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Vozes que não se calaram. Heroização, ufanismo e guineidade

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SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 14, n. 27, p. 13-27, 2º sem. 2010

ufanismo e guineidade

Moema Parente Augel*

Resumo

No contexto da literatura pós-independência da Guine-Bissau, destacam-se as vozes de dois autores já falecidos e pouco conhecidos, embora excelentes representantes da literatura guineense: Pascoal D’Artagnan Aurigemma (1938-1991) e Jorge Cabral (1952-1994). Em Djarama e outros poemas (1996), de Pascoal Aurigemma, a paixão pela terra natal soma-se a seu amor à pátria vitoriosa e a seus heróis, em versos louvando as belezas concretas de seu país e glorificando de forma idealizada a resistência ao opressor. Sagrado é o chão que fornece o alimento material, sagrado é o chão embebido do sangue dos mártires e heróis. A celebração dos heróis e mártires passa a constituir metonímia do momento mítico fundador da própria nação. Jorge Cabral é autor de um longo e pouco conhecido poema, “Um sonho – uma realidade”, de trezentos versos, onde a expressão crioula Cabral ka muri! (Cabral não morreu), presente no cotidiano guineense, está implícita no desenrolar das cenas que constituem uma verdadeira trama épico-dramática em que o eu poético mescla a realidade do acontecimento histórico com elementos de sua imaginação poética.

Palavras-chave: Poesia guineense. Pascoal D’Artagnan Aurigemma. Jorge

Cabral. Ufanismo. Preito aos heróis e mártires.

* Universidade de Bielefeld (Alemanha)

Nós! Poilões erguidos / na pátria Guiné! Aurigemma, 1996, p. 83 Um dos efeitos da bem sucedida campanha anti-colonialista, encetada sob a liderança do PAIGC, o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde, foi a crescente tomada de consciência da apropriação, por parte do invasor, do torrão natal. As muitas etnias que conviviam naquele espaço geográfico foram levadas a unirem-se para repelir o inimigo comum, o colonizador português. O sentido de pertencimento a esse espaço ameaçado desenvolveu a generalização

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sem precedentes do crioulo como a língua comum dos guineenses, como também a busca de símbolos comuns já existentes ou a criação de novas identificações, procurando, com isso, dar um reforço para a sobrevivência emocional e psicológica da coesão grupal ou comunitária com base no espaço social, no sentimento de pertença a um território ou espaço vital. O sentimento de solidariedade, de um “nós” compartilhado voltado para dentro de um limite geográfico, vai despertar a lealdade ao lugar, a descoberta de suas idiossincrasias, de suas belezas e especificidades, traduzindo-se num complexo social simbólico que só em parte tem de fato a ver com uma realidade funcional ou factual. O pertencimento étnico fica atenuado, perde a prioridade face à ameaça do “outro”, e o sentimento concentra-se em um “nós” abrangendo toda a comunidade simbolicamente imaginada, transmutada em nação (Mai, 1995, p. 13-15). Segundo José Santiago García (s.d.), é a história comum que os habitantes de um território vivenciam e é o seu passado compartilhado que nacionalizam um pedaço de terra, um espaço geográfico e preenchem o território pátrio de conteúdo mítico e de sentimentos sagrados.

Depois do tempo sombrio da opressão colonial, quando os valores africanos foram desqualificados pelo colonizador, o papel do escritor expressando por um lado repúdio e denúncia face ao invasor e, por outro, exaltando as belezas e singularidades do especificamente guineense, foi da maior importância para a retomada da auto-estima e da valorização das coisas da terra. A poesia de combate, como foi chamada, e a poesia ufanista desempenharam um papel basilar na construção da identidade coletiva da recém independente Guiné-Bissau.

Os primeiros tempos “nacionalistas” foram palco de uma gradual apropriação da identidade africana por parte da sociedade crioula guineense, a elite luso-africana da “praça” (isto é, da cidade). Dela faziam parte os jovens revolucionários e os jovens poetas integrantes das primeiras coletâneas literárias (1977, 1978), cujos versos (e música) refletiram o estado de espírito coletivo, tendo até certo ponto plasmado a consciência identitária da nascente elite intelectual do país, ainda não claramente direcionada para o nacional, para a guineidade.

