10

5) Os da minha rua de Ondjaki.11

7 MÃE, valter hugo, O rosto, ilustrações de Isabel Lhano, s/l, Objetiva, 2010.

8 ZINK, Rui, “Amanhã Chegam as águas” in A Palavra Mágica e outros contos, Lisboa, Dom Quixote, 2005, pp.19-29.

9 GERSÃO, Teolinda, “Big Brother isn´t Watching You”in Histórias de Ver e Andar, Lisboa, Dom Quixote, 2002, pp. 51-64.

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Para além dos vários critérios já enunciados - gosto pessoal, adequação e potencialidades interpretativas - os contos que selecionei permitem realizar um percurso que aborda temáticas muito diferentes e complementares.

“O Rosto” de valter hugo mãe constitui uma introdução à ética e alerta-nos para a necessidade (primária) de prestar atenção ao próximo.

“Amanhã chegam as águas” de Rui Zink apresenta-nos uma distopia futura que

nos obriga à reflexão sobre os modelos políticos e sociais.

“Big Brother Isn’t Watching You” de Teolinda Gersão permite problematizar a

perene inexplicabilidade do mal e a pressão que os estereótipos sociais fazem sobre os indivíduos.

“Marido” de Lídia Jorge coloca a violência dentro de portas e mostra que os nossos juízos enfermam de apriorismos que nos toldam a capacidade de compreensão.

Por fim, as breves narrativas de Ondjaki proporcionam o regresso à calma, banhando tudo com a luz terna da infância. As «estórias» que constituem Os da minha rua podem ser lidas como um tratado de boa convivência e de harmonia social.

Sintetizando o que ficou exposto, o presente trabalho será constituído por duas partes: a primeira, que problematiza, com o recurso a bibliografia, a validade da leitura literária para a construção de um sentido ético, refletido nas dimensões pessoal e social; e a segunda parte, na qual são dados exemplos concretos de contos cuja temática propicie a reflexão sobre valores éticos e morais, estabelecendo como pano de fundo a leitura partilhada em contexto de ensino.

Sobre a conclusão do trabalho

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PRIMEIRA PARTE: Literatura e Ética

A etimologia e amplitude do conceito «ética»

Ao intentar um trabalho de união entre a literatura a ética, importa-me definir conceitos. Desta feita, principiarei pela definição do segundo termo, descobrindo a etimologia e a amplitude do conceito «ética».

A palavra «ética» possui na sua génese duas palavras gregas ligeiramente diferentes do ponto de vista fonético. Este conceito provém do termo éthos que significaria costume, uso, maneira exterior de proceder e do termo êthos que, por sua vez, designaria a morada habitual, a toca, a maneira de ser, o caráter. 12 A primeira aceção remete para o exterior, enquanto a segunda se reporta ao interior do sujeito. A ética tem, portanto, uma dimensão performativa, que corresponde a um certo comportamento observável, mas as raízes desse modo de agir são mais profundas e entranham-se na própria essência do ser. Mais do que no parecer, a ética revela-se no ser. Dir-se-ia que, ao ser plasmada de dois conceitos diferentes, a ética abrange uma dimensão que ultrapassa a esfera social e se radica numa dimensão íntima, oriunda da consciência de cada ser humano.

Esta ambivalência exterior/interior parece-me ter estado presente, desde o início, na significação do termo. Assim, na abertura do Livro II da Ética a Nicómaco, Aristóteles associa a ética quer ao hábito adquirido, quer à natureza de cada ser. Segundo o filósofo, a excelência ética, definida como uma disposição permanente do caráter, resulta de um processo de habituação. 13 As boas qualidades da alma, não sendo inatas, seguem a natureza e não podem ser impostas artificialmente – tal como uma pedra não cairá para cima, mesmo que a arremessemos mil vezes ao ar. Este arguto exemplo da pedra chama a atenção para a inutilidade de se querer aplicar, à

12Cf. CABRAL, R., “Ética” in Enciclopédia Logos, vol. 2, pp.334-335. 13

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força, aquilo que não é possível pelas leis da natureza. Em suma, ninguém possui um caráter ético congénito, nem o alcança contra a sua natureza. A capacidade de agir eticamente, de forma continuada e coerente, requer o aperfeiçoamento, pelo hábito, do que já existe, em potência, em cada um de nós. Pela sua importância, voltarei ao texto aristotélico mais à frente neste trabalho, retomando agora a questão etimológica.

Traduzindo do grego para latim, Cícero terá utilizado a expressão moralis (scientiam) quando se referiu ao conceito aristotélico. Assim teria surgido a palavra «moral» que tem por base o vocábulo latino mos, ou seja, o costume, o hábito, a maneira habitual de proceder que, mais um vez, sublinha a vinculação ao sujeito.

Enquanto conceitos filosóficos, a ética e a moral foram alterando a sua significação, ora se encontrando no mesmo ponto como palavras sinónimas, ora se afastando nas conceções distintas que assumiam para cada um dos autores que as tematizavam. Em geral, podemos dizer que a etimologia parece prever ab initium duas sendas diferenciadas: por um lado, uma conceção mais normativa que estabelece regras, leis e valores para a conduta humana; por outro lado, uma conceção mais descritiva que observa e regista, de forma neutra, os costumes das sociedades.

Isabel Carmelo Rosa Renaud e Michel Renaud, no artigo que assinam na enciclopédia Logos dedicado à “Moral”14, procuram distingui-la da ética, embora reconheçam que vários autores consideram que «os dois termos abrangem a mesmas áreas de problemas, ao ponto de se tornarem sinónimos.»15 Todavia preferem separar os termos «reconhecendo, na Moral, o campo no qual a lei e a regra atuam e, na Ética, o nível das fundamentações da lei e da Moral.»

Neste meu trabalho, que se intitula Literatura e Ética: experiências de leitura em contexto de ensino, a escolha do termo «ética» obedeceu a uma tentativa de maior aproximação à etimologia, tal como nos é explicado no artigo enciclopédico supramencionado:

14 RENAUD, Isabel Carmelo Rosa e RENAUD, Michel, “Moral” in Enciclopédia Logos, vol.3, pp-956-980. 15

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A Moral diz respeito às ações praticadas por hábito, e aos costumes em geral, o que privilegia o lado pelo qual a ação é ainda exterior ao sujeito; esta exterioridade reenvia então para a lei e para a regra. A conformidade com a lei domina, mas, ao mesmo tempo, a lei é considerada como a cristalização de um hábito. Em sentido oposto, a ética analisa a dimensão pessoal da ação, mostrando o modo como agir surge da própria interioridade da pessoa que age. Já não é a conformidade com a lei que é primeira na consideração da ética, mas a fidelidade ao centro pessoal do qual a ação emana.16

Os vocábulos éthos e mos, presentes no radical de ética e moral, podem ser considerados equivalentes, significando, quer em grego quer em latim, hábitos e costumes. A palavra êthos, que tambémestá presente na formação do vocábulo grego, confere à palavra «ética» uma dimensão ligeiramente distinta. O êthos significava a toca onde o animal habitava e, provavelmente por comparação, o interior do homem, o local onde o verdadeiro «eu» se esconde.

