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Leis e saberes do ofício de alfaiate na época moderna: o caso da cidade de Lisboa setecentista

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

Faculdade de Letras de Lisboa

Departamento de História

MESTRADO EM HISTÓRIA MODERNA

TESE DE MESTRADO

Leis e saberes do ofício de alfaiate na época moderna O caso da cidade de Lisboa setecentista

Orientadora: Prof.ª Doutora Maria de Fátima Reis Mestranda: Maria da Graça de Barros Silva

Aluna n.º 38880

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AGRADECIMENTOS

Apresento aqui os meus agradecimentos à minha orientadora desta tese de mestrado, Prof.ª Doutora Maria de Fátima Reis, pela sua inestimável colaboração quer em relação à orientação do plano deste trabalho quer pelas suas sugestões e leitura crítica do mesmo, assim como à minha mãe que me deu a ideia do tema ao questionar como é que os costureiros trabalhariam para reis e rainhas em épocas passadas. Agradeço também a muitos amigos porque as suas sugestões incentivaram-me a realizar este trabalho.

DEDICATÓRIA

Ao meu pai e à minha mãe que sempre me incentivaram a estudar, estudar sempre e à minha tia que um dia foi uma excelente costureira de profissão bem como a muitos amigos que não cabe aqui referir o nome.

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RESUMO

Durante a época moderna, o ofício de alfaiate revelou-se uma profissão altamente qualificada ao nível do corte e da produção de vestuário masculino e feminino. O grau de perfeição atingido conferiu-lhe um considerável prestígio do ponto de vista social, tornando os alfaiates merecedores de mercês reais.

Analisa-se aqui a realidade de Lisboa, na primeira metade do século XVIII, dando particular destaque à vertente social dos alfaiates do rei, bem como à sua atividade profissional e dissensões no seio do grupo. Tendo os alfaiates assento na Casa dos Vinte e Quatro, órgão este representativo dos mesteirais de Lisboa na Câmara da cidade, será analisado, dada a importância da sua ação. Finalmente, faz-se um apontamento sobre a influência do século XVIII na alta-costura contemporânea.

Palavras chave: alfaiate, Lisboa, Casa dos Vinte Quatro, Nossa Senhora das Candeias e século XVIII.

ABSTRACT

During the modern era, tailoring (tailor craft) showed to be a highly qualified craft as to the cut and construction of clothes for men and women. The level of perfection that was achieved gave the crafts men a considerable fame from de social point of view. Thus, they became deserving of royal mercies.

It is analyzed and presented here a brief study on the reality of Lisbon during the first half of the 18th century considering the social status of the king’s tailors as well as their professional activity. The arguments for and against within the class will be also pointed out.

The origin, importance and action of the House of the Twenty Four as the Lisbon craftsmen representative institution in the Lisbon Municipality will be also shortly analyzed.

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Key words: tailor, Lisbon, House of the Twenty Four, Nossa Senhora das Candeias, the

tailor’s patron saint and 18th century,

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5 INDÍCE ___ Página RESUMO/ABSTRACT 3 1. Introdução 6 1.1 Enquadramento histórico 6 1.2 Objectivos 7

2 – A Casa dos Vinte e Quatro 11 2.1 – Da origem à extinção 11 2.2 – Das confrarias à organização corporativa 21

2.3 – Os alfaiates e sua representação na Casa dos Vinte e Quatro 28 3 – O regimento do ofício e a sua função 30 4 – A aprendizagem e o exercício do ofício de alfaiate 36 4.1 – O juiz do ofício e suas competências 36 4.2 – Da aprendizagem ao exame: os saberes 37 4.3 – O exercício da profissão e a abertura da loja – condições necessárias 55 4.4 – Os deveres 57 5 – A bandeira de Nossa Senhora das Candeias e seus ofícios 58 5.1 – A bandeira, os ofícios e seu significado 58

5.2 – Relação entre a bandeira da corporação e a confraria 65 5.3 - Regimento da bandeira 68 6 – A origem da invocação do culto de Nossa Sr.ª das Candeias 70 7 – A afirmação pública do alfaiate 72

7.1 - Participação na procissão do “Corpus Christi” 72\ 8 – O século XVIII – época de ouro da alfaiataria 80 8.1 – A moda e o vestuário 80 9 – Os alfaiates da cidade de Lisboa no reinado de D. João V e seus privilégios 92

10 – O século XVIII e a alta-costura contemporânea 98

11 – Glossário 100

CONCLUSÃO 101

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1. INTRODUÇÃO

1.1 Enquadramento histórico

Pretendo com o tema deste trabalho fornecer uma visão do que foi a profissão de alfaiate no século XVIII, período denominado, por profissionais atuais, como sendo a época de ouro da alfaiataria. Algumas dificuldades foram encontradas porque a documentação específica sobre o assunto não é muito abundante, mas a aquela de que me servi permitiu-me alcançar o meu objetivo.

Falar da profissão de alfaiate, no século XVIII, é falar duma profissão altamente especializada no que se refere ao saber-fazer porque exige vastos conhecimentos relacionados com a modelagem e confeção de vestuário, traduzindo-se o produto final em beleza, requinte e qualidade com marcas bem visíveis, porque são facilmente observáveis na perfeição dos acabamentos, na forma de cair e de se adaptar ao corpo. São características que não “escapam” ao olhar mais simples e superficial lançado sobre uma peça de vestuário.

Neste sentido, apesar de tantas modificações na moda e nos hábitos de vestir ao longo dos séculos até aos nossos dias, os alfaiates sempre tiveram que satisfazer as exigências dos seus clientes.

Não esquecendo que, na época em análise, se trata de uma produção artesanal, as imagens iconográficas e as peças existentes em museus são bem a prova dessa exigência e da capacidade de um saber-fazer especializado que nos mostra como a alfaiataria era uma profissão possuidora duma eficaz técnica de construção de vestuário e de acabamentos, daí resultando peças com uma adaptação perfeita ao corpo e de uma beleza deslumbrante, se bem que, no período em estudo, predominasse o excesso ornamentativo a nível da dimensão do vestuário feminino.

Este saber-fazer não resultava apenas de uma aprendizagem baseada na experiência adquirida ao longo dos anos, mas sim na aquisição de conhecimentos de geometria, aritmética e de anatomia, ou seja, das proporções humanas. Foi através destes conhecimentos que se desenvolveu a técnica da modelagem e de confeção de peças de vestuário altamente complicadas que se poderão classificar como verdadeiras obras de arte.

Foram estes conhecimentos que permitiram aos alfaiates atingir a excelência e trabalhar para os mais altos representantes da nobreza, como reis e rainhas, tornando-os profissionais não só altamente especializados como excecionalmente privilegiados.

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7 Temática pouco divulgada no que se refere aos saberes do ofício de alfaiate ou seja, às técnicas de modelagem utilizadas no século XVIII, o seu estudo permitirá perceber de que modo os profissionais deste ofício modelavam, cortavam e confecionavam roupas complicadas para satisfazerem as formas ideais que predominavam na época e que nelas encontravam expressão.

As fotos de vestuário e os modelos existentes em museus respondem a esta problemática em termos visuais, mas em termos de construção das peças só os documentos existentes, apesar de escassos, o poderão demonstrar.

1.2 Objetivos

Como objetivo geral pretendo enquadrar esta profissão em termos históricos na sua corporação e no organismo representativo da organização dos mesteres da cidade de Lisboa – a Casa dos Vinte e Quatro - bem como no seu regulamento profissional e na importância social desta profissão. É nas leis que regem cada ofício que encontramos as leis que determinam direitos e deveres dos profissionais, regras de aprendizagem, remunerações, local onde se desenvolve o ofício, instrumentos de trabalho e tudo o que seja específico da profissão, bem como nos saberes que o caracterizam no final do período de aprendizagem.

Os regimentos, segundo Sousa Viterbo, “[…] tem uma parte commum, a parte disciplinar para bem dizer, em que se estatue a maneira de organizar o grémio ou bandeira, e outra parte, differencial, em que se determinam e especializam os requisitos, a que tem de obedecer o official mecanico, quando for examinado na sua profissão. É esta parte que mais nos interessa, porque ahi se apresenta, em alguns casos sufficientemente aclarada, a technica da indústria respectiva, de cujo desenvolvimento se fica fazendo uma ideia bastante exacta.”1

Em termos específicos o objetivo desta pesquisa será demonstrar o saber-fazer dentro da moda e exigências da época, tendo em conta os métodos e materiais utilizados para provar que a alfaiataria é também uma criação artística, sem esquecer que era um ofício ligado às elites do poder e, como já ficou dito, altamente privilegiado.

