• Nenhum resultado encontrado

O Espírito da Crueldade na Peça Barrela de Plínio Marcos

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O Espírito da Crueldade na Peça Barrela de Plínio Marcos"

Copied!
20
0
0

Texto

(1)

O Espírito da Crueldade na Peça

“Barrela” de Plínio Marcos

MARCO ANTONIO ARANTES*

Resumo:

Tendo como fio condutor à obra do dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999), o presente projeto analisa a importância da peça “Barrela” (1958), no contexto histórico-artístico da dramaturgia brasileira, além da contribuição artística do autor santista dentro do contexto histórico teatral brasileiro de seu período. Para isso, propõe analisar entre outros temas, a atualidade da peça, demonstrando que a intenção humana é o ponto de partida de sua crítica social.

O texto aproxima-se da visão cultural do ator, poeta e dramaturgo francês Antonin Artaud (1896-1948), sobretudo da sua obra “Le Théâtre et son Double” “O Teatro e seu Duplo” (1935). Em Artaud, a cultura é antes de tudo uma forma de ação, um protesto contra o estado das coisas. Como em Plínio Marcos, os elementos estéticos da obra de Artaud, afetam direta e indiretamente a ordem social existente, sem que isso signifique um posicionamento político partidário.

Introdução

“Mas sou demoníaco, sou a loucura enlouquecida. Essa loucura selvagem que se acalma somente para se compreender a si mesma” - Herman Melville – Moby Dick- 1851

No dia 1º de novembro de 1958, um ator de circo que trabalhava no Pavilhão Teatro Liberdade de Santos, conhecido como o palhaço Frajola, abalou o cenário da dramaturgia brasileira com uma peça teatral surpreendente. Um ano antes, comovido com a história de um garoto preso por furto, coisa de somenos, e que foi recolhido em uma cela com

* Professor Associado do Curso de Ciências Sociais da UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do

(2)

presos perigosos que tencionavam estuprá-lo e matá-lo, escreveu para si mesmo na linguagem que lhe parecia mais familiar, o drama do garoto. O nome escolhido pelo ator para a peça de um ato foi “Barrela”, que na gíria típica dos presos significa curra, um estupro coletivo. A curra seria “uma expressão suprema de triunfo, para uns, e de humilhação, para outros” (PRADO, 2001, p. 103).

Plínio Marcos iniciou a sua carreira como palhaço de circo. Fez parte de uma geração de atores, poetas e dramaturgos, no qual o teatro ainda era uma referência na produção do imaginário cultural. Plínio era santista de nascimento. Tivera até os 23 anos uma trajetória de percalços e atribulações, a ponto de ser inimaginável sonhar em um dia tornar-se dramaturgo. Na escola terminou apenas o primeiro grau, foi funileiro, camelô, teve uma passagem rápida como jogador de futebol na Portuguesa Santista, foi “bagrinho” no cais do porto e soldado na Aeronáutica. Mas foi nas pequenas companhias circenses, atuando como o palhaço Frajola, que Plínio Marcos tomou gosto pelo teatro. No circo realizou sua primeira leitura de “Barrela” aos amigos. Em seguida, o autor conta que foi chamado por Paulo Lara que, a pedidos de Patrícia Galvão, a Pagu1, procurava um ator para participar da peça infantil “Pluft, o fantasminha”, de Maria Clara Machado. O convite foi aceito e tornaram-se desde então grandes amigos. Dias depois, a peça “Barrela” seria datilografada e oferecida à poetisa, que o mesmo diz “amava o teatro e incentivava o teatro amador” (MARCOS, 1976).

Se, para alguns amigos de trabalho de circo, uma peça que fazia uso de palavrões e termos chulos significava problemas com a censura2, para Pagu, o texto carregava uma força expressiva superior às peças de Nélson Rodrigues, pernambucano a quem posteriormente tanto os críticos quanto o próprio Plínio Marcos tratariam de fazer analogias temáticas e estilísticas. A atriz Cacilda Becker dizia-se espantada com o fato da peça ter sido escrito com um vocabulário tão pequeno. Já Barbara Heliadora havia observado de que não havia desperdício na composição das imagens de “Barrela”3.

1 “A grande Pagu, um anjo anarquista que veio ao mundo para nos inquietar” (MARCOS, 2002, p. 161). 2 “Em 1977, o cronista e dramaturgo Plínio Marcos declarou ao Folhetim que tinha aprendido (sic) uma

coisa com a censura, não desistir. Afirma: “toda vez que ela me proibisse alguma coisa, eu escreveria mais três”. (SANTIAGO, 2004, p. 1).

3 Há duas versões de “Barrela”: a original de 1958 e a versão definitiva de 1976. Na versão de 1958, o

(3)

Por essa época, Plínio Marcos não conhecia nem a pessoa e nem a obra de Nélson Rodrigues. Deu-lhe nova vida, no entanto, os elogios feitos por Pagu. Com o seu aval, a dramaturgia despontou para Plínio como um caminho a ser explorado. Plínio iniciou a escrita de uma nova peça e passou a circular com atores de teatro que lhe apresentaram as principais companhias de teatro amador que atuavam em Santos.

Contudo, a peça “Barrela” não teve o destino esperado pelo autor depois de sua estreia. Era necessário passar por um único e difícil obstáculo para a sua liberação: a censura do governo de Juscelino Kubitschek4. Segundo o próprio Plínio Marcos, ele foi o único autor de teatro censurado no governo de JK. Quando a peça foi enviada para os censores, ela foi proibida5.

A versão mais conhecida do episódio envolve os nomes de Pagu e de Pascoal Carlos Magno, político que gostava de teatro e era na época Ministro do Governo Kubitschek. Pagu interveio a favor da liberação de “Barrela” junto a Magno, que foi um dos primeiros a lê-la. Magno ficou impressionado com o estilo do autor e fez bons comentários da peça na imprensa. Como resultado, Magno enviou um telegrama para a polícia de Santos, afirmando que a peça não era um ultraje à moral e aos bons costumes, sendo favorável pela sua liberação pública. Como resposta, a peça teria que ser montada exclusivamente para a avaliação dos censores antes de sua estreia pública. Feito isso, os censores não deixaram de frisar que “Barrela” pecava pelo uso abusivo de palavrões e que a liberação ocorreria desde que fossem feitos alguns cortes. O pedido foi aceito, mas o argumento de Plínio, de que o texto não mudaria uma vírgula, prevaleceu na estreia. Na noite de 1º de novembro de 1959, no Centro Português de Santos6, o que se viu foi uma peça montada sem nenhuma alteração ou corte7. Com a estreia, Plínio foi parar nos jornais.

