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A construção da cidadania no Brasil: histórico, desafios e caminhos

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Academic year: 2021

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INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA SOCIEDADE – MACAÉ CURSO DE DIREITO

CAROLINA THADEU MELLO DA SILVA

A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA NO BRASIL: HISTÓRICO, DESAFIOS E CAMINHOS

Macaé – RJ 2019

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A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA NO BRASIL: HISTÓRICO, DESAFIOS E CAMINHOS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Federal Fluminense, como parte das exigências para a obtenção do título de bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Heron Abdon Souza

Macaé 2019

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Gerada com informações fornecidas pelo autor

Bibliotecária responsável: Fernanda Nascimento Silva - CRB7/6459 S586c Silva, Carolina Thadeu Mello da

A construção da cidadania no Brasil: histórico, desafios

e caminhos / Carolina Thadeu Mello da Silva ; Heron Abdon de Souza, orientador. Macaé, 2019.

66 f.

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito)- Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências da Sociedade, Macaé, 2019.

1. Cidadania no brasil. 2. Participação popular. 3. História da cidadania. 4. Produção intelectual. I. Souza, Heron Abdon de, orientador. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências da Sociedade. III. Título.

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-A CONSTRUÇÃO D-A CID-AD-ANI-A NO BR-ASIL: HISTÓRICO, DES-AFIOS E CAMINHOS.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Federal Fluminense, como parte das exigências para a obtenção do título de bacharel em Direito.

Aprovada em 04 de dezembro de 2019

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________ Prof. Dr. Heron Abdon de Souza (Orientador)

________________________________________________________ Profª. Drª. Fabianne Manhães Maciel

_________________________________________________________ Luidgi Silva Almeida – Mestrando PPGDC-UFF

Macaé 2019

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Aos meus pais, meus agradecimentos por toda estrutura concedida ao longo de toda a minha vida, e por terem sido os primeiros e principais incentivadores dos meus estudos. Ao meu irmão Igson, pelas palavras de apoio e incentivos. Aos meus primos, Pedro e Beatriz, por me acompanharem de perto durante toda a jornada da minha graduação e de produção deste trabalho. Aos meus professores, por despertarem em mim o gosto pelo estudo e pela busca constante do conhecimento.

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O objetivo do presente trabalho consiste na análise do processo de construção e efetivação da cidadania no Brasil. A ideia de cidadania possui diversos aspectos a serem compreendidos, e com base na ideia de cidadania como um conjunto de direitos que permitem ao indivíduo participar da vida pública e da tomada de decisões, o trabalho se inicia com uma análise histórica do processo de aquisição de direitos pela sociedade brasileira, com o detalhamento de fatos importantes para as nossas conquistas democráticas. Em seguida, a partir do significado de cidadania como participação, analisa-se os mecanismos de exercício da cidadania participativa, encontradas no nosso atual ordenamento jurídico e com pilares na Constituição Federal de 1988. Por fim, o presente trabalho se debruça a compreender em que estágio se encontra a cidadania no Brasil, a partir da análise da efetividade dos instrumentos institucionais de participação, da reação da sociedade diante de uma possível ineficiência desses instrumentos, e dos caminhos que podem ser percorridos em busca de uma maior efetivação do exercício da cidadania no Brasil.

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The objective of this paper is to analyze the process of construction and implementation of the citizenship in Brazil. The idea of citizenship has several aspects to be understood, and based on the idea of citizenship as a set of rights that allows one to participate in public life and decision making, this article begins with a historical analysis of the acquirement of civil rights by the brazilian society, with detailings of important facts to our democratic achievements. Then, from an aspect of citizenship that is equivalent to participation, this artcle analyzes the possibilities of the exercise of participatory citizenship in our current legal system based on the Federal Constitution of 1988. Finally, this paper focuses on understanding in which stage the brazilian citizenship is, based on the analysis of the effectiveness of the institutional instruments of participation, the reaction of the society to the inefficiency of these instruments and the paths that can be followed in the search for greater effectiveness of the exercise of citizenship in Brazil.

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INTRODUÇÃO...8

1. A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA CIDADANIA NO BRASIL...11

1.1. Não cidadãos: o Brasil colônia...12

1.2. Da independência ao fim da primeira república – direitos políticos só no papel...16

1.3. Direitos Sociais: Revolução de 30 e Getúlio Vargas...18

1.4. Direitos Políticos: da primeira experiência democrática à Ditadura Militar de 1964...21

1.5 Um passo atrás: a ditadura militar...22

1.6. A Constituição Cidadã de 1988 e a redemocratização...26

2. CIDADANIA E A CONSTITUIÇÃO DE 1988: A EFETIVIDADE DOS INSTRUMENTOS CONSTITUCIONAIS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR...28

2.1. Plebiscito e referendo...30

2.2. Iniciativa Popular...33

2.3. Conselhos Gestores de Políticas Públicas...35

2.4. Orçamento Participativo...40

3. BALANÇO ATUAL DA CIDADANIA NO BRASIL: DESAFIOS E CAMINHOS...43

3.1. O que não deu certo...43

3.2. Espaços não institucionalizados de participação: a importância dos movimentos sociais para a cidadania...50

3.3. O fortalecimento da cidadania através da educação política...52

CONCLUSÃO...57

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INTRODUÇÃO

“Cidadania” é um conceito que não pode ser determinado sem antes se definir o contexto no qual ele será invocado. Apesar de seu significado clássico remontar a Grécia Antiga com a ideia de participação política, a ideia de cidadania sempre variou em tempo e espaço, sendo moldada a depender do que se pretende obter se identificando como cidadão. Enquanto na Antiguidade a cidadania era a materialização da participação na vida pública da cidade – a pólis grega –, na Modernidade, seu conceito passou a ser atribuído às conquistas sociais, que se iniciam no século XVIII com a Revolução Francesa e seus ideais burgueses de liberdade, igualdade e fraternidade e vão se amoldando às gerações históricas que se seguem, como no século XX, em que, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o conceito de cidadania se aproximou muito do conceito de direitos humanos.

Apesar de possuir diferentes aspectos e aplicações, a ideia de cidadania sempre acaba por circundar a relação entre o indivíduo e o Estado, seja na preocupação do próprio indivíduo com a coisa pública, seja na forma em que o Estado permite que esse indivíduo participe das suas decisões. Segundo Dalmo Dallari (2004, p. 22), cidadania se refere a um conjunto de direitos que possibilitam a pessoa participar ativamente da vida e do governo na sociedade a que pertence. Assim, são cidadãos as pessoas que gozam desses direitos, estando os “não-cidadãos” excluídos da vida social e da tomada de decisões.

Ser cidadão, contudo, não se trata de uma condição passiva de receptor de direitos. A ideia de cidadania abrange também a existência de deveres para com o Estado ao qual se possui o vínculo de nacionalidade. Na teoria constitucional moderna, o cidadão é entendido como o portador de direitos e deveres fixados por uma determinada estrutura legal (constituição, leis, etc), sendo, em tese, livres e iguais perante a lei, porém súditos do Estado (BENEVIDES, 1994). Nos regimes democráticos, entende-se que os cidadãos participaram ou aceitaram o pacto fundante da nação ou de uma nova ordem jurídica.

Na prática, são necessários questionamentos sobre esse pacto, pois evidente que no contexto capitalista e de uma sociedade de classes, não é todo e qualquer cidadão que determina os ditames da ordem jurídica (BENEVIDES, 1994). T.H. Marshall (1967) ao discorrer sobre a evolução histórica dos direitos do cidadão, procura elucidar o que entende como embate entre a igualdade implícita na ideia de cidadania e as desigualdades inerentes ao capitalismo, concluindo que, principalmente em sociedades autoritárias, a concessão de direitos não ocorrem como prestações legítimas visando a cidadania, mas como benesses para

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tutelados e clientelas, porque nessas sociedades de extrema estratificação social, não era o povo que ocupava esses espaços e promovia a implantação desses direitos.