Relações emocionais e cognitivas do indivíduo com seu espaço vital, isto é, com seu ambiente geofísico e social, onde a vida cotidiana se desenrola, podem ser detectadas de maneira exemplar nos poemas de Pascoal D’Artagnan Aurigemma (1938-1991) e Jorge Cabral (1952-1994). A ligação emotiva ao lugar e a reapropriação simbólica do território finalmente recuperado, despertaram em ambos o sentido identitário relacionado a esse espaço, gerando versos acalorados.

Trata-se de autores já falecidos que, embora nunca tenham publicado um livro individual em vida, continuam a se impor como inesquecíveis representantes da

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literatura guineense: Fazem parte da chamada “geração da independência”, os conhecidos meninos da hora de Pindjiguiti1 que marcaram a cena cultural da

primeira década da novel república com seus versos de rejeição ao colonialismo e deglorificação da bem sucedida luta pela libertação nacional e de seus heróis, celebrando também, com fervor patriótico, tanto a união entre os conterrâneos como a guineidade e a africanidade.

Em Pascoal D’Artagnan Aurigemma, a paixão pela terra natal soma-se a seu entusiasmo pela independência vitoriosa e seus heróis, louvando em versos as belezas concretas de seu país e glorificando de forma idealizada a resistência ao opressor.

Jorge Cabral, o segundo autor a que vamos nos referir nesta comunicação, tem um longo e pouco conhecido poema, Um sonho – uma realidade, de centenas de versos e dezenas de estrofes, centrado no episódio do assassinato de Amílcar Cabral, em que o líder, herói invencível, não é a vítima, e sim os seus agressores. A expressão crioula Cabral ka muri! (Cabral não morreu), presente na memória coletiva guineense, está implícita no desenrolar das cenas que constituem uma verdadeira trama épico-dramática em que o sujeito da enunciação mescla a realidade do acontecimento histórico com elementos de sua imaginação poética.

Pascoal D’Artagnan Aurigemma

Pascoal D’Artagnan Aurigemma nasceu em Farim, em 1938, e morreu em Bissau, em 1991, sem tem conseguido publicar em vida seus poemas, embora tivesse tido a preocupação de distribuir várias cópias datilografadas de um conjunto deles e ofertado a amigos. Depois de sua morte, foi publicada em Brasília uma pequena coleção sob o título de Amor e esperança (1994), dentro da coleção Vozes d’África, e em 1997, em Bissau, como o número cinco da Colecção Kebur, sob o título Djarama e outros poemas, com 136 páginas e quase oitenta poemas (1996).2 A obra de Pascoal D’Artagnan Aurigemma, em seus diferentes aspectos,

pode ilustrar como o escritor, assumindo seu papel social, identifica-se com seu povo, convencido de sua função como porta-voz e tcholonadur, expressão guineense muito apropriada para designar o mensageiro, o intérprete.

1 - A expressão é de Tony Tcheka. Sobre esses primeiros momentos do desabrochar da literatura guineense cf. Tcheka, 1996; e ainda Augel, 1998, p. 87-114. Sobre Pindjiguiti, cf. Augel, 2007, p. 61 e 182.

2 - Seus poemas foram por ele mesmo compilados em vários códices datilografados, com muitas variantes e nem sempre foi fácil decidir que versão utilizar para a publicação final. Sobre esses cadernos e coleções de poemas e sobre os critérios para a edição crítica, cf. minha introdução à edição de sua obra em Aurigemma, 1996, p. 9-19. As citações dos poemas de Pascoal D’Artagnan Aurigemma são dessa edição.

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Pascoal D’Artagnan Aurigemma, com seu “Hino ao meu país”, datado de 1975, em exuberantes versos exclamativos, num tom de prece, reúne em um só poema as duas pontas do cordão, louvando as belezas concretas de seu país e glorificando de forma idealizada a resistência ao colonizador. Sagrado é o chão que fornece o alimento material, sagrado é o chão embebido do sangue dos mártires e heróis:

Neste meu país – beijo o chão negro do negro chão!

