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A dimensão política da cenografia nas obras de Piscator, Brecht e Grotowski

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Academic year: 2020

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Universidade do Minho

Escola de Arquitectura

Ana Cristina da Silva Soares

A DIMENSÃO POLÍTICA DA CENOGRAFIA

NAS OBRAS DE PISCATOR, BRECHT E GROTOWSKI

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Ana Cristina da Silva Soares

A DIMENSÃO POLÍTICA DA CENOGRAFIA

NAS OBRAS DE PISCATOR, BRECHT E GROTOWSKI

Tese de Mestrado

Ciclo de Estudos Integrados Conducentes ao

Grau de Mestre em Arquitetura - Cultura Arquitetónica

Trabalho efetuado sob a orientação do

Professor Doutor José Capela

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3                                                 AGRADECIMENTOS Aos meus pais. Aos meus amigos. Ao Professor José Capela.

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A DIMENSÃO POLÍTICA DA CENOGRAFIA

NAS OBRAS DE PISCATOR, BRECHT E GROTOWSKI                                   RESUMO

No estudo de autores como Erwin Piscator, Bertolt Brecht e Jerzy Grotowski torna-se perceptível como a cenografia pode ser um componente importante de um teatro que pretende confrontar o observador com a realidade e fazê-lo reagir aos acontecimentos. A análise que terá aqui lugar procura perceber quais as características específicas de uma cenografia pensada a partir da vontade de suscitar uma visão crítica no espectador. Com esse intuito, parte-se da selecção e investigação de algumas peças dos autores mencionados, cujas cenografias serão estudadas a partir da definição de temas que relacionam o espaço com uma possível atitude política. São eles o dispositivo cénico (análise da disposição dos elementos e do enquadramento da cena), o

simbolismo presente no cenário em causa (interpretação da dimensão simbólica da cena) e os

agentes e processos (identificação dos agentes envolvidos, processos de trabalho desenvolvidos

e meios de produção utilizados).

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6

IN THE WORKS OF PISCATOR, BRECHT AND GROTOWSKI

ABSTRACT

After studying authors such as Erwin Piscator, Bertolt Brecht and Jerzy Grotowski it becomes evident how scenography can be an important component of a theatre that is intended to confront the viewer with the reality and make him react to events. This analysis aims the understanding which specifically features set designs that where conceived to shine a different light trying to bring out the critic spirit in each of its viewers. With this in mind, this analysis starts by investigating the selected authors and plays, whose set designs will be studied from the definition of topics that relate the space with a possible political attitude. They are the scenic

device (analysis of the arrangement of elements and framework of the scene), the symbolism in

the scene in question (interpretation of the symbolic dimension of the scene) and the agents and

processes involved (identification of stakeholders, work processes and means production

practices).

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7

ERWIN PISCATOR 19

HOPPLA, ESTAMOS VIVOS 27

Dispositivo 31 Simbolismo 32 Agentes e processos 33 RASPUTIN 35 Dispositivo 39 Simbolismo 43 Agentes e processos 44

AS AVENTURAS DO BRAVO SOLDADO SCHWEIK 45

Dispositivo 49 Simbolismo 50 Agentes e processos 51 BERTOLT BRECHT 53 A MÃE 61 Dispositivo 65 Simbolismo 67 Agentes e processos 69 MÃE CORAGEM 71 Dispositivo 75 Simbolismo 77 Agentes e processos 78

O CÍRCULO DE GIZ CAUCASIANO 79

Dispositivo 83 Simbolismo 84 Agentes e processos 85 JERZY GROTOWSKI 87 KORDIAN 95 Dispositivo 99 Simbolismo 101 DR. FAUSTO 103 Dispositivo 107 Simbolismo 108 O PRÍNCIPE CONSTANTE 109 Dispositivo 113 Simbolismo 115 Agentes e processos 116 CONSIDERAÇÕES FINAIS 119 BIBLIOGRAFIA 137 ANEXOS 145

ÍNDICE

VII

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9

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(11)

11

Todas as artes reflectem, de uma ou outra forma, a sociedade do tempo a que pertencem.

A arte sempre percebeu e registou o drama do homem, místico, mítico, politico, quotidiano. Toda a história da arte está repleta de obras preocupadas em registar o instante no qual o sofrimento ou a felicidade se manifestam.1

A arte tem sido também um veículo de contestação dos valores vigentes, manifestando-se através de um conjunto de signos que procuram provocar reacções na sociedade. O teatro está, como toda a arte, intimamente relacionado com o meio social onde surge e vai reflectindo ao longo dos tempos os contextos e constrangimentos culturais, sociais e políticos de cada período.

O espectáculo teatral é, sempre foi e sempre será, a transcrição de problemáticas humanas que tanto podem ter características transcendentais como ficarem diminutamente analisadas no espaço de um living-room.2

A cenografia é uma arte que lida com a manipulação de um espaço específico, onde terá lugar um determinado evento performativo. É pensada para ser habitada por indivíduos durante um período de tempo definido e, durante esse período de tempo, irá ser apreendida por um outro conjunto de indivíduos. Esta interacção torna-a num veículo particularmente eficaz na transmissão de ideias.

      

1 Ratto, Gianni. “Antitratado de Cenografia: variações sobre o mesmo tema”. 2ª edição. São Paulo: Editora Senac, 1999. p.34.  2Idem, p.43. 

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reais de uma sociedade marcada pela guerra, pela injustiça ou pela perseguição política. Surgindo como um espaço de construção de significados, designadamente críticos, o espaço cénico pode constituir assim um elemento essencial na compreensão de uma peça e na transmissão de uma mensagem.

Com as evoluções sociais, técnicas e artísticas que foram ocorrendo ao longo do século XX, alguns autores sentiram uma necessidade premente de despertar o sentido crítico do espectador. Querem que o espectador tenha uma atitude activa e não passiva, vendo o teatro como uma denúncia, numa perspectiva didáctica e sem lugar para a ilusão.

Procurou-se transformar os factores de prazer em factores de ensinamento e tornar determinadas instituições de estâncias de recreio em órgãos de instrução.3

Entende-se por

teatro político um teatro que quer participar activamente no processo de

transformação da realidade social. Todas as artes podem assumir uma atitude política. Os parâmetros de análise aqui utilizados permitir-nos-ão perceber de que forma se pode manifestar essa atitude quando se trata de “artes de manipulação do espaço”.

Delimitar o espaço da acção humana, de uma forma ou de outra, compreende sempre uma atitude política.

Nesta dissertação propõe estudar-se o papel de uma cenografia que surge da vontade de confrontar a sociedade, e reflectir sobre a possível dimensão política do espaço cénico.

Trata-se de um espaço destinado à acção e à observação, e a forma como o espectador o observa é pensada e moldada de determinada maneira. Existem infinitas formas de fazer ver. Por se tratar de um tema que percorre toda a história, optei por abordar apenas três autores, que se tornaram referências no panorama teatral moderno, tentando perceber através das suas obras até que ponto, ou de que modo pode a cenografia ser política.

Os autores escolhidos como objecto de estudo são representativos de um tipo de teatro “activo”, que não existe como mero entretenimento e se afasta da ilusão ou da magia. São autores que se notabilizaram pela sua postura interventiva e o seu trabalho centra-se na vontade de

suscitar

uma visão crítica da sociedade no espectador, revelando-se fundamental para o estudo do tema

em questão. São eles Erwin Piscator, Bertolt Brecht e Jerzy Grotowski.