4 “O trajeto histórico da censura no Brasil é extenso, pois percorre desde o período colonial chegando até

os nossos dias, com intensidades de atuação diferentes” (LIMA; CIOTTI, 2015, p. 98).

5 A proibição da peça suscitou vários debates na imprensa. O mais notório foi o promovido pelo Jornal

Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, na coluna de Van Jafa.

6 Segundo Plínio “a estreia no Teatro do Centro Português foi cheia de forrobodó: polícia, censura, uma

proibição atrás da outra” (MARCOS, 2002, p. 184).

(4)

Para alguns, ele tornou-se um produto fabricado pelo Partido Comunista8 (partido emblemático da oposição do período militar), um elo artificial com o povo; para outros, a maior revelação do teatro nacional. Pode-se dizer de uma obra revolucionária, mas não explicitamente engajada, pois, entre 1950 e 1960 “todos estavam imbuídos pela crença inabalável do poder de fogo do teatro de mudar os rumos da história” (ZANOTTO, 2003, p. 9)

Alguns anos depois, em 1968, Luís Carlos Maciel propõe uma nova montagem de “Barrela”, agora com atores conhecidos do público, como Milton Gonçalves e Joel Barcelos, atores que atuavam também na televisão. Dessa vez, a peça foi proibida pelo Ministro da Justiça Gama e Silva, para ser liberada em 1979, ano em que o chefe dos censores, José Madeira, anunciou cinicamente que não haveria “mais censores, mas sim examinadores aptos a desempenharem essa função” (CRONOLOGIA DAS ARTES CÊNICAS, 1996: 63).

Esse acontecimento inicial da trajetória de Plínio Marcos marca o limiar da relação conflitante do dramaturgo com a censura do Governo Militar, que seria periodicamente premido pelos órgãos de repressão estatal, cuja única finalidade era impedir o desenvolvimento livre “artístico e cultural do país, reduzindo artistas e intelectuais à condição de humilhados e castrados” (PEIXOTO, 1986: 231).

Isso não significa propriamente que Plínio tenha feito muito uso da alegoria ou da metáfora para driblar a censura, recurso que Guarnieri chamava de “teatro de ocasião”, mas fixa-se em situações extremadas que lembram às vezes a estética realista e outras vezes, a naturalista, dado a força que o meio exerce sobre os personagens; mas deve-se ressaltar, entretanto, que a análise psicológica de seus personagens contraria essa classificação.

8 Plínio Marcos sempre negou o rótulo de comunista, pois dizia que os rótulos eram gerados pelas

contradições de uma sociedade capitalista-industrializada-consumista, que torna o homem um escravo da cegueira. Para Plínio, antes de falarmos no povo, de mobilizá-lo para a ação revolucionária, era necessário se desvencilhar das classificações. “O que eu gostaria é que as pessoas sentissem necessidade de trabalhar dentro de si mesmas. Assim, despertas, poderiam por si próprias perceber onde estão os grilhões que as prendem e, por seus próprios esforços, se libertarem deles” Plínio Marcos. Debate, in Jesus-Homem, São Paulo, Grêmio Politécnico, 1981, p. 49.

(5)

Plínio Marcos nasceu para a dramaturgia em um momento histórico de renovação do teatro nacional, promovido por inúmeras orientações estéticas e teóricas teatrais dispersas por capitais como Porto Alegre, João Pessoa, Recife, Salvador, entre outras. Porém, o impacto e a proximidade dos grupos teatrais que atuavam no eixo Rio de Janeiro-São Paulo tiveram um impacto maior em sua formação, sendo referência às experiências teatrais do Arena, do Teatro Oficina e do TPE (Teatro Paulista do Estudante), grupos atuantes de São Paulo, e o Teatro Opinião, do Rio de Janeiro.

Em sua crônica “Saltimbanco do Macuco”9, Plínio afirma ter escrito por volta de

40 peças teatrais. O certo, contudo, é que ele, como dramaturgo, dar-nos-ia, entre o que escreveu, pelo menos cinco peças do mais vivo interesse social e humano.

Para se compreender melhor a dramaturgia de Plínio Marcos, parece útil considerar a sua posição em relação ao teatro brasileiro de sua época. Iremos perceber aproximações e distanciamentos, alguns traços comuns e traços distintivos em relação ao teatro realista praticado pelo Teatro de Arena de São Paulo que “evoca, de imediato, o abrasileiramento no nosso palco, pela imposição do autor nacional” (MAGALDI, 1984, p. 7). Mas também um afastamento, talvez até mais contundente, em relação ao profissionalismo e a espetacularização do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), cujo modelo estético europeu se pautou em uma “renovação estética dos procedimentos cênicos, da década de quarenta” (MAGALDI, 1984, p. 7).

Quando “Barrela” foi finalizada, o Teatro de Arena era o grande reduto inovador do teatro nacional. O TBC10 havia perdido a sua hegemonia, abrindo espaço para as propostas vanguardista do Arena. As peças de Plínio Marcos herdam essa estética mais simples11, em que “uma simples cadeira à volta de um espaço e iluminação precária podiam recriar a atmosfera propícia ao fenômeno cênico” (MAGALDI, 1984, p. 8). Plínio

9 Plínio Marcos. Saltimbanco do Macuco, in, A Crônica dos Que Não Tem Voz, Fred Maia, Javier Arancibia

Contreras e Vinícius Pinheiro, São Paulo, Boitempo Editorial, 2002, p.183.

10 “Já o TBC tem como principal mérito haver introduzido – sob a égide do profissionalismo – alguns

procedimentos inéditos no setor, como a ênfase na atividade do diretor, a leitura minuciosa das peças por todos os membros do grupo (donde se alcançava a pretendida fidelidade ao texto dramático), a rotina austera de ensaios, etc” (BRANCO, 2005, p. 38).