Por este motivo, o objetivo deste trabalho é compreender, tanto quanto a existência de documentos permitam, de que modo as roupas eram cortadas e confecionadas para irem

1 VITERBO, Sousa, Artes e Artistas em Portugal – Contribuições para a história das artes e industrias portuguesas, Lisboa, Livraria Ferreira, 1892, p. 61.

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8 ao encontro da moda da época, o que se pode verificar em obras de arte, como quadros, estátuas e em peças de vestuário que resistiram ao longo do tempo e se encontram, por vezes, expostas em museus.

Quanto às obras de arte, como fonte de conhecimento, é oportuno ter em conta as palavras de Carl Köhler segundo o qual “[…] as obras de arte nem sempre constituem uma fonte de informação confiável. A imaginação do artista actua sobre elas, complementando e embelezando aspectos da indumentária que lhe são pouco atraentes, e o resultado é que essa imaginação raramente produz um quadro cuja exatidão possa ser tida como absoluta. Isso é principalmente verdadeiro no caso dos grandes mestres […] mas quem iria criticar um Ticiano ou um Rafael por não seguirem fielmente a moda?”2

Isto, significa que quando olhamos para a pintura de um rei, rainha, príncipe ou princesa ou outra personalidade de prestígio social podemos estar olhando para um “melhoramento” da imagem, o que não significa que a fonte seja desvalorizada.

Por isso, no ofício de alfaiate não é só o lado visual que conta. Interessa, portanto, conhecer a vertente relacionada com as técnicas de corte, sendo, por isso, necessário conhecê-los graficamente, ou seja, os moldes dos diversos tipos de vestuário sobre os quais o alfaiate trabalhava.

Falar do ofício de alfaiate na primeira metade do século XVIII impõe também a sua contextualização a nível do estilo da época – o barroco e sua passagem ao rococó. Cabe aqui dizer que o século XVIII foi o século em que o ouro do Brasil começou a chegar a Portugal em grandes remessas, contribuindo de certa forma para o desenvolvimento económico. O longo reinado de D. João V tirou grande benefício das receitas de ouro, diamantes, açúcar e madeiras exóticas do Brasil bem como do tráfico de escravos africanos, o que lhe permitiu criar uma corte onde o luxo e a sumptuosidade foram a marca da época.

Do ponto de vista estético, a arte, no século XVIII, tem uma grandiosidade espetacular em todas as suas manifestações. A folha de ouro recobre as madeiras de qualquer espaço religioso e o azulejo azul, com temas campestres e da história de Portugal, cobre as paredes dos interiores e exteriores de igrejas, palácios, casas senhoriais e

2 KÖHLER, Carl, História do Vestuário, Tradução de Jefferson Luiz Camargo, 2.ª edição, São Paulo Livraria Martins Fontes Editora, Lda., 2001, p. 54.

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9 monumentos. Na arquitectura é de salientar a simetria das fachadas e a monumentalidade. O estilo artístico, entre o barroco e o rococó, é efectivamente o traço da época e caracteriza-se pelo exagero das formas, pela presença de uma grande intensidade de linhas curvas e contrastes entre luz e sombra, expressando um forte dinamismo e movimento. É um estilo facilmente identificável que também está presente no mobiliário, nas luminárias, nas baixelas e porcelanas e, como não poderia deixar de ser, no vestuário masculino e feminino com intenção sumptuária e hierárquica.

Palácios e festas também são testemunho desta sumptuosidade e do luxo setecentista sem esquecer que a pompa também está presente nas solenes procissões do Corpo de Deus, nas quais havia regras a cumprir como a atribuição de espaços e ordenação de personalidades no cortejo de acordo com a sua importância social.

Do ponto de vista social, estamos perante uma organização rígida sujeita a uma hierarquia donde só se saía ou adquiria um novo estatuto de importância por mercê real. É o caso dos alfaiates. Muitos tiveram o privilégio de receber mercês concedidas por D. João V pelos bons serviços prestados na confeção de vestuário altamente sofisticado e exuberante.

D. João V foi um rei extremamente preocupado com o vestuário, sendo um fiel seguidor da moda francesa, mantendo-se atento às suas variações através das informações dos seus embaixadores ou de encomendas feitas a emissários especiais junto da corte de Luís XIV e Luís XV.3

Neste contexto, ser alfaiate era ter uma profissão de prestígio para a qual era necessário ter grande especialização obtida através de longo período de aprendizagem e de um exame comprovativo de competências para o qual se recebia a respetiva carta de aprovação.

O vestuário das elites, nomeadamente da nobreza e do rei, exigia grande especialização tanto no que se refere ao corte e montagem das peças, bem como no que se refere aos acabamentos e riqueza de ornamentos, contribuindo assim para a criação de espetaculares obras de arte no campo da confecção de vestuário.

3 FRANÇA, José Augusto, O Traje império e a sua época 1792-1826, Lisboa, Museu Nacional do Traje, 1992, p.16-17.

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10 O objectivo principal deste trabalho é incidir no estudo das leis e saberes do ofício de alfaiate no século XVIII na cidade de Lisboa, elegendo para observação o reinado de D. João V.

Contudo, falar de ofícios no século XVIII, é falar também de confrarias religiosas porque ofícios e confrarias aparecem indissoluvelmente ligados.

Como era normal na época, os ofícios tinham a sua irmandade religiosa. Cada irmandade tinha o seu santo padroeiro e respetiva bandeira do ofício, sendo habitual a participação dos ofícios em festividades religiosas, como procissões. A participação em procissões conferia mesmo prestígio aos ofícios. No caso do ofício de alfaiate, participar na procissão do Corpus Christi era uma forma de se afirmar publicamente e de promover a sua situação social.

Tendo em conta todos estes aspetos e baseada na documentação localizada, pretendemos dar uma visão deste ofício no reinado de D. João V, na chamada época de ouro da alfaiataria.

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2 – A Casa dos Vinte e Quatro

2.1 – Da origem à extinção

Este organismo, instituído pelo Mestre de Avis, deve o seu nome aos vinte e quatro homens, dois de cada ofício, com assento na Câmara. Desde a sua fundação até à sua extinção estes homens tiveram um importante papel na vida económica da cidade porque foram eles que impuseram um novo ritmo ao desenvolvimento económico e social não só da cidade mas do país também. Contudo, tiveram o seu tempo e a sua função.

Não faria, por isso, muito sentido falar do ofício de alfaiate e da sua incorporação no organismo representativo da organização dos mesteres da cidade de Lisboa sem falar da Casa dos Vinte e Quatro. Cabe então aqui dizer umas palavras, ainda que breves, sobre a origem deste organismo e das organizações corporativas dos mesteres de Lisboa que mais tarde viriam a fazer parte do governo dos negócios da cidade porque até aí a governação da cidade pertencia à assembleia dos homens bons se bem que, de acordo com a opinião de renomados autores, a presença de mesteirais nas reuniões municipais do concelho de Lisboa, se verificasse já nos séculos XIII e XIV, ainda que raramente. Pretende-se, portanto, apresentar uma visão cronológica e fundamentada dos vários acontecimentos significativos que ao longo de alguns séculos levaram à formação da Casa dos Vinte e Quatro, organização representativa dos mesteirais.

Segundo Joaquim Veríssimo Serrão em “[…] 1298 já existe notícia da participação dos mesteres nas reuniões do concelho de Lisboa, embora a comparência não fosse depois regular sem fazerem parte da administração municipal, constituíam uma presença consultiva que o próprio senado tinha vantagem em reconhecer. Assim aconteceu em assembleias dos anos de 1326, 1331, 1345, 1354 e 1356, o que anuncia a crescente importância social […]”4 dos mesteirais.

Também Henrique de Gama Barros nos diz que “[…] já antes, no último quartel do século XIII, quando em casos extraordinários o concelho era chamado com pregão a deliberar, os homens dos mesteres, pelo menos em Lisboa, concorriam também á reunião: assim aconteceu em 1285 por ocasião da avença celebrada entre o rei D. Diniz

4 SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, Estado, Vol. I. Pátria e Nação (1080-1415), Lisboa, Editorial Verbo, 1977, pp. 335-336.