Este laivo de recolhimento, presente na palavra «ética», parece-me combinar muitíssimo bem com o ato de ler. A leitura de textos literários afigura-se-me um veículo ideal para chegar ao animal escondido na toca. Mesmo quando o contexto pressupõe uma certa dimensão gregária, cada leitor é um ser isolado, abrigado, refugiado no texto. A leitura pressupõe o alheamento dos outros, a abstração do exterior, desenrola-se dentro de cada um, permitindo a reflexão e a introspeção.

Por isso, o silêncio é tão essencial à leitura. O mundo exterior torna-se um leve ruído de fundo. Cada leitor precisa de escutar o texto e de o interpelar. Sem a acalmia dos sons circundantes, não seria possível encetar a conversa com a voz que a literatura nos traz. Curiosamente, a própria voz - do sujeito da enunciação ou do narrador - parece perder alguma alteridade quando, identificado com o texto, o leitor tem a ilusão de se ler a si próprio.

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Voltando de novo ao conceito de ética, Roger-Pol Droit, numa curiosa obra de divulgação intitulada L’éthique expliquée a tout le monde,17 utiliza uma expressão certeira para traduzir do grego o termo êthos. Diz ele que êthos seria «la maniére, pour

une espèce animale, d’habiter le monde». Exemplifica com os pássaros, cujo êthos passaria por voar, cantar e fazer ninhos e transpõe novamente a expressão, agora da etologia para a ética, afirmando que o caráter de uma pessoa é a sua maneira de habitar o mundo, segundo as suas disposições naturais. No meu entender, o que a expressão «maneira de habitar o mundo» tem de mais luminoso é o facto de sublinhar a dimensão global e estruturante da ética. Tal como o pássaro apresenta um comportamento regular no seu habitat natural, assim a dimensão ética do comportamento humano se espelha em cada ato, porque não é fruto de uma aquisição momentânea e postiça, mas emana do cerne da nossa personalidade individual. Aliás, estou em crer que a literatura (ora, porque estabelece com a realidade um pacto especular e realista, ora, porque deforma alegoricamente o real para evidenciar um pormenor) pode ajudar a fomentar essa maneira particular de habitar o mundo. Deixarei esta temática para desenvolvimento posterior.

Sobre a diferenciação entre moral e ética, Roger-Pol Droit tem uma posição

relativamente neutra, afirmando «qu’il n’ya effectivement aucune coupure profonde

et radicale entre les deux notions.»18 Todavia, reconhece uma ligeira diferença nos sentidos estabelecidos pelo uso. Atualmente, o termo «moral» prende-se com um conjunto de valores, normas e regras transmitidas pela tradição, enquanto a ética se relaciona com normas e regras em construção, devido a várias mudanças em curso (nomeadamente, sociais e tecnológicas) que desafiam a nossa reflexão coletiva. Paralelamente, Droit alerta para uma carga pejorativa associada à palavra «moral» e regista, com certa graça, que, num discurso de caráter filosófico, a escolha do termo pode desapontar ou aliciar o auditório e ocasionar comentários do género: «Tu ne vas

pas me faire la morale (…) tu me vas parler d’ethique, c’est plus intéressant.»19 A «moral» ganhou, ao longo do tempo, um lastro semântico mais pesado, sendo

17DROIT, Roger- Pol, L’éthique expliquée à tout le monde, s/l, Seuil, 2009.

18

DROIT, opus cit., p.19.

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considerada por alguns como repressiva, aborrecida e inútil, enquanto a palavra «ética», menos corroída pelo uso, se afigura mais liberal e desafiante.

Ao concluir o capítulo dedicado às aventuras desta palavra, o filósofo francês considera que os dois termos devem trabalhar em parceria pois, num tempo marcado pela pluralidade de morais, cabe à reflexão ética, pela sua natureza dinâmica, encontrar pontos de equilíbrio que possibilitem aos homens viver em conjunto.

Seguirei, durante mais algum tempo, a obra de Roger-Pol Droit,20 salientando alguns aspetos particularmente interessantes do seu discurso, que procura responder às questões levantadas por um interlocutor ficcional, facilmente identificado com o leitor comum.

Segundo o filósofo francês, a ética corresponde a um domínio sem fronteiras extensível a todas as áreas humanas individuais e coletivas, desvelando os fundamentos do agir e a responsabilidade inerente à ação. Acompanhando Jean-Paul Sartre na afirmação «En me choisissant, je choisis le homme»21, também ele considera que cada ação humana tem um caráter irrecusavelmente modelar.

Roger-Pol Droit engendra uma definição muito simples de ética que se baseia num sentimento inerente a todos os seres humanos. Ouçamo-lo: «Voici celui que je

propose: l’éhique c’est d’abord les souci des autres.»22 O que Droit chama «souci des outres», ou seja o cuidado com o outro, poderia ser nomeado através de um amplo conjunto de palavras que giram à volta dessa emoção humana universal. Dentro desse campo semântico encontraríamos a solidariedade, a amizade, a humanidade, o amor ao próximo, a compaixão, a piedade, etc.

Porém, dada a diversidade de costumes culturais, as sociedades correm o risco de cair num relativismo absoluto e cada ser humano pode tender para o ensimesmamento. Recuperando um dito popular, Roger-Pol Droit propõe como regra de ouro que «não façamos aos outros o que não gostávamos que nos fizessem a nós», não obstante reconheça que a ética seja um domínio de extrema complexidade, visto

20 Refiro-me à obra L’éthique expliquée à tout le monde supra citada.

21

DROIT, idem, p.34.

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que existem sempre enormes tensões entre as leis gerais e os casos particulares. Neste sentido, nunca se inventa a solução perfeita, sendo necessário continuar a engendrar, a experimentar, a consertar, num exercício constante de «bricolage de l’ethique appliquée.» 23

L’éthique expliquée a tout le monde estende-se por considerações inerentes à origem dos valores morais e atravessa, de forma abreviada, as filosofias dos principais autores ocidentais24. Em primeiro lugar, determina três tipos de origem para os valores morais: alguns creem que os valores têm origem divina, outros encontram na natureza a explicação de uma consciência moral, outros consideram que são as sociedades humanas que deliberam as suas regras. Em segundo lugar, a obra de Roger-Pol Droit destaca o contributo que vários autores deram para a reflexão ética. Entre outros são referidos Sócrates, Platão, Aristóteles, Rousseau, Mencius, Schopenhauer, Sartre, Camus, Espinosa, Zenão de Cítio, Epicuro, Santo Agostinho, Kant, Stuart Mill,

Nietzsche, Emmanuel Levinas…

Já na parte final da sua obra, Droit sublinha a importância capital da ética neste século XXI, atestando a sua imprescindibilidade através de quatro razões. A primeira prende-se com a lição tenebrosa da história do século XX; a segunda relaciona-se com as mudanças vertiginosas na área das ciências e das tecnologias; a terceira remete para a complexidade das sociedades atuais; e a quarta vai ao encontro dos desafios avassaladores da bioética.