11 O seu teatro é a própria problematização do que é fazer teatro. Nada de espetacularização e ostentação

(6)

fez uso de parcos recursos cênicos. Suas peças se misturavam com a música popular. Para atrair o público, grupos de samba era convidados para tocarem antes das peças. Ricardo Barros, ator e filho de Plínio Marcos, explicou a proposta.

“O Bando [nome do grupo de artistas que se juntou para montar a peça Barrela] acabou sendo premiado como alternativa de produção etc., justamente por trazer essa linha das coisas de baixo para cima. (...) Começava o espetáculo com o samba, os maiores sambistas de São Paulo estavam no grupo, que era Zeca da Casa Verde, Jangada, Toniquinho Batuqueiro, Talismã. Eles faziam o samba e isso trazia o povão” (BARROS, 2017, p. 1).

“Barrela” era um modelo de como despetacularizar e dessacralizar o espaço cênico. Plínio surge após as encenações de grandes peças que iriam revolucionar o teatro nacional, notadamente “Vestido de Noiva” (1943), com os seus “desvãos do subconsciente”; “A Moratória”, (1955) de Jorge Andrade, com a temática rural; “Auto da Compadecida” (1957), de Ariano Suassuna, em que misturava “folclore nordestino com milagre medieval”, e sobretudo “Eles Não Usam Black-Tie”, (1958), de Guarnieri, que tratava dos problemas sociais provocados pela industrialização. (MAGALDI, 19884, p.28).

A CRUEDADE EM BARRELA

“Barrela” foi a primeira peça teatral de Plínio Marcos. É também a sua peça preferida. Ela dará a tônica de seus trabalhos posteriores, tais como “Abajur Lilás”, “Navalha na Carne” e “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, este último inspirado no conto “Terror em Roma”, de Alberto Moravia. “Barrela” é uma peça de um ato, ambientada em um espaço disciplinar no qual o sono é a imagem da morte e a detenção uma crônica da privação da liberdade12. Como muito de suas peças, há poucos personagens. É uma peça

cuja linguagem reflete a economia dos gestos e do tempo, assim como a complexidade das relações sociais.

Muitos elementos referentes ao estilo de linguagem de “Barrela”, nos anos posteriores terão sequência noutras peças do autor. A linguagem de rua voraz e cortante,

12 A abordagem desse tema também está presente em peças como “A Mancha Roxa” e em contos como

(7)

a solidão, o desespero, a falta de esperança, a agressividade, às gírias13, os palavrões, a violência, os espaços sufocantes, os personagens do submundo (cafetões, assassinos, traficantes, drogados, prostitutas, travestis).

A peça abre-se com um sobressalto. “-Não, não, não!!”. Era o personagem “Portuga” acordando de um pesadelo. E isso nunca mais deixou de acontecer desde que assassinou a sua esposa. Ficou o trauma do homicídio que o acompanhava nas horas de sono. O pesadelo de Portuga poderia ser mais um pesadelo, mas ele tem uma outra significação no espaço da cela. O grito de Portuga desencadeia uma sucessão de acontecimentos e revelações da alma dos personagens. O seu grito gera incômodo, tensão, medo, pressentimento da morte e vingança. Ele descortina o corpo e revela às fraquezas humanas. Dormir pode ser uma abreviação da morte. Como nenhuma outra peça do período, as ciladas da comunicação, seja voluntária ou não, pode voltar-se para si mesmo, tornando-se uma extensão do corpo, dos ossos, dos nervos e da musculatura. Manifestar-se sobre Manifestar-sexualidade pode encurtar a vida ou prolongá-la. A Manifestar-sexualidade está na linha tênue que separa a vida da morte. Ela pode libertar, mas também pode castigar. Tudo está imbricado. Ela pode desencadear violências e ameaças, mostrando que o espaço que ocupam é movido por nervuras, ódio e revoltas que são parte constitutiva do espaço. Nem se trata de ressentimentos, que é uma culpa imaginária, mas uma culpa que se apresenta como inevitável. A culpa é de todos, mas ela pode ser de apenas um. Por isso que a força do silêncio e as negociatas são a matéria prima para uma vida fragilizada e vulnerável. Atrapalhar o sono de um colega de cela é muito mais que um despertar incômodo, é a própria morte anunciada. “Por querer ou não, esse filho da puta me fez perder o sono. Desgraçado, vou te aprontar uma sacanagem que você vai parar na solitária. Lá não enche o saco de puto nenhum”.

Os personagens de Plínio estão no plano das possibilidades restritas, mas apresentam-se como politicamente uteis ao sistema. E neste ponto, tanto para Plínio, tanto para Artaud, o teatro é uma máquina de produção de subjetividades, um campo de “batalha” das “guerras declaradas”.

13 Para descrever a vida do submundo, Plínio Marcos fazia uso de uma linguagem próxima da oralidade

(8)

“Barrela” também não é uma expressão da violência contemporânea. A violência para ele é apenas um recurso de expressão. Mas ele toca na segregação, essa apartação física produzida pela reclusão em penitenciárias, esse mal que insistem em extirpar da sociedade, e que caracteriza a instituição prisão como produtora mor da delinquência, que em “Barrela”, está longe de ser uma maldade absoluta. Ela é a matéria prima, a base imaginária essencial de sua arquitetura dramática. Ali estão as fantasias, os desejos, os terrores, os ilegalismos expostos numa grande salada imaginária. Plínio não banaliza a violência e o preso tal como nos noticiários policiais. Batista (2010) chama isso de “adesão subjetiva à barbárie”. Mas Plínio não quer punir, e não internaliza subjetivamente o desejo da violência. Em “Barrela”, não se compraz em ver pessoas pobres presas sendo torturadas, estupradas e mortas. Ele é um cronista de um mau tempo. Seus personagens destilam uma violência voraz, que desemboca em um grande conflito infernal, em que a morte parece ser a lei e a tortura um princípio.