Beijo o chão das altaneiras e desafiantes palmeiras braços alongados suplicando um Deus – que eu quero! [...] Beijo o chão-pátria-unida da África africana de todos nós africanos!

Beijo o chão de cansaços do negro acorrentado e grades de prisões

e fomes e pancadas surdas em masmorras do silêncio absoluto! Beijo o chão onde o sangue do sacrifício correu

em caudal de libertação

na hora nova da consciência unida!

Beijo o chão por onde pés nus de afronta colonial – Ó África!

avançaram firmes para a vitória! (Aurigemma, 1996, p. 37). Os movimentos de independência quiseram recuperar a dignidade africana perdida, pondo fim à dominação alienígena e à alienação das suas elites.3 A

resistência e a luta devolveram o amor próprio e o orgulho pisoteado, tornando possível a afirmação como a que Aurigemma proferiu em “Colonial orgia” e que nos serviu de epígrafe: “Nós! Poilões erguidos / na pátria Guiné!” (ib., p. 83).

Porta-voz da coletividade, o poeta se sente constantemente impelido a insuflar coragem e otimismo em seus compatriotas. Em “Coragem povo”, D’Artagnan Aurigemma o faz com persistentes anáforas, atribuindo a si mesmo o papel profético de infalível autoridade, como um oráculo que anuncia e orienta. Invoca inicialmente o povo, com metonímias destacando na primeira estrofe bairros tradicionais de Bissau.:

3 - Mas é preciso datar de muito antes os anseios de liberdade do povo guineense. Peter Mendy (1994, p. 29) refere-se a uma “longa tradição de resistência que remonta aos primeiros anos de contacto com os portugueses” e parece sugerir uma continuidade até as lutas pela independência e a criação do Estado da Guiné-Bissau.

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SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 14, n. 27, p. 13-27, 2º sem. 2010 Coragem Pilum di bas Pilum di riba Bandé Gan Biafada N’tula Plubá Cuntum Coragem

Coragem no corpo na cabeça nas mãos coragem povo

As pedras

também têm linhagem própria e

os rios e fontes

e capins rasteiros são testemunhos do vento que sopra [...] Nos matos longos e insubmissos as onças linguanas cobras bufris o leão real e outros fadados Apuram os ouvidos

para melhor ouvirem a mensagem (ib., p. 89-90).

Sugere depois, na terceira estrofe, a participação da natureza: seres animados e mesmo inanimados (“as pedras também têm linguagem própria”; ib., p. 89) percebem igualmente “o vento que sopra” (ib.), tais como as novas idéias que circulam e se vão infiltrando nos matos “longos e insubmissos” (ib., p. 90).

Animais de todo tipo, inclusive os que representam os totens das linhagens étnicas tradicionais (onças, cobras) ou estão presentes nas fábulas e estórias da oratura (“outros fadados”, ib.), contribuem no poema para insuflar essa coragem necessária na hora decisiva que se aproxima.

Nomear os problemas e as questões que mais afligem o povo é para o poeta uma forma de responsabilidade social. A empatia do poeta é tal que ele se chama a si mesmo de “cantor miserável”, ao evocar os estivadores, os trabalhadores braçais e sofredores, “uma data de anónimos”, individualizados, entretanto, pelo poeta que lhes desfia sonoramente os nomes no belo poema “O cantor miserável da noite no cais”:

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Eu sou o cantor miserável da noite no cais! Estão ali

no cais

Ansumane Becô, Infamará, Bicinti Cabupar, Malan Seidi, Djodje Badiu,

[Batipom Cá ...

Estão ali uma data de anónimos da noite no cais!

Barco veio: de onde?

Mar salgado saberia contar a história De um gigante de vapor

Que rompeu seu segredo De Europa para cá...

Estão ali uma data de anónimos da noite no cais!

Para que aquela gente? Aquela gente?