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12 e o concelho. A este acto assistiram alfaiates, cortidores, pelliteiros, sapateiros, correeiros, pescadores e ferreiros.”5

Também Marcelo Caetano nos diz que “Durante toda a primeira dinastia não existe traço documental de qualquer organização corporativa dos mesteres de Lisboa. [mas que] Nalgumas reuniões “[…] do concelho aparece a indicação de terem estado presentes mesteirais. Mas é a título individual. […] Nenhuma prova documental séria até hoje infirmou esta conclusão.”6 Diz-nos ainda este autor que “Para compreender, […], as origens e funções deste organismo, coroa da organização dos mesteres lisboetas, e possivelmente sua matriz, é indispensável conhecer as instituições municipais da cidade, no final do século XIV.”7

O traço de “[…] personalidade colectiva […]”8 para o exercício da autoridade pública e gestão dos interesses duma comunidade medieval de homens livres, pertencentes a um lugar, era uma característica do município medieval.

O órgão de poder para gerir essa colectividade de cidadãos “[…] era a assembleia de cidadãos ou homens bons (concilium) […]”9 cujos juízes ou alvasis eram eleitos por um ano para administrar a justiça, convocar o conselho, executar as suas deliberações e prover aos negócios correntes.

No século XIV, a assembleia de cidadãos era convocada pelos alvasis e reunia sempre que era necessário resolver casos graves, caso contrário os alvasis só convocavam alguns homens bons, o que levou à distinção entre o conselho ou assembleia geral de cidadãos e o colégio dos homens bons10ou notáveis, em regra pequenos proprietários

locais ou ricos mercadores. Os alvasis ou juízes eram coadjuvados por homens bons, em número de três, no desempenho de tarefas administrativas ou vereamento da cidade, dando origem ao cargo de vereador.

Segundo Oliveira Marques os “Cidadãos, também chamados homens bons, gente honrada e gente limpa – porque não trabalhavam com as mãos – formavam uma classe

5 BARROS, Henrique de Gama, História da Administração Publica em Portugal nos séculos XII a XV, Vol. IX, Dir.Torquato de Sousa Soares, 2.ª ed., Lisboa, Ed. Sá da Costa, 1950, p. 299.

6

CAETANO, Marcello, Historia da organização dos mesteres da cidade de Lisboa, separata da revista portuguesa e brasileira, SCIENTIA IVRÍDICA, Tomo III, n.º 39/41, Braga, Janeiro-Junho, 1959, p. 3. 7 Idem, Estudo introdutório à obra de LANGHANS, Franz-Paul, As Corporações dos Ofícios Mecânicos, Subsídios para a sua história, Vol. I, Imprensa Nacional de Lisboa, 1943, p. LIX.

8 Idem, ibidem, p. LIX. 9 Idem, ibidem, p. LIX. 10Idem, ibidem, p. LX.

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13 de proprietários e de mercadores que igualmente sabiam investir na terra parte dos seus lucros. Manobravam a maioria esmagadora dos cargos municipais, estavam representados em cortes e eram os únicos escutados pelo monarca e pelos burocratas […] burgueses.”11

Relativamente à proveniência dos homens bons, estes tanto podiam pertencer aos municípios rurais como aos urbanos.

No caso dos municípios rurais os homens bons eram homens de condição livre que tinham a propriedade da terra. Nos municípios urbanos os homens bons eram membros da pequena nobreza e da burguesia, proprietários das casas e das terras de dentro da cidade e seu termo, letrados, clérigos e ricos mercadores.12

O grupo social dos mesteirais pertencia à plebe, ou seja à arraia miúda e não tinha poder de decisão sobre os negócios do governo económico da cidade. Contudo, os mesteirais cresceram em número e desenvolvimento o que os incentivou a quererem participar no governo municipal.13

“No século XIV os artesãos ou mesteirais ganham uma nova força no quadro social português. Fabricando objectos para uso da população, ou servindo as necessidades da vida quotidiana, a sua existência testemunha a mudança operada em sociedades de tipo agrícola que, na sua crescente urbanização, contraíram novos laços de dependência com os estratos profissionais. Embora a carência de fontes não permita estabelecer a orgânica dos mesteres, ligavam-se à actividade ramos com interesse para a alimentação (carniceiros), a construção (pedreiros, carpinteiros, taipadores), o vestuário (alfaiates, sapateiros, jubiteiros, soqueiros, chapineiros),”14

Poderá então perguntar-se porque participavam os mesteirais nas reuniões da Câmara, apesar desta participação não ser frequente?

A presença de mesteirais nas reuniões municipais antes de 1384 tem uma explicação. Segundo Maria Teresa Campos Rodrigues a participação de mesteirais nas “[…] assembleias municipais, quer nos fins do século XIII, quer no século XIV, integra-se no antigo costume de convocar a generalidade dos vizinhos para a resolução de assuntos

11 MARQUES, A. H. de Oliveira, História de Portugal, Vol. I, Lisboa, Palas Editores, 1974, p. 259. 12 CAETANO, Marcello, in LANGHANS, Franz-Paul, ob. cit., pp. LX-LXI.

13

Idem, ibidem, p. LXI. 14

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14 graves.”15 Significa isto, que o direito de participar nas reuniões do município se baseava na tradição.

Percebe-se, portanto, que os mesteirais eram um grupo social com importância para a sociedade, daí justificar-se o facto de quererem participar no seu governo. Todavia, encontraram sempre a oposição dos homens bons à sua participação no governo municipal.

No século XIV, esta pretensão, apesar da resistência dos homens bons do governo municipal, foi ultrapassada pelo apoio decisivo que deram à causa do Mestre de Avis, sendo que, em troca deste apoio, receberam a Carta de privilégios de 1 de Abril de 1384 que garantiu aos homens dos mesteres a participação efetiva no governo da cidade. “Essa carta […] é o ponto de partida da organização corporativa dos mesteres lisboetas. Não que a institua ou consagre […] apenas determina que em certos casos a vereação não pudesse tomar deliberações sem a presença e o acordo da maioria de votos de uma assembleia constituída por “dois homens bons de cada mester” [ou seja] dois homens de cada profissão […] sem que tal inculque a existência anterior de organismos que a representassem. Esta atitude do […] Mestre de Avis, ao determinar a presença dos representantes das artes e ofícios nos principais actos do Município, pôs termo ao carácter oligárquico que a administração municipal tinha assumido e permitiu às novas forças económicas da cidade terem voz e voto nas matérias que directamente as interessavam. Essa foi a grande conquista obtida pelos mesteirais na revolução de 1384.”16

É Fernão Lopes que, na sua crónica de D. João I, nos diz que depois do Mestre de Avis ter sido aclamado regedor e defensor do reino deu início à atribuição de diversos cargos a certas pessoas para o seu conselho, desembargadores do paço, vedores da fazenda, tesoureiro da moeda, corregedor e almoxarife das casas e tendas.17 “E foi logo ordenado que na cidade vinte e quatro homens, dois de cada mester, tivessem cárrego de estar na

15 RODRIGUES, Maria Teresa Campos, Aspectos da Administração Municipal de Lisboa no século XV, Separata dos números 101 a 109 da Revista Municipal, Lisboa, 1962, p. 63.

16 CAETANO, Marcello, ob. cit., pp. 3-4. 17

FERNÃO LOPES, História de uma revolução, Primeira parte da Crónica de El-Rei D. João I de Boa Memória, Lisboa, Europa-América, 1977, p. 133.

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15 Câmara pera toda a cousa que se houvesse de ordenar por bom regimento e serviço do Mestre, fosse com seu acordo deles.”18

Semelhante opinião tem Maria Teresa Campos Rodrigues ao dizer que “A carta de 1384 legaliza a interferência dos mesteres nos negócios públicos e estabelece-a permanente e indispensável em relação a certas matérias, passando os seus delegados a fazer parte integrante da câmara. Lisboa abriu caminho ao acesso da “classe artesanal” à administração concelhia.”19

“O papel dos mesteres durante o cerco de Lisboa e na fase posterior da crise da independência contribuiu para a vitória do Mestre de Avis. Não admira, pois, que a criação de um concelho de mesteirais, embrião da futura Casa dos Vinte e Quatro, fosse o coroamento dessa ajuda e o início de uma era de desenvolvimento no labor dos oficiais mecânicos. Qual a origem da instituição? Sem dúvida, a carta de 1 de Abril de 1384 que satisfazia vários pedidos dos mesteres: carta dos mesteres.”20

Percebe-se, devido à convergência de opiniões fundamentadas em documentação, que esta carta está na origem da organização corporativa dos mesteres lisboetas porque determinava, que em certos casos, a vereação não pudesse tomar decisões sem a presença duma maioria de votos da assembleia onde estivessem presentes dois homens bons de cada mester, o que significa que dois homens de cada mester deveriam ser sempre convocados. No entanto, isto não significava que existissem organizações de mesteirais.21 Nas palavras de Veríssimo Serrão “[…] foi preciso aguardar a chegada da nova dinastia para, como resultado do apoio concedido para a Revolução, os mesteres recebessem leis próprias – não ainda regimentos -, a regular a sua estrutura e funcionamento. Só a partir de D. João I se pode falar de organização corporativa. Por todo o Reino se levantam os primeiros núcleos da organização”22 com a intervenção de D. João I a conceder privilégios aos mesteirais.