Em “Barrela”, o universo humano está além das paredes da penitenciaria. O mundo violento e opressivo das prisões, no qual “somente a força e a coragem podem lhe valer alguma coisa” (VIEIRA, 1994, p. 13), faz do cárcere uma potencialização das lutas cotidianas. Em Plínio o mundo de fora sempre é transposto para um pequeno mundo: um quarto de um prostíbulo ou uma cela de prisão. A solidão, violência (em muitos casos manifesta na linguagem, a formação da delinquência, a violência física, o uso de gírias populares, a dificuldade para se comunicar, o sentimento de impotência, a ordem que se esfacela, os ranços moralistas, a vingança que não cessa, os preconceitos latentes nos personagens, a crueza linguística, são temas recorrentes nas peças de Plínio.

Como em Artaud, gritos, gestos, sons, suor, também são parte constitutiva da linguagem no teatro pliniano. Nota-se que os gestos, os sons, os gritos, são a própria materialização de uma poética da crueldade. Mas crueldade, no sentido artaudiano, não deve ser confundida com poesia. Para Plínio e Artaud a violência e o sangue foram “colocados a serviço da violência do pensamento” (ARTAUD, 1984, p. 92). Para Artaud o teatro era um refazer violento do corpo. Mais do que isso, “O Teatro e Seu Duplo” apresenta a existência e a vida como um processo catártico, e o faz sem se opor as outras escolas de teatro. “Artaud fez do teatro não só um campo de atuação e expressão cultural,

(9)

mas uma forma de engajamento num processo radical de reconstrução de si” (QUILICI, 2012, p. 19). Em ambos os autores os espaços falam por si. As palavras falam com o espaço. Elas sugerem imagens que soam sensações na ação dramática. Na sua economia de palavras, cada entonação tem um significado. Eles não querem invocar um realismo, mas problematizar o universo humano. Estão longe de um teatro analítico. Não querem conscientizar, mas problematizar a existência como um todo14.

Em “Barrela”, a utilização de gírias é fiel e franca ao seu meio, e a curra é uma metáfora de um universo humano imensurável. Seus personagens revolvem-se no mesmo espaço, e como num panóptico invertido, atiram contra os próprios pés, sem darem-se conta que estão mergulhados no abismo. Como diz Esslin em relação a Artaud, o teatro é político sem estar vinculado a movimentos e partidos políticos, mas “o teatro torna-se cada vez mais político e a política cada vez mais teatral” (ESSLIN, 1978, p. 89).

“Barrela” remete aos espaços reais que também podem estar carregados de tensas relações de poder. Que poderes são esses? Ele está presente na formalização de grupos de poder, claro na construção do personagem ‘Bereco”, o xerife da cela, que negocia pequenos prazeres quando se sente ameaçado. “- Se vocês querem, a gente queima o fumo”. São os chamados “espaços de tensões”, como às prisões, espaços destinados aos indivíduos com comportamentos desviantes. A cela funciona como uma feroz caricatura da sociedade que violenta do lado de fora. “Barrela” é a odisseia do medo, da dor e do sofrimento. O que ela diz ainda não findou. Ela é atual e viva como a tela “A Ronda Dos Presos” de Van Gogh. Personagens como “Bereco”, “Louco”, “Portuga”, entre outros, representam pequenas tragédias humanas de uma sociedade maior, àquela do lado de fora, e que os cuspiu para o lado de dentro. A este excluídos, são reservadas às heterotopias do desvio, os espaços de exclusão, espaços punitivos e espaços disciplinares. São também espaços onde se opera, contesta e se produz poder. “Isto significa que os lugares que a sociedade dispõe em suas margens, são antes reservados aos indivíduos cujo

14 É muito mais que uma crítica social. Para Carvalho “Por meio de diálogos rápidos e cenas construídas

sobre uma tensão crescente, as personagens vão revelando suas dores e conflitos interiores, forjando uma complexa relação entre palco e plateia” (CARVALHO, 2017, p. 10).

(10)

comportamento é desviante relativamente à média ou à norma exigida” (FOUCAULT, 2013, p.22).

A sua linguagem é voraz, seca e direta, e caminha em direção a uma catarse e a uma ruptura de abscessos. Nenhum palavrão é gratuito. Nada soa falso. A linguagem se apresenta como uma ferramenta psicológica para debater questões humanas comuns a todos, “digamos assim, com a vida normal de todo o mundo” (VIEIRA, 1994, p. 13). E como toda metáfora, ela cria um novo sentido após a comparação entre dois termos ou duas realidades, fazendo uso da identidade, equivalência e analogia. É esse recurso linguístico acrescenta “dados novos ao saber acumulado, mas sem alterá-lo substancialmente”. (MOISÉS, 1988, p. 331).

Sobre questões de gênero, podemos dizer que os personagens criados por Plínio Marcos, estão quase sempre tensionados por situações limites, e “Barrela” não foge à regra. Em “Barrela”, a prisão é um símbolo da masculinidade. Não ser violento e não demonstrar ser contrário a homossexualidade, significa colocar-se numa posição de vulnerabilidade. O cárcere é lugar de homem. E se não for homem, terá que forçosamente aparentar ser, para não ser “comida de gango”. Ser “mulherzinha”, “marica”, “bicha”, “veado”, “fresco”, “bonequinha, é sinal de fraqueza e submissão. Fica latente as representações dualistas sobre sexualidade e questões de gênero, no qual a dominação masculina é uma voz dissonante no cárcere. Tudo que é avesso a masculinidade masculina é imoral. Mas o mundo para Plínio não é dual. Ele é instável. Ele é impermanente e indefinido. Ele não busca sentidos ou faz julgamentos. Não polariza o mundo. Os personagens são o que são. No mais, todas as questões pessoais morais se coabitam com as questões institucionais. Elas apresentam-se como uma lei para a sobrevivência. A moral torna-se uma norma num pequeno espaço controlado institucionalmente. Pouco importa para os detentos a existência de uma lei maior, o que vale é o que acontece face a face. A agressividade apresenta-se como uma linguagem da resistência. “A brutalidade do ambiente carcerário é algo como a norma vigente; romper com ela significa deslegitimar os mecanismos alternativos de controle que se estabelecem para a manutenção da ordem instituída pelos detentos” (BRANCO, 2005, p. 41).