E aqui, aborda-se o principal aspecto do conceito de cidadania a ser destrinchado neste trabalho, que se refere a ideia de cidadania como participação. Participação popular ou cidadã “consiste no processo de atuação do povo na esfera pública de um Estado; nas instâncias de poder, seja por meio da ação conjunta nos processos decisórios, seja por intermédio do planejamento e da atividade fiscalizadora” (JUCÁ, 2007). Essa participação pode estar incluída dentro da esfera de deveres impostos pelo Estado, como o voto obrigatório, ou pode partir de uma certa voluntariedade dos indivíduos, a partir de mecanismos de participação social, que podem ser institucionais – como os conselhos populares – ou autônomos, a exemplo dos movimentos sociais.

No Brasil, antes de se chegar a um estágio de estabilidade democrática que possibilitou a implantação de diversos mecanismos de participação, houve um longuíssimo processo histórico de conquista – e concessões – de direitos no país. O capítulo 1 do presente trabalho se utiliza das bibliografias de T.H. Marshall (1967) e José Murilo de Carvalho (2018) para tecer análises sobre fatos importantes na evolução democrática do Brasil, que se inicia na exploração do latifúndio monocultor com a utilização de mão de obra escrava, deixando profundas marcas no desenvolvimento de nossa sociedade, passando pela efetivação dos direitos sociais a partir de uma postura concessiva do Estado brasileiro, que se deu com pouca participação popular, até o importante despertar da sociedade civil durante a ditadura militar, que possibilitou o restabelecimento da democracia no país e viabilizou a implantação de diversos instrumentos inerentes ao exercício da cidadania participativa na Constituição de 1988.

No capítulo 2, foram abordados os principais instrumentos institucionais de participação popular, sob a égide da Constituição Federal de 1988. Primeiro, foram analisados o plebiscito e o referendo, instrumentos da democracia direta expressos no texto constitucional, que consistem na consulta a população sobre determinado assunto com vistas a sua aprovação. Em seguida, tratamos da iniciativa popular, mecanismo que permite propositura de leis pela população, desde que cumpridos certos requisitos previstos na Constituição. Depois, passamos a análise dos Conselhos Gestores de Políticas Públicas, ou conselhos populares, espaços onde representantes da população e membros do poder público trabalham na elaboração e fiscalização de políticas públicas. Por fim, abordamos a prática do orçamento participativo, mecanismo que possibilita a população intervir na formulação do

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orçamento dos entes públicos.

Já no capítulo 3, voltamos a atenção para o contexto atual da cidadania no Brasil, partindo da análise sobre a efetividade dos instrumentos institucionais de participação popular e na visão negativa que a juventude vem tendo sobre a utilização desses espaços para exercício da cidadania participativa. Abordamos ainda como a sociedade tem procurado se organizar para intervir nas tomadas de decisões pelo poder público e sobre as possibilidades de promoção do exercício cidadão através da educação política.

A metodologia para elaboração deste trabalho iniciou com uma pesquisa exploratória sobre as mais diversas circunstâncias fáticas que impactam o exercício cidadão no Brasil, quando então a ordem de desenvolvimento do trabalho pode ser elaborada, demonstrando os aspectos históricos, constitucionais e por fim o panorama atual da cidadania. A pesquisa foi realizada através de consultas a livros, trabalhos acadêmicos, artigos periódicos e reportagens sobre o tema.

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1. A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA CIDADANIA NO BRASIL

Partindo do conceito de cidadania desenvolvido pelo sociólogo T.H Marshall (1967), temos que o cidadão pleno é entendido como o que possui amplo gozo de direitos civis, políticos e sociais. Nessa conceituação, o autor sugere que, cronologicamente e tendo seu desenvolvimento ocorrido historicamente na Inglaterra, primeiramente surgiram os direitos civis, no século XVIII, seguido pelos direitos políticos no século XIX e, por fim, os direitos sociais, conquistados no século XX.

Essa ordem, no entanto, muito mais do que cronológica, obedeceria a uma sequência lógica: por uma necessidade da burguesia de comandar seus negócios e acumular suas riquezas sem a necessidade da autorização e ingerência de um monarca, surgem os direitos civis, e com ele o seu principal pilar que era a liberdade de conduzir a sua vida privada. Com o exercício dos direitos civis e da liberdade trazida, foi possível ir além e reivindicar o direito de intervir nas decisões estatais através do voto e de participar do governo, surgindo assim os direitos políticos. Com os direitos civis e políticos difundidos, trabalhadores e operários puderam eleger seus representantes e serem os responsáveis pela introdução dos direitos sociais.

Como exceção a essa sequência, no entanto, o autor enfatiza que o direito social a educação tem sido historicamente um requisito para a difusão de outros direitos. Nos países em que houve um esforço de difundir a educação popular, a cidadania se desenvolveu com mais rapidez, pois onde as pessoas tinham conhecimentos dos seus direitos era mais fácil que elas se organizassem para lutar por eles, fazendo com a transformação partisse de uma iniciativa popular e não de uma vontade paternalista de um governo.

Carvalho (2018) conclui, analisando o trabalho de T.H. Marshall (1967), que a cidadania, então, é um fenômeno histórico: o seu desenvolvimento está estritamente relacionado ao desenvolvimento do Estado, independente de qual seja o país. A cidadania em um Estado vai depender de como se deu o processo de desenvolvimento de sua relação com o povo, e isso coloca uma contradição na sequência desenvolvida por Marshall: apesar do desenvolvimento da cidadania na Inglaterra saltar aos olhos como um modelo, o percurso inglês não foi o percorrido em outros países. Assim, entendendo que a sequência possui uma razão lógica, temos que a natureza da cidadania também será diferente, como é possível se observar ao analisamos o desenvolvimento da relação entre Estado e povo ocorrida no Brasil.

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por desequilíbrios de forças e pela dominação de classes. O exercício da cidadania no Brasil sempre esbarrou em barreiras estruturais de poder, verdadeiros desafios na busca da consolidação de direitos e de sobrevivência na sociedade democrática. Seguindo a conceituação de T.H. Marshall (1967), Carvalho (2018) observa que o percurso em direção a cidadania plena se deu de maneira invertida: aqui, antes de consolidarmos direitos civis e políticos, tivemos uma grande difusão dos direitos sociais. Ressalte-se que não se trata de surgimento: apesar dos direitos políticos e civis terem sido previstos formalmente antes dos direitos sociais, a sua consolidação e efetividade na sociedade não se deu na mesma ordem.

Não é difícil concluir que, em um país onde a sociedade não goza de garantias civis como liberdade e isonomia e nem da oportunidade de participar da política, o surgimento dos direitos sociais não se deu de baixo para cima. Sem desconsiderar movimentos relevantes que se formaram no país, muitos sob influência do ambiente internacional impulsionado pelo comunismo, a conquista dos direitos sociais no Brasil obedeceu uma lógica populista e paternalista de Getúlio Vargas, como poderemos observar na sequência deste trabalho. E, ainda sim, muito tardiamente. Apenas em 1930, 430 anos depois da nossa descoberta, 108 anos após a independência e 41 anos do início da República, que a sociedade finalmente conheceu e efetivamente se beneficiou dos primeiros direitos sociais. Já os direitos políticos e civis, apesar de previstos formalmente na Constituição de 1824, sua aplicabilidade era muito pouco efetiva a título de participação cidadã da população, por não mexer na escravidão e pela total manipulação dos processos eleitorais extremamente fraudulentos

Postas essas considerações iniciais, passemos a analisar, com base nos escritos de José Murilo de Carvalho (2018) e de T.H. Marshall (1967), o processo de construção democrática do Brasil, desde a descoberta até a proclamação da Constituição Cidadã de 1988, seguindo os complexos caminhos que o país tem seguido para formação de sua cidadania.

