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Rodrigo Guerizoli* da UFRJ.

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Oxford University Press, 2010, 318 p.

Rodrigo Guerizoli*

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Marylin McCord Adams, conhecida no meio filosófico sobretudo por seu volumoso estudo sobre Guilherme de Ockham, oferece em Algumas Teorias da

Eucaristia da Idade Média Tardia. Tomás de Aquino, Egídio de Roma, Duns Scotus e Guilherme de Ockham um estudo associado ao mesmo tempo ao campo da

teologia histórica e ao da história da filosofia. E, de fato, ciente dessa dupla face de seu intento, Adams organiza seu texto de modo a “permitir aos leitores selecionar o que lhes seja mais útil e prazeroso” (p. 1). Trata-se de analisar e clarificar as teorias de alguns pensadores medievais sobre a eucaristia, um dos sete sacramentos cristãos, aquele no qual “o corpo e o sangue de Cristo se tornam realmente presentes no altar, dando aos fiéis que dela participam uma oportunidade de comunhão com Ele no aqui e agora” (ibid.). Até que ponto uma tal doutrina se deixa coadunar com as convicções de ordem metafísicas e de filosofia natural compartilhadas por intelectuais dos séculos XIII e XIV? Essa é a principal pergunta que guia a investigação de Adams e cuja resposta é apresentada principalmente nos capítulos 4-10, dedicados a cada um dos autores mencionados no título da obra, bem como a um mapeamento geral em que se avalia o quão correntes ou, ao contrário, gratuitas, seriam as diferenças conceituais introduzidas por tais autores em seus ensinamentos sobre a eucaristia frente aos modelos aristotélicos de metafisica e de filosofia da natureza.

Uma vez que se trata, em última instância, de um confronto com Aristóteles, Adams dedica o primeiro capítulo de sua obra à apresentação do                                                                                                                          

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instrumental teórico aristotélico em jogo. Os capítulos 2 e 3, por sua vez, se dedicam às linhas gerais da compreensão medieval de sacramento, um signo sensível que aponta para algo imaterial ou, de modo mais preciso e problemático, um rito material que possui poder causal eficiente suficiente para produzir certos benefícios espirituais (cf. p. 51ss.). A mesma noção de sacramento está ainda no centro dos capítulos finais da obra, 11 e 12: no penúltimo capítulo são considerados o comer e o beber eucarísticos e no último se elucida o destino dos sacramentos na vida post mortem. Evidentemente, os capítulos 2, 3, 11 e 12 são de limitado valor para leitores que – como nós – têm interesses puramente filosóficos e, por isso, praticamente não serão tratados na presente resenha.

Inicialmente se trata, repetimos, de exibir certos aspectos-chave do maquinário conceitual aristotélico que serão de importância para os autores sobre o quais Adams se debruça no tratamento de questões ligadas a causalidade sacramental e presença real eucarística. Dois tópicos são tratados: a estrutura metafisica dos entes corpóreos e as concepções aristotélicas de espaço. Com relação ao primeiro, Adams explora as principais estratégias de explicação da constituição de tais itens corpóreos: atomismo e hilemorfismo. A questão aqui parece girar em torno à noção de “unidade paradigmática” (p. 5). Quem a possui? Os objetos materiais macroscópicos ou os itens pelos quais eles se constituem? Ora, aponta o aristotélico, aquela noção cabe, sem restrições, a objetos macroscópicos, o que é demonstrado ao se perceber os esquemas de regularidade – “sempre ou na maior parte das vezes” – que os organizam. Sendo assim, a unidade de tais coisas não pode consistir na mera aproximação de itens primariamente unitários; antes, ela deve resultar da presença, naquela matéria, de um princípio, a forma, que lhe atribui unidade e dinâmica funcionais.