(11)

Como observou Artaud, a linguagem também é feita de fogo, gritos, suor, gestos e sons. Esses elementos estão presentes no universo linguístico inóspito e ferino de Plínio Marcos. Não há delicadezas e polidez nas palavras. Ele é pincelar ao meio retratado. A sua aproximação com o tema do Teatro da Crueldade problematiza as questões humanas. Ele proporcionou uma comunhão entre o político e o estético, de maneira que a sua linguagem ferina alcança a similitude do lirismo.

As agressões verbais e as torturas estão na base dos seus diálogos. A imprevisibilidade e o tema da morte são incessantemente invocados. “...vemos em Plínio Marcos avultarem os temas da solidão e da decadência humana, do círculo vicioso da tortura mútua, da absoluta falta de sentido nas vidas degradadas, do beco sem saída da miséria e da violência, da morte como horizonte permanente” (ZANOTTO, 2003, p. 8).

Não há solidariedade entre eles e nem mesmo uma identificação de classe. É o salve-se quem puder. É a terra de ninguém e de todos, dos alcaguetes, homossexuais, cafetões, de muitos seres em conflito com a lei. Em “Barrela” há “tentativas de reação abortadas pela dependência visceral que se estabelece entre algozes e vítimas, que se revezam na função de carrasco” (ZANOTTO, 2003, p. 13). A moral individual é sempre colocada em dúvida. Caguetar pode ser a salvaguarda de uma condição e a manutenção de um poder. Bereco, ao proibir a “curra” na cela, sentiu seu poder se esvair, pois ali, todos resistem a um processo de dominação. Nada se perpetua. É quando Fumaça diz: “FUMAÇA - Tua barra tá suja. Bereco. É melhor afinar BERECO – Se vocês querem, a gente queima o fumo”.

Ademais, as ambientações plinianas servem-lhe de argumento para discutir questões que não se restringem aos problemas do sistema carcerário e a organização de um meio delinquente. A cela em “Barrela” é um pequeno grande universo na sua dramaturgia. Lá estão todas às angústias humanas. Pouco importa os valores e as verdades. O que importa é sobreviver, custe o que custar. Não existe piedade e compaixão pelos corpos em suas peças. Em seus espaços, os demônios humanos são exorcizados. “Barrela” expressa a concretude das palavras, dos gestos e expressão, que tal como o Teatro da Crueldade, tira o teatro “de sua estagnação psicológica e humana” (ARTAUD, 1984:115). “Barrela” é a antiabstração. É vida anímica que corre nas veias.

(12)

ANTONIN ARTAUD E O TEATRO DA CRUELDADE

As ideias de Artaud sobre o teatro modificaram-se ao longo de sua trajetória como ator, poeta e dramaturgo. Como dramaturgo, juntamente com outros intelectuais, ele esteve à frente de um movimento de renovação do teatro europeu na primeira metade do século XX.

Nascido em 1896 na França. Os escritos de Artaud repercutiram não apenas na dramaturgia, mas marcou de modo contundente sua influência no campo da poesia, literatura, esoterismo, pintura, filosofia, medicina, antropologia e psiquiatria. O melhor relato de quem foi Artaud, chegou-nos pelos escritos de Anaïs Nin, escritora por quem Artaud se apaixonou em 1933. Em seu diário, Nin escreveu: “Para ele, o teatro é um lugar para se gritar a dor, a raiva, o ódio, para representar a violência que há em nós. Ele é o ser drogado, contraído, que anda sempre só, em busca de produzir peças que são como cenas de tortura” (NIN, 1983, p.164)

Artaud teve um papel importante no teatro contemporâneo, a ponto de ser difícil ignorar as suas experiências e propostas artísticas. Artaud é considerado o dramaturgo da crueldade, que não significa necessariamente que tenha escrito sobre horror e violência física. A crueldade esteve presente em todas as etapas da vida de Artaud, mas é no manifesto publicado na obra “Le Théâtre et son Double” (1935), que ele apresenta-se em sua plenitude15.

Crueldade para Artaud significa uma explosão libertadora da violência. O papel da crueldade é desalienar e libertar o espírito humano das forças alienantes. Aqui está o sentido político da crueldade. Uma violência que agrega experiências subjetivas e sensoriais. Uma violência feita de sentidos, imagens, movimentos, e que expulsa o grito de dentro de si. Artaud recusa a associação do Teatro da Crueldade com o mal físico, sadismo, suplício, sangue. A crueldade está presente nos humanos, mas nos animais ela é apenas instinto e fome. A crueldade dos animais deve-se a um devir: um tigre tem garras

15 Artaud publicou dois manifestos. O primeiro em 1932 e o segundo no ano seguinte. Escreveu também

várias cartas e ensaios suplementares sobre o tema, tais como “Le Théâtre Alchimique” (1932) e “Em Finir

(13)

e dentes fortes. A forma de seu corpo é uma adaptação as formas de vida. Mas somente o homem carrega essa percepção da crueldade. Ele sabe que uma coisa tem que morrer para dar continuidade ao ciclo da vida. E morrer aqui significa nascer de novo, pois devir para Artaud significa “a ideia furtiva da passagem e da transmutação das ideias em coisas” (ARTAUD, 1984, p. 140). É uma perspectiva Nietzschiana. Morre-se e vive-se todos os dias. “E não há objetivo nesta luta. Não é por causa do desejo, mas porque a gente tem impulso, energia, força” (Marton, 2020).

Foucault, por exemplo, ficou encantado com a personalidade literária de Artaud, e lhe forneceu subsídios importantes em suas reflexões sobre o corpo. Quando Foucault fala no suplício do sujeito, ele está trilhando uma linha de pensamento aberta por Artaud. No caso de Deleuze, quando teoriza sobre o Corpo sem Órgãos, a referência principal é Artaud. É evidente, que ambos os autores se servem de Artaud de forma distinta e diversa. Artaud está presente em História da Loucura (1965), juntamente com Nerval, Nietzsche e Van Gogh.

De Artaud, Foucault partirá para análises sobre as relações entre a obra e a loucura. Foucault se interessa por essa obra abafada por saberes médicos. Pois Foucault sabe, assim como Artaud, de que a loucura não teria existido sem a medicina e a psiquiatria. Ao se contestar os saberes vindos da medicina e da psiquiatria, abre-se uma nova etapa de estudos sobre o corpo.