O texto termina com o elogio da ética como exercício de abertura ao outro, como descentramento, como corajosa aceitação do desconhecido. Penso que estas forças que o pensamento ético concentra (descentramento, abertura e aceitação) estão presentes na literatura. Aliás, é nesta convicção que o meu trabalho se baseia: acredito ser possível fazer da leitura literária uma experiência ética.

23 DROIT, idem, p.47.

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Da ingerência da literatura na vida dos leitores

Se pensarmos na nossa infância, recordamos facilmente que as histórias, que nos contavam ou que mais tarde líamos sozinhos, continham normalmente uma lição de moral. Por exemplo, com o Capuchinho Vermelho aprendíamos o valor da obediência. Com a Galinha dos Ovos de Ouro, descobríamos o prejuízo da ganância. Com o Patinho Feio, desenvolvíamos a tolerância face aos que são diferentes de nós. Os mais velhos transmitiam-nos, através das narrativas, um conjunto de valores morais instituídos que acompanhavam outras indicações mais explícitas sobre a forma como deveríamos agir no dia-a-dia.

A educação moral das crianças, inseridas em sociedade, principia muito cedo e, rapidamente, os mais pequenos conseguem destrinçar o bem do mal, ainda que não consigam fundamentar as duas noções. O facto moral parece ser pré-reflexivo, evoluindo com o crescimento e com a natural maturação das nossas faculdades intelectuais.

A confiança que as gerações mais velhas depositam na literatura infantil como fonte de sapiência remonta a tempos ancestrais. Os contos populares, as fábulas, os provérbios são exemplo dessa parceria entre a literatura e a moral.

O caso das fábulas é particularmente interessante. Recuando até ao século VI a.C., topamos com as fábulas de Esopo; estas entraram na cultura romana pela mão de Fedro, que teria vivido no princípio da nossa era; foram retomadas por La Fontaine, na França do século XVII; por Bocage, durante o século XVIII, e chegam hoje, através de vários suportes visuais e verbais, junto das crianças, no seio das famílias ou nas instituições pré-escolares, mantendo-se perfeitamente atuais.25

Quem desconhece a surpreendente vitória da pachorrenta tartaruga face à rápida lebre, o desventuroso fim da cigarra, ou a dura lição do rapaz que gritava lobo? Espantosamente, todas as respostas eram do conhecimento dos meninos há mais de 2500 anos atrás.

25 Cito apenas, a título de exemplo, alguns autores que cultivaram esta tipologia literária. Existem outros

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As histórias tradicionais têm, por vezes, ligações com a religião. Tomemos o caso dos Três Porquinhos que edificam três casas diferentes para resistir aos ataques do Lobo. Esse texto, popularizado pela Disney em 1933, remete-nos para o Evangelho de S. Mateus (7: 24-27), quando Jesus se dirige aos que o escutam, durante o Sermão da Montanha, dizendo:

Todo aquele, pois, que escuta estas minhas palavras, e as pratica assemelhá-lo-ei ao homem prudente que edifica a

sua casa sobre a rocha; […] e aquele que ouve as minhas palavras e não as cumpre compará-lo-ei ao homem insensato que edifica a sua casa sobre a areia.26

Se repararmos, as próprias parábolas da Bíblia têm uma estrutura discursiva que se assemelha à literatura tradicional no uso de exemplos visuais para facilitar a compreensão. Vejamos como exemplo a parábola do semeador (S. Mateus, 13:1-23), vizinha da passagem supra citada. Através da imagem da semente que se perde com os pássaros, da que cai nos pedregais, da que secou ao sol, da que caiu entre espinhos e da que a frutifica na terra boa, Jesus acredita ser capaz de chegar aos seus renitentes ouvintes. Uma vez questionado quanto ao uso das parábolas, dirá o Filho de Deus: «Por isso lhes falo de parábolas, porque eles vendo não veem, ouvindo não ouvem, nem compreendem.»27 Jesus valorizaria esta tipologia discursiva porque os tropos utilizados nas parábolas manifestavam mais clareza e poder persuasivo do que outro tipo de discurso expositivo.

Por vezes, a par dos contos tradicionais e das fábulas, as crianças eram orientadas no sentido de contactar com textos bíblicos e até com hagiografias, na esperança de que esses textos se tornassem edificantes para os seus espíritos em formação.

O meu intuito, ao convocar para este domínio o conto tradicional, a fábula, e a parábola é frisar a cumplicidade de longa data entre a literatura e um saber de caráter moral que, obviamente, não se identifica com a ética. O que eu penso é que seja

26A Bíblia Sagrada, Lisboa, Edição da Sociedade Bíblica, 1992. S. Mateus (7: 24-27) 27

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possível aceitar como um facto a tradição ocidental ter reconhecido na leitura uma fonte de sabedoria moral.

Antagonicamente, também existe a tradição de se pensar que a literatura pode levar os jovens para caminhos desviantes e que se devem acautelar certas leituras, sob pena de transformarmos os rapazes em «Quixotes» e as raparigas em «Bovaries», para dar dois exemplos de leitores exemplarmente alienados. No fundo, o senso comum tem reconhecido na leitura literária um poder de influência ao nível do comportamento moral, da «virtude fronética» ou da sensatez, como definiu Aristóteles, no seu Livro VI da Ética a Nicómaco,28 aquele tipo de sabedoria prática capaz de proceder à deliberação «das coisas boas e vantajosas para si próprio, não de

um modo particular, (…) mas de todas aquelas qualidades que dizem respeito ao viver

bem em geral.»29

Quer pela contribuição que possa prestar, quer pelos estragos que possa causar, acredita-se que a literatura tem consequências na vida prática e quotidiana. Alguns livros farão bem, outros farão mal, à cabeça de quem os lê recuperando uma expressão popular. O que me importa acentuar é esta crença generalizada de que os textos literários fazem alguma coisa que ultrapassa a ficção e que se intromete na vida.

Em conclusão, proponho que aceitemos que existe uma convicção generalizada de que a literatura seja capaz de se ingerir na realidade e de condicionar o maior ou o menor grau de sensatez com o qual conduzimos os nossos destinos. Aceitar esta convicção que não pode, pela sua natureza, ser testada implica que se possa conferir à leitura a capacidade de agir no caráter humano.

Como disse, não consigo provar cientificamente que a literatura influi na ação humana. Reconheço até que a história nos tem trazido lições bem duras. Seria possível enumerar uma quantidade de vultos históricos que, apesar de uma educação esmerada e de uma cultura erudita, agiram de forma desumana e irracional. Todavia, se apanhássemos uma filha de doze anos a ler A Filosofia na Alcova, estou em crer que a maioria de nós não seguiria a recomendação que Sade escreveu na epígrafe e

28 Aristóteles, Ética a Nicómaco, (tradução do grego de António Castro Caeiro), Lisboa, Quetzal, 2004. 29

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tentaria protelar a leitura para ocasião mais adequada… As censuras e as proibições associadas à leitura confirmam a ingerência da literatura na vida, como se o seu poder fosse uma espécie de magia, umas vezes branca, outras vezes negra.