Gente para carrego de sacos fartos e tantas caixas de whisky and coca-cola and beer

que o mundo galã há-de consumir em noites diferentes

das noites no cais... (Aurigemma, 1996, p. 55).

O poeta se identifica com “aquela gente”, com ela se confraternizando: “Irmão, / eu sou o cantor miserável da noite no cais!” (ib., p. 56). E apresenta sua justificação. Num gesto de sublimação ou, como se expressou Muniz Sodré, num “desvio do alvo por pulsão” (Sodré, 1999, p. 94), isto é, num processo inconsciente que consiste em transferir as emoções para novos objetos, o poeta superlativa o homem qualquer com o qual se depara no cais, emprestando às suas qualidades uma função simbólica que está além da realidade:

Porque no cais

encontro o tronco forte do homem qualquer untado de calor quente rolando corpo abaixo

como gotas de lágrimas expoliadas dum gesto forte

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Também no poema intitulado “Essência”, lê-se que o eu poético leva essa identificação ao paroxismo, pretendendo absorver no próprio organismo as aflições morais e emocionais que o outro, seu próximo, experimenta no íntimo e com isso consegue tornar seu, tornar parte de si mesmo, “a matéria nascida da chaga”. Assim, incorpora simbolicamente o que de mais aviltante e repulsivo consegue expressar, como uma celebração num altar sacrificial, comungando com “o homem semelhante” numa comunidade de sofrimento:

Eu sou mesmo aquele homem que bebeu matéria

nascida da chaga do homem semelhante [...] que chorou chorou sempre a matéria vasada

sagrada

do homem semelhante (ib., p. 62).

Os poemas de Aurigemma estão plenos de alusões a elementos típicos da paisagem e da cultura africanas, especificamente guineenses. O poeta ora nomeia pássaros (“Rasgando os ares / intrepidamente / aí vão as andorinhas pombos / águias djugudés e djambas”; “Oráculo”, p. 90); ora alista uma série de animais típicos das paisagens africanas (onças, bufris, leões, lobos, cabras do mato, gazelas da lala; “Carta aberta à criança africana, p. 87), assim como os encontrados nos “matos longos e insubmissos / as onças linguanas cobras bufris / o leão real” (p. 90). Refere-se também, num outro poema, tanto às “ostras calcáreas” quanto aos peixes que vivem nas “águas ensaudadas e mansas beijando estacas”, os “bagres e barbos / [...] bentanas e esquilões / que menino pescador de cana e linha / vai ali pescar!” (“O cantor miserável da noite no cais, p. 56). Faz alusão a alimentos regionais, tais como “cuscuz panquete e cungutu”4, o “copo de sida”, que é o termo na língua balanta

para qualquer bebida alcoólica, ou o “cassequê e o nhelém”5; menciona instrumentos

musicais, misturando, por exemplo, num só verso, instrumentos pertencentes a diferentes culturas: enquanto os nhanheros e os balafons são utilizados sobretudo por fulas e mandingas, etnias islâmicas, os bumbuluns são instrumentos de percussão típicos das etnias balanta, pepel, mandjaca e outras, praticantes de religiões naturais, servindo também de veículo de mensagens mesmo à longa distância. Logo no verso seguinte, refere-se a violões, violas, guitarras (“Poema do Passado”; p. 117), de gosto mais das camadas populacionais crioulizadas. Relembra ainda o don-don, espécie

4 - O panquete é um tipo de panqueca, feito de farinha, leite e ovos, uma massa frita e doce. O cungutu é um doce feito de amendoim pilado e amassado em bolas.

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de pequeno tambor fula que igualmente serve para enviar mensagens; ou o tambor gingão, de “rumor trepidante” (ib., p. 115).