      

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13

Erwin Piscator (1893-1966) foi um encenador alemão que viveu as duas Grandes Guerras. Foi com ele que se começou a desenvolver a ideia de um teatro didáctico. Um teatro que fosse capaz de provocar o público e de o “ensinar”, mostrando-lhe como o sistema económico e político exercia repressão sobre o individuo. Bertolt Brecht afirma acerca de Piscator:

O teatro tinha uma ambição: colocar o seu parlamento, o público, em situação de, baseado nas suas ilustrações, estatísticas, palavras de ordem, tomar as suas decisões.4

Bertolt Brecht (1898-1956) foi um encenador alemão que consagrou o

teatro épico. Tendo

trabalhado com Erwin Piscator, veio mais tarde a aprofundar as suas teorias acerca do teatro didáctico e tornou-se no seu maior representante. O espectáculo era montado para que o espectador apreendesse e reflectisse sobre a lição social posta em palco, promovendo uma atitude distanciada por parte dos espectadores, já que em causa não estão a ilusão e a emoção, mas o envolvimento consciente do público. Nas palavras de Peter Brook5:

Brecht acreditava que, se os espectadores tivessem os elementos necessários para avaliar uma situação, o teatro estaria a cumprir a missão de ajudar o público a perceber melhor a sociedade em que vive – e consequentemente a descobrir de que modo essa sociedade poderia mudar.6

Jerzy Grotowski (1933- 1999) foi um encenador polaco que se dedicou à pesquisa teatral, tendo fundado o

Teatro Laboratório em 1959, um instituto que se dedica à pesquisa da

representação teatral. Grotowski procura um aprofundamento da relação entre actor e espectador, estabelecendo entre eles uma relação de proximidade, através da qual se pretende confrontar o espectador. De acordo com Peter Brook:

Segundo ele, o teatro não pode constituir-se como um fim em si mesmo; (…) o teatro é um veículo, um meio de análise e exploração pessoal, uma hipótese de salvação.”7

Será no estudo de obras de Piscator, Brecht, e Grotowski, que se centrará esta pesquisa, numa tentativa de perceber o modo como as formas e a criação de espaço podem servir para reagir a determinados contextos, em determinadas épocas, através do teatro e, nele, especificamente através da cenografia.

      

4Citação de Brecht in Piscator, Erwin. “Teatro Político”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p.5.

5 Peter Brook – director e cenógrafo inglês, radicado em França, o seu trabalho tem-se distinguido nas áreas artísticas do teatro, da ópera, do

cinema e da escrita. Propõe um teatro de caracterização psicológica das personagens que torne visível a invisível alma humana. O Espaço Vazio foi o seu primeiro livro escrito sobre teatro, publicado em 1968.

6Brook, Peter. “O Espaço Vazio”. Lisboa: Antígona – Orfeu Negro, 2008. p.107. 7Idem, p. 83.

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segundo critérios que serão explicados aquando da análise de cada autor.

Para proceder à análise das peças escolhidas comecei por definir três temas que relacionassem o

espaço

cénico com as suas possíveis características políticas –

dispositivo,

simbolismo e

agentes e processos.

Passo a explicar cada um dos temas:

DISPOSITIVO

Neste tema procede-se à análise do enquadramento da cena e dos seus constituintes físicos, sobretudo no que se refere à sua disposição, ou seja, à sua posição relativa. Será efectuada uma descrição do espaço cénico.

Pretende perceber-se como a escolha e posicionamento dos diversos elementos no espaço irão determinar a forma como o indivíduo se relaciona com o espectáculo.

Um determinado espaço adquire sentido nas relações que estabelece com quem o habita. Essas relações estão condicionadas pelos dispositivos que determinam e organizam esse espaço e, consequentemente, de acordo com o seu “desenho”, irão permitir estabelecer correspondências diferenciadas com os seus habitantes.

O desenho de um determinado espaço, seja ele efémero ou perene, condiciona a acção do indivíduo que o usa e a leitura do indivíduo que o observa.

SIMBOLISMO

Aqui será observado o simbolismo presente em cada cenário. Partindo da descrição efectuada no tema anterior, procede-se à interpretação das características figurativas ou emblemáticas dos elementos que constituem o espaço de representação.

Pretende apreender-se a dimensão simbólica do espaço cénico e verificar a sua influência na comunicação que se estabelece com o observador.

O símbolo é um elemento essencial no processo de comunicação. É através dele que um conceito ganha forma, o que se revela fundamental para o tipo de cenografia que se irá analisar.

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AGENTES E PROCESSOS

Por último, procuram identificar-se os agentes envolvidos na construção da cenografia e perceber qual o processo de trabalho desenvolvido. Serão analisados os meios de produção utilizados e as relações entre os agentes das diversas artes envolvidas.

Pretende perceber-se o modo como os elementos presentes em cena podem tornar evidente o processo de produção que lhes deu origem.

Walter Benjamin refere-se ao processo de trabalho de um autor dizendo:

Ele [o autor] não deve nunca estar preocupado somente com os produtos finais, mas sempre, ao mesmo tempo, com os meios da sua produção. Noutras palavras, os seus produtos devem possuir uma função organizativa além e antes do seu carácter como obras concluídas. 8

O que Benjamin procura explicar é que o processo de produção de uma obra é uma característica fundamental na definição da sua dimensão política. Segundo ele, um autor que expresse a sua solidariedade com uma causa apenas no seu discurso e não enquanto produtor, não estará a cumprir a função revolucionária a que se propõe.

O lugar do intelectual na luta de classes só pode ser determinado, ou melhor, ser escolhido, com base na sua posição dentro do processo de produção.9

      

8 Benjamin, Walter. “Understanding Brecht” – “The author as producer”. London/NY: Verso, 1998. p.98. “He will never be concerned with

products alone, but always, at the same time, with the means of production. In other words, his products must possess an organizing function besides and before their character as finished works.”

9Idem, p.93. “The place of the intellectual in the class struggle can only be determined, or better still chosen, on the basis of his position within

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proceder à análise das peças escolhidas:

PISCATOR BRECHT GROTOWSKI Hoppla, estamos vivos! Rasputin As aventuras do bravo soldado Schweik A mãe Mãe coragem O círculo de giz caucasiano Kordian Dr Fausto O príncipe constante DISPOSITIVO SIMBOLISMO AGENTES E PROCESSOS

De acordo com esta tabela, a análise estará organizada por autor, por ordem cronológica. Para cada autor serão analisadas três peças, também por ordem cronológica, obedecendo a uma leitura vertical da tabela. Ou seja, para cada uma será analisado o

dispositivo cénico,

depois o seu simbolismo e por fim os agentes e processos envolvidos. Trata-se de uma análise descritiva baseada no estudo das peças escolhidas.

A conclusão, por sua vez, terá origem na posterior leitura horizontal da mesma tabela, procedendo-se à comparação entre as principais características dos diferentes autores dentro do mesmo tema. Surge como síntese interpretativa da análise efectuada.

Os temas definidos neste estudo são os adequados à análise do

espaço. No entanto, não se

pretende transportar para o campo arquitectónico a análise cenográfica aqui exposta, mas antes tratar a cenografia como uma forma de arquitectura pela sua capacidade de configurar espaços tridimensionais destinados à acção humana.

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Definição de teatro como edifício:

lugar onde nada existe e tudo pode acontecer

.10

 

      

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ERWIN PISCATOR

(1893-1966)                        

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21                                   BREVE BIOGRAFIA Erwin Piscator nasceu em 1893 em Greifenstein, na Alemanha, e morreu em 1966 em Starnberg, também na Alemanha. Em 1913 foi para Munique para estudar história do teatro. Nesta época nenhum teatro europeu se podia comparar com os teatros alemães em recursos e tecnologia (foram os primeiros a desenvolver a iluminação eléctrica do palco e o palco rotativo, por exemplo). Em 1914 começa a Primeira Guerra Mundial e Piscator é chamado para o exército. No verão de 1917 integra o teatro do exército. Com o fim da Guerra em 1918, regressa a Berlim e é recrutado para o grupo Dada. Em 1927 funda a sua primeira companhia de teatro, a Piscatorbühne. Em 1931 parte para Moscovo e em 1933 vê Hitler subir ao poder, passando da sua condição de “visitante profissional” a exilado político. Passou ainda por Paris e pelos EUA e só regressou à Alemanha em 1951, tendo assistido a toda a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) fora do seu país.