Efetivamente, D. João, Mestre de Avis e depois como D. João I, contribuiu para uma nova relação de forças económicas e sociais. Além disso, anuindo a uma solicitação da

18 Idem, Ibidem, p. 133-134. 19

RODRIGUES, Maria Teresa Campos, ob. cit., p. 63. 20

SERRÃO, Joaquim Veríssimo, ob. cit., pp. 338-339. 21

CAETANO, Marcello, ob. cit., p. 4. 22

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16 Câmara de Lisboa, determinou que cada mester se agrupasse em ruas próprias23. Foi a lei do arruamento resultante duma decisão régia e camarária e não de nenhum movimento associativo porque os mesteirais “[…] montavam as suas tendas ou oficinas em arruamentos próprios, de início por obediência ao interesse profissional e, a partir da segunda metade do século XIV, por exigência dos concelhos.”24 Contudo, são apenas os primeiros passos que se vão delineando em direção à formação da organização corporativa dos mesteirais.

Quanto ao número de representantes dos mesteirais, Fernão Lopes faz referência ao número de vinte e quatro que é confirmada pela primeira referência documental conhecida e da qual consta uma queixa dos mesteirais ao Infante D. Duarte, regente do reino, na qual explicavam que era costume estarem presentes vinte e quatro, isto porque se argumentava contra a presença dos mesteres em todas as deliberações nas reuniões da Câmara. Estes “[…] vinte e quatro intervinham todos, ao princípio, em certos actos municipais e estavam por turnos, aos grupos de quatro ou seis designados, conforme as conveniências, semanal ou mensalmente, presentes às reuniões da vereação.”25

Esta situação levanta a questão do número de representantes estar fixado em vinte e quatro porque, segundo Marcello Caetano, ainda não se conseguiu demonstrar que entre 1384 e 1433 houvesse qualquer organismo profissional instituído em Lisboa.

Ao longo dos reinados seguintes surgem alterações a nível do número de representantes dos mesteirais nas reuniões municipais. Marcello Caetano sugere que a fixação do número de vinte e quatro terá possivelmente origem em outros colégios semelhantes noutras cidades europeias: vinte e quatro aldermen em Londres, veinticuatros em muitas cidades da Andaluzia e Castela e em França vinte e quatro échevins.26

Em 1487, por determinação régia, cada mester deveria ter dois representantes ou deputados com a função de juízes para questões de caráter económico e profissional, os quais seriam nomeados pelos concelhos. Apesar de tudo, e segundo Oliveira Marques, continuou a verificar-se, ao longo do século XV uma “[…] luta entre cidadãos e a classe inferior dos artífices.”27 Esta situação é confirmada porque pelo menos “Nas Cortes de

23

CAETANO, Marcello, ob. cit., p. 3-4.

24 SERRÃO, Joaquim Veríssimo, ob. cit., p. 336.

25 CAETANO, Marcello in LANGHANS, Franz-Paul, ob. cit., Vol. I. p. LXIX. 26 CAETANO, Marcello, ob. cit., p.6.

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17 Évora de 1481-82 os representantes dos concelhos protestam contra a participação dos mesteres no governo dos municípios, ao que o rei responde que os mesteirais só terão voto em Lisboa.”28

Por estes motivos os mesteirais continuariam a ver os seus privilégios reduzidos nos reinados seguintes até a situação mudar no reinado de D. João II e retomar a sua antiga posição com D. Manuel I. No reinado de D. Duarte restringe-se a intervenção a quatro procuradores. Com D. Afonso V determinou-se que os quatro procuradores servissem anualmente em 1466. Os vinte e quatro passam então a reunir-se uma vez por ano para fazer a eleição ou quando os procuradores os convocassem para lhes expor algum negócio de maior monta. D. João II, por carta régia de 29 de Março de 1484, impôs uma multa de cem reis aplicável a cada um dos vinte e quatro que não comparecesse à eleição dos procuradores dos mesteres. Esta é a origem do juiz dos vinte e quatro, mais tarde denominado juiz do povo em 1620. 29

A aplicação desta multa pela não comparência dos mesteres evidencia uma certa negligência por parte destes em proceder à eleição dos seus procuradores e que irá ter um efeito positivo porque “Assim vingou e se consolidou a instituição do MESTRE DE AVIS.”30

No reinado de D. Manuel I os mesteirais recuperam a sua influência. Por carta régia de 4 de Abril de 1499, o rei determinou que só os delegados dos mesteres representassem os interesses do povo nas reuniões municipais, tendo determinado que “Nas assembleias do concelho, […], só os vinte e quatro dos mesteres tinham voto como representantes do povo, ainda que outros desta classe a elas assistissem.”31

“A função dos vinte e quatro surge, pois, mais activa a partir do final do século XV, facto que se deve ligar, […] ao incremento da vida económica urbana provocado pelas navegações marítimas, e que é acompanhado pela regulamentação do exercício profissional com a organização corporativa dos ofícios. O aparecimento de novas e frequentes questões de interesse profissional na administração municipal levou os

28 CAETANO, Marcello, ob. cit., p. 6. 29 Idem, ibidem, p. 6.

30 CAETANO, Marcello in LANGHANS, ob. cit. p. LXIX. 31 Idem, ibidem, pp. LXX-LXXI.

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18 ofícios a redobrar de atenção às deliberações da Câmara. Os vinte e quatro teriam sido convidados a intervir mais assiduamente.”32

A partir do reinado de D. Manuel I o mandato dos procuradores dos mesteres na Câmara de Lisboa inicialmente representativo dos interesses dos mesteirais, assume um caráter imperativo, ou seja, em certos casos não podiam tomar decisões sem consultar os vinte e quatro na medida em que o Juiz do povo tinha poderes para embargar essas decisões porque o povo “havia de ser ouvido”33 primeiro.

Os vinte e quatro passaram a reunir-se não só para a eleição dos procuradores dos mesteres, dos procuradores da Cidade às cortes e do seu juiz, mas sempre que este os convocasse para tratar de assuntos que os procuradores dos mesteres tivessem de propor na Câmara.34 No século XVI, os vinte e quatro passam a ter funções administrativas na Câmara da cidade, junto da vereação municipal e a partir desta situação o nome de Casa dos Vinte e quatro começa a consolidar-se.

A partir desta data todos os ofícios pretendem estar representados na Casa dos Vinte e quatro. “O desenvolvimento económico da cidade, originando novas profissões deu lugar a conflitos entre os antigos ofícios representados nos 24 e os novos, privados de representação. Em 1539 havia 27 deputados na Casa dos Vinte e Quatro! E por motivo de novo conflito entre dois ofícios, D. João III, foi forçado a intervir nascendo daí a nova orgânica da asa, outorgada por Carta régia de 27 de Agosto de 1539”35, determinando quais as corporações ou ofícios que tinham direito a ter representação na Casa dos Vinte e Quatro.

Ao longo do século XVI e XVII a Casa dos Vinte e Quatro passou a ser a “[…] única instituição representativa da cidade junto da vereação, cujos presidente e vereadores eram desde 1572 de nomeação régia, [aumentando assim] o prestígio político e social deste organismo.”36

32 Idem, ibidem, p. LXXI. 33

OLIVEIRA, Eduardo Freire de, Elementos para a História do Município de Lisboa, Vol. IV, Lisboa, Publicação da Câmara Municipal de Lisboa, 1942, p.13.

