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ESTÔMAGO, O FILME, COMO PRATO PRINCIPAL PARA A HISTÓRIA: PROJEÇÕES DA ALIMENTAÇÃO NO CINEMA

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“ESTÔMAGO”, O FILME, COMO PRATO PRINCIPAL PARA A HISTÓRIA: PROJEÇÕES DA ALIMENTAÇÃO NO CINEMA

Uliana Kuczynski – Universidade Federal do Paraná (PGHIS/UFPR)/ Capes Em 2007 é lançado o longa-metragem Estômago, dirigido por Marcos Jorge. O filme narra, basicamente, a inserção e “ascensão” social do protagonista Raimundo Nonato devido ao seu talento culinário. Ele é um retirante que chega na cidade grande sem perspectivas, mas que, ao longo da trama, conquista lugares de maior representatividade por possuir o dom de cozinhar. A figura deste cozinheiro, portanto, é permeada por situações vividas nas ruas da metrópole, num bar (onde trabalhara), num restaurante italiano e inclusive na cadeia. Porém, o preparo e degustação das iguarias de Nonato, ou Alecrim, para os companheiros do cárcere, são constantes na trama - o que leva o espectador a reconhecer a primazia dada à comida na totalidade da obra.

Comum em uma série de outras obras internacionais, a forma como a comida é evidenciada em Estômago chama a atenção para investigar o interesse da indústria cinematográfica neste tema. Com significativa notoriedade a partir, sobretudo, dos anos oitenta e tendo como emblema A Festa de Babette (Gabriel Axel, 1987), os filmes pautados na gastronomia tomam a cena e se estruturam num rol que pode ser encarado como um “gênero da comida”. São obras como O Jantar (Ettore Scola, ITA/FRA, 1998), O Tempero da

Vida (Tassos Boulmetis, GRE/ TUR, 2003), ou Julie & Julia (Nora Ephron, USA, 2009), os

quais dispõem de enredos ou desfechos centrados no ato de sentar-se à mesa; na figura do cozinheiro e suas habilidades culinárias; ou ainda ambientado nos restaurantes. A ênfase nos pratos e/ou cozinhas tradicionais e a fotografia provocativa ao paladar também convergem para protagonizar a mesma questão.1

Cumpre observar que comida, aqui, é entendida no seu sentido mais abrangente, como uma categoria histórica, cujas relações culturais, de poder, seus valores simbólicos ou econômicos, encerram esse conceito, pois, que excede o nutricional. “Pois os padrões de permanência e mudanças dos hábitos e práticas alimentares tem referência na própria dinâmica social” (SANTOS, 2005, p. 13). Isso permite afirmar que o que se come é tão importante quanto quando se come, onde, como e com quem se come. E é desta maneira que ela aparece (também) nos filmes (sendo que em Estômago, importa quem cozinha o que se come).

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O filme se encaixa no período da cinematografia brasileira que se convencionou chamar Retomada, após o restabelecimento do diálogo Estado/Cinema, através da Lei Rouanet em 1993, que fora interrompido em 1990, quando da extinção da Embrafilme. Após 2002 alguns autores classificam o período como Pós- Retomada2, no sentido de já estar sedimentada, restabelecida a produção. Aí já é notória uma efervescência no fazer filmes nacional (em 2008, por exemplo, foram 90 filmes)3, e o dito diálogo com o Estado está (indiretamente) representado pela Agência Nacional de Cinema (ANCINE), cuja função é fomentar e regular as atividades.

Vale notar que o filme foi premiado em Festivais Internacionais e Nacionais; foi vendido para 20 países; e está em negociação com os Estados Unidos seu remake, para transformá-lo em série. Aspectos esses que acentuam o olhar sobre a obra, instigando o trabalho com o filme na sua relação com a sociedade que o produz e consome.

* * *

O primeiro longa-metragem de Marcos Jorge é fruto do Prêmio de Produção de Filmes de Baixo Orçamento, do Ministério da Cultura e contou, ainda, com a colaboração do acordo bilateral de co-produção entre Brasil e Itália. Desde 1970 ele não havia sido utilizado, mas a produtora Claudia da Natividade, recorrendo a ele, completou a viabilização da obra. Sua realização (filmagem) ocorreu no Brasil e seguiu para a Itália, para a finalização, culminando com o lançamento em 2007, no Festival do Rio, onde já conquistou prêmios.