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A política representa o centro criativo do nosso trabalho

.

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Erwin Piscator

      

11Citação de Piscator in Willet, John. “The Theatre of Erwin Piscator, half a century of politics in the Theatre”. London: Methuen, 1986. p.121.

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INTRODUÇÃO AO AUTOR

Em 1927, Erwin Piscator funda a sua primeira companhia no teatro Nollendorfplatz. A companhia foi financiada por Ludwig Katzenellenbogen, que deu a Piscator quatrocentos mil marcos, pedindo-lhe apenas que o nome da mesma não incluísse “proletariado – revolucionário”.

Como alternativa Piscator escolheu usar o seu próprio nome, dizendo (numa entrevista muitos anos mais tarde) que o termo “Piscator” sustentava uma abordagem política no seu todo.12

Fundou assim a Piscatorbühne. Para introduzir o primeiro número da revista onde constava o programa, a companhia lançou um manifesto que começava com a seguinte frase:

Este teatro foi fundado não para fazer política mas para libertar a arte da política.13

Com esta frase Piscator pretendia demonstrar que a introdução da política no teatro era uma causa incontornável da situação política do país e que só seria possível que a arte voltasse a ser livre uma vez que as condições sociais fossem modificadas.

A arte pura é impossível perante a condição presente.14

A companhia criou um “colectivo dramatúrgico”, ou seja, uma equipa de escritores que reviam os textos de todas as peças. Deste colectivo fizeram parte escritores como Brecht, Gasbarra e Lania. Os cenógrafos que integravam a companhia eram Traugott Müller, Grosz e Heartfield. Havia ainda um “estúdio de actores”, onde os actores da companhia treinavam diariamente em conjunto com o colectivo de escritores, os músicos e os técnicos. Piscator pretendia criar “uma espécie de colectivo humano” onde todos fizessem parte da mesma equipa (que luta pela mesma causa) sem destaque para nenhum dos seus constituintes. Cada elemento dessa equipa deveria ser:

Alguém que retira toda a sua força do seu envolvimento com a causa comum. No decurso do tempo esta atitude irá produzir uma nova forma de representar.15

As obras escolhidas por Piscator eram sempre adaptadas à história recente, à actualidade. O seu teatro ficou por isso conhecido como ”Zeittheater” (teatro contemporâneo).

      

12Willet, J., Op. Cit., p.67. “Instead Piscator chose to use his own name, on the grounds (so he told an interviewer many years later) that “the

term ‘Piscator’ stood for a whole political approach.”

13Citação de Piscator in Idem, p.73. “This Theatre has been founded not in order to make politics but in order to free art from politics.” 14Citação de Piscator in Ibidem. “Pure art is impossible under present-day conditions.”

15Citação de Piscator in Idem, p.118. “One who draws his whole strength from his involvement in the common cause. In course of time this

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Foi com Piscator que se deu início ao

teatro épico

(um tipo de teatro que se afasta da forma dramática fundamentada na poética de Aristóteles. Procura despertar o lado racional do espectador e afastá-lo da identificação sentimental com a personagem, recusando qualquer tipo de ilusão ou efeito de catarse).

Foi com ele que Brecht veio a adquirir noções como: enfatizar a razão e o didactismo; um novo objecto de estudo requer uma nova forma dramática; o uso da música serve para interromper a acção; o uso do filme e do documentário transporta o espectador para a realidade, e o uso do texto projectado no cenário ajuda-o a compreender o pensamento do autor (estes temas serão desenvolvidos adiante). No entanto, foi Brecht que mais tarde desenvolveu todo um estudo teórico acerca deste assunto e foi através dele que o conceito de

teatro épico se notabilizou.

Como resume John Willet,

Piscator, noutras palavras, não era um Pensador no Teatro mas um homem que combinava talentos teatrais excepcionais com uma forte energia política. Primeiramente entre esses talentos estava o seu domínio da tecnologia de palco, que excedia de longe o de qualquer encenador do seu tempo.16

Os espectáculos de Piscator eram muito exigentes tecnicamente. Os meios que usava tinham sido criados para simplificar as mudanças de cena, tendo muitos deles já sido usados em óperas. No entanto, para Piscator o cenário e as máquinas não tinham uma função ilusória. Como será possível perceber na análise que se segue, o cenário e as “máquinas” contribuem para a narrativa tanto como o texto ou a música, e são visíveis, estão presentes como algo real que integra todo o dispositivo. A “maquinaria” ajuda a acelerar o espectáculo, na medida em que as mudanças de cena são muito mais rápidas, o que ajuda a manter a atenção do público na acção e a intensificar a expressão da peça. A fluidez e a força da expressão visual eram características do teatro de Piscator. Dada a significância global dos temas que escolhia, era preciso enfatizar o seu significado. Como observa C.D. Innes,

As convenções teatrais tradicionais eram inadequadas para retratar as proporções desumanas da Grande Guerra ou a desumanização da miséria da Depressão, e Piscator veio mais tarde a admitir que esta era uma das principais razões para o uso de meios modernos de comunicação: “Eu admito que estou ainda e sempre dominado pela era. Em comparação a ela não há meios

      

16Idem, p.184. “Piscator, in other words, was not a Thinker in the Theatre but a man who combined exceptional theatrical talents with a strong

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grandiosos o suficiente, profundos o suficiente, poderosos o suficiente. Poesia, palavras, formas, a arte afunda-se desamparada perante ela.”17

A importância da tecnologia no teatro de Piscator está na sua vontade de apelar à imaginação adormecida do público e fazê-lo compreender o mundo em que vive. Afirma,

Devido à falta de imaginação a maioria dos homens são incapazes de experienciar até as suas próprias vidas, quanto mais o mundo. Caso contrário a leitura de uma única página de qualquer jornal seria suficiente para pôr a humanidade em polvorosa.18

      

17 Innes, C.D, “Erwin Piscator’s political theatre – the development of modern german drama”. Cambridge at the University Press, 1972.

p.133.”Traditional theatrical conventions were inadequate to portray the inhuman proportions of the Great War or the dehumanizing misery of the Depression, and Piscator later implied that this was one of the main reasons for his use of modern media: ‘I admit that I am still always overwhelmed by the age. In comparison to it no means seem great enough, deep enough, powerful enough. Poetry, words, forms, art sink back helpless before it.’”

18Citação de Piscator in Ibidem.”Due to lack of imagination the majority of men are incapable of experiencing even their own lives, let alone the

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A Piscatorbühne apresentou-se pela primeira vez ao público a 3 de Setembro de 1927, com a estreia do espectáculo Hoppla, Estamos vivos!. Em Junho do mesmo ano estava na falência. As quatro produções apresentadas nesse período são representativas do trabalho que Piscator desenvolveu no teatro político. Os três primeiros espectáculos apresentados pela Piscatorbühne foram os escolhidos para análise:

Hoppla, Estamos vivos! (1927),

Rasputin (1927) e

As

aventuras do bravo soldado Schweik (1928).

Foi com estes espectáculos que surgiu o conceito de

Teatro Épico. O uso intensivo de filmes e

documentários é uma característica de todas estas peças, assim como o uso de projecções com texto que serve de anotação à acção. A intenção era fazer o espectador observar e compreender a realidade e perceber que os valores que regem o mundo podem e devem ser modificados. Partindo deste objectivo, Piscator escolhe temas da história recente para poder confrontar o público com a totalidade dos eventos mundiais.