34 CAETANO, Marcello in LANGHANS, Franz-Paul, ob. cit., p. LXXII. 35

Idem, Historia da organização dos mesteres da cidade de Lisboa, p.11. 36Idem, in LANGHANS, Franz-Paul, p. LXXIII.

(19)

19 A Casa dos Vinte e Quatro atingiu o seu apogeu no reinado de D. João V, mas toda a documentação foi destruída pelo terramoto de 1755. Em 1771 a Casa dos Vinte e Quatro sofreu nova reforma e assim subsistiu até ser extinta a 7 de Maio de 1834.37

(20)

20

Cronologia da Casa dos Vinte e Quatro

38

1383 – O MESTRE DE AVIS, Regedor e defensor do Reino, ordena que vinte e quatro

homens, dois de cada mester, participem do governo municipal da cidade.

1384 – São regulados, por carta régia, os termos precisos da intervenção dos vinte e

quatro no governo municipal.

1434 – D. DUARTE fixa em quatro o número dos homens dos mesteres que representam

os vinte e quatro em Câmara.

1466 – D. AFONSO V determina que os quatro procuradores dos mesteres sirvam anualmente, e não aos meses ou às semanas.

1484 – D. JOÃO II manda que os vinte e quatro elejam um que os convoque e lhes

aplique multa quando faltem (juiz dos vinte e quatro, no século XVII, juiz do povo).

1489 – Data do regimento do ofício dos borzeguieiros e seus anexos.

1492 – Fundação do Hospital Real de Todos-os-Santos, em que foram incorporados os

hospitais dos mesteres.

1499 – D. MANUEL determina que só os vinte e quatro tenham voto, pelo povo, nas

assembleias municipais.

1506 – Extinção dos vinte e quatro e procuradores dos mesteres.

1508 – Restauração dos vinte e quatro e dos procuradores dos mesteres.

1539 – D. JOÃO III reorganiza as corporações ou ofícios que elegem deputados à instituição já então denominada “Casa dos Vinte e Quatro”.

1550 – Aos quatro procuradores dos mesteres é permitido usar varas vermelhas com as

insígnias da cidade.

+1550 – Organização regular das confrarias ou irmandades dos ofícios.

1572 – Reforma dos regimentos dos ofícios mecânicos e sua compilação por DUARTE

NUNES DE LIÃO.

+ 1620 – O juiz da Casa dos Vinte e Quatro toma a designação de “juiz do povo”.

1755 – Por ocasião do terramoto arde o Arquivo da Casa dos Vinte e Quatro, instalada

no Hospital de Todos-os-Santos.

1767 – É eleito juiz do povo o alfaiate FILIPE DE CAMPOS. Procede-se à reconstituição

do Arquivo da Casa. Começa a grande reforma dos regimentos dos ofícios.

1771 – D. JOSÉ I reorganiza as bandeiras e ofícios e sua representação na Casa dos

Vinte e Quatro.

1791 – Últimos regimentos reformados do movimento renovador iniciado em 1767. 1834 – Por decreto de 7 de Maio, do DUQUE DE BRAGANÇA, referendado pelo Ministro BENTO PEREIRA DO CARMO, foram extintos os ofícios, bandeiras, Casa dos

Vinte e Quatro, procuradores dos mesteres e juiz do povo. Os Vinte e Quatro tinham, então, 450 anos de existência.

(21)

21

2.2 – Das confrarias à organização corporativa

Como já ficou dito, ao longo da primeira dinastia, os mesteirais não tinham organização representativa, por isso a sua atividade dependia da legislação régia e das deliberações camarárias ou posturas aplicadas pelos almotacés, daí que só participassem esporadicamente nas reuniões do concelho da cidade de Lisboa.

Os salários e os preços dos artigos que os artesãos produziam eram atribuídos e fixados pelas câmaras, assim como os arruamentos para maior facilidade de fiscalização. De acordo com Marcello Caetano “[…] era aos concelhos que competia fixar anualmente os preços por que haviam de ser vendidos os artigos mais necessários ao consumo local e prestados os serviços dos oficiais das artes e ofícios.”39

Segundo o mesmo autor a confraria foi a primeira forma de associação profissional dos mesteres no século XV para a instituição e manutenção de hospitais com o objetivo de dar acolhimento a antigos mesteirais impedidos de trabalhar pela idade ou pela doença.40

Nas palavras de António Cruz, a confraria “[…] era uma associação voluntária em que se agrupavam os irmãos para um auxílio mútuo, tanto no material como no espiritual.”41 Estas instituições religiosas regiam-se por um compromisso que não era mais do que a vontade dos irmãos,42 sendo as decisões da confraria tomadas em reunião numa dependência do hospital – capela ou casa do despacho – e, caso não houvesse órgãos dirigentes cabia à mesa do hospital convocar e orientar o ofício.43

Cerca de 1492 os hospitais das confrarias concentravam-se no Hospital Real de Todos os Santos, havendo notícia da existência, entre outros, de um hospital de alfaiates.44 Contudo, apesar de se associarem voluntariamente para o referido auxílio, a afinidade profissional também teve influência no agrupamento de ofícios sob compromisso.

39 CAETANO, Marcello, Historia da organização dos mesteres da cidade de Lisboa, p. 8. 40 Idem, ibidem, p. 7.

41 CRUZ, António, “Confraria”, Dicionário de História de Portugal, Dir. Joel Serrão, Vol. I, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1963, p. 667-668.

42 Idem, ibidem,, pp. 667-668. 43

CAETANO, Marcelo, Historia da organização dos mesteres da cidade de Lisboa, p. 7. 44 Idem, ibidem, p. 8.

(22)

22 Segundo António Cruz, deste ato voluntário teriam surgido as primeiras autoridades corporativas e a observância do arruamento obrigatório.

O primeiro regulamento a surgir foi o dos sapateiros e curtidores o que significou passar da confraria à organização corporativa, ou seja “[…] passar da simples solidariedade assistencial à consideração de interesses profissionais […]”45 com a aprovação de regimentos sob a disciplina do ofício.

Este regulamento dos sapateiros e curtidores da cidade de Lisboa foi aprovado, fazendo referência às condições de trabalho, preços e recrutamento de mão-de-obra.

Nesta fase, a organização corporativa começa a definir-se, conferindo o direito de participação dos mesteirais nas decisões dos negócios da cidade.

Em 1487, por determinação régia, como já foi dito, cada mester deveria ter dois representantes ou deputados com a função de juízes para questões de carácter económico e profissional, os quais seriam nomeados pelos concelhos.

Nos começos do século XVI estavam regulamentados praticamente todos os ofícios nos mais importantes centros urbanos. Em 1539, na cidade de Lisboa, a maioria dos mesteres estava organizada em catorze corporações.

Cada corporação tinha um santo padroeiro e respectiva bandeira, agrupando vários ofícios encabeçados pelo ofício principal. É o caso do ofício de alfaiate que encabeçava mais três ofícios: calceteiros, carapuceiros e algibebes46 e pertencia à irmandade de Nossa Senhora das Candeias, padroeira dos alfaiates47 com capela privativa na Igreja de S. Julião. Já no século XV, os alfaiates tinham construído um hospital próprio, que veio depois a ser integrado, em 1501, no Hospital Real de Todos os Santos.

Convém salientar que as confrarias se tornaram instituições muito poderosas e importantes, tanto no que se refere à consolidação da crença religiosa, como no que se refere à angariação de fundos e à obrigatoriedade dos ofícios continuarem agregados às suas confrarias porque, apesar da organização corporativa ser já uma realidade, os ofícios tinham nas confrarias as suas raízes e estas tinham regras que deveriam ser cumpridas pelos ofícios, caso contrário estariam sujeitos a penas.

45Idem, ibidem, p. 8. 46Idem, ibidem, p. 12. 47Idem, ibidem, p. 13.

(23)

23 Nos quarenta e um capítulos que compõem o livro sobre o Compromisso da irmandade

de Nossa Senhora das Candeias e Santo Homem, constata-se que a irmandade era dotada de uma organização administrativa meticulosa, abarcando assuntos de ordem religiosa, de caridade, de tesouraria, de fiscalização dos ofícios e, finalmente, de ordem social.

Através da leitura de alguns capítulos deste documento fica claro que as confrarias sabiam gerir muito bem os seus interesses quer de ordem económica, quer de ordem social e ideológica.