1.1. Não cidadãos: o Brasil colônia

Sem a intenção de detalhar como se deu o processo histórico de descoberta do Brasil por Portugal, é importante ressaltar que o objetivo comercial e econômico na colonização foi o fator primordial e desencadeante de uma série de obstáculos para a formação da cidadania brasileira. Estando os portugueses diante de uma vasta quantidade de terra extremamente fértil, favorecida pela localização favorável entre os trópicos e habitada por povos

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seminômades, o objetivo de se estabelecer um ambiente de exploração exigia, primeiro, a dominação dos índios que aqui habitavam. Detentores de tecnologias muito mais avançada, o domínio e extermínio dos indígenas pelos portugueses, através da guerra e da escravidão, foi consequência imediata da colonização portuguesa no Brasil. Em segundo lugar, era necessária a transferência de grandes detentores de capital de Portugal para a colônia – oportunidade em que vieram os senhores de engenho para dar início a exploração da terra – e da mão de obra escrava, considerando que a população de Portugal era muito pequena frente as grandes extensões de terra para exploração que oferecia o Brasil.

Os indígenas, então, foram os primeiros a serem escravizados, logo que os portugueses se estabeleceram em nossas terras. No entanto, frente a uma forte oposição dos jesuítas e a rapidez em que foram dizimados, logo recorreu-se a escravos africanos, que já eram utilizados em outras colônias de Portugal. Desse modo, os principais instrumentos de exploração da colônia – as grandes propriedades e a escravidão – foram os principais obstáculos para a formação da cidadania brasileira, conforme veremos a seguir.

A colonização portuguesa no Brasil, apesar de iniciar com a exploração do pau-brasil, logo foi substituída pelo cultivo da cana-de-açúcar, considerando que Portugal já possuía experiência em sua produção nas ilhas do Atlântico (Madeira e Cabo Verde), que detinham clima muito parecido com o Brasil. Para isso, formaram-se os engenhos de açúcar, grandes propriedades de terra pertencentes a senhores de origem portuguesa e detentores de muito capital para investimento. A mão de obra da produção era escrava, e rapidamente, no entorno desses engenhos, foram se formando pequenos núcleos populacionais que viviam direta ou indiretamente da produção do açúcar. O contraste entre os senhores de engenhos e de toda a sua família extremamente abastada, frente ao restante da população – composta de escravos e pequenos artesãos, em que todos eram dependentes da exploração do açúcar – foi a responsável pela grande desigualdade que logo se estabeleceu nesse contexto, e que se constituía, a partir de então, como um dos mais graves problemas do Brasil.

Essa desigualdade era observada não apenas na evidente diferença de patrimônio, mas também no acesso a direitos e garantias por parte da população. É certo que o exercício dos direitos civis só é possível frente a um Estado garantidor e com um Judiciário independente, o que, definitivamente, não existia no período colonial. A justiça do rei (de Portugal) tinha alcance limitado, ou porque não chegava aos lugares mais afastados das cidades ou porque tinham como obstáculo a justiça privada dos grandes proprietários. Eram os senhores, chamados de “homens bons”, os responsáveis por desenvolver partes das funções do Estado,

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inclusive as funções judiciárias que, longe de promoverem a garantia de direitos da população, se utilizavam dessas funções como meros instrumentos de promoção de seus poderes pessoais. Outras funções públicas, como arrecadação de impostos, registros de nascimento e casamento, também eram exercidas por particulares e pela Igreja, constituindo uma verdadeira confusão na separação entre os poderes do Estado e os poderes privados dos grandes senhores. A consequência dessa confusão era a inexistência, no Brasil, de algo que pudesse se chamar de poder público, e que pudesse atuar como garantidor de direitos civis, como a igualdade de todos perante a lei, ficando a população ao arbítrio dos grandes proprietários de terras.

Outro fator que obstava o desenvolvimento da cidadania no Brasil era a escravidão. Essencial para o funcionamento da colônia, a exploração de mão de obra escrava se iniciou com os índios e, na segunda metade do século XVI, passou a ser importada da África. Estima-se que até a independência, 3 milhões de escravos vieram para o Brasil, Estima-sendo que em 1822, em uma população de 5 milhões de habitantes, haviam 1 milhão de escravos e 8 mil índios (CARVALHO, 2018, p. 25). A escravidão era enraizada na sociedade brasileira e estava em todos os lugares, tanto nas áreas rurais quanto nas cidades. Nas grandes propriedades, trabalhavam na agricultura, pecuária, mineração, no trabalho doméstico e quaisquer outras atividades que os senhores ordenassem. Nas cidades, era comum que pessoas com alguma renda alugassem escravos para desempenhar tarefas na rua, como artesanato, venda, e etc. A prática da escravidão era tão estrutural, que até mesmo os escravos, ao serem libertos, adquiriam outros escravos. Assim, a sociedade colonial era escravista em todas as suas classes e aspectos.

Considerando, então, que uma parcela significativa da população da colônia era composta de escravos, fica evidente que não havia, para esses, nenhuma possibilidade de exercício da cidadania, no menor grau que fosse. Privados de direitos civis básicos, como integridade física, liberdade e, em alguns casos, até mesmo a vida, foram longos os caminhos até a inserção desses indivíduos como titulares de algum direito perante a lei. Pelo contrário, até a abolição da escravidão, os escravos eram equiparados a animais e considerados como propriedade de seus senhores, que podiam os vender, trocar, prender, espancar e matar, sem sofrer nenhuma consequência ou sanção. Direitos políticos e sociais nem se cogitava. Enquanto escravos, mesmo após a Constituição de 1824, não lhes eram permitidos votar ou ter qualquer tipo de participação ou influência estatal.

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explicado pela total ausência de incentivo público a educação nesse período. Conforme já citado anteriormente, T.H. Marshall (1967) considera o direito social à educação como uma exceção a sequência lógica na difusão dos direitos. Países que, de algum modo, incentivaram a educação, construíram sua cidadania de forma mais rápida. No início, quem promovia a alfabetização na colônia eram os jesuítas, mas após a expulsão dos religiosos, o Estado se encarregou de promovê-la. Essa promoção pelo Estado se dava de maneira totalmente inadequada, não havendo sequer registro dos níveis de alfabetização durante o período colonial. Sabe-se que, já após a independência, em 1872, apenas 16% da população brasileira era alfabetizada (CARVALHO, 2018, p. 28), para se ter noção da proporção do descaso. Não sendo valorizada pelo Estado, não seria também pelos senhores, que não possuíam nenhum interesse em esclarecer os seus escravos ou subordinados, diante da noção do poderoso instrumento de revolta que poderiam estimular.

Além da educação básica e da alfabetização, a educação superior era igualmente ignorada. No Brasil, diferente do que ocorria na América Espanhola, eram proibidas a criação de universidades, e quem quisesse cursar o ensino superior teria que ir para Portugal. Obviamente, apenas quem detinha muito dinheiro – na maioria dos casos, os familiares dos grandes senhores – conseguia se deslocar até o continente europeu. A título de comparação, ao fim da colonização, haviam 23 universidades na América Espanhola, com cerca de 150 mil pessoas já tendo concluído sua formação (CARVALHO, 2018, p. 29), enquanto no Brasil, apenas em 1808 foram permitidas a criação de escolas superiores, em razão da vinda da corte portuguesa para o Brasil. Assim, o descaso com a educação no período colonial, foi mais um dos obstáculos a formação da cidadania brasileira.

É possível concluir, com base nas análises de Carvalho (2018), e partindo da conceituação de cidadania e direitos desenvolvida por T.H. Marshall (1967), que não existiu cidadania no Brasil colonial. Uma consequência dessa “não-cidadania”, foram as raras revoltas cívicas do período. Excetuadas as escravas que, em sua maioria, foram duramente massacradas, as manifestações que ocorreram foram quase todas promovidas pela elite contra as políticas da metrópole e pela independência de algumas regiões, a exemplo da Inconfidência Mineira. Esse quadro consiste em uma consequência lógica de um período em que grande maioria da população se encontrava excluída dos direitos civis e políticos, não havendo sequer consciência da possibilidade de se engajar por eles.

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1.2. Da independência ao fim da primeira república – direitos políticos só no papel.