Dois testemunhos de leitores exímios: Proust e Montaigne

Se perguntarem a um ávido leitor a razão pela qual insiste em ler, é provável que vos dececione a sua resposta infantil e tautológica. Ele dir-vos-á coisas do género: «porque sim», «porque gosto», «porque me dá prazer». Penso que a resposta tartamudeada se justifica pela identificação da leitura com a paixão. Um enamorado também dirá que ama apenas porque ama, não conseguindo discernir as razões intrínsecas que, no seu amado, permitem explicar, até à exaustão, os fundamentos do seu estado de rendição.

Pessoalmente, agrada-me muito saber o que pensam os grandes leitores, muitas vezes também grandes escritores, do ato de ler. Um texto admirável, nesse sentido e noutros, foi escrito por Marcel Proust, em 1905, e principia com a alusão às leituras na infância. Não me consigo coibir de citar esta belíssima passagem aparentemente contraditória: «Talvez não haja dias da nossa infância mais plenamente vividos que aqueles que julgamos deixar sem os viver, aqueles que passámos com um livro preferido.»30 O meu apego a esta frase proustiana relaciona-se com o reconhecimento da fronteira diáfana que as primeiras leituras mantêm com a nossa vida. Talvez, nessa altura, estejamos mais permeáveis à ficção, porque estamos acostumados ao «jogo do faz de conta», e seja possível colarmo-nos de forma imediata às personagens, ao narrador e às peripécias da história.

Contudo, esta capacidade de «outramento» não se perde, em absoluto, com o passar dos anos. Mesmo na maturidade, conseguimos silenciar os ruídos que se instalam à volta de uma obra (provenientes da crítica literária, da história, da publicidade, das opiniões dos amigos) e escutar a voz do texto. Então, parece que a

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magia se instala de novo e somos capazes de nos deixar arrebatar uma e outra vez. Estou aqui, deslumbra-me! - dirá o leitor para a obra. Se os sentidos não estão embotados e o texto corresponde à nossa exigência, o sortilégio da leitura dar-se-á vezes sem conta, mesmo quando o feitiço é repetido, por se tratar de uma releitura.

Marcel Proust terá, na idade adulta, uma posição menos fascinada quanto ao «ato psicológico original chamado Leitura»,31crendo que a recordação do prazer de ler se mistura com as doces lembranças da infância e dissolve a memória concreta das obras lidas.

Na maturidade, a leitura deverá constituir uma introdução à vida espiritual que tem de ser continuada pelo «pleno trabalho fecundo do espírito sobre si próprio.»32 Em boa verdade, considera salutar a leitura que «nos abre no fundo de nós próprios a porta das moradas onde não teríamos sabido penetrar»,33 porém, vê como perigosa a

leitura que «em vez de nos despertar para a vida pessoal do espírito (…) tenda a

substituir-se a ela».34

Citando Descartes, o autor da Recherche compara a leitura dos bons livros «a uma conversa com as melhores pessoas dos séculos passados».35 Para o grande escritor francês, a leitura assemelha-se a uma amizade, livre de condicionalismos, entre os escritores mortos e os leitores (provisoriamente) vivos.36 Este convívio, para além de ser a mais nobilitante das distrações, possibilita aos leitores obter as «boas maneiras do espírito»,37apenas alcançáveis através da leitura e do saber, sem que para isso, o leitor deva subordinar a atividade pessoal do pensamento.

31 PROUST, opus cit., p.38.

32 PROUST, idem, p.41.

33 PROUST, idem, p.51.

34 PROUST, idem ibidem.

35 PROUST, idem, p.39.

36 PROUST, opus cit., p.58. A expressão exata de Proust é a seguinte: «nós os vivos, não somos todos senão mortos que ainda não entraram em funções.»

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Ao recorrer a este breve ensaio Sobre a Leitura, o meu objetivo foi fazer-me acompanhar por Marcel Proust em algumas considerações que passo a enumerar.

Em primeiro lugar, a leitura de certas obras mistura-se com a nossa vida, sendo estas duas entidades reciprocamente influenciadas nas lembranças que nos deixam. Dito de outra maneira, a leitura e a existência estão separadas, na nossa memória, por uma membrana porosa.

Em segundo lugar, a leitura tem uma função modelar, sendo capaz de afeiçoar o «espírito» dos leitores, tal como as relações inter pares.38 Esta influência assemelha-se àquela que podem ter em nós as pessoas com as quais convivemos, como é o caso dos familiares, dos amigos e dos vizinhos.

Não quero com isto dizer que a repercussão da leitura seja determinante, não digo sequer que é maior do que a força de outros meios de comunicação. Sustento apenas que, para além do entretenimento que proporciona, a literatura promove a reflexão interior e alcança uma função formativa. Cito, a propósito, uma frase de Montaigne, outro grande leitor:

Nos livros busco só o dar-me prazer através de uma decente distração ou então, se estudo, neles procuro apenas a ciência que trata do conhecimento de mim mesmo e me ensina a bem morrer e a bem viver.39

Repare-se que Montaigne considerava que os livros serviam, antes de tudo, para aliviar a mente, constituindo a leitura uma distração, um prazer, um ato de fruição. Em segundo lugar, os livros permitiam-lhe que se estudasse e pelo verbo «estudar» podemos entender a extração de informação e de conhecimento. Ora, na fase da vida em que se encontrava, já retirado dos afazeres, o único conhecimento que ainda buscava era o de si mesmo e de como devia viver e morrer. A leitura dava-lhe

38 Esta ideia recorda-me uma história curiosa. Eu conheci um livreiro muito culto e já bastante idoso que vivia na cidade de Setúbal. Um dia, em conversa, disse-me o seguinte: “Vocês estão todos convencidos de que eu gosto muito de livros mas eu gosto é de pessoas.” Penso que o senhor Medeiros, é este o seu apelido de origem açoriana, ouvia das suas estantes a voz de muitos seres humanos e os considerava com o respeito e a amizade que devotava também aos indivíduos com quem privava no dia a dia.

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acesso à única ciência que continuava a interessá-lo, quando todas as outras tinham deixado de ser apelativas. Mas como denominar a ciência referida pelo autor? Penso que se reportará à filosofia, em geral, e à ética, em particular. Aliás, esta frase remete-me para o conselho de Epicuro: «Que ninguém hesite em filosofar enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho…»40

Acompanhada por Proust e por Montaigne, tentei sustentar que a leitura de textos literários considerando aqui «literatura» em sentido extenso, no intuito de abarcar textos que pertencem também a domínios contíguos, como a história ou a filosofia, respondem a várias necessidades dos leitores. Os textos comportam várias dimensões, das quais se evidenciam a dimensão lúdica, a formativa e a ética. De seguida, recorrerei a Harold Bloom para continuar a tratar das razões por que se lê.41

Das razões por que se lê

Publicado em 2000, nos Estados Unidos da América, How to Read And Why apresenta uma seleção de grandes textos da literatura universal, separados por tipologias: contos, poemas, romances (parte I e II) e teatro. Cada um destes textos será ensinado a ler e responderá, no fim, ao porquê de ser lido. Toda a obra é merecedora de interesse, todavia, no âmbito do assunto que nos traz enredados, limitar-me-ei a abordar quase exclusivamente o princípio e o fim.