Não foi por acaso que Aurigemma elegeu o poema “Djarama” para abrir seu livro. Segundo o próprio autor, esse título foi escolhido em sinal de “agradecimento aos nossos combatentes por terem conseguido a liberdade de nosso país, a independência nacional” (Couto, 1994, p. 12). O poeta abarca nesse texto, num só fôlego, personalidades de relevo tanto para a Guiné-Bissau como para a África em geral e para o resto da humanidade, misturando conscientemente os nomes históricos e universais, mas dando a cada um a amplitude de um verso (“Neto / Andrade / Dante / Cabral / Benúdia / Senghor / Gabriel / Ovídio”), enfeixando tudo sob o signo que lhe é muito caro da “Negritude”, sem usar nessa passagem nenhuma forma verbal, nenhum conectivo, nenhuma ligação; prossegue o poema com o brado: “O canto da África / O grito da África / O hino de África!” (ib., p. 28), e finaliza com a exclamação “Ala djarama” (ib.; ou seja, Alá, obrigado!), utilizando a expressão de agradecimento e de saudação da língua fula, que não era a sua, língua comum a vários povos da África Ocidental, querendo selar com isso a sua africanidade e a de seu povo finalmente livre. Jorge Cabral

Quatorze anos mais moço que Aurigemma, pertencendo a uma outra geração, Rui Jorge Dias Cabral nasceu em Canchungo, em 1952 e morreu, vítima de um acidente aéreo em 1994, na Croácia, ex- Iugoslávia, país onde fizera seus estudos universitário e onde se encontrava, em exercício de uma missão diplomática a serviço da Organização das Nações Unidas.

Além de diplomata, licenciado em Relações Políticas Internacionais e autor de inúmeros ensaios e artigos no âmbito das ciências políticas, Jorge Cabral era senhor de inúmeros outros talentos: pintava, tocava violão eximiamente, compunha canções em crioulo, isto é, na língua guineense. Como poeta, contribuiu em várias antologias e periódicos, deixando uma obra inacabada, publicada postumamente em livro, Os marinheiros da solidão (1998), com 96 páginas e trinta e oito poemas. Desse livro, destacarei aqui um poema apenas: “Um sonho – uma realidade”, publicado pela primeira vez no jornal guineense Expresso

Bissau, por ocasião da passagem do vigésimo aniversário de morte do fundador

da nacionalidade guineense (20.1.1993).

Trata-se de um longo devaneio onde sobressai a imortalidade de Amílcar Cabral. O texto, classificado pelo próprio autor de “poema épico”, tem cerca de trezentos versos e dezenas de estrofes de diferentes extensões. Em enunciados na primeira

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pessoa, Jorge Cabral leva o eu poético a projetar-se como personagem dramática, reconstituindo o episódio do assassinato de Amílcar Cabral, ocorrido em 20 de janeiro de 1973, sete meses antes da independência unilateralmente proclamada, em 24 de setembro de 1973, mesclando-o com elementos de sua imaginação poética, encenando estar diante da personalidade auratizada que com ele dialoga:

A lua havia deitado O seu véu translúcido Nesse canto do mundo. Algumas estrelas ínfimas Furavam pretenciosamente O manto negro e espesso Da noite.

[...] Tudo estava estranhamente calmo. Mesmo o vento

Parecia ter sustido o seu sopro. As árvores mudas,

Feitas estátuas, Observavam. Únicas testemunhas. Uma

Duas rafalas de metralhadora Na noite imaculada. Precipitei-me

Guiado pelo impudico eco Que persistia

No pesado sono Da mansa escuridão Ora perturbada. Cheguei ao lugar

Onde as armas haviam cuspido Os seus germens assassinos. E vi-o.

Segurava,

Estremecendo nos seus braços, A sua esposa

Frágil e amorosa,

E um sorriso tranqüilo E sereno

Iluminava o seu rosto, Um rosto radiante

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Na literatura guineense, são muitos os poemas exaltando os nomes famosos e legendários das lutas de libertação nacional. A celebração dos heróis e mártires passa a constituir metonímia do momento mítico fundador da própria nação.6 No

poema em estudo, são inúmeros os sintagmas que indiciam o clima de heroização e exaltação, por exemplo, quando o poeta se refere à “majestade quase divina”, ao semblante irradiando glória num dia de “sol resplandecente” (ib., p. 27). O clima do poema é onírico, de êxtase e de exaltação, como por exemplo:

Ele olhava para mim. Sorria

De um sorriso irreal Insondável (ib., p. 25). [...] Ele pôs-se então A falar-me E vi os seus olhos... A sua luz Fazia da noite Um dia luminoso, Transformava a lua Num sol resplandecente. O seu rosto

Irradiava de glória E o seu sorriso De uma majestade Quase divina (ib., p. 26-27).