.No proémio desta obra percebe-se que o principal objetivo da confraria é o culto e “[…] a honrra que sedá aMay e aos Servos […]”.48

A título de exemplo e de acordo com o capítulo 25, paragrafo 1.º, do Compromisso da

irmandade de Nossa Senhora das Candeias e Santo Homem, o juiz da bandeira, a mandato do juiz do povo, tinha que proceder à eleição de um irmão para a Casa dos Vinte e Quatro, de acordo com as regras do regimento e costumes, e por isso, todo o irmão que não votasse nele teria de pagar uma arroba de cera para Nossa Senhora. Além disso, o juiz teria de pagar uma esmola à irmandade49 o que prova a dependência da confraria.

O capítulo 26, parágrafo 1, faz referência à obrigatoriedade dos irmãos da confraria contribuírem com esmolas para socorrer irmãos pobres que delas necessitassem para se alimentarem, por motivos de doença ou ainda por dívidas contraídas.50

No capítulo 27, paragrafo 1, do mesmo compromisso determina-se que todos os examinados do ofício só pudessem receber a carta de examinação depois de fazerem “[…] assento de irmãos à Menza.”51

Portanto, o oficial examinado estava dependente do seu registo na confraria para poder obter a carta de examinação que lhe seria entregue pela mesa da confraria. Mas casos

48ANTT, Ministério do Reino, Compromisso da irmandade de N. Snr.ª das Candeyas, e Santo Homem bom, cita na parochial Igreja de Sam Julião desta Cidade de Lisboa. Livro 503.

49Ibidem, fl. 33. 50Ibidem, fl. 34. 51Ibidem, fl. 34v

(24)

24 havia em que esse registo não acontecia o que poderia incorrer numa multa ao escrivão geral da confraria.

No capítulo 29, parágrafo 1.º, a confraria queixa-se de não ter dinheiro porque, sendo a confraria composta somente por pessoas do ofício, se os recentemente examinados “[…] não virem fazer asst.º de Irmaos desta Menza, deque resulta grande prejuízo anossa Irmandade pella falta das esmolas p.ª se acudir ao culto de N. Snr.ª, por ser devido esta falta do Escrivão Geral do Officio entregar as Cartas dos Novos examinados, sem estes virem fazer asento de Irmaos. Ordenamos q todo o Irmao que da qui em diante servir de Escrivão Geral, não entregue as cartas de exame aos novos examinados, senão em Menza e sefizer o contrario pagará huma aroba de sera por cada hum p.ª N. Sr.ª […]52 Segundo o capítulo 30, parágrafo 1, os irmãos perturbadores dos lugares da mesa da irmandade e menos devotos do serviço de Nossa Senhora poderiam ser riscados.53

Conforme o capítulo 33, parágrafo 1.º, quem ainda só estivesse na categoria profissional de aprendiz do ofício teria de pagar "[…] p.ª o Cofre de N.Sr.ª mil Duzentos reis, os quais o Mestre estará obrigado aentregar Logo em Menza […]”54 e caso não o faça será logo pinhorado nos termos do capítulo 23 pela quantia estipulada.

O parágrafo 2.º deste capítulo determina que nenhum mestre “[poderá insinar aprendis que seja Negro, Molato, o Muxita, econstando q algum ensina semilhantes aprendizes o Juiz do Officio os fará notificar p.ª q os não ensinem ainda q seja seu escravo, e qdo asim o não fação serão condenados em huma arroba de Sera pella qual serão pinhorados na forma declarada errezidindo selhe dobrará acondemnação tantas vezes, qtas rezidirem […]”55

Percebe-se, pela breve leitura destes artigos do compromisso, que as confrarias tiveram um grande peso na sociedade moderna porque “[…] participaram na assistência espiritual e material às populações e contribuíram para o fortalecimento da vivência do catolicismo, através da orientação doutrinal dos fiéis, […] da prática da caridade e de outras actividades devocionais e piedosas, […]. As confrarias permitiram ainda maiores oportunidades de exercício do poder ao nível local, foram palco de solidariedades e de

52Ibidem, fl. 36. 53Ibidem, fl. 36v. 54Ibidem, fl. 39-39v. 55Ibidem, fl. 39v.

(25)

25 conflituosidades com poderes e organismos concorrentes e tiveram crescente importância no crédito às actividades económicas, através do empréstimo de dinheiro a juros.”56

A xilogravura da figura 1, a seguir, pertencente a um documento da Irmandade de Nossa Senhora da Purificação do Real Convento de S. Francisco da Cidade57, datado do século XIX, contém a minuta dum modelo de texto relacionado com a petição destinada a alguém para, sob compromisso da Irmandade, ser admitido como irmão da referida irmandade com a promessa de cumprir tudo aquilo que lhe for exigido, sem recusar. Como se pode ver do texto, apesar de já ser datado do século XIX, com data imprecisa, percebe-se que no que se refere a um certo número de exigências estas permaneceram iguais, ou seja, desde a Idade Média até ao século XIX. Reproduz-se a seguir o texto do referido documento.

“Juíz e mais Irmãos da Mesa da Real Irmandade de Nossa Senhora da Purificação, Santo António e Santo Amaro, sita no Real Convento de S. Francisco da Cidade e da Santa Província de Portugal. Fazemos saber que a esta Meza fez Petição______________________________________________________________ morador________________________________________Freguesia______________________________ para que o admitissimos por nosso Irmão, e procedendo ás informações que dispõe o nosso Compromisso foi eceito aos_____ dias do mez de__________________ do anno de 18____ de que se lhes fez o seu assento no Livro_______ das entradas a folhas_____ que está na nossa Secretaria em poder do Irmão Secretario; o qual prometteu de guardar e cumprir as obrigações do nosso Compromisso, e de não faltar a acompanhar os Irmãos defuntos quando para isso tenha recado, e em vir á Meza todas as vezes que por ella for chamado, e ás eleições das Mezas novas, acceitando as ocupações que n’ella lhe derem, sem repugnância, e a tudo o mais que pela mesma lhe for mandado, pelo que fica participando de todas as Graças e Indulgências, que a esta Real Irmandade são concedidas pelo Summo Pontifice, e de todos os Exercícios Espirituaes d’ella. E pedimos, e recommendamos a todos os nossos Irmãos presentes e futuros, e reconheçam por Irmão e o admittam a todos os actos da Irmandade, tratando-o com Caridade e amor fraternal: em fé de que se lhes mandou passar a presente Patente, assignada pelo Primeiro Assistente, Secretario, Procurador da Irmandade, Procurador da Meza e Thesoureiro, e sellada com o sello da Irmandade, a qual nos será apresentada por seu fallecimento ou de sua mulher tendo-o esta habilitada para se lhes mandarem fazer os seus suffragios que são cinco Missas por si e cinco por sua mulher, andando para isso corrente dos seus annuaes, e todas as vezes que na Meza tiver algum requerimento, ou quando haja de se ausentar para fora da terra por mais de um anno o fará presente a esta Meza para assim se saber da sua exitencia. Dada em Meza aos_____ de _____________ de 18 ___.

O 1.º Assistente Juiz O 1.º Secretário da Meza _________________________________ _________________________________ O Procurador da Irmandade O Thesoureiro O Procurador da Meza ________________________________ __________________ ____________________________”

56 PENTEADO, Pedro, “Confrarias portuguesas da época moderna: problemas, resultados e tendências da investigação”, Lusitania Sacra, Revista do Centro de Estudos de História Religiosa, Universidade Católica Portuguesa, 2.ª série, Tomo VII, Confrarias, Religiosidade e Sociabilidade: sécs XV a XVIII Lisboa, 1995, pp. 15-16.

(26)

26 Figura 1 – Xilogravura de Nossa Senhora da Purificação de S. Francisco da Cidade

também conhecida por Nossa Senhora das Candeias

As imagens de Nossa Senhora da Purificação da figura 2 que constam da coleção de gravuras da Sociedade Martins Sarmento, situada em Guimarães, são bem ilustrativas do sentimento de devoção que caracterizava a mentalidade da época e se as compararmos com a imagem da

(27)

27 figura 1 verifica-se que são todas diferentes o que significa que cada autor construía a sua própria imagem de acordo com a sua devoção e o seu gosto decorativo.

Imagem de Nossa Senhora da Purificação com o Menino ao colo, ambos coroados, 1765

Inscrição: Prodigiosa Imagem de N. S.ª da Purificação q./

se venera na Igreja de S. Ioão Bautista de Runa/ O E.mº S.r Card. Patriarcha concede 40 dias de Indulg.ª a q.m diante desta/ Imag. rezar de joelhos/ huma Av. Mª.