O prefácio e o prólogo são um manancial de ideias frutuosas sobre a leitura e são o testemunho de um inabalável convertido. Ninguém escreve um texto tão rico se não possuir dentro de si uma paixão que quer partilhar. Bloom começa, então, por indicar razões para que se leia: a busca da sabedoria por oposição à informação; a experiência da alteridade; a panaceia contra a solidão e contra as contingências da

nossa vida individual. Pouco depois, no Prólogo, intitulado especificamente “Porquê Ler?”, Bloom irá atribuir à leitura solitária, realizada ao longo da vida, «a capacidade de

40 Reporto-me a uma célebre máxima retirada da Carta sobre a Felicidade. 41

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formar as opiniões e apreciações»42 de um indivíduo. Segundo o autor norte-americano, quem lê fá-lo no seu próprio interesse, todavia, dos muitos usos pessoais e diversificados que se podem dar à leitura, um dos mais significativos e transversais consiste na preparação para a mudança.

Reunindo as opiniões de Sir Francis Bacon, Dr. Samuel Johnson e Emerson, Harold Bloom consegue coligir uma «fórmula de leitura» ideal que explique as razões que nos levam a pegar numa obra. Desta feita, lemos para:

encontrar aquilo que sentimos próximo e pode ser utilizado para ponderar e refletir, aquilo que se nos dirige como se partilhasse connosco uma mesma natureza, livre da natureza do tempo.43

Concordo, em absoluto, com os argumentos coligidos que justificam o ato de ler. Todavia, um pouco adiante, o autor envereda por uma opinião que parece entrar em clara oposição ao trabalho que me proponho realizar.

A frase, que citarei dentro de momentos, teve um efeito doloroso no meu pensamento quando a ideia deste trabalho começava a germinar. Esta afirmação de Harold Bloom quase me fez desistir dos meus intentos. Passo a citar:

Com efeito, os prazeres da leitura são mais egoístas do que sociais. A vida de uma pessoa não pode ser diretamente melhorada através da leitura mais correta ou mais profunda. Permaneço cético perante a tradicional esperança social segundo a qual a solidariedade pode ser estimulada pela expansão da imaginação individual, e desconfio de quaisquer argumentos que relacionem os prazeres da leitura solitária com o bem comum.44

42 BLOOM, opus cit., p.19

43 BLOOM, idem, p.20.

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Se o meu objetivo era encontrar um corpus de textos literários que pudesse ajudar os meus alunos a refletir sobre as grandes questões éticas e sobre os problemas contemporâneos que afetam o seu dia-a-dia, pareceu-me, num primeiro momento, que tinha pela frente uma tarefa inglória.

Eu já sabia que no íntimo de cada professor existe um pequeno génio agitador, um diminuto demiurgo, convencido de que vai tocar, com a sua magia, o íntimo de cada um dos elementos do seu auditório. Essa vaidosa personagem está sempre presente porque qualquer professor é, antes de mais, um idealista. Aliás, essa devia ser uma das condições essenciais para o exercício da docência: o idealismo. Por muito adverso que seja o quotidiano, temos de ouvir a voz do demiurgo e tentar acreditar no que fazemos de conta que acreditamos. Todavia, confesso que esta afirmação bloomiana, num primeiro momento, fez tropeçar o meu pequeno génio idealista.

Alguns dias depois, voltei a ler o texto de Harold Bloom e julgo ter percebido melhor o que o autor quis dizer no início da sua obra Como ler e porquê?

Bloom recusa sempre arregimentar a literatura e defende até às últimas consequências a dignidade estética,45 não vendo na leitura a chave do bem comum social. Contudo, a minha posição não entra em divergência com a dele, uma vez que, mais adiante, Bloom explica que a literatura não muda a sociedade mas muda os indivíduos. O que, à partida, parecia uma crítica46 demolidora ao presente trabalho, converte-se numa ideia que corre paralelamente. Bloom sustenta que a leitura individual não muda a vida de terceiros, portanto não age sobre os demais. Bloom não afirma que a leitura não mude os leitores.

Sigamos, por mais algum tempo, o seu raciocínio.

Pouco depois, no prólogo, encontramos discriminados os cinco princípios bloomianos para a renovação da competência de leitura. Ou, por outras palavras, deparamo-nos com cinco conselhos que Harold Bloom dá aos seus leitores:

45 Esta posição vai ainda mais longe na sua obra intitulada O Cânone Ocidental que abordaremos adiante.

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1. libertar a mente do jargão (incluindo o universitário);

2. não tentar melhorar ninguém com a leitura, exceto a si próprio;

3. não recear que o estudo seja uma atitude egoísta (a posteriori o esforço será uma iluminação para os outros);

4. desenvolver a faceta de inventor para conseguir ler bem; 5. restaurar a ironia, aceitando e praticando a contradição.

De todos os princípios, aquele que parece entrar em contradição direta com o trabalho que me proponho desenvolver seria o segundo. Porém, o autor não diz que a leitura não nos melhore a nós mesmos. Se afirma que «não existe uma ética da leitura»,47 também opina que «melhorar[mo-nos] a nós próprios é um projeto suficientemente vasto.» 48

O autor considera a leitura como uma prática solitária e não como um empreendimento educativo. A crítica literária e a atividade letiva, por inerência, deveriam ser experimentais e pragmáticas. A escola funcionaria como uma ponte entre o leitor e o texto, uma vez que cabe ao sujeito individual conviver com a obra até que lhe surja a convicção de que a natureza que escreve é a mesma que lê. Bloom define mesmo a leitura como uma disciplina implícita e sem métodos universalmente válidos. Dir-se-ia que para ler sentimentos humanos numa linguagem humana é preciso saber ler humanamente com todo o ser.

Eu aceito em absoluto esta ideia. Se não concordasse, teria intitulado esta dissertação de forma diferente. O meu texto seria algo programático do género: Como melhorar o mundo através da leitura, Inventário de lições de moral, Curar o mal-estar social através da literatura…

O meu trabalho coloca apenas a tónica no eu individual, acreditando que cada texto é tão-somente uma oportunidade de desenvolvimento ético pessoal. A leitura literária abre a porta para um aperfeiçoamento singular e intransmissível. Cada um

47 BLOOM, idem, p.23.

48 Citarei em nota a expressão integral: «…não tentes melhorar o teu vizinho ou o teu bairro através do

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tem de percorrer o seu caminho e descobrir as suas respostas. Lemos para conhecer e fortalecer o nosso eu através de uma disciplina implícita.