No poema, os assassinos, “criminosos, infames”, camuflados com o uniforme de Combatentes da Liberdade da Pátria, tiveram o merecido castigo:

[...] E vi

Estendidos aos seus pés, Um, dois,

Três, quatro Corpos de homens Inertes

Na fresca penumbra

Da noite criminosa (ib., p 24).

6 - Relembro nesta oportunidade o poema “Camarada Amílcar”, de Agnelo Regalla, hoje radialista e jornalista conceituado, datado de janeiro de 1974: “No chão vermelho/ Do teu sangue, Camarada, [...]/ As flores da nossa luta/ Que tu com carinho plantaste/ Estão a desabrochar /Em gargalhadas infantis” (Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990, p. 121).

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SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 14, n. 27, p. 13-27, 2º sem. 2010 Pássaros rapaces [...] Ao raiar da aurora

Virão dilacerar os corpos [...] Ousaram apontar a arma Contra a Liberdade (ib., 29). Mas:

Eis o que espera Todos aqueles Que querem Assassinar o povo, Pois não se pode matar O povo

Como não se pode suster A marcha da História (ib.).

Os inimigos, “na sua fatal cegueira”, julgavam ser o herói “apenas de carne feito” (ib., p. 30), mortal sujeito a finar-se. Mas Cabral ka muri, ele resiste ao tempo, sacralizado pela veneração dos guineenses:

Abriram o fogo Contra mim Pensando, Na sua loucura, No seu delírio, Na sua fatal cegueira, Que eu era apenas De carne feito. Mas Estou aqui Como sempre E para sempre, Como a Liberdade,

[...] Como a corrente buliçosa Do Corumbal

E as palmeiras dançantes Das colinas de Boé. Estou com o povo, Sou o povo. Vai,

E diz a cada um Dos nossos irmãos, [...} Que eu vivo

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Nos corações e nos actos De todos os filhos dignos Do nosso povo imortal,

Da nossa terra africana (ib., p. 29-30).

O assassinato de Amílcar Cabral se deu num atentado à queima-roupa, na Guiné-Conakry, em frente à sua residência. Nunca ficou provado quais teriam sido os reais mandantes desse crime político, embora os estudos mais recentes tenham lançado muitas luzes a respeito (cf. Castanheira, 1995).

Na Guiné-Bissau, a expulsão das forças coloniais abriu caminho para a realização do sonho de transformar o país numa nação onde a sociedade se modernizaria e se auto-gerenciaria, entrando na “civilização” pelas portas da educação e da independência política e econômica. Amílcar Cabral, o “pai” da nacionalidade guineense, mostrava-se convencido de que a luta de libertação transformaria o povo e lhe daria uma outra identidade, mais ampla, a da “unidade nacional”, base para uma nação independente e desenvolvida.

Amílcar Cabral sonhou com a unidade nacional que harmonizaria a heterogeneidade das etnias sob a bandeira comum da nova nação guineense, irmanada a Cabo-Verde. Com a “arma da teoria” (título de um dos seus mais famosos textos), o grande líder tencionava forjar essa unidade. Um sentimento de pertença ao solo comum existe e se mostra mais ou menos intenso, conforme as crises políticas, sociais, econômicas e militares por que tem passado o país. Seu sobrinho, o poeta Jorge Cabral, em um dos seus poucos poemas em língua guineense, “Dia ta lanta”, expressa essa certeza de que, não importam as dificuldades, “tchon fika [...] tempu ta pasa / kusas ta muda/ ma pubis, pubis ta fika”. O poeta enumera várias localidades do chão guineense, querendo com isso mostrar que de Norte a Sul, de Leste a Oeste, se trata de um só país:

Di Buruntuma pa Djiu di Bubaki di Cacini pa San Domingo [...] i kila ki Guiné-Bissau i kila ki no Guiné. //

Di Madina di Boe pa Djiu di Rei na Bissau di Sukudjake pa Tombali

[...] i kila ki Guiné-Bissau

i kila ki no Guiné7 (J. Cabral., 1998, p. 95).