Nossa Senhora da Purificação

Imagem de Nossa Senhora da Purificação com o Menino no braço direito, e na mão esquerda uma vela acesa. Aos seus pés vários Anjos. Séc. XVIII

Gravador: Januário António Xavier Autor: Desconhecido

Inscrição: N. Snr.ª/ da Purificação/ Sita No Real

Conv.tº de S. Pr.cº da Cidad./ O Em.mº Sn.r Card. Patriarcha concede 100 dias/ de Indulgencia atoda apessoa q. diante/ desta Imagem Rezar Eua Manifi-/ca oa Salve _ Rainha.

Figura 2 – Imagens de Nossa Senhora da Purificação58

(28)

28

2.3 - Os alfaiates e sua representação na Casa dos Vinte e Quatro

Antes de falar da representação dos alfaiates na Casa dos Vinte e Quatro será oportuno fazer referência, em traços largos, a alguns momentos significativos na história destes mesteirais para compreender a sua importância para além da atividade profissional. Segundo o historiador José Mattoso, em relação ao mester de alfaiate a mais antiga referência conhecida entre nós sobre este ofício data do século XIII. O nome está ainda associado à localidade de Alfaiates, na Beira Baixa. Trata-se do alfaiate Petrus Petri Alfayate que residia em Portel.

Também José Leite de Vasconcelos nos diz que “O exercício de ofícios mecânicos constituía um dos modos de vida mais vulgares entre os Judeus. Tendo em conta o que a tradição nos ensina e as informações documentais e literárias que reunimos, podemos afirmar que foi a profissão de alfaiate a que mais professaram na nossa Idade Média, durante os séculos XIV e XV. Gama Barros conclui, por leitura de uma lei de 9 de Novembro de 1366 (D. Pedro I), que esse ofício era, então, o que em Lisboa ocupava maior número de Israelitas. Entre os vários mesteres a que nos séculos XIV e XV se entregavam os Judeus de Évora figura esse. O alfaiate de D. Afonso V era um hebreu – mestre Latão -, e o de D. João II outro – mestre Abraão.”59

Conforme já atrás foi dito, há notícia da presença de alfaiates em reuniões do concelho em 1285.

Contudo, a presença de alfaiates também se manifestou em momentos de tensão social como por exemplo “[…] ao longo da década de 1370, em que participaram sobretudo mesteirais (alfaiates, sapateiros, correeiros…), tendo como causa próxima o indesejado casamento de D. Fernando com Leonor Teles, […] de acordo com as referências de Fernão Lopes na crónica destes reinado.”60

Em relação ao casamento do rei há a salientar, por exemplo, o caso particular protagonizado pelo alfaiate Fernão Vasques, citado por Fernão Lopes, que à frente de 3.000 mesteirais de todos os ofícios se manifestou contra este casamento, em 1371, acabando por ser preso e executado por ordem de D. Leonor.

59 VASCONCELOS, Dr. J. Leite de, Etnografia Portuguesa, Vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1958, pp.132-133.

60 SOUSA, Bernardo Vasconcelos, in História de Portugal, coordenação Rui Ramos, 3.ª ed., Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010, p. 130.

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29 Outro momento significativo da intervenção dos alfaiates na vida política do país, foi durante o apoio dado ao Mestre de Avis, num levantamento popular, contra os grandes da terra em Évora, para tomada do castelo, no qual teve protagonismo o alfaiate Vincente Anes.61

Cerca de 1492 também há notícia de um hospital de alfaiates situado no Hospital Real de Todos os Santos.

Em 1639 os alfaiates e algibebes foram incorporados na Casa dos Vinte e Quatro. Outro acontecimento marcante aconteceu na segunda metade do século XVIII por volta de 1767 no qual os alfaiates se destacaram com a eleição do alfaiate Filipe Rodrigues de Campos para juiz do povo, cuja ação foi determinante na reforma dos regimentos e da própria Casa dos Vinte e Quatro.

Os ofícios eram, pois, a entidade corporativa dotada de regimento com as normas de funcionamento dos mesmos.

Na cidade de Lisboa, muitos deles, por volta de 1570, ainda se encontravam desorganizados. Por ordem da Câmara, o licenciado Duarte Nunes de Leão procedeu à reforma dos existentes e dotou de regimento as profissões que ainda não tinham, dando origem ao Livro dos regimentos dos oficiais mecânicos de 1572, regulamentando 104 profissões, em 80 capítulos.62

Com exceção de algumas alterações e aditamentos ou alguns novos que apareceram, foram estes regimentos que regularam a atividade corporativa até 1767.

Sobre a representação dos alfaiates na Casa dos Vinte e Quatro há realmente a destacar, nesta data, a figura deste Juiz do Povo, e da sua obra pois, por iniciativa sua, “[…] procedeu-se a uma profunda reforma, destinada a rever a importância das profissões que, nalguns casos, tinham decaído ou outras que tinham progredido com os tempos, revigorando desta forma a vida corporativa. Então foram redigidos novos regimentos, em que se procurou conservar dos antecedentes quanto havia de essencial, mas actualizando a sua forma e remoçando o seu espírito.”63

61 LOPES, Fernão, ob. cit., p. 165.

62 CAETANO, Marcello, ob. cit., pp. 13-14. 63 Idem, ibidem, p. 14.

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30

3. O regimento do ofício e a sua função

Figura 364

O regimento era o documento que regulava a vida corporativa e a vida económica e social dos centros urbanos. Diz-nos Marcello Caetano, que “Cada profissão era regida

64 Imagem da capa do Livro dos Regimentos dos Officiaes mecânicos da Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Lixboa, prefácio do Dr. Virgílio Correia, Imprensa da Universidade, 1926, p. XX.

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31 por leis próprias aplicadas por autoridades próprias sujeitas à fiscalização e superintendência das autoridades municipais. O regulamento interno da profissão referia-se ao conhecimento do próprio ofício, à moral social, à disciplina interna ao exame dos candidatos a mestres, à instituição das autoridades e aos deveres. Eis, fundamentalmente, a matéria do regimento do ofício.”65

Também nas palavras de António Cruz, o regimento era um documento que fixava “[…] as regras orientadoras do desempenho de uma profissão e às quais ficavam obrigados os mesteirais respectivos, em consequência da aprovação dada pela coroa ou pelo senado municipal.”66, institucionalizando a própria corporação ou ofício. Além disso, “[…] prescrevia outros princípios disciplinadores que diziam respeito à ascensão na escala hierárquica do mester e à sua representação.”67

Antes de falar propriamente no regimento do ofício de alfaiate terá cabimento fornecer uma breve panorâmica da evolução da forma como os mesteres organizavam os seus ofícios, até à reforma de 1572 elaborada por Duarte Nunes de Lião.

O mais antigo regimento escrito conhecido é o dos borzeguieiros, sapateiros, chapineiros, soqueiros e curtidores. Reuniam-se no seu hospital para tratar de assuntos profissionais do seu interesse. O funcionamento deste regimento provinha do costume, de normas consuetidinárias, de atos régios e de posturas municipais.

Em Portugal, só no final do século XV começaram a aparecer documentos escritos da vida corporativa. E mesmo antes do último quartel do século XVI só um pequeno número de profissões lisboetas tinha regimento escrito.68

A partir de finais do século XVI a organização dos oficios já aparece bem definida na sua estrutura e na sua função.69 Segundo Marcello Caetano o desenvolvimento económico, o crescimento da população, o impacto dos descobrimentos e o aumento do consumo estimularam a produção de bens necessários. Logo, “A disciplina tradicional ter-se-ia revelado desde então insuficiente. Já não bastava a autoridade paternal dos mestres para impor as regras do ofício.”70, o que parece ser uma explicação para a

65

CAETANO, Marcello, in LANGHANS, Franz-Paul, ob. cit., p. XIII. 66

CRUZ, António, ob. cit., pp. 702-703. 67 Idem, ibidem, p. 703.