Tal determinação pela forma tem de ocorrer em pelo menos dois níveis: o de uma determinação sem a qual algo deixa de ser o que é e o de uma determinação sem a qual apenas se modifica o modo como algo é o que é. Até aqui hilemorfistas estão de acordo. Mas as coisas se tornam mais difíceis quando se percebe vários níveis de determinações essenciais à unidade das coisas: num animal, por exemplo, a posse de um corpo e de funções vegetativas parece tão

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essencial quanto a posse daquilo que o distinguiria enquanto tal, a saber, a cognição sensorial e o apetite. Mas, quantas formas desempenham essas funções? Aqui hilemorfistas se dividem entre unitaristas e pluralistas. Adams percorre em poucas páginas os argumentos de que cada uma das partes lança mão, focando, por exemplo, na concepção tomasiana de matéria como “nem atualmente substância nem um puro nada” (p. 9), na crítica de Duns Scotus e Guilherme de Ockham a esse ponto como “metafisicamente incoerente” (p. 10), e na réplica unitarista que busca indicar a perda de qualquer explicação por parte dos pluralistas do porquê de plantas, animais e seres humanos exibirem uma unidade verdadeiramente per se.

Outro tópico tratado diz respeito ao número de categorias que deve ser reificado. Dentre os autores em jogo as alternativa parecem ser: substância, qualidade e quantidade (Tomás de Aquino, Egídio de Roma e, usualmente, Duns Scotus) ou apenas as duas primeiras (Guilherme de Ockham). Em seguida são ainda esboçados os problemas dos universais e do princípio de individuação, sempre de maneira extremamente clara e sintética, expondo com precisão as questões sistemáticas em jogo em cada uma das discussões.

Acerca das questões que giram em torno à concepção aristotélica de espaço, ou mais precisamente, em torno à sua teoria da localização dos corpos, Adams discute as duas principais teorias quanto ao tema, que rementem respectivamente às Categorias e à Física: de um lado, a visão do espaço como uma “extensão incorpórea contínua tridimensional que é capaz de receber corpos” (p. 20) e, de outro, a defesa da ideia de que espaço é “o limite do corpo que contém e cujo limite toca e é coincidente com aquele do corpo que é contido” (ibid.). O que se mostra, como já se poderia prever, é que parece haver bons argumentos contra e a favor de cada uma das posições.

O primeiro capítulo do livro pode ser lido separadamente, como uma extremamente competente série de colocação de problemas que giram em torno à recepção das teorias aristotélicas sobre a constituição dos objetos materiais e sobre a natureza do espaço.

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Passando então ao quarto capítulo da obra, dedicado a Tomás de Aquino e Egídio de Roma, encontramos de início um delineamento das questões em jogo. Há, de acordo com Adams, dois tipos de desafios filosóficos gerados pela teologia eucarística. Inicialmente, um que diz respeito a problemas de “múltipla localização” (p. 87). Com efeito, o que quer que ocorra com o pão durante a consagração, seus acidentes extensionais permanecem enquanto tais. Ora, não ocupariam eles então o lugar que pudesse ser ocupado pelas dimensões de qualquer outro corpo e, portanto, também do corpo de Cristo? No mesmo sentido, como poderia o mesmo corpo, o de Cristo, estar ao mesmo tempo no céu, como quer a Cristologia, e em um ou nos muito altares em que se celebra a missa? Além disso, há um “problema de tamanho” (ibid.), pois só se pode dizer que um certo corpo ocupa um certo espaço se suas dimensões são compatíveis com as daquele espaço. Ora, como seria possível, como quer o sacramento, que o verdadeiro corpo de Cristo se encontre num espaço que tem as dimensões de um mero pão?

Transubstanciação é o termo-chave da solução oferecida por Tomás de Aquino aos problemas esboçados. Não podendo lançar mão de qualquer tipo de

locomoção para explicar como vem a ser verdadeiro que o corpo de Cristo esteja

no altar, Tomás pensa que um esquema de substituição pode lhe ser útil: “algo x pode vir a estar onde x não estava antes, se algo de outro, y, que aí estava, é

convertido em x” (p. 88). Deve se tratar aqui, porém, de uma espécie de mudança

sobre a qual Aristóteles não suspeitava, uma mudança, a saber, “na qual nada daquilo que foi convertido (...) persiste naquilo no qual foi convertido” (ibid.). Tal tipo de mudança não parece inimaginável para Tomás, para quem nada tinham de estranho as noções de criação ou aniquilação. Com efeito, no mesmo âmbito de ações tipicamente associadas ao exercício da onipotência divina poderia se encontrar ainda outra: transubstanciação, a conversão do todo de uma coisa, matéria e forma, no todo de outra (p. 89s.). Mas como é possível à solução através da ideia de transubstanciação oferecer respostas plausíveis aos problemas de múltipla localização e de tamanho acima apontados? Pela ideia de transubstanciação, toda a matéria e toda a forma do pão são convertidas na