Diferente do que ocorreu na América do Norte e na América Espanhola, a independência do Brasil se deu de forma relativamente pacífica. Excetuando alguns conflitos regionais que acabaram sendo derrotados, a exemplo da Revolução Pernambucana de 1817, não houve ampla mobilização nacional em prol da independência, que teve como principal característica a negociação entre a elite nacional, a coroa portuguesa e a Inglaterra. Havia um sentimento popular, manifestado principalmente nas capitais, como no Rio de Janeiro, de ódio aos portugueses que controlavam o poder e o comércio nas cidades costeiras. Mas a elite, apesar de almejar maior liberdade de Portugal, entendia a necessidade da figura do rei para manter a ordem social. A posição do povo não foi de mero espectador, mas também não foi decisiva. A consequência dessa pouca participação foi a inexistência de mudanças radicais em relação ao período colonial, que, além de possuir uma herança extremamente negativa, teve muito pouca influência popular em seu processo, fazendo com que os benefícios de uma maior independência não fossem revertidos em prol da sociedade.

A Constituição outorgada de 1824 trazia grandes novidades e avanços no que se refere aos direitos políticos. Trouxe uma ampla liberdade de voto para os padrões da época, podendo votar todos os homens de 25 anos ou mais que possuíssem renda mínima de 100 mil réus anuais, incluindo os analfabetos, estabelecendo, no entanto, uma limitação de renda de 100 mil réis. Para os chefes de família, dos oficiais militares, bacharéis, clérigos, empregados públicos e todos que possuíam independência econômica, a idade mínima era de 21 anos. No entanto, apesar de representar um avanço nos direitos políticos, ainda trazia graves limitações nos direitos civis pois a Constituição de 1824 não tocou na escravidão, permitindo a sua existência até a abolição em 1888.

Ainda assim, o referido avanço se deu apenas na forma. Na prática, o manejo desses processos eleitorais não refletia necessariamente uma maior participação cidadã do povo, mais sim o surgimento de um instrumento de manutenção e controle de poder pela elite. O povo que agora possuía o direito de votar era o mesmo que tinha vivido três séculos de colonização, tempos estes que trouxeram de herança o analfabetismo de 85% da população (CARVALHO, 2018, p. 37), incapaz de entender as estruturas do Estado e o que seria um governo representativo. A característica principal das eleições nesse período era a fraude. Compra de voto, manipulação do procedimento com a adulteração de cédulas, atas eleitorais e da mesa eleitoral, além da truculência dos chefes locais que se utilizavam de capangas para

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ameaçar e constranger o povo a votar conforme suas pretensões. Uma série de práticas que retiravam do processo eleitoral qualquer legitimidade para representar a vontade popular. Podemos entender que a previsão constitucional do direito ao voto constituiu algum avanço, principalmente para preparar o terreno para futuras mudanças substanciais, mas a forma e os objetivos desses processos eleitorais não representavam uma mudança radical no contexto de participação popular. Para Carvalho (2018, p. 41) “o voto era um ato de obediência forçada ou, na melhor das hipóteses, um ato de lealdade e gratidão” aos chefes políticos locais que muitas das vezes eram responsáveis por um mínimo de assistência social que existia na época. Em 1889, tivemos novamente uma mudança na estrutura do Estado, sendo instituída a República, mas também sem avanços radicais. A diferença foi o surgimento de uma nova forma de controle do poder com a sua descentralização e fortalecimento das oligarquias locais. Contrariando as expectativas de progresso democrático, pudemos evidenciar um retrocesso no que se refere aos direitos políticos: os analfabetos foram excluídos do direito ao voto, o limite de renda passaria de 100 para 200 mil réis e o voto passava a ser facultativo, refletindo um legislativo representante de uma elite que justificava os problemas do Brasil pela ignorância dos eleitores que não sabiam escolher seus representantes. Célebre frase do deputado Saldanha Marinho representava uma das poucas vozes dissonantes da época: “Não tenho receio do voto do povo, tenho receio do corruptor” (CARVALHO, 2018, p. 44). José Bonifácio também tinha essa consciência, entendendo que o retrocesso era um erro de sintaxe política, pois criava uma oração politica sem sujeito, um sistema representativo sem povo (CARVALHO, 2018, p. 44). No mais, continuavam as mesmas praticas fraudulentas de controle popular pelo voto de cabresto, agora sendo conduzido pelas oligarquias, através do que ficou conhecido como “coronelismo”.

No que se refere aos direitos civis, a abolição da escravidão não foi acompanhada da reinserção dos escravos libertos na sociedade. Considerando que o interesse na abolição se deu por motivos econômicos, muito por pressão inglesa, diante de um cenário internacional que defendia a remuneração do trabalho para inserção dos trabalhadores na rede de consumo, o fim da escravidão no Brasil não teve nenhuma conotação libertária. A consequência disso foi o abandono dos escravos libertos a própria sorte: sem educação, sem terras, sem trabalho e renegados por uma sociedade em que a ideia do negro como escravo estava extremamente enraizada em sua cultura. Foram muitos os escravos libertos que retornaram as fazendas para trabalhar por uma mísera remuneração. Aos que se aventuravam nas cidades, ficavam abandonados e sem empregos, pois com a vinda de imigrantes italianos para ocuparem os

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postos de trabalhos surgidos com o dinamismo do café, aos libertos sobravam os trabalhos mais brutos e mal pagos, e isso somente aos que conseguiam um trabalho.

Sobre direitos sociais, muito pouco se podia falar, pois eram quase inexistentes. A assistência social que existia era praticada pelo setor privado, principalmente pela Igreja, e não passavam de caridade. Houve ainda um retrocesso importante com a retirada do Estado, pela Constituição Republicana de 1891, da obrigação de promover a educação primária, prevista na Constituição de 1824, dificultando ainda mais a conscientização popular. Fora a previsão de uma Caixa de Aposentadoria e Pensão para os ferroviários em 1923, a Primeira República não representou avanço significativo no que se refere aos direitos sociais.

Assim, da independência até o fim da Primeira República, é possível analisar de forma geral pela inexistência de uma população politicamente ativa e organizada. No entanto, Carvalho (2018) traz importantes ponderações a essa análise. A primeira se refere a dois movimentos da época que alcançaram mobilização nacional, e de alguma forma representava um despertar da conscientização política, o movimento abolicionista e o tenentismo, em que o primeiro foi importante para difundir a ideia de liberdade e unificação nacional e o segundo teve o seu mérito na luta contra o poder das oligarquias locais. Uma segunda ponderação a essa análise, consiste na ideia de se entender que, mesmo não havendo um exercício de cidadania dentro de seus instrumentos formais de efetivação, o povo se expressava de outras formas. Mesmo não tendo papel central nos processos de independência e de formação da República, não foram poucas as revoltas populares que aconteceram no período. Rapidamente, podemos citar as manifestações no Rio de Janeiro contra o regresso de D. Pedro a Portugal, em 1822, as rebeliões populares do período regencial, a Revolta do Vintém em 1880 e a Revolta da Vacina em 1904. Portanto, é correto se dizer que ainda não tínhamos um exercício organizado de cidadania capaz de impactar os rumos da política e da sociedade, mas é importante salientar sobre o um possível despertar do povo sobre o papel que o Estado deveria assumir na proteção dos direitos da população.

1.3. Direitos Sociais: Revolução de 30 e Getúlio Vargas

O ano de 1930 representou um marco para a história do país: a partir de então as transformações sociais e políticas passaram a acontecer de forma mais acelerada. O contexto internacional influenciava bastante, a crise do capitalismo com a quebra da bolsa de Nova York em 1929, o período pós primeira guerra mundial, a reação do comunismo que se

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expandia pela influência soviética, além dos ideais fascistas que começavam a tomar força. No Brasil, o ano de 1930 marcou uma experiência que pela primeira vez se via no Brasil: uma mobilização civil derrubando uma estrutura de governo, que, nesse momento, se tratava do coronelismo e do poder das oligarquias.

Sem a intenção de detalhar todo o processo, é importante ressaltar que o movimento de 30 derrubou o último presidente da Primeira República, colocando no lugar um representante da oligarquia gaúcha mas de ideais e propostas totalmente opostas aos da república oligarca. Getúlio Vargas implementou no Brasil uma série de reformas que o levou a ser considerado como um dos presidentes mais populares da história do Brasil, tendo como seu carro-chefe a implementação e consolidação dos direitos sociais.