Os temas presentes nas narrativas das peças escolhidas centram-se na Primeira Guerra Mundial. Hoppla, Estamos Vivos! (1927) trata a Revolução de 1919, no fim da Primeira Guerra Mundial e a partir da qual se instaurou a república democrática. Rasputin (1927) conta a história de um monge russo, baseada em factos verídicos, antes da Primeira Guerra Mundial e termina com o assassinato do mesmo quando a Guerra se instala. Por sua vez, As aventuras do bravo

soldado Schweik (1928), são passadas durante a Primeira Guerra Mundial, relatando várias

peripécias do soldado, numa crítica à Guerra, à autoridade e a todos os que cegamente compactuam com ela.

Piscator foi responsável por tornar o palco num instrumento declaradamente político.

 

 

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HOPPLA, ESTAMOS VIVOS!

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SINOPSE

Hoppla, Estamos vivos! é uma obra da autoria do escritor Alemão Ernst Toller (1893-1939) e a sua publicação data do mesmo ano da representação de Piscator (1927). É constituída por prólogo e cinco actos. Passa-se na Alemanha do Pós-Guerra, no tempo da revolução de 1919. Um grupo de revolucionários foi preso e condenado à morte e espera a sua execução. Inesperadamente, são perdoados. Mas Karl Thomas, um dos líderes, cede sob a pressão dos acontecimentos e é mandado para um asilo. Aquando da sua libertação, oito anos mais tarde, este idealista descobre que todos os antigos membros do grupo original tinham, de uma ou outra forma, traído os seus ideais. Kilman, um deles, vendeu-se aos adversários e tornou-se Ministro do Interior e insiste com Thomas para abandonar o seu idealismo. Mas Thomas vê-o como um adversário e decide matá-lo. Ironicamente, é antecipado por uma ala da direita conservadora que despreza Kilman pelas suas anteriores actividades revolucionárias. Thomas é preso para interrogatório e acaba por se enforcar na sua cela, desesperado com a humanidade.

TEXTO: ADAPTAÇÃO: ENCENAÇÃO: CENOGRAFIA: IMAGEM/FILME:

Ernst Toller

Erwin Piscator

Erwin Piscator

Traugott Müller

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30

1_Desenho do alçado com projecções nos diferentes espaços.

2_Representação num dos espaços e projecções nos espaços restantes.

3_Desenho do alçado com projecções nos diferentes espaços.

4_Representação em dois dos espaços e projecção no espaço central, ficando o resto na penumbra.

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DISPOSITIVO

A peça

Hoppla, Estamos Vivos! foi a primeira produção da Piscatorbühne no Teatro

Nollendorfplatz. Trata-se de um teatro com palco à italiana (onde os espectadores ficam apenas de frente, situa-se mais distante da plateia) e palco rotativo.

Deste espectáculo fazem parte 39 personagens.

O cenário concebido por Traugott Müller consiste num andaime de três andares que configura diferentes espaços. Está dividido em três “sectores verticais”, estando a do meio livre a toda a altura e os dois “sectores” laterais divididos em três andares. As cenas mais específicas são representadas nos espaços conformados por estes andares, e aquelas onde representa um grande número de actores, e que são mais gerais, são representadas no palco, na frente desta estrutura, enquanto nela vão sendo projectados vários filmes, ilustrações ou documentários em simultâneo nas diferentes divisões.

Aqui vemos um desenho do alçado da estrutura e do sistema de projecção:

As cenas vão-se passando de espaço em espaço ou, por vezes, em dois espaços em simultâneo, que aparecem iluminados. Noutras cenas aparece um dos espaços iluminado, onde estão os actores e decorre a acção e um outro, também iluminado, onde se projecta uma imagem ou frases de comentário à acção. Tudo o resto fica na penumbra.

Na última cena a estrutura representa a prisão. O herói está preso e troca mensagens com os seus companheiros batendo nas paredes das celas. O conteúdo das mensagens aparece projectado no “sector” do centro, ou seja, entre as celas.

5_Alçado-corte da estrutura cénica (a partir de um desenho original de Müller )

6_Corte transversal da estrutura cénica e sistema de projecção (a partir de um desenho original de Müller )

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O cenário proposto por Traugott Müller é tecnicamente complexo mas é muito claro na imagem que pretende transmitir. A estrutura do andaime por camadas serve de uma forma prática o propósito de representar as divisões de um hotel ou as celas de uma prisão, mas também traduz a divisão sectária da sociedade, simbolizando a ordem social.

As projecções que vão sendo exibidas ao longo da peça podem dividir-se em três tipos. Um é o documentário histórico que situa o espectador no tempo e no espaço; o segundo é o dramático, que promove a história e economiza o diálogo, como acontece com as mensagens que se trocam no episódio da prisão; e o terceiro tipo serão os comentários que despertam a atenção do público para determinado pormenor e enfatizam a moral da história. O facto de muitas destas projecções, que tanto são filmes como ilustrações ou textos, serem exibidas ao mesmo tempo em diferentes secções da estrutura do cenário, revela que Piscator pretendia transmitir uma grande quantidade de informação ao espectador. As citações ou dados estatísticos que vão surgindo constituem “provas” ou “testemunhos” para as teorias sociológicas que Piscator apresenta. Estamos perante uma “estética de objectividade”. Estes dados partem da intenção do autor fornecer ao público dados concretos e reais, mas a forma como ele decide exibi-los contém uma determinada visão artística acerca do espectáculo.

A função do cenário não é criar ilusão. Para além de servir de suporte à acção, ele serve também o propósito de informar o público acerca de determinados assuntos e toda a complexidade técnica era compreendida como a melhor forma de transmitir essa informação de um modo preciso e claro.

Referindo-se ao conceito de cenário tradicional, e apesar de todo o aparato do cenário desta peça, Traugott Müller diz a propósito do mesmo:

“Há anos que trabalho para me ver livre do cenário.” 19

Parece-me importante referir que na época em que este espectáculo foi realizado este tipo de projecções constituíam uma inovação técnica.

      

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AGENTES E PROCESSOS

Um espectáculo como este requer uma quantidade considerável de pessoas para ser produzido. Desde o cenógrafo aos técnicos que têm de montar os andaimes até ao elevado número de actores e à complexa produção dos filmes. A concretização de um espectáculo deste tipo é dispendiosa.

A estrutura deste cenário tem aproximadamente oito metros de altura e pesa quatro toneladas. Todos os dias era removida para os ensaios do outro espectáculo no dia seguinte e novamente montada para o espectáculo ser apresentado ao público, o que exigia muito trabalho por parte dos técnicos.

Tudo é desenhado e executado especificamente para esta peça. O cenário é desenhado com detalhe (incluindo plantas, cortes e alçados) por Traugott Müller, para depois ser executado e montado por técnicos. Originalmente, os andaimes projectados por Müller estavam cobertos com telas brancas que corriam em guias para mostrar a área de acção relevante. Mas ao longo do processo de trabalho percebeu-se que as telas emperravam e decidiu-se então deixar o esqueleto dos andaimes à vista. Ainda assim, trata-se de uma estrutura complexa onde, além das cenas representadas no seu interior, serão ainda projectados filmes em locais específicos, o que pressupõe um trabalho de pormenor para que tudo corra como planeado. É de supor que sejam necessários muitos meios humanos para executar uma estrutura tão pesada e muitas horas de trabalho para pôr tudo a funcionar.