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matéria e forma do corpo de Cristo. O cerne da solução de Tomás consiste em negar, porém, que as dimensões quantitativas do corpo de Cristo se façam presentes pelo sacramento. E isso se justifica porque os acidentes do pão ali permanecem, o que indica que a transubstanciação não os atinge. E permanecendo os acidentes do pão, não é possível a presença, ao mesmo tempo e no mesmo espaço, dos acidentes do corpo. Este, numa palavra, considera Tomás, está relacionado ao espaço do altar apenas através de dimensões quantitativas que lhe são alheias, que são próprias, de fato, ao pão. E como um corpo está onde estão suas dimensões quantitativas, o corpo de Cristo permanece, de fato, onde estava já antes do sacramento, o que oferece solução às questões esboçadas acima. Apenas a substância do corpo de Cristo, e não sua quantidade dimensional, se fazem presentes “pela força do sacramento” (p. 96).

Mas um problema surge: Tomás, com efeito, insiste que aquilo que está realmente unido ao corpo – a Divindade de Cristo, Sua alma, Seus acidentes etc. – se faz presente “por concomitância real e natural” (ibid.). Ora, não reaparecerão aqui, cedo ou tarde, os “problemas de tamanho” aos quais já se fez referência? Para Tomás isso não só não é o caso, mas, antes, tal concomitância é benéfica. Ela significaria, de fato, uma espécie de poder ordenador e estruturador das dimensões quantitativas reais frente às do pão: “a concomitância natural dos acidentes corporais de Cristo preserva a ordem de Suas partes corporais entre si e, assim, evita que o corpo de Cristo sob o sacramento seja um amontoado desestruturado” (p. 97).

Que problemas restariam para as gerações posteriores após a aparentemente tão convincente e bem estruturada doutrina de Tomás de Aquino? O mais interessantes dos problemas a que se dedica Egídio de Roma é chamado por Adams de “problema da ausência de constituinte comum” (p. 99). Ele surge ao se perceber que na teoria da transubstanciação proposta por Tomás parece faltar justamente o que tornava em geral inteligível a teoria aristotélica da geração, qual seja, um constituinte comum entre o termo-a-partir-do-qual e o termo-para-o-qual do processo. Egídio se empenha por suprir tal falta, tentando, obviamente, não fazer da transubstanciação uma mera geração, nem um ato de

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criação ex nihilo. Sua tentativa, numa palavra, consiste em tornar plausível que, em certo sentido, a matéria cumpra o papel daquele constituinte comum requerido. Evidentemente não pode aqui se tratar da matéria no mesmo sentido em que esta é tradicionalmente considerada o elemento comum que une os extremos de um processo de geração. Entra pois em cena a ideia de que Deus pode agir diretamente sobre a matéria na medida em que esta é uma pura quididade, aquém, portanto, de sua quantificação e individualização. Assim, na transubstanciação, Deus converte, de modo completo, uma substância em outra agindo sobre a matéria como quididade, um constituinte metafísico de toda substância material (p. 100s.). Talvez o desejo de Egídio de salvar a noção tomasiana de transubstanciação tenha, porém, feito desta e da geração não mais que duas espécies distintas de um mesmo processo pelo qual a se dá a transformação do que determina a matéria como simples quididade: num por assim dizer primeiro nível teríamos a possibilidade de transubstanciação, quando apenas aquela matéria é mantida; num segundo nível, por sua vez, teríamos os processos naturais de geração, nos quais o que se mantém é já o complexo formado por matéria como quididade, quantificação e individualização. Parece porém que, como preço, Egídio já proporciona aqui à matéria bem mais do que apenas aquela “pura potencialidade” (p.101), aquele “meio entre ser e nada” (ibid.), que Tomás de Aquino gostaria de aceitar como característica de tal constituinte do mundo sensível.