O roteiro, por sua vez, é adaptado do conto “Presos pelo Estômago”, do livro “Pólvora, Gorgonzola & Alecrim”4, no qual Lusa Silvestre reúne ainda outras ficções pautadas na comida, na gula, nas maneiras de cozinhar e comer. Isso é perceptível no próprio nome do livro/conto, bem como sua clara ligação com o “visceral” título do filme. Já sobre as divergências entre as duas linguagens (literária e fílmica), é possível resumir o seguinte: para o longa-metragem (112min) a história fora ampliada, mantendo do conto a trama ocorrida na cadeia, que seria o “presente”. O final tragicômico que o filme oferece não aparece no livro (nesse há uma tentativa de fuga frustrada pelo peso excessivo dos comensais na cela). Porém o nome do personagem, e o tom grotesco - que garante certa peculiaridade à Estômago frente a outros “filmes gastronômicos” - e o talento de Nonato na cozinha improvisada da cela (incluindo até algumas receitas), são mantidos5.

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Como foi dito no início, o filme narra a inserção e “ascensão” de Raimundo Nonato. A narrativa é não-linear e intercala presente – ambientado na penitenciária – e passado – Nonato na cidade grande, trabalhando no Boteco do Seu Zulmiro, e depois no Restaurante Italiano Boccaccio, para onde o protagonista é convidado a

trabalhar, quando descoberto o sucesso de seus “quitutes”. Aí Nonato ainda conhece Íria, a quem também “prende pelo estômago”, mas dessa vez é recompensado com o sexo. Sedimentado, então, como fio-condutor, o dom de cozinhar do protagonista e o conseqüente prazer proporcionado pelas iguarias por ele preparadas (a comida) é possível perceber os “pontos de virada” (desencadeadores de eventos essenciais na narrativa) fixados no manejo e degustação dos alimentos, enquanto base para as relações entre os personagens e a conquista de poder.6

Sobre o roteiro, além do fio-condutor e dos pontos de virada, é possível incluir a fotografia privilegiando o ato de cozinhar/comer com planos mais fechados e iluminados. É o que ocorre em uma das cenas iniciais, de quando Raimundo Nonato descobre seu talento no boteco do seu Zulmiro: um plano-sequencia fechado no preparo das coxinhas e pastéis, com iluminação e música

envolventes, aproximam o espectador. O tempo da cena é vagaroso e a câmera-lenta aguça a atenção do público, que pode flagrar, além do modo de preparo e dos ingredientes, as unhas sujas do cozinheiro. A beleza desta cena um tanto paradoxal representa uma espécie de ritual gastronômico, no qual o “pobre-coitado” se torna Cozinheiro.

É evidente, pois, a maneira grotesca, acima referida, com que o filme representa a comida. E isso confere às coxinhas de Estômago certa peculiaridade frente às obras fílmicas que primam pela finesse da culinária francesa, ou pelos romances ambientados em requintados restaurantes europeus, por exemplo. A própria fotografia cujos enquadramentos tendem a provocar a expressão “comer com os olhos”, como ocorre em Garçonete (Adrienne Shelly, USA, 2007), A Grande Noite (Campbell Scott e Stanley Tucci, USA, 1996) ou

Simplesmente Martha (Sandra Nettelbeck, AUS/DEU/ITA/CHE, 2001), retrata, no filme de

Marcos Jorge, também os insetos que habitam o boteco, o óleo sujo marrom-escuro, e a cozinha improvisada no ambiente inóspito da cela.

Figura  1:  Interior  do  “Boteco  do  Seu Zulmiro”,  quando  Íria  experimenta  as coxinhas de Nonato

Figura  2:  Raimundo  Nonato  em  sua primeira  experiência  na  cozinha  do boteco.

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Mas a intenção aqui não é categorizar ou rotular tais filmes, mas buscar suas imbricações nas dinâmicas sociais, nas quais está imerso o imaginário ali representado. Pois o Cinema, como é sabido, permite compreender costumes, visões políticas, econômicas e culturais sobre determinado período; tanto ao que é reportado na narrativa quanto ao período de criação do filme.7 Como no caso de Estômago, de 2007, ambos são contemporâneos (fins do séc XX/ início do XXI, através da metrópole que presencia o êxodo rural, a lotação no sistema carcerário e a culinária internacional italiana, globalizada) é oportuno considerar a teia semântica da qual a obra faz parte, buscando uma “interconexão com as demais representações culturais de um certo período” (FREITAS, 2004, p.7), além do contexto mais abrangente do qual a obra faz parte.