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RASPUTIN

(1927)

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SINOPSE

Rasputin, os Romanoffs, a Guerra e o

povo que se ergueu contra eles, é o título completo de

uma narrativa originalmente escrita por Alex Tolstoy (1883-1945) e que a Piscatorbühne adaptou em 1927. O “colectivo dramatúrgico” acrescentou dezanove cenas ao texto original e transformou-o num documentário político. A narrativa de Rasputin desenvolve-se em torno do reino russo. Quando o único herdeiro da dinastia Romanoff, filho do Czar Nicholas II, se encontra gravemente doente com hemofilia, aparece Rasputin, um monge que diz ter tido uma visão da virgem Maria dizendo-lhe que o Czar precisava dele. Acaba por curar o herdeiro, tornando-se íntimo da família real. Uma vez detentor da sua cega confiança, consegue manipular a corte e chegar ao topo da Igreja Nacional Russa. Mas o seu comportamento suspeito e devasso acaba por levar o Czar a afastá-lo do reino. Com o despontar da Primeira Guerra Mundial é acusado de espionagem e apanhado numa trama politica, acabando por ser assassinado.

  TEXTO: ADAPTAÇÃO: ENCENAÇÃO: CENOGRAFIA: IMAGEM/FILME:

Alex Tolstoy

Gasbarra/Lania

Erwin Piscator

Traugott Müller

 

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38

7_Representação da cena (6) no quarto de Rasputin.

8_Representação da cena (4) dos três imperadores.

9_Representação da cena final.

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DISPOSITIVO

A peça Rasputin, os Romanoffs, a Guerra e o povo que se ergueu contra eles, foi apresentada no teatro Nollendorfplatz em 1927. Trata-se do mesmo teatro onde, no mesmo ano, a Piscatorbühne apresentou

Hoppla, estamos vivos!, portanto um teatro à italiana com palco

rotativo, como já foi referido.

O cenário desta peça é constituído por uma estrutura bastante complexa. Imaginemos uma esfera cortada a meio e colocada sobre um círculo rotativo. Essa meia esfera está dividida em várias partes, como se fossem várias “janelas”, que se vão abrindo e fechando de acordo com o local onde se passa a acção. E o palco roda, mostrando estas “janelas” em torno de toda a meia esfera. A maquinaria usada por Piscator permite que as cenas se sucedam com fluidez, sem serem necessários intervalos entre as mudanças de cena. Para melhor compreender como tudo isto funciona é necessário observar as plantas e alçados desta estrutura.

Passo a explicar como tudo se processa, usando para isso a numeração dos desenhos supra apresentados.

(40)

40

1º. A parte de baixo está fechada e é projectado um filme num ecrã suspenso da cobertura amovível. (1)

2º. O quarto de Vzrubova. (2) (por baixo do ecrã referido em 1) - Depois roda no sentido contrário aos ponteiros do relógio.

3º. A taberna

(na parte superior) (3)

- Depois roda no sentido dos ponteiros do relógio.

4º. A cena dos três imperadores (na parte inferior) (4) 5º. A cena de Lenin (na parte superior) (5)

– Depois roda no sentido dos ponteiros do relógio. 6º. O quarto de Rasputin

(ocupa as duas partes em altura) (6)

– Depois roda no sentido dos ponteiros do relógio.

7º. São exibidas projecções na parte superior da superfície da esfera (fechada) (7)

– Depois roda no sentido dos ponteiros do relógio.

1,2

3

4,5

6

(41)

41

8º. O Czar HQ (8)

– Depois roda no sentido dos ponteiros do relógio o tempo suficiente para fechar a “janela” e volta a rodar em sentido contrário para ser exibido um filme na superfície fechada da secção 8, e depois continua a rodar nesse sentido até ao (9).

9º. O duma

(na parte inferior) (9)

– Depois roda no sentido dos ponteiros do relógio com mais projecções na superfície fechada. 10º. O quarto de Yussupov

(na parte inferior) (10)

Segue-se um intervalo e as secções 2, 4 e 9 são alteradas para as secções 13, 11 e 12 (conforme se vê na planta da 2ª parte). O resto da meia esfera está fechada para que se projectem filmes na sua superfície. A segunda parte começa com a esfera em rotação para mostrar a primeira cena (11).

8

9

10

(42)

42

11º. A Vila Rode (11)

– Depois roda no sentido dos ponteiros do relógio, e é projectado um texto na superfície (a). 12º. O palácio de Yussupov (12)

– Depois roda 180º no sentido dos ponteiros do relógio.

13º. O quarto da Tsarina (na parte inferior) (13) com um filme a ser projectado na parte superior (1)

– Entretanto o interior da secção 12 é alterado (secção 14). A meia esfera roda no sentido contrário aos ponteiros do relógio enquanto um filme e texto são projectados nas superfícies (b) e (c).

14º. O Instituto Smolny (com um filme a ser projectado acima).

A superfície desta semi-esfera criada por Traugott Müller tem uma cor prateada e revela-se muito eficaz quando os filmes são projectados sobre ela. Piscator usou três projectores e dois mil metros de filme. De um dos lados do palco aparece um calendário em filme, muito estreito, onde se podem ler notas sobre a multiplicidade de eventos da Primeira Guerra Mundial.

Às vezes os títulos eram sobrepostos aos filmes enquanto estes corriam. Por exemplo, há um filme da batalha de Somme e sobre ele aparece escrito – “Perdas – meio milhão de mortos; ganhos – trezentos quilómetros quadrados”.

11 12 (c) (b) 14 13 (c) (b)

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43

SIMBOLISMO

A estrutura cénica construída pretende simbolizar o mundo, como se se quisesse criar um pedaço da história mundial. Enquanto as diferentes janelas se vão abrindo e fechando, é como se estivéssemos a espreitar, de facto, para o interior do globo terrestre, assistindo aos acontecimentos que ali se relatam como se acontecessem em tempo real desde o interior do mundo. Piscator descreve este cenário da seguinte forma:

Em mim formou-se a imagem do globo terrestre (…) dentro desse meio globo terrestre fazer passar em simultâneo o que acontecia com Rasputin e o que influenciava o destino da Europa.20

As constantes projecções exibidas ao longo da peça são um dado significativo na medida em que Piscator queria que o público tivesse conhecimento de certos acontecimentos que exibe nos documentários. Há a preocupação de relacionar a peça com a realidade. Ao projectar os filmes sobre a superfície do “globo terrestre” Piscator consegue torná-los parte integrante da história. Tal como na primeira peça descrita, também nesta peça não existe o sentido ilusório. O cenário é projectado de acordo com as necessidades dramatúrgicas e “informativas” do encenador. Aqui adquire uma dimensão simbólica ainda mais presente do que em “Hoppla”. Procurando suscitar no espectador a imagem do globo terrestre, o encenador e o cenógrafo acrescentam um novo dado à narrativa, não se limitando a criar um cenário que cumpra estritamente as necessidades da acção. O próprio cenário encerra em si uma mensagem.

O facto de a peça incluir tantos personagens (quarenta) enfatiza a ideia do “globo”. Piscator quer mostrar como os acontecimentos originados por alguns homens vêm mais tarde a afectar todos os homens. Explica:

Eu queria compreender o destino como um todo, mostrando como é feito pelo homem e depois se espalha para além dele. (Daí a maquinaria, filmes, etc).21

Toda a estrutura técnica construída e a forma como ela se desloca vem apelar directamente aos sentidos dos espectadores. Piscator quer envolvê-los no drama, fundindo o espectador individual numa unidade emocional do colectivo de espectadores, transportando-os assim para o drama.

      

20Citação de Piscator in Schwhaiger, Michel. “Bertolt Brecht und Erwin Piscator, experimentelles theater im Berlim”. Vienna: Verlag Christian

Brandstatter, 2004. “Zwingend wurde in mir die Vorstellung des Erdballs (…) als Spielgerüst des Dramas der Erdball oder wenigstens eine Hälfte des Globus und die Erweiterung des Rasputin – Schicksals zur Schicksalsrevue Europas.”