O próximo autor abordado por Adams é João Duns Scotus. Distanciando-se do enfoque tomasiano, a preocupação do Doutor Sutil com respeito ao tema se concentra na possibilidade de se explicar a presença real do corpo de Cristo. Assim, a questão se joga em torno sobretudo às categorias aristotélicas de

quantidade e de lugar, bem como a problemas de localização espacial. Nesse

contexto, Scotus, através de um raciocínio baseado na distinção entre posição

quantitativa e posição categorial, defende que apenas a primeira é essencial a

corpos quantificados e que, no caso do corpo de Cristo, apenas esta aí se encontraria. Assim, desprovido de posição categorial, tal corpo coexistiria de forma absoluta com o seu lugar, estaria aí realmente presente, mas não teria relações

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externas que o tornassem coextensivo com tal lugar (p. 118s.). Mas tal posição não está isenta de problemas, pois dela decorrem dificuldades relativas a algumas de suas consequências, principalmente às que dizem respeito à rejeição de duas teses, aparentemente sensatas, da física aristotélica: a) “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo” e b) “um único corpo não poder ocupar ou mover-se em direção a dois lugares diferentes ao mesmo tempo” (p. 120). A condução em meio à complexa teia de argumentos adiantados pro e

contra a posição escotista é aqui, como em geral, levada a cabo com extrema

clareza por Adams: trata-se de um esforço por mostrar a não-contraditoriedade do que decorre de proposições teologicamente aceitas sobre a eucaristia, afinal, “como todas as teorias filosóficas e teológicas, formulações teológicas devem visar à inteligibilidade” (p. 146). O que se sobressai, porém, e o que Adams não explora, é o caráter artificial de tais manobras, pelas quais os campos do naturalmente esperável e do filosoficamente aceitável – o primeiro baseado nas leis da natureza e o segundo no princípio de não-contradição – se cindem cada vez mais radicalmente, de modo que o que se tem, por fim das contas, são concepções para as quais não-contradição e intuitividade parecem estar numa relação inversa uma para com a outra. Embora Adams seja extremamente precisa em reconstruir o passo-a-passo desse processo, parece-nos que lhe falta uma maior clareza do significado de tais mudanças desde o ponto de vista de uma história filosófica de média ou mesmo de longa duração e que inserisse tal cisão entre lógica e natureza num quadro mais amplo de desdobramentos históricos do pensar.

No sétimo capítulo Adams chega a Ockham, que, mais radicalmente que Scotus, concentra a discussão em pauta em torno à categoria aristotélica da

quantidade, buscando justificar que não é requerido que uma substância material

possua uma quantidade que lhe seja inerente e que funcione como fundamento de sua presença atual com relação a um certo lugar (p. 156). De fato, o alvo de Ockham se encontra sobretudo na intepretação que Tomás de Aquino provê da categoria da quantidade, que busca ver aí uma espécie de camada – Adams fala nesse contexto de uma “película” – entre as substâncias materiais e suas

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qualidades. Postular um tal intermediário, considera Ockham, é simplesmente desnecessário; e mais: “a hipótese da quantidade como uma coisa realmente distinta da substância e da qualidade é fisicamente problemática e metafisicamente incoerente” (p. 158). Em lugar da reificação entra em cena a sensibilidade linguística, que exige que se tome quantidade como um termo conotativo, cujos únicos correlatos reais seriam substâncias e qualidades (ibid.). O interessante nesse contexto é notar como a desreificação da categoria da

quantidade operada por Ockham abre-lhe as portas para a construção de teorias

coerentes – ainda que, de novo, naturalmente surpreendentes – em prol de situações exigidas por teses teológicas, quais sejam, que um corpo possa estar em vários lugares ao mesmo tempo (Cristo ao mesmo tempo nos céus e nos altares) e que dois corpos possam ocupar simultaneamente o mesmo espaço (Cristo atravessando portas). Filosoficamente, o capítulo se encerra com uma apresentação, que infelizmente não chega a adquirir grande profundidade, da recepção crítica por parte de Ockham do princípio “tudo o que está em movimento é movido por outro” (p. 167) e da necessidade de contato, isto é, de toque de quantidades, entre os polos envolvidos na produção de uma ação corporal.