“Uma vertente do discurso de Artaud sobre o corpo humano decorre desta concepção da imaginação como sendo delirante, num sentido antimédico – imaginação que é livre porque ultrapassa os limites do espaço de funcionamento razoável que supostamente lhe estaria atribuído” (SARDINHA, 2017, p. 201).

Para Foucault, Artaud é um autor que causará fissuras nas estruturas do pensamento sem fazer literatura, filosofia e ciência16. Com efeito, Artaud, vai além de teorias e conceitos. A ciência não basta para Artaud. Ele é um transgressor. Um rebelde. Não se trata de uma outra perspectiva sobre o que já foi dito pela ciência. Ele diz o não dito pelo texto acadêmico17. É uma perspectiva singular sobre as questões de seu tempo. Isso que

16 Para Deleuze, autores como Kerouac, Burroughs, Lawrence e Miller sabem mais sobre esquizofrenia que

os psicanalistas e psiquiatras. (DELEUZE, 1992)

17 “A linguagem para Artaud deve emergir dessa profundidade, dessa putrefação pura do ser” (LINS, 1999,

(14)

une Artaud a Foucault. Ambos são indóceis e donos de uma escrita intensa. A respeito dos escritos de Artaud, diz Foucault:“...é o pensamento falando, é o pensamento, de algum modo, sempre aquém ou além da linguagem, escapando sempre a linguagem” (FOUCAULT, 2012, p. 53).

Sem dúvida, ele forneceu a Foucault, que o admirava, um foco primacial de estudos sobre a loucura, ao explorar o parentesco da loucura com o sol e o fogo. Artaud, na sua visão, escancarava os segredos mais profundos da loucura que vive “no âmago de nossa cultura” (FOUCAULT, 1995, p. 171). A loucura de Artaud é uma loucura que pertence a sua obra, mas que não explica a razão deste mundo. Essa loucura é exatamente “a ausência de obra” (FOUCAULT, 1995, p. 583).

E neste ponto, Artaud encarna o pensamento nietzschiano como nenhum outro pensador. Dizer que a arte traz novas cores para a vida nos remete a Nietzsche. Ela é mais autêntica que a ciência. A arte enriquece a vida18.

Artaud não é um contestador de estéticas teatrais. Não era este o seu interesse, se opor, por exemplo, a Shakespeare ou Strindberg. O seu interesse é transpor para o teatro questões culturais sem se desvincular das questões relativas a vida. Para ele, eram duas coisas que estavam desvinculadas. E cultura para Artaud

“se assemelha à fome – a busca de Artaud é sempre de uma arte visceral, viva, vital, mágica – como a ideia de lançar-se no abismo de Nietzsche... essa arte atinge quem dela participa de forma física, e causa uma transformação (alquimia)” (COPELIOVITCH, 2007, p. 7).

O teatro incendeia a alma humana, e neste sentido, ele é uma revolução cultural. O teatro não é apenas representação, não é apenas palavras. Ele não quer representar a psicologia dos personagens e nem a realidade. “O teatro nunca foi feito para descrever o homem e o que ele fez, mas para constituir um ser de homem que pudesse nos permitir avançar na estrada do viver sem supurar nem feder” (ARTAUD, 1986, p. 277).

O teatro é o que vem depois das cinzas? Não sabemos. Ele não existe para criar mitos. Ele também é vida, sensações, transes, gritos, êxtase e sentidos. E se você grita, você é reconduzido para outros estados. Se a peste decompõe o homem, ela também

18 “Artaud buscou diminuir a fissura entre força vital e forma, restaurando-as em uma coisa só: a vida”.

(15)

decompõe as nossas certezas19. O teatro desestrutura a ordem social e nos coloca diante da vida. “Como a peste, o teatro pode ter uma ação epidêmica, que dissolve os quadros regulares da vida social, e faz eclodir forças sombrias e disruptivas” (QUILICI, 2012, p. 42-43).

O teatro é muito mais que um texto, porque a palavra é incapaz de captar a vida interior. “Não é que ele rejeite, de saída, qualquer utilização do texto. Reivindica apenas que o encenador tenha, em relação a esse texto, uma inteira liberdade de manobras” (ROUBINE, 1998, 63). O teatro vai além de um texto e sua representação no palco. Ele é também ritual20. Daí o seu interesse pelo teatro balinês e pela cultura tarahumara. O teatro deixa de ser apenas um espetáculo ou uma ideia estética. E rito para Artaud não significa uma sacralização teatral, ou algo que produza um corte distintivo entre as culturas tradicionais ou modernas, mas um elemento constitutivo da cultura “pelos quais certas representações, valores, significados, traduzem-se nas ações corporais dos indivíduos” (QUILICI, 2012, p. 35).

Ademais, o teatro tem um caráter intuitivo que a lógica não consegue reproduzir. “Não se trata de suprimir o discurso articulado, mas de dar às palavras mais ou menos a importância que elas têm nos sonhos” (ARTAUD, 1984:120). É como se o corpo fosse tomado pela palavra, a ponto de fixar “uma dimensão sensível de sonoridades corporais”. (VITTORI, 2012, p. 6).

O próprio teatro é um duplo21 que interpreta por meio de metáforas: peste, alquimia, magia. É peste porque o teatro também representa algo mágico, ritual, atroz e perigoso. Não é mais o teatro texto, mas o teatro que se vive. Ela fala por imagens e as palavras nos chegam como nos sonhos. Não significa desprezar a palavra, mas fazer com que elas nos cheguem por outras vias. “Assim como nossos sonhos atuam sobre nós e a realidade atua

19 Segundo Rosa, Artaud dá “ao acaso uma predominância sobre o determinismo, à contingência uma

primazia sobre o necessário” (ROSA, 2009, p. 441)

20 Esse sentido ritualístico do Teatro da Crueldade prescinde de uma transformação do espaço cênico que

diminua a distância entre espectador e atores, ou seja, “um espaço cênico que tenha os espectadores situados ao centro (...) quer justamente marcá-los e envolvê-los de uma forma mais intensa, profunda e significativa” (SCHEFFER, 2008, p. 159).