Por esse motivo, e pelo que o filme mesmo oferece enfocando a questão da comida, cumpre notar a presença de uma série de longas-metragens que partilham de uma linguagem cinematográfica comum, qual seja, basicamente

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a comida como fio condutor da narrativa ou como argumento para desfechos (elementos oferecidos pelo roteiro); a utilização de planos mais fechados (médio ao plano-detalhe) no preparo de alimentos; e o som, no qual o tilintar de louças e talheres e o borbulhar de frituras denunciam a presença constante da comida ao espectador destas obras – um gênero, portanto.

Pois os gêneros cinematográficos estão fortemente ligados à estrutura econômica e institucional de produção, adotada como uma das primeiras estratégias dos grandes estúdios de Hollywood nas décadas de 20 e 30 para atrair e fidelizar os espectadores, facilitando a produção. Isso porque cada gênero tem seus próprios códigos de construção dramática, eles são estruturas narrativas e encenações que cativaram o público e “acabam constituindo uma espécie de repertório que cada novo filme do gênero convoca mais ou menos conscientemente” (AUMONT, 2003, p. 143), lembra Jacques Aumont. Esse autor ainda alerta que os gêneros são plenamente históricos, pois devem ser reconhecidos pelo público e pela crítica para serem reinventados dentro de uma mesma estrutura, garantindo assim sua aceitação.

Esse tema tão caro a indústria cinematográfica é facilmente perceptível na cultura alimentar, bem como no cotidiano mais geral. Não apenas na proliferação de cursos e gastronomia e best-sellers com receitas especiais. Notem-se os debates sobre obesidade, alimentos geneticamente modificados, vegetarianismo; as preocupações, inclusive acadêmicas, em resgatar/enraizar tradições culinárias; a publicidade do ramo alimentício que

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acompanha as provocantes fotografias dos programas televisivos, nos quais a profissão de

chef de cozinha ganha notoriedade.

Certamente o alimento sempre teve sua relevância, mas a reputação que a sociedade contemporânea lhe confere é singular. “Afinal, desde as últimas décadas do século XX, o ‘assunto alimentação’ conquistou um espaço espetacular na mídia, incluindo inúmeras intolerâncias e distúrbios mas também diversas maneiras de transformar o alimento em algo completamente atraente a sensacional”8. O que é potencializado pela supremacia da imagem na sociedade midiática contemporânea.

Considerando a mudanças na alimentação, percebem-se significativas transformações acompanhando o processo de industrialização, urbanização e globalização, nas últimas décadas do séc XX. O alastramento e enraizamento das redes de fast food podem ser vistos como emblemas desse processo, acarretando alterações nas maneiras de preparar e conservar os alimentos. Trata-se da industrialização, racionalização e funcionalização da alimentação, bem como da consequente padronização do gosto9. A esse contexto é possível associar as

formas de consumo dos alimentos também sofrendo alterações. As refeições regradas em horários e na presença da família são eventos de luxo na sociedade atual, ávida por soluções práticas.

Por outro lado o movimento slow food, uma espécie de ONG criada na Itália, em 1986, visa defender os alimentos e modos de preparo tradicionais, buscando a preservação de aromas e sabores e primando pela biodiversidade alimentar. As discussões acerca “d’as cozinhas”, também entram nesse palco. Cozinha regional, cozinha internacional, ou ainda a cozinha “fusão” - que congrega alimentos e elementos de regiões diferentes - representam a “expressão destes tempos de globalização ou mundialização”10. Aliás, a cozinha italiana internacional, conforme observada em Estômago e mencionada acima, recebe a definição de internacional quando praticada fora de seu local de origem.

É possível vislumbrar desse contexto, e, no geral, nos filmes que compõem dito “gênero da comida” uma considerável valorização à gastronomia – entendida como o agrupamento de conhecimentos racionais ligados à prática da arte culinária. Questões mais específicas também aparecem neles priorizadas (ou até elogiadas). As raras refeições em família, preparadas no próprio lar; as sociabilidades e hierarquias decorrentes daí ou do âmbito maior de um restaurante; a figura do cozinheiro e seu talento que lhe garante status/poder; a busca por receitas e confecções de alimentos típicos. Elementos esses representados em A Comilança (Marco Ferreri, FRA/ITA), de 1973, em Quem está matando

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de Babette (Gabriel Axel, DNK/FRA), de 1987, mas que se impõem com efervescência a

partir dos anos noventa – também desde as últimas décadas do séc XX.