Muitas páginas adiante, também Bloom se referirá a um texto que permite esse exercício de aperfeiçoamento ético. A propósito da magnífica obra As Cidades Invisíveis de Italo Calvino, dirá que a leitura serve «para estar[mos] vigilantes, para apreender[mos] e reconhecer[mos] a possibilidade do bem, fazê-la durar, dar-lhe espaço nas nossas vidas.»49

Eu coloco no ensino da literatura esta intenção: transformar cada leitor numa versão um bocadinho melhor de si mesmo, o que no fundo corresponde à máxima pindárica «torna-te aquilo que és». A minha função de professora, ao selecionar os textos, ao aclará-los, tornando explícito o que está implícito, e ao escorar os sentidos emergentes em informações complementares, limita-se à abertura de uma possibilidade. Crio a oportunidade para que cada um dos leitores aceda à leitura e se enriqueça com essa experiência. Consequentemente, intitulei o presente trabalho da seguinte forma: Literatura e Ética: experiências de leitura em contexto de ensino. A palavra «experiências» devolve a leitura ao que ela tem de comum com a ética: a metodologia da tentativa e erro e a incomensurabilidade do percurso.

Explicada a minha intenção que, repetindo, consiste em criar experiências de leitura que possam ser catalisadoras de reflexões e comportamentos eticamente fundamentados, passarei então a explicar de que forma considero que tal seja possível e por que razão insisto em fazê-lo. Porém, antes disso, ainda dedicarei alguma atenção aos serviços que a literatura possa ou não prestar à sociedade.

Da serventia da literatura

Não se pode equacionar a serventia da literatura sem nos determos no famoso ensaio de Harold Bloom, The Western Canon – The Books and Schools of Ages,

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publicado em 1994.50 Não obstante a polémica que tem gerado, essencialmente pelos autores que omite, esta obra constitui um alerta decisivo para todos aqueles que procuram na literatura aquilo que não está lá porque não lhe compete estar. Harold Bloom, querendo desempenhar o papel de grande paladino da dignidade estética, declara taxativamente que o estudo da literatura, seja qual for a maneira de o levar a cabo, nunca poderá salvar um indivíduo ou melhorar a sociedade.51

Tendo como cenário uma visão apocalíptica do mundo da cultura, Bloom procura vencer uma força coletiva de universitários e críticos que pretendem abrir o cânone ocidental por questões alheias ao valor literário das grandes obras. Esta tendência de expansão do cânone surge associada a uma ideia de revolução social e pretende que os textos sirvam para inculcar valores extraliterários em quem os consuma. No fundo, seria permitir que obras de menor valor, mas mais bem-intencionadas, fossem convocadas para figurar no cânone, arredando para a periferia outras que não militassem pelo politicamente correto.

Por outras palavras, The Western Canon surge como reação à anarquia do mundo instruído, causada pela tendência iconoclasta de certas correntes, denominadas por Bloom como escolas do ressentimento (termo utilizado para designar genericamente os seus opositores). Estas fações do meio intelectual destroem a tradição ocidental por questões alheias à literatura e relacionadas com valores morais, políticos e sociais, fazendo ladear as obras clássicas com outras, politicamente mais corretas, mas cujo valor estético se afigura bastante insatisfatório quando submetidas a comparação.

Falando concretamente, as energias do multiculturalismo americano decidiram emular algumas obras por conterem ideias contrárias às suas e procuraram eleger outras leituras mais cúmplices com os seus ideários. Bloom riposta com ironia e humor que «a energia social nunca escreveu uma página.»

50 Bloom, Harold, Cânone Ocidental, Os grandes livros e os escritores essenciais de todos os tempos, (tradução de Manuel Frias Martins), Maia, Temas e Debates, 2011. Paralelamente consultei o original, que preferi não citar para manter coerência no idioma utilizado e porque considerei a tradução fidedigna, The Western Canon – The Books and Schools of Ages, Orlando (USA), Harcourt Brace & Company, 1994.

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Pessoalmente, considero que esta questão se prende com uma outra anterior, a da arte engagée, que, em certos períodos históricos, levou a que os poetas e os romancistas se sentissem na obrigação de militar por causas justas e de plasmar a partir destas a sua motivação criativa. Agora, estaríamos numa fase de leitura engagée, também ela ao serviço imediato da sociedade. Se é inegável que a literatura reflete a história, parece-me menos linear que a literatura tenha de possuir obrigatoriamente uma natureza especular.

Ora, o que Bloom postula de forma veemente é que a expansão do cânone leva à destruição do cânone e é responsável pela anarquia e pela miséria do nosso estado atual. O autor não defende o cânone por questões direitistas ou morais, defende-o através da qualidade canónica das suas obras. Estas destacar-se-iam pela capacidade de estranhamento, de sobressalto e de originalidade que proporcionam ao leitor. Bloom procura perceber a grandeza, a sublimidade e a representatividade dos autores que devem figurar no cânone ocidental, acreditando que o valor estético pode ser, apesar da sua subjetividade, uma realidade efetiva.

O mecanismo seletivo apresentado pelo autor assemelha-se, no meu entender, a uma engrenagem de seleção natural e pressupõe uma certa dose de violência, tal como acontece na luta pela sobrevivência das espécies na natureza. A descrição deste processo de canonização literária originou alguma terminologia bloomiana que se propagou pela crítica e que tentarei elucidar.

Desta feita, cada obra literária que nasce é fruto de «uma leitura desviante e criativa» de outras obras canónicas e sente, relativamente aos seus pais, «uma ansiedade de influência», caracterizada pela dependência e pelo desejo de diferença. Chamada a combater no agon52 contra a tradição, a nova obra literária só pode recorrer a armas de natureza estética para encontrar o seu lugar e provar que contém o estranhamento e a originalidade que lhe darão acesso ao cânone. Esta luta agonística pela sobrevivência faz do cânone um espetáculo animado. A tradição não é um apático processo de transmissão mas sim um belicoso confronto de génios do

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passado e do presente, que se influenciam mutuamente, uma vez que os escritores fortes possuem o engenho de transformar os seus antecessores em compósitos e em seres parcialmente imaginários. A literatura não é só linguagem é também vontade de figuração, de ser forte, de ser diferente, de possuir um tempo e um lugar exclusivos.

Harold Bloom defende veementemente a autonomia do estético53 que sente afastada das lides universitárias e da azáfama da crítica:

Constitui um sinal de degeneração alguém ser considerado excêntrico por defender a ideia de que o literário não está dependente do filosófico, e de que o estético é irredutível à ideologia e à metafísica. A crítica estética faz-nos voltar à autonomia da literatura imaginativa e à soberania da alma solitária, ao leitor não como pessoa na sociedade, mas como eu profundo; faz-nos voltar, enfim, à nossa derradeira interioridade.54

Tal como Oscar Wilde, Bloom acredita que a arte é perfeitamente inútil e que o valor estético é intransmissível. A arte de ler bem e profundamente não é cívica nem altruísta, nomeadamente porque muitos dos autores mais eminentes defendem valores anacrónicos e moralmente censuráveis. Esperar que um poema seja um documento social está a um nível de absurdo semelhante ao de crer que um jogo de futebol possa aliciar pessoas para a ala esquerda, ou para a direita, da política nacional.