Tendo tratado nos capítulo 4-7 de questões decorrentes de teses sobre a existência e a presença do corpo de Cristo nos altares, Adams se dedica, nos capítulos 8-9, a problemas relativos ao que se passa com o pão ou, mais precisamente, com seus acidentes, ao longo do processo de consagração. Ora, se tais acidentes permanecem à vista após o milagre, mas é distinta a substância na qual eles inerem, então parece que eles continuam a existir, malgrado a aniquilação da substância que os sustenta. Tal conclusão, porém, é tida por muitos como inaceitável tendo-se em vista elementos-chave da teoria aristotélica da relação entre substâncias e acidentes como, por exemplo, teses sobre definição e individuação de acidentes. Tendo por base esse problema, Adams passa em revista no capítulo 8 as estratégias de Tomás de Aquino e de Egídio de Roma para superá-lo, ou seja, para justificar a aceitabilidade da tese de que, de fato, permanecem na eucaristia acidentes sem que permaneçam as suas

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substâncias. Tais estratégias têm basicamente a ver com o desenvolvimento de um sofisticada teoria sobre as relações dos acidentes entre si. Tal teoria busca, em primeiro lugar, sublinhar a prioridade da quantidade sobre a qualidade, donde decorre uma dependência desta com relação àquela, e, em seguida, a não-contraditoriedade de dimensões quantitativas existirem atualmente per se. De fato, se tal é possível, é fácil ver como, em tornando a quantidade algo per se, Deus é capaz de manter as qualidades (e demais acidentes) que naquela quantidade se ancoram. Evidentemente, o nó górdio se encontra aqui na tese da auto-individuação do acidente da quantidade (p. 181s., em Tomás, e p. 188s., em Egídio) e, parece-nos, Adams não chega nesse ponto a oferecer uma apresentação suficientemente detalhada do problema, ainda que o leitor interessado venha a encontrar, sem dúvida, uma discussão preliminar de bom nível do tema, bem como as indicações básica de fontes a levar em consideração.

No capítulo seguinte, o nono da obra, Adams trata de questões que, desde o prisma de uma teoria da eucaristia, se veem relacionadas à noção de acidente. E nesse contexto a questão mais urgente é a seguinte: é verdade que, se algo é um acidente, necessariamente se segue acerca deste algo que ele sempre existe em um sujeito de inerência? Evidentemente, a vulgata do aristotelismo, baseada em argumentos que giram em torno às noções de prioridade natural e definicional, responderia positivamente à questão. Cabe a Adams explorar o modo como Scotus e Ockham buscam escapar aos limites que se auto-impõe o aristotelismo. Em Scotus, tal estratégia tem fundamentalmente a ver com a introdução da distinção, com relação a um certo ente, entre ser atualmente assim ou assado e ter a aptidão ou tendência ou disposição de ser assim ou assado. Substâncias e acidente apenas têm a aptidão de, por exemplo, ser respectivamente em si e em outro; mas essa aptidão natural pode perfeitamente ser obstruída, talvez, em certas circunstâncias específicas, pela própria natureza, e certamente, em todos os casos, por Deus. Nada impede que num dado instante itens de tais tipos não exibam atualmente características que eles teriam a aptidão de exibir (p. 197-206). Na sequência do capítulo, ainda tratando da posição de Scotus, sempre em contraste com a de Tomás de Aquino, mas também lançando mão de

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comparações com Egídio de Roma e Godofredo de Fontaines, Adams discute a preservação e o alcance do poder causal dos acidentes, que na eucaristia se separam de sua substância natural de inerência, bem como questões relativas a diferentes tipos de mudança, como, por exemplo, rarefação e condensação, que podem ocorrem com o pão e o vinho. A posição de Ockham com relação a tais problemas é apresentada em poucas páginas, ao fim do capítulo. Tal opção poderia parecer pouco recomendável, não fosse a por Adams bem indicada concordância, aqui, das posições de Ockham com as de seu confrade escocês.