21Citação de Piscator in Willet, J., Op. Cit., p.187. “I wanted to comprehend fate as a whole, showing how it is made by men and then spreads

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44

O cenógrafo que projectou esta complexa estrutura foi também Traugott Müller. Para executar este cenário foi novamente necessário todo o detalhe de desenhos técnicos, onde se percebesse com rigor como tudo iria funcionar. Mais uma vez, a quantidade de técnicos envolvidos na execução do cenário é imensa (tal como o número de actores) e as características específicas do seu funcionamento tornam-no dispendioso. Cada metade da meia esfera tinha cerca de 15m de largura e pesava uma tonelada.

Durante o processo de trabalho, Piscator trata todos os intervenientes como parte de um todo. Ele acreditava que o processo de trabalho tinha de ser desenvolvido pelo grupo. O encenador, o cenógrafo, o actor, o músico, todos integravam um grupo de trabalho e formavam uma equipa, sem qualquer hegemonia de nenhuma das partes. Os actores são um meio de comunicar o conteúdo do espectáculo da mesma forma que a iluminação, a cor, a música,

o cenário e o

texto. Esta atitude é reveladora de um sentido democrático no processo de trabalho que não era comum na época. Como foi referido na introdução, Piscator criou um “estúdio” onde actores, escritores, cenógrafos e todos os que pertencessem ao “colectivo”, treinavam diariamente. Lindtberg, um dos actores do “estúdio”, escreveu a propósito do processo de trabalho desenvolvido:

Há muito tempo que sou conhecido como um aluno de Piscator, e se eu não usar as técnicas que me ensinaste no meu trabalho, há algo mais valioso que adquiri na tua escola, algo que estimo e que tento transmitir: nomeadamente o principio de que devemos sempre trabalhar fora de um núcleo moral e espiritual, devemos pôr a causa primeiro e a nós mesmos em segundo, e devemos ter por objectivo não o que é eficaz mas o que é correcto.22

      

22Idem, p.120.” I’ve long been known as a Piscator pupil and if i don’t use the techniques you taught me in my own work there is something

more valuable which i got from your school, have treasured and tried to pass on: namely the principle that one should always work outwards from a moral and spiritual core, should put the cause first and one’s self second, and should aim not for what is effective but for what is right.”

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AS AVENTURAS DO BRAVO SOLDADO

SCHWEIK

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SINOPSE

Jaroslav Hasek (1883-1923) faleceu antes de acabar de escrever As aventuras do bravo soldado

Schweik. Publicada em 1923, a narrativa é uma sátira

à Primeira Guerra Mundial, e retrata uma série de incidentes ridículos do soldado Schweik e a ineptidão das figuras da autoridade. Max Brod e Hans Reimann ficaram com os direitos legais de adaptação do drama, mas Piscator conseguiu convencê-los a deixar o “colectivo dramatúrgico” rever a adaptação. Brecht, Gasbarra e Piscator montaram a peça em vinte e cinco cenas. A história começa em Praga, com a notícia do assassinato do Arquiduque da Áustria, Franz Ferdinand, e da sua esposa em Sarajevo. Depois vem a Grande Guerra e Schweik vai para o exército. Esta personagem é uma metáfora do povo checo da época, que combatia numa guerra que não compreendia, por um país ao qual não tinha qualquer lealdade. Ao longo de uma série de cenas caricatas, ele consegue frustrar repetidamente a autoridade militar e expor a sua estupidez, através de uma forma de resistência passiva. Nunca se chega a perceber se Schweik é deliberadamente insolente ou um verdadeiro idiota. O absurdo de todos os eventos descritos termina quando Schweik, vestindo um uniforme russo, é erroneamente preso pelas suas próprias tropas.

TEXTO: ADAPTAÇÃO: ENCENAÇÃO: CENOGRAFIA: IMAGEM/FILME:

Jaroslav Hasek

Brecht/Gasbarra

Erwin Piscator

George Grosz

George Grosz

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11_Espaço cénico com projecções de Grosz.

12_Uma das cenas em que se pode ver as “figuras” de Grosz movidas pela passadeira, enquanto uma das personagens as observa.

13_Representação da cena da “carruagem” com Schweik na frente.

15_Desenho de Grosz - Schweik. 14_Desenho

de Grosz.

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DISPOSITIVO

A peça

As Aventuras do bravo soldado Schweik, foi a terceira estreia da companhia

Piscatorbühne no teatro Nollendorfplatz. Ao longo das vinte e cinco cenas só uma personagem se mantém constante, o soldado Schweik.

O cenário concebido para a realização desta peça é bastante diferente do das duas primeiras apresentadas neste mesmo teatro. Não se constrói nenhuma complexa estrutura tridimensional como anteriormente.

O cenário consiste no uso de duas passadeiras rolantes paralelas que “trazem” as cenas até Schweik sem que ele se movimente. É exemplo desta situação a cena em que Schweik está junto da linha de comboio e um modelo à escala humana de uma carruagem de um comboio aparece movimentado pela passadeira. Nem sempre a acção se processa desta forma. As passadeiras rolantes vão adquirindo diferentes funções de acordo com a narrativa. Por exemplo, na quarta cena Schweik é conduzido numa cadeira de rodas até ao recrutamento e o movimento é no sentido contrário ao da passadeira. Há uma outra cena em que ele é literalmente “levado” pela passadeira, quando o mandam para a prisão.

No fundo do palco existem três telas com projecções de ilustrações desenhadas por George Grosz. Destas projecções fazem parte curtas sequências de filmes de desenhos animados, desenhos de “paisagens” que criam, ou o pano de fundo necessário àquela cena, ou desenhos de marionetas desmembradas, ou caricaturas de personagens. Alguns dos filmes apresentados são reais, como é o caso de alguns planos das ruas de Praga, mas a maioria são ilustrações criadas por Grosz.

Em suma, o cenário é constituído simplesmente pelas telas com as projecções e pelas passadeiras e funciona como “agente da narrativa”. Não há muito diálogo nesta peça e as projecções assumem uma presença muito forte como comentário à acção.

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50

Este cenário é muito mais simples que os anteriores, mas também aqui a tecnologia é utilizada como um dado significante para a peça. O uso das passadeiras vai adquirindo diferentes significados ao longo da acção. Piscator queria que Schweik marchasse suavemente para a guerra sangrenta sem sair do lugar. Isto é uma forma irónica de dizer ao público como todos somos absorvidos por uma guerra, mesmo sem fazer nada para que isso aconteça. Quando Schweik é empurrado pela sua senhoria numa cadeira de rodas, abanando a muleta, e ambos se movimentam no sentido oposto ao do movimento da passadeira, a imagem transmitida é a da dificuldade daquele movimento. Segundo o argumento, Schweik decidiu voluntariar-se, mas como é reumático vai de cadeira de rodas e muletas. Na verdade, é depois preso por simulação de doença. Tendo agora em conta esta parte da narrativa, a cena do movimento contrário ao da passadeira adquire um sentido irónico. Schweik caminha contra a sua vontade, daí aquele movimento ser tão difícil. Não se trata propriamente de voluntariado. Na cena em que é preso, Schweik é “levado” pela passadeira rolante. A passadeira enfatiza a narrativa e em cada cena dá-lhe um significado que nunca teria sem este meio.