Estas convicções de autotelismo da literatura são particularmente difíceis de encaixar na estrutura do ensino enquanto ato social com implicações financeiras. Porém, mesmo o ensino tem o seu lado solitário. Cada aluno lê para si e só pela receção individual lhe será possível aceder ao autêntico poder estético dos textos. Em minha opinião, muitas das vozes que vêm à praça pública defender a utilidade pragmática da literatura (enquanto agente de revolução cultural, enquanto promotor

53 «Uma das marcas inelutáveis do canónico é a dignidade estética, a qual não está a soldo

do que quer que seja.» BLOOM, idem, p.49.

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do multiculturalismo, enquanto cimento social, enquanto escola de valores ancestrais, et coetera) agem desta forma para defender as humanidades de uma tendência economicista que não valoriza o investimento na cultura e na educação. Nem todos os que apontam serventias à literatura o fazem para diminuir o valor absoluto da estética. Muitos deslumbrados buscam, no território inimigo, argumentos alheios à literatura apenas para defender a sua dama.

O paradoxo criado pelo caráter individual e solitário da receção literária e a natureza social e económica do ensino afigura-se, à primeira vista, uma situação aporética sobre a qual vão continuar a correr rios de tinta e a partir da qual se continuarão a extremar posições: Uns dirão que, se a literatura não faz seres humanos melhores, se suspenda o seu ensino obrigatório; outros dirão que as coisas inúteis são as mais importantes para a natureza cultural dos homens… Trata-se de uma conversa antiga que remonta ao sacrilégio de Platão, quando este expulsou os poetas da cidade.

O moralismo platónico, que Bloom acusa de ser um sintoma de ressentimento contra o grande poeta épico da Grécia Antiga, não o coagiu no sentido de privar Sócrates, enquanto personagem dos seus diálogos, de recorrer inúmeras vezes a Homero e aos mitos para exemplificar e promover as suas ideias. A literatura constituiu, não poucas vezes, um auxiliar precioso para o seu intento de promover o autoconhecimento.

A ética da leitura e a leitura ética

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A leitura ética, como eu a entendo aqui, é uma atitude perante o texto que implica associar, à dimensão estética, uma reflexão que extravasa o literário e se espraia no campo das outras áreas do saber e na vida de cada um. Digamos que cada texto permite criar um exercício de reflexão sobre a história, a filosofia, a economia, a política (et coetera) e permite acrescentar experiência de vida ao leitor. A leitura ética não é uma leitura moralizadora. A leitura ética é uma potencialidade da leitura, tal como a leitura lúdica.

A moral associa-se à adoção de comportamentos exteriormente observáveis e adequados a padrões culturais e sociais. Eu não pretendo valorizar o aspeto moral dos textos, nem queria que a leitura, no ensino, se tornasse uma espécie de novo catecismo da geração laica (ou light). O que eu defendo é que ler é um ato profundamente ético, uma vez que vai ao encontro do sujeito individual, entra na toca

onde o “eu” se esconde.55

O encontro entre o leitor e o texto literário assemelha-se, num primeiro momento, a uma conversa mas, rapidamente, se torna numa conversão. O leitor encarna a personagem ou transforma-se no sujeito lírico da enunciação poética através do efeito camaleónico do texto. A viciante adrenalina da leitura provém do facto de esta permitir viver várias vidas paralelas, como nos jogos de computador, ou como na second life, por meio de um avatar. Estas comparações surgem pela semelhança da possibilidade de outramento e da criação de uma espécie de estado hipnótico, em que o sujeito perde por momentos o contacto com a sua realidade circundante. Contudo, a leitura é uma experiência muito mais rica do que as ditas manifestações contemporâneas. Os jogos e a realidade virtual são meros entretenimentos que deixam poucas marcas em quem as desfruta, enquanto a leitura será uma espécie de entretesimento. A verdadeira literatura não se limita a entreter, ela consegue entreser, ou seja, dá ao leitor a possibilidade de experimentar novas formas de ser, criadas entre as linhas de leitura textuais.

55 Relembro que etimologicamente a palavra “ética” possui uma dupla génese grega: termo éthos que significaria costume, uso, ou maneira exterior de proceder – e do termo êthos – que, por sua vez,

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Absortos na leitura, deixamos para trás, muitas vezes com grande alívio, as vicissitudes das nossas existências individuais e imediatas e acedemos ao outramento,56 ao mecanismo que nos permite entrar na pele dos seres ficcionais (nomeadamente, personagens, narrador, ou sujeito poético) e experienciamos novas vivências. Podemos sentir as suas emoções, experimentar diferentes formas de olhar o mundo, percorrer inusitadas escalas de valores morais.

A descentração da nossa experiência individual e o outramento constituem um treino, uma ginástica, para o nosso caráter humano, um exercício sujeito a constantes metamorfoses. Um bom leitor torna-se um Proteu emocional.

Parece-nos que esse treino desenvolve, por si só, competências morais, sociais e cívicas. Treinando a empatia através dos textos, o leitor fica habilitado a conhecer-se e a conhecer os que estão à sua volta, a perceber os cambiantes dos sentimentos humanos, a relativizar os comportamentos, a refletir sobre as ações e as suas causas.

Existe uma diferença entre a palavra piedade e a palavra compaixão, que pode servir de exemplo ao que se afirmou há pouco. A piedade procede da observação de uma situação pungente, mas não anula a distância entre quem observa e quem sofre, ainda que a reação seja a de prestar auxílio. A compaixão pressupõe a partilha do que o outro está a sentir, implica experimentar uma dor colateral e agir para que o sofrimento alheio e o próprio sejam debelados. O texto literário atua na área da compaixão, pois constitui uma membrana permeável que permite a osmose entre o ser que lê e o que é lido.

Aprofundarei de seguida esta reflexão sobre o outramento, o entretesimento e permeabilidade da leitura e da vida.

Da leitura como second life

Não é raro observarmos pessoas capazes de rir ou de chorar quando ouvem declamar um poema, quando assistem à representação de uma peça, ou no escuro de

56 Penso que Fernando Pessoa terá escrito, através do seu semi-heterónimo Bernardo Soares, que só

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uma sala de cinema. Tais comportamentos também se verificam quando ouvem contar uma história verídica particularmente cómica, ou lamentavelmente triste.

Pelos exemplos referidos, podemos aceitar como consensual que os seres humanos manifestam emoções, mesmo quando estas não têm origem em acontecimentos da sua esfera privada. Por seu turno, as manifestações artísticas (como a poesia, a música, o teatro, a dança, entre outras) parecem particularmente eficazes nessa captação e propagação dos sentimentos humanos, como se tratassem de materiais condutores particularmente aptos. Dir-se-ia que quem se expõe às artes se sujeita a ficar contaminado não só pelas ideias que estas veiculam mas, principalmente, pelas emoções que alcançam transmitir.