Convém, por fim, ampliar as considerações sobre o “produto cultural” cinema. Ou seja, a “arte em movimento”, entendida como uma expressão cultural, mas de consumo (simbólico), que se estrutura em nível industrial, mercadológico e institucional, e que está estritamente ligado à técnica11. Tais considerações demandam, consequentemente, pensar a fonte fílmica nesses moldes: investigando as condições de produção, circulação e recepção, que são cruciais para alicerçar a compreensão do sentido do filme, entendendo que, é na dinâmica da sociedade que ele se configura.12

Filmado no Brasil, com atores nacionais (embora de diferentes regiões), e finalizado na Itália, o filme contou também com consultores de comportamento: Luís Mendes e Geraldine Miraglia.

O primeiro, um ex-presidiário que consagrou-se escritor, auxiliou nas cenas ocorridas no cárcere. A segunda, uma chef, prestou consultoria na cozinha, auxiliando no preparo das iguarias, na composição desses cenários, inclusive oferecendo treinamento para o ator João Miguel representar com o maior grau de realismo possível. Vale frisar que além do treinamento culinário, o ator teve auxílio de um dublê para as cenas que exigiam mais agilidade com os utensílios.13 Ora, todos esses cuidados garantem, certamente, maior qualidade e semelhantes escalas de atuações no filme deste “gênero” (dentre uma série de profissionais que trabalham na produção cinematográfica).14

A experiência dos criadores no trabalho com curtas, publicidade, e na cena italiana, certamente colaborou para a estética da obra, bem como para sua dupla-nacionalidade. Essa é maneira de facilitar a entrada do produto na União Européia, é uma estratégia que toma corpo no “cinema da retomada”. Gerenciado pela ANCINE, atualmente o Brasil tem acordos bilaterais com nove países, dentre os quais Portugal conta com 25% da fatia; o multilateral “Latin American Film Coproduction Agreement” participa com 49% do total de produções.15

Considerando, então, os impasses de uma indústria audiovisual em desenvolvimento (carente da sedimentação do tripé produção/distribuição/exibição), o cinema nacional ainda tem pouca visibilidade até dentro do próprio território, mas é possível notar alguns avanços. Ele “assumiu a mentalidade comercial”, como afirma Ismail Xavier16, e as vistas para o mercado internacional.

O Ministério das Relações Exteriores também trabalha no sentido de promover, acompanhar e coordenar a iniciativas brasileiras no campo do audiovisual no exterior através da Divisão do Audiovisual (DAV), desde 2005. Os incentivos aos Festivais e a criação das

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Semanas de Cinema Brasileiro no Exterior também são frutos de tais políticas: a iniciativa visa estabelecer contatos e promover a cultura brasileira a partir de “feiras de exposição/negócios” que contam com a circulação filmes, inclusive com a presença de atores, diretores e produtores. Além de países da América Latina são parceiros os Estados Unidos,

Canadá, Itália, Portugal, Alemanha17. Contudo há que se destacar que essas “políticas públicas para o setor precisam ser aprimoradas e os mecanismos de diálogo com o

mercado externo, ampliados e fortalecidos”18, conforme concluído no Brasil CineMundi – 1st International Coproduction Meeting.

Estômago, por sua vez, estrelou em um Festival (do Rio, comentado no início) e

circulou em vários outros, dentro e fora do país, nos quais, inclusive, obteve uma série de premiações. Nesse sentido é interessante relevar que, além de ser exibido na “Mostra de Cinema Culinário em Berlim”, o filme contou com a estratégia de servir banquetes, tais quais os do filme, nesses circuitos de exibição. Foi o que ocorreu naquela Mostra e também no Festival do Texas – um mérito de divulgação por conta do próprio tema. Mas o site do filme também oferece as receitas compiladas em um livro para download, e a versão em DVD, a cada cena do cozinheiro em ação, aparece um ícone (a toca de chef), e ao “pausar” a cena é possível conferir a fórmula – também peculiares “sinergias” através do tema.