Piscator transformou-a num princípio dramatúrgico, a chave para uma adaptação picaresca23 sem

a qual seria apenas convencional.24

Esta peça, tal como Piscator a pensou, não existe sem as passadeiras rolantes nem sem as projecções. As ilustrações de Grosz aparecem muitas vezes como uma história dentro da história e são muito expressivas, assumindo um papel fortíssimo na narrativa. Permitem introduzir um nível de representação simbólica que está além das capacidades do corpo dos actores e que vem imprimir à peça um sarcasmo que não seria possível de outra forma.

A impressão visual geral é a de um espectáculo em contínuo movimento.

Não sei de meios que possam ser denominados de não-artísticos desde que comuniquem um espírito de movimento, tensão, expressão – noutras palavras, de vida.25

      

23Picaresco significa burlesco ou cómico.

24Willet, J., Op. Cit., p.113. “Piscator now turned it into a dramaturgical principle, the key to a picaresque adaptation which without it could only

have been conventional.”

25Citação de Piscator in Ibidem. “I know of no means that can be termed inartistic so long as it communicates a spirit of movement, tension,

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AGENTES E PROCESSOS

A concepção deste cenário esteve a cargo de Piscator e de George Grosz. Piscator idealizou as passadeiras rolantes e chamou Grosz para desenhar tudo aquilo que fosse necessário.

Tanto ao nível técnico como económico esta peça é de uma execução bastante mais simples do que as anteriormente descritas. No entanto, o uso das passadeiras também trouxe dificuldades. Não era um dispositivo muito comum naquela época. Foi uma empresa de Dortmund que as forneceu e cada uma delas tinha cerca de dezassete metros de comprimento e pesava cinco toneladas. Também aqui havia a questão dos ensaios e da remoção da maquinaria todos os dias. John Willet, no seu livro sobre o teatro de Erwin Piscator, fala num custo de mais de dez mil marcos só nestas operações de remoção e montagem diária das estruturas dos cenários. A acrescentar a isto, as passadeiras eram ruidosas.

Tínhamos a impressão de uma máquina a vapor a trabalhar arduamente. As bandas estremeciam, produziam um estrondo até que todo o edifício era sacudido. Por mais alto que se gritasse só escassamente nos fazíamos ouvir. O diálogo nestes monstros barulhentos estava fora de questão. Tanto quanto me lembro afundámo-nos nas cadeiras a rir desesperadamente. Isto foi doze dias antes da estreia.26

De acordo com John Willet, o melhor que os técnicos conseguiram fazer foi reforçar o palco, inserir tiras de feltro e usar grandes quantidades de gordura para reduzir o barulho. Ainda assim, os actores apenas se conseguiam ouvir quando gritavam muito alto.

De facto, esta peça não tem muito diálogo. Fica por esclarecer se terá sido uma opção dramatúrgica ou algo que adveio directamente do problema de ruído das passadeiras. Se este for o caso, é significativo que se tenha optado por manter os elementos cenográficos em detrimento do texto falado.

            

26Idem, p.114. “We had the impression of a steam mill working flat out. The bands clattered, rattled and puffed till the whole building shook.

However hard you shouted you could scarcely make yourself heard. Dialogue on these whizzing monsters was out of the question. So far as I remember we sank into the stalls laughing desperately. That was twelve days before the première.”

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BERTOLT BRECHT

(1898-1956)                          

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56                                          

Os teatros são o lugar

onde se devia aprender um modo particular de ver as coisas

.

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Bertolt Brecht

      

27Citação de Brecht in Willett, John. “Caspar Neher – Brecht’s designer”. London: Methuen, 1986. p.99. “For theatres are where you should

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INTRODUÇÃO AO AUTOR

As primeiras peças de Bertolt Brecht foram apresentadas em Munique, onde trabalhou com o cenógrafo e amigo Caspar Neher.

Do seu trabalho em conjunto surgiram inovações cénicas que vieram a integrar alguns dos princípios que Brecht definiu nas suas teorias acerca do

teatro épico

28: a

separação dos

elementos, em que texto, música e imagens contam a sua história autonomamente; a

“letralização” do teatro, que consiste no uso de cartazes e inscrições não integradas na acção e a

visibilidade da mudança de cena e dos equipamentos de luzes. Este conjunto de princípios

relativos à cenografia, tinha por objectivo evitar qualquer ilusão no espectador e ajudar ao efeito

de distanciamento (conseguido através de várias técnicas dramatúrgicas com o intuito de manter

o observador emocionalmente “fora da acção” para que pudesse manter o juízo critico), necessário para que se desenvolvesse um teatro épico. Como explica Walter Benjamin,

O teatro épico, segundo ele [Brecht], não deve desenvolver acções mas representar condições. (…) Estas condições são, de uma forma ou de outra, as condições da nossa vida. No entanto não são transportadas para perto do espectador; são distanciadas dele. Ele reconhece-as como reais – não, como no teatro do naturalismo, com complacência, mas com perplexidade. O teatro épico não reproduz condições; revela-as.29

Segundo Brecht, o teatro deve ter o mesmo realismo que um estádio em dia de jogo. Na sua perspectiva é muito mais importante fazer o público perceber que está num teatro do que noutro sitio qualquer, ilusório. A propósito da produção d’O Circulo de Giz Caucasiano (uma das peças analisadas) Brecht escreveu em nota um pequeno texto onde reflecte sobre o realismo e a estilização:

Actores, cenógrafos e encenadores atingem normalmente a estilização à custa do realismo. Criam um estilo criando “o” camponês, “o” casamento, “o” campo de batalha; noutras palavras removendo tudo o que é único, especial, contraditório, acidental, e proporcionando estereótipos banais cujo volume não representa um domínio da realidade mas são só desenhos de desenhos.30

      

28Ver esquema de Bertolt Brecht: “Um teatro de forma dramática – Um teatro de forma épica” (anexos – pp. 147)

29Benjamin, W., Op. Cit., pp.99/100. “Epic theatre, he declared, must not develop actions but represent conditions. (…) These conditions are, in

one form or another, the conditions of our life. Yet they are not brought close to the spectator; they are distanced from him. He recognizes them as real – not, as in the theatre of naturalism, with complacency, but with astonishment. Epic theatre does not reproduce conditions; rather, it discloses, it uncovers them.”

30Citação de Brecht in Stern, Tania e Stern, James. “The Caucasian Chalk Circle” – “Texts by Brecht – notes to the caucasian chalk circle”.

London: Methuen, 1963. p.299. “Actors, stage designers and directors normally achieve stylization at the cost of realism. They create a style by creating “the” peasant, “the” wedding, “the” battlefield; in other words by removing whatever is unique, special, contradictory, accidental, and providing hackneyed or hackneyable stereotypes the bulk of which represent no mastery of reality but are just drawings of drawings.”

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se perceba como tudo funciona, sem ilusões; os

materiais utilizados são autênticos (como a

madeira, cartão ou lonas), não pretendem imitar outro material qualquer; se o cenário representa uma cidade, parece uma cidade construída para durar duas horas, tem um aspecto provisório mas delicado; os lugares representados, interiores ou exteriores, são

sugestões; as

cores são cores–terra, tons de castanhos, vermelho terra e cinzentos, para que não desviem a atenção do texto; a

“divisão de cena”, que consiste na divisão horizontal do espaço de cena

(pode ocorrer de duas formas: através do uso de uma “meia–cortina” que divide a cena em altura em duas partes ou através da disposição cénica de um espaço interior na frente do palco com cerca de 2,20m de altura como se estivesse representado em corte); e a “letralização” do teatro, já referida, que faz uso de fotografias, frases ou cartazes que sublinham mensagens importantes para a peça.