21 A peça “Arden de Faversham” uma adaptação da obra de Gide, foi a escolhida para inaugurar em 1932

o “Teatro da Crueldade”. Com o fracasso, Artaud “se submete a um tratamento de desintoxicação no hospital Henri-Rousselle” (LINS, 1999, p. 88).

(16)

sobre nossos sonhos, pensamos que podemos identificar as imagens da poesia com um sonho, que será eficaz na medida em que será propulsionado com a violência necessária” (ARTAUD, 1984, p. 110).

É um teatro corporal que emana, que gesticula, que dança, que exorciza, que delira, que grita, que gira. É um teatro que mostra que a palavra não diz mais nada quando o corpo diz. É mais a cena da palavra do que a palavra em cena. Para Artaud, o teatro carece de especificidade, e não pode ser confundido com literatura e artes plásticas.

Deleuze diz que sua escrita artudiana não busca significantes, mas cartografias. Após ler “Para Acabar com o Juízo de Deus (1948), afirmará que ele um agrimensor da palavra. Ele mapeia o que está ainda por vir. “Conectar, conjugar, continuar: todo um "diagrama" contra os programas ainda significantes e subjetivos” (DELEUZE, 1996, p. 22).

Ao propor essa questão ele quer desestabilizar uma ordem social inerte22. O teatro

tem a capacidade de desestabilizar tal como a peste bubônica da Idade Média23. E a peste

também desestabiliza o corpo. É o corpo que luta para viver. O que Artaud deseja é que a peste faça com que o homem olhe para si próprio. O que importa é o corpo em permanente mutação. Esse corpo precisa estar possuído, vibrante, carregado de eletricidade. É o oposto do corpo máquina, do corpo disciplinado, tão estudado por Foucault. Ser ator no Teatro da Crueldade, é ser um interprete do mapa da vida.

A crueldade expulsa a vida aprisionada dentro de si. Ela é catártica, vulcânica e proliferante. Ela é o desassossego da existência humana. Da crueldade surge a consciência de si próprio. Jamais a literatura foi para Artaud um lugar para se organizar o caos. “O teatro não é o lugar do caos. Ele o anuncia e o prepara. E, se necessário, ele dá aos espectadores o desejo anárquico de destruição de toda ordem social” (DUMOULIÉ, 2010, p. 64). O seu sentido é mais amplo. “Pode-se muito bem imaginar uma crueldade pura, sem dilaceramento carnal. E, aliás, filosoficamente falando, o que é a crueldade? Do

22 . Como diz Camus em “A Peste” (1947), as reações diante da peste são inusitadas. A peste desafia a

ordem social: “A tolice insiste sempre, e compreendê-la-íamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios” (CAMUS, s/d, p. 30).

23 “A retomada de uma poesia da crueldade traz consigo uma escrita mais próxima da morte, uma forma

(17)

ponto de vista do espírito, a crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta” (ARTAUD, 1984:132).

O ensaio de Artaud “O Teatro e a Peste” tem um paralelo significativo com a obra de Plínio Marcos, que elaborou um teatro capaz de instigar a conscientização dos problemas sociais e políticos de seu tempo. É importante ressaltar que a visão cultural de Plínio não se limitou a negar os estrangeirismos descartáveis, mas foi acrescida de uma visão mais coletiva da vida e por uma ação transformadora por meio do teatro. Tal como Artaud, o teatro para Plínio possibilita o desenlace dos conflitos e o vazamento de abscessos coletivos. Para ambos os autores, o teatro desempenha um papel revolucionário e dispõe de elementos estéticos que afetam direta e indiretamente a ordem social existente, sem que isso signifique um posicionamento político partidário. Tudo passa por uma integração social através da cultura e não apenas limitada através da política.

Outro aspecto presente em ambos os autores é a disfunção entre duas culturas aparentemente opostas. De um lado Artaud contrapõe uma cultura que se adere mais à vida, que tem a mesma força das coisas reais, a uma cultura desvinculada da vida, abstrata, erudita e elevada à condição de uma ordem sagrada. Artaud prevê que essa última está fadada à morte e à poeira das bibliotecas, pois ela é “preguiçosa e inútil”, e “deve-se entender que não se trata da vida reconhecida pelo exterior dos fatos, mas dessa espécie de centro frágil e turbulento que as formas não alcançam” (ARTAUD, 1984: 22). De outro lado, Plínio retoma o velho tema da oposição entre a cultura erudita e a cultura popular. Para Plínio, a cultura popular é encarada de forma preconceituosa pelas elites “portadoras” de uma cultura erudita. Em algumas crônicas e depoimentos, o autor deixa claro que o aperfeiçoamento da cultura erudita passa pelo conhecimento da cultura popular. “Um homem que não consegue acreditar na cultura popular não consegue receber ensinamentos” (MARCOS, 1981:59). A cegueira, o poder econômico e a imposição de uma ciência que legitima o saber erudito, impede que a riqueza dessa cultura seja legitimada. Cabe, portanto, às elites entenderem melhor o alcance e a importância da cultura feita pelo povo.

(18)

Bibliografia

ARTAUD, Antonin. O Teatro e Seu Duplo. São Paulo: Ed. Max Limonad. 1984. ________. Le théâtre et l’anatomie. Paris: Gallimard, 1986. (Oeuvres complètes, 22). BARROS, Ricardo. Entrevista com Ricardo Barros, filho de Plínio Marcos e ator da peça Jesus Homem. VERBUM (ISSN 2316-3267), v. 6, n. 4, p. 162-164, nov. 2017 Entrevista 162.

BATISTA, Vera Malaguti. Depois do Grande Encarceramento. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

BRANCO, Lúcio Allemand. Anomia e Divergência em Barrela, de Plínio Marcos. In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n.º 25. Brasília, janeiro-junho de 2005, pp. 37-55.

CAMUS, Albert. A Peste. Rio de Janeiro: Record, s/d.

CARVALHO, Jacques Elias de. “Eu sou apenas um repórter de um tempo mau”: História, Censura e Recepção da obra de Plínio Marcos. Tese de Doutorado em História Social. UFU, 2017.