Contrariando um ideal liberal que prevalecia desde antes do início da República, de que o governo não deveria interferir nas relações de trabalho, Vargas instituiu as primeiras legislações trabalhistas no Brasil. Foi estabelecido o limite de jornadas, a regulação do trabalho dos menores, o estabelecimento de igualdade salarial para homens e mulheres, além da criação da carteira de trabalho, do direito de férias, do salário-mínimo, dentre outros benefícios. A regulação das relações de trabalho foi incorporada pela Constituição de 1934, que criou, ainda. a Justiça do Trabalho, e em 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), codificando a legislação trabalhista do país. Também ocorreram importantes avanços na previdência social, com a criação dos Institutos de Aposentadoria e Pensão, que instituía e regulava a previdência de cada categoria profissional, além do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, que setorizou e especializou a regulação dessas áreas pelo governo.

Um aspecto negativo nessa expansão de direitos trabalhistas foi a sua limitação a determinadas categorias: os trabalhadores urbanos autônomos e domésticos (mulheres em sua maioria) e os trabalhadores rurais ficaram de fora, diante de uma forte influência dos proprietários rurais, os quais Vargas não quis enfrentar. Outro ponto importante e polêmico, era em relação a sua política sindical. Basicamente, os sindicatos eram constituídos como braços do governo na organização dos trabalhadores, em que estes deveriam seguir a sua filosofia, não possuindo quase que nenhuma autonomia, pratica que ficou conhecida como “peleguismo”. As organizações de trabalhadores que se formassem a margem da estrutura do governo ficaria de fora de alguns privilégios concedidos somente aos sindicalizados, a exemplo de direito a férias e benefícios previdenciários. Os sindicatos pelegos, portanto, não passavam de meros órgãos consultivos do governo, não representando necessariamente os interesses das categorias.

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Necessária e importante retomar aqui a já mencionada sequência lógica de efetivação de direitos analisada por T.H Marshall (1967). A população brasileira teve efetivado os direitos sociais antes da consolidação de seus direitos políticos e civis. Sem direitos civis e políticos plenos, são mínimas as possibilidades de mobilização popular para a conquista dos direitos sociais, o que faz com que essa iniciativa tenha de partir do governo para o povo, diante de uma lógica paternalista. A politica sindical varguista manejava a legislação trabalhista e social como um privilegio e não necessariamente como um direito: só teriam acesso aos “direitos” aqueles que se enquadrassem na estrutura sindical montada pelo Estado. Ora, se o governo visualizasse tais benefícios como direitos (e por isso as aspas), não haveria distinção entre trabalhadores sindicalizados ou não, já que os direitos são inerentes a todos os que se encontrem na mesma condição. Foi desse modo que Vargas consagrou sua politica populista, ofertando ao povo direitos sociais que há muito se reivindicava, mas amarrando tais benefícios a sua figura e ao seu governo.

Quanto aos direitos políticos, o processo foi conturbado. Em 1932, foi editado o Código Eleitoral que trouxe avanços significativos no combate as fraudes, marca registrada dos processos eleitorais da Primeira República. Foi introduzido o voto secreto e a Justiça Eleitoral, responsável por fiscalizar as eleições, além dos deputados classistas, que consistiam em deputados escolhidos pelos sindicatos. Outra importante conquista do Código Eleitoral foi a introdução do voto feminino, avanço importante no que se refere ao exercício da cidadania política. Tais avanços foram todos consolidados pela Constituição de 1934, como ocorreu com os direitos sociais.

No entanto, em 1937, em razão de um contexto internacional de polarização, as vésperas da eclosão da Segunda Guerra Mundial, Vargas aproveitou o momento para criar uma retórica de perigo comunista e justificar um golpe e o fechamento do Congresso.

Esse período foi de ataque a direitos civis e políticos, típicos de ditaduras. Além de fechamento do Congresso, os inimigos do regime foram repreendidos, a censura foi instaurada assim como um rigoroso controle da imprensa. No entanto, o período não contou com grandes revoltas, demonstrando que, mesmo após a mobilização ocorrida em 1930, os avanços democráticos ainda eram frágeis e pouco consolidados para se perceber a gravidade de uma ataque as próprias estruturas democráticas de poder. No entanto, com o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, a ditadura implantada não mais se sustentava, e apesar da tentativa do próprio Getúlio Vargas em promover uma redemocratização, o presidente foi deposto pelas forças liberais de oposição movidas, inclusive, pelos seus próprios ministros

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militares em 1945.

1.4. Direitos Políticos: da primeira experiência democrática à Ditadura Militar de 1964

Com a queda de Vargas, foram convocadas eleições na qual se elegeu Eurico Gaspar Dutra como presidente em 1946. Nesse ano, foi promulgada uma nova constituição, inaugurando a que pode ser considerada como a primeira experiência democrática da história do país.

Além de manter as conquistas sociais, a constituição manteve os tradicionais direitos políticos e civis. Até 1964, houve regularidade para eleições em todos os cargos, liberdade de imprensa e uma grande pluralidade de partidos e movimentos se formando e participando cada vez mais ativamente do cenário político, funcionando livremente, sem ameaças ou perseguições estatais, com exceção do Partido Comunista, que tinha seu funcionamento proibido desde 1947. Apesar de toda liberdade, restrições importantes que ainda existia eram ao direito de voto dos analfabetos, o que significava um empecilho importante ao exercício da cidadania ativa, e da proibição do direito de greve, que, no entanto, apesar de proibidas, eram feitas as margens da lei. Mesmo com essas limitações, a participação popular na política cresceu significativamente após 1945, tanto através das eleições quanto do engajamento politico por meio dos partidos, sindicatos e outras associações. A título de comparação, o percentual de votantes em 1930 era de 5,6%, nas eleições de 1950 era de 15,9% e em 1962 o eleitorado era de 26% da população total (CARVALHO, 2018, p. 150).

As práticas eleitorais, apesar de estarem longe da perfeição em relação as fraudes, tiveram uma maior regulação com a instituição da Justiça Eleitoral, além de forte influência da rápida urbanização: o eleitor urbano era menos vulnerável do que o eleitor rural, estando menos suscetíveis aos aliciamentos e coerções. Apesar dos eleitores urbanos estarem suscetíveis ao populismo, esse dependia de um maior convencimento, muito além da reciprocidade individual que era comum ao campo. Consistia, segundo Carvalho (2018, p. 152), em um “aprendizado democrático que exigia algum tempo para se consolidar, mas que caminhava com firmeza”.

Vargas retorna à presidência em 1950 através de eleições regulares e realiza um governo marcado pelo embate entre o nacionalismo e a oposição liberal junto aos setores militares, que envolveram graves disputas envolvendo a criação da Petrobras e o acirramento

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da postura populista de Vargas, no episódio em que determina o aumento de 100% do salário-mínimo. O fim dessa disputa acontece com o suicídio de Getúlio Vargas em 1954, que causa uma imensa comoção popular e obriga a oposição liberal e os militares recuarem em sua disputa pelo poder.

O sucessor de Vargas foi Juscelino Kubitschek, e seu governo deu continuidade a regularidade democrática retomada em 1946. Apesar da oposição civil e militar, não houve restrições a liberdade de imprensa, nem de qualquer meio de participação, tendo ainda acalmado os ânimos da luta entre nacionalistas e liberais pela sua postura desenvolvimentista que propiciou um crescimento econômico em torno de 7% ao ano. Não houve mudanças significativas quanto a aquisição ou perda de direitos nesse período, tendo, tanto os sindicatos e operários quanto os industriais, se beneficiado da política de Juscelino, e sendo mantida a ordem democrática estabelecida pela Constituição de 1946. Assim como Vargas, Kubitschek também não alterou a legislação social para incluir os rurais, permanecendo o setor de fora dos benefícios trabalhistas e previdenciários. Ao final do mandato, setores da esquerda já estavam insatisfeitos com a abertura do capital e dos acordos realizados com o Fundo Monetário Internacional (FMI), mas Kubitschek conseguiu terminar seu mandato sem maiores dificuldades e entregá-lo ao seu sucessor eleito, Jânio Quadros.