Em tempos em que é ao mesmo tempo necessário e difícil criar clareza, a cenografia pode distanciar-se mais das outras artes constituintes do teatro do que noutros tempos, embora mesmo aí devesse manter a sua independência. O cenógrafo pode escolher a sua própria forma de reagir aos acontecimentos. No entanto, a tarefa social com que se depara é a mesma das outras artes.31

Brecht alterou por completo as relações funcionais entre texto e representação, encenador e actor, e encenador e cenógrafo. Isto acontece, não só através da importância dada a cada elemento na sua “separação de elementos”, mas principalmente através do processo de trabalho que desenvolveu. Na sua forma de criação teatral as práticas do dramaturgo, do encenador e do cenógrafo estão relacionadas de uma maneira orgânica, em que todos participam. Todos estão nos ensaios e vão produzindo alterações e comentários. É um trabalho conjunto em que cada área profissional assume a sua autonomia sem se sobrepor a outra. Também no processo de trabalho, e não só nos seus textos, se pode perceber a visão política que Brecht tinha do teatro.

      

31Citação de Brecht in Willett, J. "Caspar Neher - Brecht's Designer". Op. Cit., p.102. “In times when it is both necessary and difficult to create

clarity, stage design can distance itself somewhat more from the other constituent arts of a theatrical performance than in other times, though it should maintain its independence even them. The stage designer can choose his own way of reacting to the events. However, the social task confronting him is the same as for the other arts.”

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3 ESPECTÁCULOS

Ao longo da sua extensa produção teatral, Brecht trabalhou com três cenógrafos: Caspar Neher, Teo Otto e Karl von Appen.

Foi com Neher que se iniciou a discussão em torno dos termos Bühnenbildner e Bühnenbauer. Neher considerava a primeira uma “palavra nazi”, por se referir a alguém que se limita a pintar imagens que servem como fundo de cena, enquanto que a segunda se refere à arte de construir toda a cena. Esta distinção semântica que Brecht e Neher estabeleceram foi muito importante na redefinição da cenografia, na medida em que esta se torna assim num componente integral da dramaturgia da peça, onde o cenário existe como uma camada de significado dentro do texto, fundamental para a compreensão da peça. O processo de trabalho criado para atingir este propósito é transversal a todos os cenógrafos com quem trabalha.

Os espectáculos escolhidos para serem aqui analisados procuram demonstrar isso mesmo. Sendo a sua produção tão extensa, parece-me importante analisar uma peça de cada cenógrafo com que Brecht trabalhou. Assim, as peças escolhidas são A Mãe (1932/1951) cujo cenário é de Caspar Neher;

Mãe Coragem

(1949) com cenário de Teo Otto e

O Círculo de Giz Caucasiano

(1954) que teve como cenógrafo Karl von Appen.

São também produções que estão marcadas por uma determinada época na vida de Brecht e do mundo. Produziu A Mãe pela primeira vez em 1932, quando iniciava a exploração de um teatro didáctico para uma audiência de trabalhadores e não burguesa. O nazismo estava em ascensão. Hitler torna-se “Chanceler” em 1933 e a peça é proibida em toda a Alemanha. É então que Brecht parte para o exílio. Escreveu Mãe Coragem quando estava exilado na Suécia, durante os primeiros meses da Segunda Guerra Mundial. O Círculo de Giz Caucasiano foi escrito durante o exílio nos Estados Unidos.

Os escritores não conseguem escrever tão rapidamente como os governos conseguem fazer guerra, porque escrever implica pensar arduamente.32

A acrescentar a estes factos, o tema da “família”, e em particular do papel da ”mãe”, está presente nas três peças escolhidas, embora de formas distintas. Ao longo das três peças a maternidade é tratada como estando profundamente marcada pelo tempo em que se insere. E em todas as peças esse tempo é tempo de guerra e de luta.

      

32Citação de Brecht inUnwin, Stephen. “A guide to the plays of Bertolt Brecht”. London: Methuen, 2005. p.211. “Writers cannot write as rapidly

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A MÃE

(1932/1951)

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33Lemos, Vera San Payo de - Introdução in Brecht, Bertolt. “Teatro III”. Lisboa: Livros Cotovia, 2005. p.85.

SINOPSE

“A peça A mãe baseia-se no romance Mat de Maxim Gorki (1868-1936), publicado primeiro em inglês em 1906 durante o exílio do autor nos Estados Unidos e proibido na Rússia até 1917. (…) Tomando como exemplo a figura de Pelagea Vlassova, uma viúva, analfabeta, que começa por se envolver na luta dos operários para apoiar o seu filho Pavel e acaba por se transformar numa militante empenhada na causa do socialismo, o romance descreve a formação do movimento revolucionário na Rússia e a actuação do partido bolchevique na preparação da Revolução de 1905.” TEXTO: ADAPTAÇÃO: ENCENAÇÃO: CENOGRAFIA: IMAGEM/FILME:

Maxim Gorki

Bertolt Brecht

Bertolt Brecht

Caspar Neher

Wolfgang Roth

Hill e Heartfield

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18_Representação da cena em casa de Pelagea Vlassova. Atrás vê-se a projecção da fábrica. (1951)

19_Representação da cena em que Pelagea Vlassova vai à fábrica. (1951)

20_Representação da cena em casa do professor. (1951) No quadro está escrito “Trabalhadores / Luta de classes / Exploração” - dispositivo de “letralização”.

21_Representação da cena em casa do professor. (1932) No quadro está escrito “Trabalhadores / Luta de classes / Exploração” - dispositivo de “letralização”.

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DISPOSITIVO

A apresentação de

A mãe foi em 1932, no teatro Komödienhaus, em Berlim. O cenário é

simples, porque Brecht queria que a peça pudesse ser “transportada” e representada em reuniões políticas. Em 1951, é elaborada uma encenação para o Berliner Ensemble, também em Berlim, num teatro à italiana, agora sem o intuito de ser transportada.

Na versão de 1932, o cenário é constituído por estruturas a “meia altura” na frente (ocupam cerca de 2,20m em altura na frente do palco), construídas com canos onde se esticam lençóis brancos, fazendo assim a representação dos espaços interiores. Atrás está uma enorme tela onde se fazem as projecções, que tanto são citações de Marx como fotografias do Czar ou de outros políticos responsáveis pela guerra. É um espectáculo pensado para ser facilmente transportado e montado em espaços não convencionais.

Na versão de 1951, o espaço de representação é o de um teatro à italiana, com palco fixo e plateia, e é elaborada uma “versão de palco” onde se recria a simplicidade da encenação original, mas com maior detalhe, tanto nos figurinos como nas projecções e estruturas cénicas que representam os espaços interiores.

Nesta peça é bem visível o uso da “divisão de cena”, dispositivo cénico que apresenta na frente do palco um qualquer espaço interior a “meia altura” (com cerca de 2,20m de altura e representado como um corte) e por trás, projectado ou pintado, um outro tipo de figuração, mutável em cada cena ou fixa ao longo de toda a peça. Neste caso especifico, temos numa das primeiras cenas a casa de Pelagea Vlassova (a personagem principal) concebida a uma escala humana, e na projecção de fundo podemos ver a representação da fábrica, em torno da qual gira toda a problemática da peça. A área de representação está delimitada pelo espaço interior. Trata-se de uma estrutura construída com tábuas de madeira, constituída por três paredes, chão e tecto. A parede do fundo (de frente para os espectadores) tem uma porta por onde vão entrando as personagens, enquanto a do lado direito tem uma janela. No seu interior encontra-se uma mesa e duas cadeiras, que são mais baixas que o normal. Neher cortou-as propositadamente para que se visse o tampo da mesa. Os materiais usados são novos, mas estão desgastados para dar a impressão de já terem sido gastos pelo uso e pelo tempo. Neher é também muito cuidadoso no uso da cor, cujo brilho pode distrair o espectador das palavras do autor. Por isso usa as chamadas “cores-terra” – siena, ocres, verdes e vermelhos crus.

Referências

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