Nesse recorte da cinematografia nacional do qual o longa faz parte, destacam-se também uma mescla, ou hibridismo entre a linguagem publicitária, televisiva, bem como a do vídeo-clipe e até da internet, configurando maior apuro técnico. Conforme Marina Marson, o cinema atual “alia diversidade temática a uma padronização estilística, compreendendo filmes realizados com maior apuro técnico e linguagem transnacional, porém com cenários, histórias, ‘cores locais’ em uma espécie de ‘brasilidade for export’” (MARSON, 2009, p. 177). Isso através de novas leituras sobre a cultura popular “mais atenta a valores universais facilmente reconhecíveis e identificáveis em qualquer mercado de bens simbólicos do mundo globalizado” (MARSON, 2009, p.158), conforme é possível perceber na gastronomia praticada por Raimundo Nonato. O “chef-detento” que mesmo na super-populosa cela realiza “milagres culinários”, demonstrando os ensinamentos de seu tutor - “Cozinhar é uma arte, Nonato!”.

Porém, admitindo o caráter polissêmico das imagens, é importante recorrer ainda a outras fontes que não necessariamente imagéticas, mas que estejam intimamente ligadas à obra fílmica em questão. Conforme Freire Ramos, as impressões dos consumidores/espectadores do filme (além dele em si) é essencial para entender o fenômeno da produção de significados19. Desta forma, o exame às críticas feitas ao filme constitui-se em

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frutífero objeto de análise, uma vez que colaboram (ou não) para sedimentar o problema e as possíveis conclusões levantadas na investigação da fonte fílmica. Aqui, particularmente: a atração que a questão da comida exerce no espectador de Estômago, bem como a menção àquelas outras obras que congregam esse mesmo “gênero”.

A revista inglesa Screen International, em matéria assinada por Denis Seguin, na intenção de mostrar o alcance internacional de Estômago, diz o seguinte sobre o filme:

“Uma mistura de comida, sexo e poder que não é vista desde "O Cozinheiro, O Ladrão, Sua Mulher e Seu Amante", de Peter Greenaway, a estréia de Marcos Jorge na direção de longas é uma revelação inesperada. Estruturado menos como um "quem fez?" e mais como um "o que ele fez?", como uma deliciosa refeição em um clima estrangeiro, ele atravessa o palato para liberar um inesperado mas adequado toque final. Talvez nem todos os fregueses deixarão Estômago satisfeitos, mas não é possível ver este filme sem ficar com fome."(Disponível em: < www.screendaily.com>, acesso em: mar/2011)

A de Luiz Zanin Oricchio, no jornal Estado de São Paulo aponta o estilo pendendo ora para o sutil, ora para o grotesco, mas lembra:

“É muito agradável ver a alimentação tratada com tanto amor no cinema. Tal como A Festa de Babette, Estômago é uma homenagem do homem a si mesmo, essa nossa espécie que, ao evoluir do cru ao cozido, fez da necessidade básica do sustento físico uma arte e sabedoria milenares. Mas, se não fosse o João Miguel.” (Disponível em: <www.estadao.com.br>, acesso em: mar/2011)

Já Débora Miranda, do G1 inicia sua opinião da seguinte forma: “Pense num filme que mistura com inteligência todos os ingredientes que o Brasil e seu cinema têm de melhor – não necessariamente de bom, mas que provoque o espectador, aguce os sentidos e faça reagir.” (Disponível em: <www.g1.globo.com>, acesso em: out/ 2009). Em geral alertam que o tom tragicômico pode comprometer o agrado ao público, mas, em geral fazem alusão a outros filmes como A Festa de Babette e A Comilança, lembrando ainda, do tema da alimentação e seu poder de sedução.

* * *

Estômago expressa a visceralidade de seu título nas contradições sociais, mas não

deixa de ter um sabor peculiar que lhe permite perceber o imaginário ali representado. Mais do que um entretenimento ou mercadoria de valor simbólico, o filme é uma construção do homem. Pensada, engendrada, viabilizada, realizada, comercializada e recepcionada em uma conjuntura histórica.

Conjuntura essa cujo tema da alimentação toma proporções de ser discutida, estetizada, divulgada, nos diferentes meios de comunicação, que inclusive o cinema nacional (ou bi-nacional, nesse caso) se prestou a tratá-la. Nessa metáfora das contradições sociais que

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propõe inúmeros temas para trabalhar (prostituição, êxodo rural, etc), a questão da gastronomia, ou da comida (categoria histórica), conforme fora trabalhado aqui, chamou maior atenção para esta particular pesquisa. Isso pela frequencia, também, em outros produtos culturais de variados países priorizando o mesmo tema e compondo o que aqui foi chamado de “gênero da comida”. Historicizá-lo, portanto, foi o que se pretendeu. Considerando não apenas a linguagem, mas as demandas funcionais da indústria cinematográfica no que se refere a produção, circulação e recepção das obras, em especial Estômago.