O governo de Jânio Quadros durou apenas seis meses, quando o presidente decidiu renunciar, assumindo o seu vice, João Goulart, que enfrentou um antigo embate dos tempos varguistas, entre a direita liberal e a esquerda nacionalista. Seu governo, marcado pela intensa polarização e radicalização dos discursos políticos, teve como realizações a criação do Estatuto do Trabalhador Rural, em 1963, estendendo ao campo a legislação social e sindical, e a promoção das chamadas “reformas de base”, que consistiam em reformulações das estruturas agrária, fiscal, bancária e educacional. Essas medidas, frente a um contexto internacional de Guerra Fria, foram logo tomadas pela direita como uma proposta de instauração do comunismo. Não demorou para que o setor liberal e os militares se organizassem e promovessem, em 31 de março de 1964, o golpe militar, que encerraria, então, o que foi considerado como o primeiro ensaio democrático brasileiro.

1.5 Um passo atrás: a ditadura militar.

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general Costa e Silva, contrariando, inclusive, lideres políticos da direita, por conta de uma necessidade de expurgar opositores ideológicos integrantes das próprias forças armadas e pela aproximação dos militares a empresários com objetivos políticos bem definidos. Foi um período em que os direitos civis e políticos foram duramente atingidos, contando com um amplo aparato estatal de repressão.

Para iniciar o expurgo dos que eram contrários ao regime, o governo militar promoveu a cassação de direitos políticos de grande número de opositores sindicais, intelectuais e, até mesmo, de militares, através do Ato Institucional nº 1 (AI-1). Foi utilizado também os mecanismos de aposentadoria forçada de servidores públicos, intervenção e fechamento de sindicatos e movimentos, perseguição dos opositores através Inquéritos Policiais Militares (IMP's) na apuração de supostos crimes de corrupção e subversão, tudo isso sob a justificativa do “perigo comunista”. Com o AI-2, foi decretado o fim da eleição direta para presidente e do pluripartidarismo, dissolvendo diversos partidos para a formação de apenas dois – ARENA, partido do governo e o MDB, partido de oposição. No entanto, diante do amplo cerceamento e repressão pelo governo, as atividades dos opositores ficaram quase que minadas durante um longo período da ditadura e a existência do MDB só subsistia para conferir ao regime uma suposta legitimidade democrática, que na prática não existia. O AI-2 também ampliou bastante os poderes do presidente, lhe atribuindo legitimidade para dissolver o parlamento, intervir nos estados, decretar estado de sítio, demitir funcionários civis e militares, além da reforma do judiciário promovida pelo ato institucional, aumentando o número de juízes nos tribunais superiores para que o presidente pudesse nomear apoiadores do governo.

O mais importante e autoritário dos atos institucionais foi o AI-5 em 1968, que, em reação a uma grande mobilização que se iniciou no país contra as medidas autoritárias do governo militar, decretou o fechamento do Congresso Nacional, a suspensão do habeas corpus para crimes contra a segurança nacional e a retirada de apreciação judicial de todos os atos decorrentes do próprio AI-5.

Em 1969, assumiu a presidência o general Garrastazu Médici, e foi promulgada a nova Constituição, que incorporou todos os atos institucionais. Com Médici, a ditadura atingiu o seu ponto mais alto de repressão, com a introdução da pena de morte por fuzilamento, censura prévia nos meios de comunicação, além de uma nova lei de segurança nacional, mais rígida. Na falta de instrumentos legais, a oposição passou a agir na clandestinidade através de grupos armados com táticas de guerrilha. Em resposta, a repressão estatal se intensificou, através dos órgãos de inteligência como a Polícia Federal e o Serviço Nacional de Informações (SNI), que

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atuavam nas operações de repressão junto com órgãos do Exército, Marinha e Aeronáutica, policias militares e delegacias dos estados. O Exército criou agências especializadas de repressão, chamados de Destacamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna, que ficou conhecido como DOI-Codi, locais onde ocorreram a maioria das denúncias de tortura pelos perseguidos do regime.

Assim, à censura prévia a imprensa minou a liberdade de opinião; com o fim do pluripartidarismo e a intervenção e fechamento de sindicatos e movimentos, não se tinha liberdade de reunião; era proibido se fazer greves; o cerceamento de defesa era regra nas prisões arbitrárias; a inviolabilidade do lar e de correspondência não mais existiam, além da violação a integridade física pela tortura. Durante um longo período, os órgãos de segurança e informação agiam espalhando o medo e a repressão sem nenhum tipo de controle por parte do governo.

Contradição relevante, foi que, salvo algumas interrupções, o Congresso permaneceu aberto por quase todo o período. Mas, com os principais opositores cassados, a sua manutenção tinha o objetivo principal de referendar as decisões e aprovar os projetos que vinham do Executivo. Além disso, houve a manutenção das eleições legislativas, mas sempre que possível eram controladas pelo governo, com adiamento, censura a propaganda, vedação aos candidatos mais radicais e alteração das leis para manutenção de maioria no Congresso Nacional. Diante desse quadro, apesar da existência do direito ao voto, o questionamento é de que se eles de fato representavam o exercício dos direitos políticos, diante de um evidente esvaziamento de seu sentido.

Uma aparente contradição acontecia em razão de uma grande expansão dos direitos sociais à época, ao tempo em que ocorria um amplo cerceamento dos direitos civis e políticos, Dentre os feitos, pode-se ressaltar a criação do Instituto de Previdência Social (INPS) que unificou o sistema de previdência e acabou com os IAP's, deixando de fora apenas o funcionalismo público; a criação do Fundo de Assistência Rural (Funrural), incluindo os trabalhadores rurais na previdência, medida que não tinha sido feita por nenhum dos governos anteriores; a incorporação das duas categorias que ainda se encontravam excluídas da previdência, as domésticas e os autônomos; a criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, que, em contrapartida, acabava com a estabilidade decenal no emprego; a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), que facilitava a compra de casa própria aos trabalhadores de baixa renda; e, por fim, a criação do Ministério da Previdência e Assistência Social, em 1974. O regime militar procurou repetir a tática do Estado Novo, procurando

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compensar a falta de liberdade política com o paternalismo social. Assim, Carvalho (2018, p. 176) ressalta que a cidadania nos governos militares deve ser analisada levando em conta a “manutenção do direito do voto combinada com o esvaziamento de seu sentido e a expansão dos direitos sociais em momento de restrição de direitos políticos”.

Em 1974, foi empossado o general Geisel, que pertencia a uma ala mais liberal dos militares, e que, apesar de não aderir ao populismo varguistas, também não era simpatizante de uma ditadura. Esse perfil propiciou o início de uma abertura lenta e gradual do regime, que foi abrandando suas medidas repressivas. As principais mudanças promovidas em direção ao abrandamento do regime foi a votação no Congresso, em 1978, pelo fim do AI-5, o fim da censura prévia no rádio e na televisão e o restabelecimento do habeas corpus para crimes políticos. O governo, ainda, atenuou a Lei de Segurança Nacional, permitindo o retorno de 120 exilados políticos, e aboliu o bipartidarismo, possibilitando novamente o ressurgimento de diversos partidos. Como ato final de transição, os militares deixaram de indicar um candidato a sucessão presidencial em 1985, na qual foi eleito Tancredo Neves, do recém-criado PMDB. Infelizmente, Tancredo faleceu no dia de sua posse, assumindo o seu vice, José Sarney, que integrou o governo militar.

Com as medidas de abertura, a oposição passou a poder se manifestar e ser novamente ativa no cenário político. Em 1974, nas eleições para o Congresso, o MDB conseguiu engajar os eleitores e eleger mais senadores do que o governo e quase igualar o número de seus deputados aos da ARENA, permitindo uma maior e mais enfática atuação parlamentar da oposição. Com o início da abertura e o retorno do pluripartidarismo, muitos partidos foram criados, e a novidade foi a criação do Partido dos Trabalhadores (PT), formado por operários, enfatizando a força dos movimentos sindicais que crescia a época.