7 - “De Buruntuma para a ilha de Bubaque / de Cacine para São Domingos / isto é a Guiné-Bissau / isto que é a nossa Guiné. // De Madina de Boé para a ilha do Rei, em Bissau / isto é a Guiné-Bissau / isto que é a nossa Guiné”.

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O que contava, no período da formação nacional, eram a construção e a estabilização da nação guineense no seu conjunto, não sendo considerada como estorvo a diversidade entre as muitas etnias do país. Como escreveu Tony Tcheka: “Ninguém perguntou a ninguém / quem era / nem de onde vinha” (Tcheka, 1996, p. 97). Tratava-se da “pátria nacional de todos nós”, como cantou Pascoal D’Artagnan Aurigemma (1996, p. 71), resumindo assim o sentimento geral. Conclusão

Foi possível ressaltar, nessa breve comunicação, que Pascoal D’Artagnan Aurigemma e Jorge Cabral, com seus versos marcantes, testemunhos de uma época, são dignos representantes da literatura guineense e merecedores de maior divulgação.

Jorge Cabral, com Os marinheiros da solidão, e Pascoal D’Artagnan Aurigemma, com Djarama, confirmam como a “luta” é recorrente como referência em todos os escalões da sociedade guineense, é justificativa e é argumento, é apelo e também qualificação, continuando, na memória do povo, a ser o símbolo sacralizado de orgulho e de consagração. Não me ocupei aqui, entretanto, senão com uma ínfima parcela da produção desses autores, havendo outros eixos referenciais em torno dos quais gravita a obra de cada um. Enquanto Jorge Cabral se destaca, no conjunto da literatura guineense, por sua poesia intimista e suas buscas poéticas por definições, por descobrir o sentido e os mecanismos do seu estar-no-mundo, procurando as polivalências da sua própria indagação existencial, Pascoal D’Artagnan Aurigemma se destaca pelo seu engajamento social, solidarizando-se com os humildes e desprotegidos, enternecendo-se com a infância e com a velhice, sem negligenciar o palpitante momento do desbarate colonial.

Vimos, a partir dos poemas citados, que as lembranças partilhadas, o preito aos heróis, a exaltação patriótica, a socialização em comum constituem, entre outros elementos, elos dos mais vigorosos e duradouros, plasmadores da comunidade nacional. O passado comum para os guineenses é sobretudo o passado das lutas de libertação nacional, o símbolo mais glorioso e eloqüente da nacionalidade. É mesmo o momento fundador da nacionalidade, do espaço “Guiné-Bissau”. Ambos os autores são, sem dúvida, excelentes representantes dessa assim chamada “poesia de combate”, poesia testemunho, militante e comprometida.

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Résumé

Dans le contexte de la post-indépendance, j’ai choisie deux écrivains peu connus mais d’excellents représentants de la litérature de Guinée-Bissau: Pascoal D’Artagnan Aurigemma (1938-1991) et Jorge Cabral (1952-1994). Pascoal Aurigemma, dans son livre Djarama e outros poemas (1996), montre de l’enchantemant pour son pays natal, de l’enthousiasme pour ses héros et le refus du colonialisme. Jorge Cabral, dans Os marinheiros da solidão (1998), surtout dans le poème «Um sonho – uma realidade», nous présente une poésie épique où le héros Amílcar Cabral joue le rôle principal: il est immortel comme le peuple lui même. Chez les deux poètes la célébration des héros et des martyrs ainsi que la glorification patriotique peuvent être considerées comme une métonymie du moment mystique fondateur de la nation même.

Mots-clés: Poésie de Guinée-Bissau. Pascoal D’Artagnan Aurigemma. Jorge Cabral. Patriotisme. Célébration des héros nationaux.

Rererências bibliográficas

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Referências

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