Mesmo não sendo um “típico filme histórico”, com eventos e personagens datados, cristalizados numa memória nacional, por exemplo, tomar Estômago como fonte não só permite explorar, a partir dele uma “história contemporânea do cinema nacional”, como também permite ampliar o olhar do pesquisador para perceber que todo filme tem sua historicidade. Todo filme está carregado simbolicamente, por ser uma expressão artística, mas também de condições específicas (econômicas, políticas, culturais, ideológicas) para sua produção, sendo, portanto, um prato cheio para compreender a relação entre a História e o Cinema.

Referências Bibliográficas:

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___________ O discurso cinematográfico; a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. Referências eletrônicas: www.ancine.org.br www.cenacine.com.br www.estomagoofilme.com.br www.historiadaalimentacao.ufpr.br www.screendaily.com www.estadao.com.br       

1 Ver, sobre outros filmes que protagonizam a gastronomia: DUCROT, Victor Ego. Los sabores del Cine.

Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2002.

2 ORICCHIO, Luís Zanin. Cinema de Novo – balanço crítico da retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. 3 MELEIRO, Alessandra. (Org) Cinema e Economia Política – Indústria Cinematográfica e Audiovisual

Brasileira. vol II. São Paulo: Escrituras, 2009.

4 SILVESTRE, Lusa. Pólvora, Gorgonzola & Alecrim. São Paulo: Jaboticaba, 2005.

5 Para as questões da adaptação da linguagem escrita para a linguagem fílmica (necessariamente diferentes), ver:

STAM, Robert. Teoria e Prática da Adaptação: da fidelidade à intertextualidade. Ilha do destrerro de Florianópolis, nº51, p. 19 – 53, jul/dez, 2006.

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       6 Essa “ascensão”, portanto, é reconhecível nos espaços: do boteco ao restaurante de culinária internacional; do

cantinho no chão da cela, ao colchão, depois ao beliche, culminando no primeiro andar deste, o topo do representativo de poder naquele ambiente; do fogareiro dentro da cela à cozinha da penitenciária.

7 Ver: LAGNY, Michelle. O Cinema como fonte para a História. In: NÓVOA, J., FRESSATO, S. B.,

FEIGELSON, K (Orgs). Cinematógrafo: um olhar sobre a História. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 99 – 131; e MORETTIN, Eduardo V. O Cinema a como fonte histórica na obra de Marc Ferro. História: Questões & Debates. Curitiba, ano 20, nº 38, p. 11-42, jan/ jun, 2003.

8 SANT’ANNA, Denise Bernuzzi. Transformações das intolerâncias alimentares em São Paulo, 1850 – 1920. História: Questões & Debates. Curitiba, ano 22, n 40, p. 81-94, jan/ jun, 2005, p.84

9 Ver: CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de janeiro: Elsevier,

2003; SCHLOSSER, Eric. País fast -food. São Paulo: Ática, 2001; e FISCHLER, Claude. A Mcdonaldização dos costumes. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998

10SANTOS, Carlos R. Antunes. A Alimentação moderna: fusão ou confusão. Disponível em:

<www.historiadaalimentacao.ufpr.br>, acesso em: mar/2011.

11 AUMONT, Jacques [et alli]. A estética do filme. Campinas: Papirus, 1995.

12 Ver: OLIVEIRA, Dennison de. (Org.). O Túnel do Tempo: um estudo de História & Audiovisual. Curitiba:

Juruá, 2010.

13 Informações contidas no site e nas sessões extras do DVD, onde é possível encontrar ainda o depoimento de

Claudia da Natividade sobre a grande quantidade e o valor investido nos alimentos e pratos especiais do filme. Disponível em: <www.estomagoofilme.com.br>, acesso em: mar/2011.

14 XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico; a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1984.

15 Disponível em: <www.ancine.org.br>, acesso: jun/2010

16 XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001. 17 MELEIRO

18 Disponível em:<www.cenacine.com.br>, acesso em: mar/2011

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