Se pensarmos na raiz da palavra emoção, deparamo-nos com o verbo latino «movere», ou seja, o ato de imprimir movimento, o que significa que as artes são uma espécie da força capaz de atuar sobre quem as recebe e alterar o estado de movimento ou inércia dos recetores. Por me parecer uma expressão adequada, chamarei «capacidade de comoção» à experiência de sentimentos por interposta pessoa, ou por contágio com as manifestações artísticas. O verbo equivalente, «comover», provem da junção da preposição «com» e do verbo «movere». Assim, a «comoção» poderá significar «compartilhar uma emoção com alguém» ou «ser levado a experienciar uma emoção induzida pelo contacto com as artes». Penso que a palavra se adequa etimologicamente aos significados que lhe quero imprimir.

No caso da literatura, a capacidade de comoção pode atingir um patamar superior que consiste numa identificação ficcional com a ficção. Exemplifiquemos. Para melhor fruir a leitura e para que esta exerça em nós o sortilégio de evasão, há uma

parte de nós que se metamorfoseia em Gregor Samsa quando lemos a Metamorfose

de Kafka. A esta habilidade do leitor chamarei «capacidade de outramento» e defini-la--ei como a capacidade de viver a literatura, assumindo como nossas as aventuras e as desventuras dos seres ficcionais.

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No fundo, a ficção exige um pacto de aceitação que extravasa o mero ato de aquiescência e atinge um efeito catártico, despertando em nós sentimentos, que estando latentes, se manifestam, aliviando-nos de tensões emocionais. Em certo sentido, os sonhos que nos preenchem o sono têm um efeito semelhante, sendo capazes de atenuar os efeitos dolorosos das experiências reais.

O efeito regenerador da literatura presente, por exemplo, na célebre frase de Montesquieu - «O estudo foi para mim o remédio soberano contra os desgostos da vida, não havendo nenhum desgosto que uma hora de leitura me não tenha consolado» - atesta dessa sensação de embalo e de levitação que a literatura nos propicia.

Quando um leitor se deixa levar por um narrador, por uma personagem ou por um sujeito da enunciação, sente disposição para se identificar com a entidade literária e se «outrar». Em última instância, esta diminuição da consciência individual e o consequente «outramento» convertem a leitura numa espécie de viagem e ligam-na ao conceito de evasão.

Porém, a evasão, por si só, não é uma coisa positiva ou negativa. Existem vários tipos de evasão que trazem consequências nefastas a quem as usa repetidamente. Nesse caso encontram-se, por exemplo, o álcool e os estupefacientes. Todavia, os seres humanos sentem necessidade de escape. Os ingleses têm uma expressão clara para essa carência. Quando estão cansados e precisam de férias dizem: «I need to get out of my head».

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Esta capacidade de identificação com os textos transforma a leitura numa segunda vida, expressão que, nos últimos anos, alargou o seu domínio de significação. Hoje, a noção de «second life» corresponde a uma plataforma digital, na qual é possível concebermos um avatar de nós próprios e recriarmos uma vida. Na «second life» existem espaços físicos, elaborados à semelhança dos reais, nos quais podemos interagir com outros avatares. Por exemplo, é possível assistir em simultâneo, de todos os pontos do mundo, a uma palestra proferida no anfiteatro de uma conceituada universidade virtual.

Os jogos eletrónicos também se movem neste domínio, proporcionando a ficção de uma existência alternativa. É possível ser-se um exemplar cidadão durante o dia e atravessar as noites a jogar Counter-Strike, assassinando tudo quanto se vê pela frente. Os jogos eletrónicos tornam-se tão obsessivos que interferem com a vida quotidiana, levando algumas pessoas à dependência extrema.

A leitura compartilha da capacidade humana de viver intelectualmente uma segunda vida, recriando mundos paralelos que, por sua vez, influenciam a vida real dos leitores. Se, à partida, esta opinião parece quixotesca ou bouvariana, visto que faz dos leitores uns supremos alienados, é inegável que existe uma emoção implícita na leitura. Todos os leitores já sentiram que a literatura (e a arte em geral) é capaz de nos emocionar. Ora é precisamente essa emoção que se transforma em conhecimento vivencial. A identificação que surge com o outro é mais do que informação. Ao colocar-se na pele do outro, ao fazer da obra uma «colocar-second life», o leitor está a acrescentar mais vida à sua vida e a enriquecer a sua experiência.

A literatura ajuda a diminuir a distância que vai de nós aos outros e que, em certos casos extremos, nos leva ao cúmulo de encararmos o nosso semelhante como uma subespécie. A história está pejada de situações destas. Ao invés, o movimento que leva o leitor a colar-se às personagens, aos narradores, aos sujeitos da enunciação tem uma característica reveladora. Mostra-nos que nós poderíamos lá estar. Nós poderíamos ser os sujeitos daqueles problemas do mundo ficcional.

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Esse pacto de aceitação da subversão dos códigos do possível cria músculo na nossa tolerância face às diferenças.

Costumo ler, com os alunos mais jovens, um conto de Eduardo Agualusa

intitulado “Estranhões e Bizarrocos.”57 Resumidamente, trata-se da história de um inventor de seres estranhos que é preso por incomodar a comunidade com as suas criaturas extravagantes. As crianças opõem-se a esta condenação porque não reconhecem a estranheza das invenções uma vez que, para os seus olhos inocentes, o real é tão maravilhoso quanto o maravilhoso. Para quem nunca tenha visto uma borboleta, a borboleta é tão estranha quanto uma fada. A leitura prepara-nos para a aceitação da diferença e da bizarria, o que constitui um exercício ético de suprema importância, quando nos dispomos a viver em comunidade. O mundo é extenso e diverso. Os comportamentos sociais fundamentam-se na ética da diversidade, ou seja, na aprendizagem de que devo aceitar como legítimo o que não se identifica comigo, desde que seja inócuo.

Mais do que nunca, numa sociedade globalizada mas simultaneamente dilacerada por xenofobias e intolerâncias várias, a leitura de textos literários pode ajudar-nos a sair de nós mesmos, levando-nos aos quatro cantos do mundo. Como ainda nunca tinha acontecido, temos, à nossa disposição, obras traduzidas e de fácil acesso que nos chegam de todos os pontos do planeta. Ao abordar uma obra, oriunda de uma realidade social e cultural muito díspar, podemos olhar para o texto com curiosidade pelo exótico, ou tentar captar na diferença mais conhecimento sobre o outro, sobre o seu «modus vivendi» e sobre o que, na sua essência, compartilha connosco.

A leitura ensaia uma possibilidade de vizinhança que não cede a arrogâncias e a etnocentrismos. A qualidade da leitura coincide com o valor humano do leitor que pode optar pela falácia de irrisão do esquisito ou pelo respeito cúmplice da variedade humana. A leitura cultivará a distância ou a proximidade, consoante a postura do leitor dentro do texto.

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