68 CAETANO, Marcello, in LANGHANS, Franz-Paul, ob. cit., p. XIII. 69 Idem, ibidem, Vol. I, p. XIV.

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32 necessidade de reorganizar os ofícios e dotá-los de regimentos em finais do século XVI. Efectivamente, seria “[…] muito difícil dizer qual a organização dos ofícios, antes desta data, tão variável ela era de profissão para profissão.”71

No século XVI, o Licenciado Duarte Nunes de Lião organizou e compilou, em 1572, os regimentos de todos os ofícios, criando, um modelo com uma base comum a todos os ofícios das corporações mantendo, contudo, as regras específicas que regulavam o exercício de cada profissão.72

“De cada regimento novo foi dada uma cópia aos juízes do respectivo ofício, e de todos eles se fêz registo num livro especial do arquivo municipal, o já citado Livro dos Regimentos dos officiaes mecanicos da mui excelente e sempre leal cidade de Lisboa […] Esta data de 1572 marca, portanto, uma época na história das corporações da Cidade. Pode dizer-se que só a partir dela existe uma disciplina jurídica eficaz da vida corporativa.”73

A reforma de Duarte Nunes de Lião incidiu muito mais nos pontos comuns a todos os ofícios do que em aspetos específicos de cada um.

“Cada Regimento, tal como se encontra na colectânea leonina, compreende as indicações referentes ao funcionamento de cada ofício:

Eleição dos corpos gerentes – juízes, compradores, secretário;

Condições de exercício de indústria – abertura de estabelecimentos, condições de exploração, taxas;

Condições de trabalho – examinadores, matéria do exame, graduação e categorias; determinações referentes à produção e processos nela adoptados;

Sanções de caractér monetário, penal e impeditivo de exercícios de direitos.”74 Estas indicações regulamentares, para além de estabelecerem a organização administrativa, visavam fiscalizar o desempenho de cada ofício no que se refere à correta utilização das matérias primas, qualidade dos produtos, eficácia do trabalho e

71 Idem, ibidem, Vol. I, p. XVII. 72Idem, ibidem, Vol. I, p. XIX. 73

Idem, ibidem, Vol. I, p. XX.

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33 defender o produtor e comprador contra fraudes. O cumprimento destas regras era fiscalizado por juízes do ofício e pelas autoridades municipais, sendo que qualquer tipo de incumprimento estava sujeito a penalizações.

Esta reforma dos regimentos de 1572 “[…] abre um período da história da regulamentação dos ofícios que vai até ao terramoto de 1755: período de funcionamento regular das instituições profissionais, durante o qual as regras codificadas por NUNES DE LIÃO vigoraram apenas com as alterações tornadas indispensáveis pelo decurso do

tempo.”75

Neste decurso o acontecimento marcante do século XVIII para a Casa dos Vinte e Quatro foi o terramoto de 1755. Grande parte da documentação desapareceu, causando a desorganização da mesma. As disputas entre os ofícios não se fizeram esperar. Verificou-se então a necessidade de reformar os regimentos.

Em 1766, o Juís do Povo lembrou a necessidade de reformar não só os regimentos em relação às normas de fabrico de todos os ofícios, mas também em relação à organização da Casa dos Vinte e Quatro no que se refere ao equilibrio entre os representantes dos mesteres à Casa que se queixavam de não haver uma representatividade justa. Muitos ofícios foram extintos e outros ainda não tinham tido a oportunidade de se integrarem nas corporações.

Foi ao Juís do Povo, o alfaiate Filipe Rodrigues de Campos, que coube a tarefa de proceder à reforma dos regimentos dos ofícios e da Casa dos Vinte e Quatro. E começou por fazê-la com tal eficácia que lhe foi conferida a recondução do cargo a pedido seu por ter “[…] dado princípio não só á reforma do cartório da mesma Casa, mas também á dos regimentos dos officios mechanicos, e que neste trabalho ia com adeantamento, mostrando-se nelle a sua grande actividade e inteligência.”76

Contudo, Filipe Rodrigues de Campos somente em 1771 veria aprovada a nova regulação da Casa dos Vinte e Quatro que ele tinha iniciado em 1767, apresentando uma nova regulação de acordo com as bandeiras e ofícios. O mapa a seguir dá a ideia da composição das bandeiras, ou seja do número de ofícios e deputados que fizeram parte da Casa dos Vinte e Quatro entre a reforma de 1539 de D. João III que determinou quais

75 CAETANO, Marcello, in LANGHANS, Franz-Paul, ob. cit. p. XXI. 76

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34 as corporações ou ofícios com direito a ter representação na Casa dos Vinte e Quatro, passando pela reforma iniciada em 1767 pelo Juíz do Povo, o alfaiate Filipe Rodrigues de Campos, e a reforma de 1771 no reinado de D. José I.

Mapa comparativo da evolução das bandeiras entre 1539 e 1771 na Casa dos Vinte e Quatro

Casa dos Vinte e Quatro

Reforma de 153977 Reforma de 176778 Reforma de 177179

Número de Ofícios Número de deputados Número de Ofícios Número de deputados Número de Ofícios Número de deputados S. Jorge 30 2 15 2 10 2 S. Miguel 12 2 7 2 8 2 S. Chrispin 6 2 4 2 4 2 N.Sª da Conceição 4 2 1 2 3 2 Santa Ana 4 1 - - - - N.Sª das Mercês - - 4 1 4 1 S. José 5 2 6 2 5 2 S. Gonçalo 2 2 5 1 4 1 N.Sª das Candeias 4 2 3 2 4 2 N.Sª da Oliveira - 0 3 1 3 1 N.Sª.da Encarnação - 0 1 1 3 1 Não embandeirados 15 9 9 8 11 8

Não cabe aqui comentar as mudanças que foram introduzidas em cada bandeira, mas tão só na bandeira de Nossa Senhora das Candeias. No século XVIII, na reforma de 1767, esta bandeira perdeu um ofício devido ao facto do ofício de calceteiro ter sido extinto. Com a reforma de 1771 foi anexado o ofício de bainheiro “[…] por ser de pouca gente, e porque assim fica a bandeira com o numero de officios da sua primitiva regulação.”80 Assim sendo, a bandeira de Nossa Senhora das Candeias daria os seguintes representantes à Casa dos Vinte e Quatro da seguinte forma: “O bainheiro irá de 8 em 8 annos á Casa; o carapuceiro de 5 em 5: o algibebe o mais tempo, e o cabeça [alfaiate]

77 Idem, ibidem, Vol. XVII, pp. 346-350. 78 Idem, ibidem, pp. 344-346.

79 Idem, ibidem, pp. 339-343. 80 Idem, ibidem, p. 338.

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35 um todos os annos.”81 Percebe-se que os alfaiates tinham a maior representação, seguidos dos algibebes, dos carapuceiros e, por último, dos bainheiros.

Assim se concluiu, em 1771, a necessária reforma da Casa dos Vinte e Quatro da cidade de Lisboa já que se conseguiu eliminar disputas e irregularidades, mantendo-se o número de vinte e quatro mesteres.

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4 – A aprendizagem e o exercício do ofício de alfaiate

4.1 – Os juízes do ofício e suas competências

Cada ofício tinha um regimento representado por um ou mais juízes, que eram eleitos pelos seus pares e nomeados para prestar juramento na câmara. Os juízes dos ofícios controlavam a actividade profissional do ponto de vista técnico, garantindo a qualidade e a competência no exercício da profissão. Além disso, tinham que ser profissionais experientes porque uma das suas principais funções era examinar os candidatos no âmbito da actividade profissional que representavam.

No caso do exame ser satisfatório, competia-lhes passar uma carta de exame que provava a competência profissional do examinado, habilitando-o ao exercício pleno da sua actividade. Para finalizar o processo de legitimação, os candidatos tinham que apresentar as suas cartas de exame na câmara, onde estas eram devidamente registadas pelo escrivão de serviço. A inscrição na câmara era obrigatória, e quem exercesse actividade sem ser examinado era punido se não tivesse uma autorização para isso, porque era a carta de exame que legitimava o profissional, permitindo-lhe a abertura da sua loja e a contratação de outros aprendizes.

Assim, é frequente encontrar referência à condenação dos oficiais que exerciam a sua profissão sem cartas de exame, estimulando os artífices a regularizar a sua situação perante as entidades públicas.

A documentação existente comprova que os ofícios tinham mecanismos normativos próprios, sendo no entanto igualmente regulamentados pela câmara.

A intervenção das corporações no concelho de Lisboa já desde os finais do século XIV é uma realidade. Com efeito, a partir deste período, a participação dos artífices torna-se decisiva, já que passam a ser chamados à câmara para tratar de assuntos específicos das respectivas profissões, que por sua vez, eram também do interesse da comunidade.

Referências

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