COPELIOVITCH, Andrea. Artaud e a Utopia do Teatro. In Revista.Doc. Ano VIII nº 3, Janeiro/Junho 2007. pp. 1-16.

CRONOLOGIA DAS ARTES CÉNICAS EM SÃO PAULO – 1975-1995, Artes Cênicas – Teatro. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 1996.

DELEUZE, Gilles. Conversações - 1972-1990. São Paulo: Ed. 34, 1992.

DELEUZE; Gilles; GATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo c esquizofrenia, vol. 3 / Gilles v.3, Deleuze, Félix Guattari; tradução de Aurélio Guerra Neto et alii. — Rio de Janeiro : Ed. 34, 1996.

DIONÍZIO, Mayara Joice. A Negação da Obra: Derrida e leitor de Artaud. kriterion, Belo Horizonte, nº 139, Abr./2018, p. 215-233.

DUMOULIÉ, Camille. Antonin Artaud e o Teatro da Crueldade. In: Revista de Lettres Françaises. nº 11, ano 1, 2010. pp. 63-74.

ESSLIN, Martin. Artaud. São Paulo: Cultrix, 1978.

(19)

___________. Pontos de Vista. In: (Org. Manuel Barros da Motta). Ditos e Escritos. (8). Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 57-58. 2012.

___________. Ditos e escritos. Da Arqueologia à Dinástica. In Ética, estratégia, poder-saber. MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. v. 4. pp. 46-58.

LIMA, Erickaline Bezerra de; CIOTTI, Naira Neide. Censura no Teatro Brasileiro e o Arquivo - Perdoa-me Por Me Traíres de Nelson Rodrigues: uma análise a partir de Jacques Derrida. Diacrítica, Braga, Vol. 29, n. 3, p. 98-120, 2015.

LINS, André. Antonin Artaud: o artesão do corpo sem órgãos. Rio de Janeiro: Relume Dumrá, 1999.

MAGALDI, Sábato. Moderna Dramaturgia Brasileira. São Paulo: Perspectiva, 2010.

MARCOS, Plínio. Barrela. São Paulo: Edições Símbolo, 1976.

________. Inútil Canto e Inútil Pranto pelos Anjos Caídos. São Paulo: Editora Parma Ltda, s/d.

________. Jesus Homem. São Paulo: Editora Grêmio Politécnico, 1981.

________. Saltimbanco do Macuco, in, A Crônica dos Que Não Tem Voz. (Orgs), Fred Maia, Javier Arancibia Contreras e Vinícius Pinheiro, São Paulo: Boitempo Editorial, 2002, p.183.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 1988.

MARINHO, Letícia Morales Wanderley. As Estratégias Conversacionais no Diálogo Construído de Plínio Marcos, Dois Perdidos Numa Noite Suja. Mestrado em Língua Portuguesa. PUC/SP. 2006.

MARTON, Scarlett. Quem Somos Nós? | Friedrich Nietzsche por Scarlett Marton. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=5L2K6HKrEyA>. Acesso em 18/08/2020.

NIN, Anaïs. Um perfil de Artaud: Escritos de Antonin Artaud. Seleção e notas: Cláudio Willer. (Coleção Rebeldes e Malditos, Vol. 5). Porto Alegre, RS: L&PM, 1983.

PAVINI, Renan. Linguagem e Morte em Antonin Artaud. In Revista Estação Literária. Londrina, Volume 12, p. 469-485, jan. 2014.

(20)

PEIXOTO, Fernando. Teatro em Movimento – 1959-1984. São Paulo: Editora Hucitec, 1986.

PRADO, Décio de Almeida. O Teatro Brasileiro Moderno. São Paulo: Perspectiva, 2001. QUILICI, Cassiano Sydow. Antonin Artaud: teatro e ritual. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012.

ROSA, Márcia. Antonin Artaud: de poeta do teatro da crueldade a tradutor. In: Revista Mal-estar e Subjetividade – Fortaleza – Vol. IX – Nº 2 – p. 435-457 – jun/2009.

ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

SANTIAGO, Silviano. O Trabalho do ódio. In: Revista Cult. 29 de Março de 2004. SARDINHA, Diogo. Três Corpo: Artaud, Foucault, Deleuze. In: Dois Pontos: Curitiba, São Carlos, volume 14, número 1, p. 199-212, abril de 2017.

SCHEFFER, Ismael. UM “espaço-ÁRVORE” no TEATRO DE ARTAUD. In: R.cient./FAP, Curitiba, v.3, p. 153-161, jan./dez. 2008.

VIEIRA, Paulo. Plínio Marcos: a flor e o mal. Editora Firmo: Petrópolis, 1994.

VITTORI, Ceres. Antonin Artaud: performance como poesia do corpo sonoro. Cadernos do IL, Porto Alegre, n.º 45, dezembro de 2012. p. 05-18.

ZANOTTO, Ilka Marinho. Descida aos Infernos. In: Plínio Marcos: melhor teatro. São Paulo: Global, 2003.

Referências

Documentos relacionados

SEÇÃO 4 MÉTODOS DE APLICAÇÃO DE NEMATÓIDES ENTOMOPATOGÊNICOS PARA O CONTROLE DA CIGARRINHA-DAS-PASTAGENS RESUMO Objetivou-se conhecer a patogenicidade de isolados de

Professor(a), a avaliação dessa Situação de Aprendizagem deve ser feita ao longo do desenvolvimento das atividades e na participação e engajamento dos(as) estudantes em todo

Embora o uso de CNC esterificado tenha promovido perda de estabilidade do polímero P3HT, os compósitos do tipo 2 apresentaram estabilidade térmica

O CNDH encontra-se sob intervenção, na mesma e grave situação enfrentada pelo CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente , CONSEA –

Como professora, percebi que a atividade exigia muito mais do educador, colocando-o em posições muito diferentes daquelas da aula tradicional (como uma aula expositiva,

Plínio Marcos Abajur lilás. peç a em dois

Também neste ano, o Ministério da Saúde criou o “Plano operativo para implementação de ações em saúde da população em situação de rua 2012-2015” que tem como objetivo