Os três últimos capítulos da obra se põem sobre a explícita égide de uma “moral da estória” (p. 227). O décimo capítulo marca um ponto alto da obra, no qual Adams lida, de maneira ao mesmo tempo panorâmica e extremamente competente, com várias situações teóricas caras às reflexões levadas a cabo nos séculos XIII e XIV nas quais o aristotelismo se via desafiado a dar conta de certos fenômenos naquele contexto aceitos como verdadeiros e, nesse sentido, merecedores de explanação. Visualizamos, nesse passo da obra, o quão incisivos, pois justificados de forma argumentativamente sólida, são problemas colocados em torno, por exemplo, à compreensão aristotélica da relação entre o primeiro princípio e o mundo, em torno à noção de causa eficiente, em torno aos limites da noção de necessidade metafísica, acerca da determinação do grau de regularidade associado às noções de disposições e aptidões e acerca de problemas diretamente relacionados à ideia de consagração eucarística e aos poderes causais sui generis a esse fenômeno associados. É sobre esses problemas mais específicos que Adams se dedica no capítulo, começando por questões ligadas à extensão de corpos, sua relação com o acidente da quantidade e sua localização no espaço, o que diz também respeito à relação entre matéria e individuação, tema que separa, de um lado, Tomás de Aquino e Egídio de Roma e, de outro, João Duns Scotus e Guilherme de Ockham. Mantendo a linha de uma espécie de balanço retrospectivo de questões anteriormente abordadas, o capítulo continua, rediscutindo as diferentes descrições que, de Tomás de Aquino a Guilherme de Ockham, se fizeram do fenômeno da presença real do corpo (e sangue) de Cristo no altar e, por fim, recapitulando o tratamento, que

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em geral pode-se qualificar como “reificante”, dado aos acidentes por parte dos autores em questão.

Como anteriormente adiantado, os dois capítulos finais da obra têm um acento pronunciadamente teológico. Trata-se, inicialmente, de esclarecer diversas dúvidas que pairam sobre o ato de ingestão que tem lugar após a consagração eucarística. Em seguida, no centro das discussões é colocada a relação entre os sacramento e seus limites temporais: a morte do indivíduo e o fim do mundo, limites que revelam o quão forte são as ideias de adequação e de eficácia dos sacramentos não simplesmente à natureza humana como tal mas, sobretudo, ao estado atual dessa natureza – uma posição da qual, interessantemente, Adams se permite distanciar, propondo uma reescritura, que se quer socialmente rica, das ações post mortem e na qual o sentido dos sacramentos seria mantido. (p. 290ss.).

Sem dúvida a obra de Adams é atraente tanto ao filósofo quanto ao teólogo. Trata-se de um texto preciso, no qual uma série de aspectos relacionados à recepção acadêmica do tema da eucaristia são abordados. Destacam-se nesse contexto os capítulos tematicamente mais ambiciosos da obra: o capítulo de abertura, que dá ao leitor novato uma excelente visão do pano de fundo geral das discussões, servindo também, fique claro, ao leitor experiente como um excelente aide-memoire, e o décimo capítulo, no qual se traça um balanço geral do núcleo duro do trabalho, os capítulos 4-9. Quanto a esses capítulos, por sua vez, a leitura é gratificante, mas, por vezes, árdua, devido sobretudo à concatenação de inúmeros argumentos.

Sem desmerecer o trabalho de Adams, que certamente merece lugar de referência para os interessados tanto nos debates filosóficos em torno à eucaristia quanto, em geral, nos desafios propostos ao aristotelismo nos séculos XIII e XIV, vale salientar certas faltas em termos de bibliografia: não é mencionada a obra de A. Funkenstein Theology and the Scientific Imagination from

the Middle Ages to the Seventeenth Century, de 1986, que certamente seria de

interesse discutir em paralelo a certas reconstruções e análises propostas (p. ex. p. 230 n. 1). E mais grave: não são levados em conta trabalhos especificamente

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ligados ao objeto da investigação de Adams e largamente reconhecidos pela comunidade científica. E aqui tenho especificamente em mente os numerosos trabalhos de I. Rosier-Catach sobre a consagração eucarística, que têm seu ponto alto na obra La parole efficace: signe, rituel, sacré, de 2004, bem como a volumosa monografia de P. Bakker sobre o tema, intitulada La raison et le miracle.

Les doctrines eucharistiques (c. 1250 – c. 1400). Contribution à l’étude des rapports entre philosophie et théologie, de 1999. No que diz respeito a interlocução, pois,

Adams não parece pretender sair do mundo anglo-saxão. E, infelizmente, ela não tem sido a única a assumir tal postura.

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