Fora do movimento partidário e sindical, organizações civis passaram a ter influência no cenário politico, a exemplo da Igreja Católica, em que parte de seus integrantes eram adeptos a teologia da libertação. Outras organizações importantes que se formaram foram os movimentos sociais urbanos, tanto nas favelas como nas classes médias, que se caracterizavam por se voltarem para problemas concretos da política cotidiana e não necessariamente adotando uma postura político-partidária. Outras organizações da sociedade civil merecem destaque pelo seu amplo ativismo contra o regime militar, são a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), além dos artistas e intelectuais que sempre manifestavam suas insatisfações com o regime através de suas artes. Também Merece

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destaque a grande campanha pelas eleições diretas – as “diretas já” - que mobilizou mais de 500 mil pessoas as ruas do Rio de Janeiro e cerca de 1 milhão em São Paulo. Apesar de não terem êxito na aprovação das eleições diretas em 1984, conseguiram emplacar a eleição de Tancredo Neves no colégio eleitoral.

1.6. A Constituição Cidadã de 1988 e a redemocratização

O otimismo com o fim da ditadura prosseguiu com a promulgação de uma nova constituição em 1988. A Constituição de 1988 foi um marco na história democrática do país, em que a garantia dos direitos dos cidadãos era uma preocupação central, visando impedir a possibilidade de qualquer tipo de retrocesso democrático. Dentre as principais mudanças trazidas pela nova Constituição, citamos a universalização do direito ao voto com a inclusão dos analfabetos, que em 1990 ainda representavam cerca de 30 milhões de brasileiros. Ainda, grande destaque tiveram os direitos sociais, que foram previstos em amplitude maior do que em todas as constituições antecedentes, sendo fixado o limite de um salário-mínimo para aposentadorias e pensões, instituindo o pagamento de um salário-mínimo a todos os deficientes físicos e maiores de 65 anos, independentemente de contribuição, além de introduzir a licença-paternidade e criar o Sistema Único de Saúde (SUS), que garantiu o acesso gratuito e universal da população aos serviços públicos de saúde.

No âmbito dos direitos civis, a Constituição trouxe a inovação do habeas data, garantindo o acesso de qualquer cidadão a suas informações cadastradas em registros públicos, mesmo que confidenciais; criou o mandado de injunção, pelo qual se garantiu o cidadão a possibilidade de recorrer a justiça para a concretização dos direitos constitucionais previstos; definiu o racismo como crime inafiançável e imprescritível e a tortura como crime inafiançável e não anistiável; além da criação dos Juizados Especiais, que permitiu um maior acesso da população ao judiciário, através de procedimentos mais simples e céleres.

A Constituição de 1988, portanto, representou a esperança de uma ascendência democrática do Brasil. Apesar de que, obviamente, as mudanças não aconteceriam da noite para o dia, e que problemas estruturais como a desigualdade e a pobreza ainda predominariam na realidade brasileira até os dias de hoje, a plena liberdade de exercício dos direitos políticos, os mecanismos de participação popular e a própria prática cidadã de mobilização passaram a ser presentes na sociedade brasileira e elevaram a “disputa pelo desenvolvimento” a um

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patamar democrático: ou seja, agora a sociedade passaria a contar com instrumentos legítimos e efetivos para interferir no poder público e propiciar a solução de problemas que ainda persistiam em seu meio. É claro que esses instrumentos não são facilmente aplicáveis e nem sempre são efetivos, considerando todo um sistema politico elitista que até hoje reproduz práticas corruptas e antiéticas para a manutenção do poder. No entanto, hoje, tais práticas concorrem com as liberdades politicas e civis e com os instrumentos de fiscalização tanto do próprio poder público quanto da sociedade. Assim, a democracia, assegurada pela Constituição de 1988, permite que essas praticas, apesar de persistentes, sejam cada vez mais perceptíveis e combatidas, aos olhos de uma sociedade que amadurece, aos poucos, a sua percepção sobre direitos e sobre cidadania.

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2. CIDADANIA E A CONSTITUIÇÃO DE 1988: A EFETIVIDADE DOS INSTRUMENTOS CONSTITUCIONAIS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR

A Constituição de 1988 representou um importante marco na democracia participativa brasileira. A mobilização social que ressurge na década de 70, promovida tanto pelos movimentos políticos contrários a ditadura, quanto por organizações civis engajadas no combate a problemas sociais, principalmente os movimentos urbanos, foi fator decisivo para garantir a participação democrática na nova estrutura constitucional que se formava. Com a nova constituição, o povo, destinatário das garantias constitucionais, deixa de ser um mero receptor, para se tornar um ator na construção e efetivação dos direitos fundamentais, através de instrumentos constitucionalmente previstos para propiciar a participação social no planejamento, execução e fiscalização de políticas públicas.

Antes mesmos de sua promulgação, o caráter participativo da nova ordem constitucional já se demonstrava através de todo o processo de elaboração da Constituição pela Assembleia Nacional Constituinte, que se deu com ampla participação da sociedade civil em sua formulação. A principal promotora dessa ampla participação popular foi a previsão regimental de “emendas populares” à Constituição Federal, que permitiu que a sociedade pudesse efetivamente elaborar dispositivos a serem integrados ao texto constitucional, impulsionadas desde a coleta de assinatura para sua admissão, até os discursos em sua defesa, no próprio plenário da constituinte. Além das emendas, a participação foi possível através das audiências públicas e na atuação direta da sociedade civil através da presença em debates e nas negociações com os parlamentares constituintes, como bem pontuou Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte (ROCHA, 2008):

[…] além das "122 emendas populares, algumas com mais de um milhão de assinaturas[...] A participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de dez mil postulantes franquearam, livremente, as onze entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento, na procura dos gabinetes, Comissões, galerias e salões. Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar. (trecho extraído de Discurso de Ulisses Guimarães em 05 de outubro de 1988).

Conceitualmente, a participação popular pode ser considerada como um “princípio, que decorre diretamente do princípio democrático extraído da própria definição do Brasil como um Estado Democrático de Direito” (SANTIN; MATIIA, 2008, p. 3), onde o poder será

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exercido pelas vias representativas e participativas, conforme previsto no art. 1º da CRFB/88. O princípio da participação popular, então, é intrínseco ao ordenamento jurídico brasileiro e à estrutura democrática de Estado, sendo plena a sua força normativa, não havendo necessidade de regulamentação e dogmatização para sua plena aplicação e observância.

Assim, segundo Humberto Bergmann Ávila (1999 apud SANTIN; MATIIA, 2008, p. 3), na aplicação do ordenamento jurídico brasileiro, é necessária a observância do princípio democrático e da participação, tanto em âmbito constitucional como infraconstitucional. Nesse sentido também se posiciona J.J. Gomes Canotilho (1999 apud SANTIN; MATIIA, 2008, p. 4), defendendo o princípio democrático como norma jurídica positivada, sendo mais do que métodos ou técnicas de escolha de governantes, mas um verdadeiro valor dirigente da sociedade. Dessas conceituações, se conclui que, para além da efetividade, a própria legitimidade de politicas públicas e de processos decisórios dependem da promoção da participação popular direta e ativa.

Em seu âmbito prático e consequencial, a participação popular pode ser conceituada como um controle social das atividades do Estado, possuindo alguns aspectos. O primeiro aspecto seria o da fiscalização das atividades estatais, através do acompanhamento da implementação e execução de políticas ou da administração dos recursos, da lisura dos procedimentos e do respeito aos princípios norteadores das atividades, a exemplo dos princípios constitucionais administrativos como a moralidade e impessoalidade. A participação popular também se constitui pelo aspecto consultivo, em que setores da sociedade civil são consultados em decisões ou politicas públicas sobre temas afetos e correlatos ao respectivo setor, sendo mais eficiente na identificação e resolução de problemas, pois ninguém melhor para definir os contornos de uma politica publica do que o seu próprio destinatário. Por fim, pode-se evidenciar um aspecto executivo, através da existência de instrumentos que possibilitam a formulação de politicas públicas e de normas pela própria sociedade civil, o que ocorre, por exemplo, através dos conselhos populares e da iniciativa popular nos projetos de lei.

Trazida algumas importantes conceituações e contextualizações, passaremos a analisar alguns dos instrumentos institucionais de participação popular na gestão pública e que retiraram seu fundamento de existência diretamente da Constituição Federal de 1988, representando importantes avanços – alguns deles até inovadores – para a democracia participativa no Brasil. Ressalte-se que o princípio da participação popular é refletido de forma vasta no texto constitucional, em uma diversidade de artigos, mas que, aqui, o foco será

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nos principais instrumentos de participação popular direta, que concretizam os aspectos elencados no paragrafo anterior, quais sejam, consulta, fiscalização e execução.

2.1. Plebiscito e referendo

Plebiscito e referendo são dois instrumentos clássicos de participação popular direta, na qual o povo é chamado para se manifestar sobre determinado assunto, aprovando-o ou não. Trata-se da manifestação da vontade sem intermediários, ou seja, sem a necessidade de uma representação. Tais mecanismos se constituem como um “contrapeso corretivo dos abusos de um sistema representativo puro e esclerosado” (BONAVIDES, 2008, p. 288), com o objetivo de atribuir maior legitimidade a democracia representativa. Assim, tanto o plebiscito como o referendo são considerados instrumentos inerentes a democracia semidireta, em que a democracia representativa tem a sua legitimidade reforçada por instrumentos da democracia participativa.

Ressalte-se, aqui, o caráter complementar do plebiscito e do referendo, que não significam uma ruptura do sistema democrático representativo, tendo em vista que a população é chamada para se manifestar sobre uma situação previamente posta. Suas possibilidades e implicação são pré-determinadas pelo próprio sistema representativo, diferentemente do que ocorre na iniciativa popular, instrumento no qual o povo age de forma propositiva, ao elaborar, ele próprio, algum tipo de alteração na realidade social.

Especificamente sobre o plebiscito, Benevides (1991) o conceitua como uma consulta que pode ser realizada “a qualquer tipo de questão de interesse público (como políticas governamentais) e não necessariamente de natureza jurídica, inclusive fatos ou eventos”, além de ter como característica a manifestação popular sobre medidas que ainda serão realizadas, conforme previsto no art. 2º, §1º da Lei 9.709/98. Como exemplo, pode-se realizar um plebiscito para que a população opine sobre a possibilidade da edição futura de uma norma.

O plebiscito é previsto em diversos dispositivos da Constituição Federal: em seu art. 14, I, como forma de exercício da soberania popular; no art. 18, §3º e §4º onde sua aplicação é prevista como requisito de incorporação, fusão, divisão e desmembramento de estados e municípios da previsão; e no Ato das Declarações Constitucionais Transitórias (ADCT), em seu art. 2º, sendo disciplinado que “no dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo

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(parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País.”

Essa previsão do art. 2º do ADCT foi a primeira experiência plebiscitária ocorrida no Brasil sob a égide da Constituição Federal de 1988, ressaltando que, sob a vigência da Constituição de 1946, em 1963, ocorreu um plebiscito sobre o sistema de governo a ser adotado durante a gestão de João Goulart. Já sob a vigência da CRFB/88, houve ainda algumas ocorrências regionais sobre alterações territoriais, como em 2011, quando a população do estado do Pará disse não ao seu desmembramento em Carajás e Tapajós. No entanto, em âmbito nacional, a única utilização do plebiscito foi em 1993, no qual a população brasileira optou pela forma de governo republicana, em oposição a monarquia, e pelo sistema de governo presidencialista em vez do parlamentarista.

No que se refere ao referendo, Benevides (1991) o diferencia do plebiscito pelo fato do referendo se restringir a atos normativos legislativos ou constitucionais, diferente daquele em que a natureza não será necessariamente jurídica. Ainda, os referendos são “convocados após a edição de atos normativos, para confirmar ou rejeitar normas legais ou constitucionais em vigor” (BENEVIDES, 1991, p. 132-133), tendo o objetivo de ratificar uma norma já produzida. Previsto no art. 14, II da Constituição Federal, o referendo foi realizado apenas uma vez no Brasil, em 2005, na qual se convocou a população a se manifestar sobre a proposta de alteração do Estatuto do Desarmamento – Lei 10.826/03, com o intuito de proibir a comercialização de armas de fogo no território nacional, a qual foi rejeitada pela população.

José Álvaro de Moisés (1990) ao analisar as formas de participação direta, destrincha alguns aspectos positivos e negativos a respeito delas. Por um lado, estes institutos atribuem um caráter de legitimidade importante aos processos decisórios tanto do Poder Legislativo quanto do Poder Executivo, causando grande entusiasmo pelo fato de conceder a população o poder de intervir diretamente em decisões politicas e contribuindo para o desenvolvimento de posturas responsáveis. Por outro, tais instrumentos acabam sendo pouco eficazes pela ausência de conhecimento político das “pessoas comuns”, que não possuem a preparação para intervir em decisões politicas importantes para toda a sociedade e nem mesmo o interesse. Essa crítica é a mesma realizada para efetividade da participação popular em seu aspecto amplo, que tem como um dos maiores obstáculos a falta de educação política que permeia uma expressiva parcela da população, o que acaba gerando desinteresse e afastamento da sociedade em relação as importantes decisões que são tomadas no âmbito do sistema representativo.

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referendo, a competência exclusiva do Congresso Nacional para autorizar e convocar o plebiscito, prevista no art. 49, XV da CRFB/88. Segundo ele,

(…) É preciso começar, portanto, por dar ao povo o direito elementar de manifestar a sua vontade, através de referendos e plebiscitos. Ora, o que fizeram os nossos oligarcas? Puseram na Constituição, para americano ver, que referendos e plebiscitos são manifestações da soberania popular. Mas acrescentaram, em um dispositivo um tanto escondido que o Congresso Nacional tem competência exclusiva para “autorizar referendo e convocar plebiscito” (Constituição Federal, art. 49, inciso XV). Como vocês veem, a nossa inventividade jurídica é extraordinária. Os deputados e senadores, eleitos pelo povo, são ditos seus representantes ou mandatários. Em lugar algum do mundo, em momento algum da História, o mandante deve obedecer ao mandatário. Bem ao contrário, este tem o dever de cumprir fielmente as instruções recebidas do mandante. Aqui, instituímos exatamente o contrário. O povo, dito soberano, só tem o direito de manifestar a sua vontade, quando autorizado pelos mandatários que escolheu. (Revista Caros Amigos, 2010)

Assim, apesar de a população ter o poder de participar diretamente das decisões políticas através desses instrumentos, somente os mandatários podem autorizar essa participação. Tal observação é relevante quando nos deparamos com o pouquíssimo uso dos plebiscitos e referendos em nossa história constitucional recente, que já conta com trinta anos de estabilidade democrática mas que, por apenas duas vezes, se utilizou dos referidos instrumentos em âmbito nacional. Em sua crítica, Comparato (2010) ressalta, ainda, que a população nunca foi chamada a se manifestar sobre questões constitucionais, como opinar sobre propostas de emendas a constituição. Junto a essa crítica, podemos ressaltar a análise de Moisés (1990), de que o plebiscito, com raras exceções, é utilizado apenas para “reforçar um determinado esquema de poder (…) para o qual ou para os quais deseja ampliar ou restringir a base de apoio popular”. Assim, tais instrumentos acabariam se constituindo como mecanismos de reafirmação de um poder, já que sua autorização e convocação independe de qualquer vontade popular, mas sim de uma autorização concedida exclusivamente por quem já detém este poder.

2.2. Iniciativa Popular

Terceiro instrumento de participação direta previsto no art. 14, III, da Constituição Federal, a iniciativa popular consiste na possibilidade de proposituras de leis pela própria população, sendo mais um dos mecanismos de legitimação da nossa democracia representativa. A propositura de um projeto de lei de iniciativa popular deve seguir os requisitos previstos no art. 61, §2º da Constituição Federal, devendo o projeto ser subscrito

Referências

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