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CLUBES NEGROS EM RIO CLARO: PRÁTICAS DE LIBERDADE E A DISPUTA DO ESPAÇO SOCIAL NO PÓS ABOLIÇÃO

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Academic year: 2021

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liberdade e a disputa do espaço social no

pós abolição

Resumo

A partir de um estudo de caso, este artigo busca discutir o processo de transformação nas relações sociais que ocorre no Brasil em finais do século XIX, no período pós-Abolição da Escravatura e Proclamação da República. Direcionando nossas perspectivas à contribuição e significação que o samba, a partir dos clubes sociais de Rio Claro (SP) dão a esta repaginação das relações sociais até então vigentes no país, buscamos compreender: os processos de socialização e experiências de liberdade que se dão na sociedade, a partir da formação dos clubes negros do século XX e de como estas práticas culturais colocam em disputa o espaço social. Problematizaremos também as vivências experimentais da liberdade nos grupos sociais que compõem o cenário do município desde a última década do século XIX até a década de 1960.

Palavras-chave

Samba; clubes sociais; clubes negros; espaço social; disputa.

Pedro de Castro Picelli

Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

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Introdução

A cidade não pára A cidade só cresce O de cima sobe E o de baixo desce Eu vou fazer uma embolada, Um samba, um maracatu Tudo bem envenenado Bom pra mim e bom pra tu Pra gente sair da lama e enfrentar os urubus (A Cidade- Chico Science) Vidigal Informamos ao leitor que o presente texto se propõe ambicioso por tentar olhar para além do espectro legitimado pela historiografia brasileira do século XX. Mais que isso. Dá-se por ambição em tentar colocar em primeiro plano uma reflexão, com caráter mais ensaístico que de uma assertiva finda sobre o tema, dos sentidos de liberdade construídos ao longo das últimas décadas do século XIX no Brasil e como estas ideias se transportam do período de conflito oriundo da ressignificação da estrutura social brasileira de fins deste para a Abolição registrada nos autos jurídicos. Recomenda-se, então, a leitura como construção conjunta das ideias. Em outras palavras, pedimos que o leitor dispute com o autor os significados de interpretação que tal narrativa irá propor e que, a partir delas, construa significados possíveis para o que se, brevemente, narra.

Tensionar ideias a partir das (re)significações sociais ocorridas no Brasil após a assinatura da Lei Áurea pode ser feita por diferentes caminhos e

construída em diferentes variáveis de interpretação. Pode-se buscar no trabalho, na educação, no lazer e etc. as chaves interpretativas de um momento histórico e de suas apreensões nos grupos sociais que encampam este jogo, já que estes se relacionam em uma via de mão dupla a partir do manejo e da disponibilidade dos recursos legitimados que permitem usufruir vantagens dentro das regras do próprio jogo, seja material ou simbolicamente.

Escolhemos o lazer como possibilidade explicativa mais ampla da sociedade repaginada do século XX. Para tal tarefa, recortamos a cidade de Rio Claro, no interior do Estado de São Paulo, em um período temporal que se inicia na última década do século XIX e se estende aos anos de 1960. Em tal estudo, voltamos nossas atenções aos clubes sociais da cidade, principalmente os clubes negros. Tal escolha metodológica/argumentativa, se podemos chamar assim, nos permite focar os grupos sociais que participam ativamente da reconfiguração social pós abolicionista, ou seja, ex-proprietários, homens livres, negros e imigrantes europeus a partir de um mesmo panorama de intenso convívio social. A pergunta que se coloca é: os espaços sociais, predominantemente, em nossa reflexão, as áreas urbanas, foram postos em disputa a partir de que óticas? Como se colocou em disputa o espaço que sempre fora socialmente excludente? A priori, respondemos que fora a partir das projeções e experiências do que se entendeu por liberdade e que se estenderam desde a segunda metade do século XIX

A um primeiro olhar, nossa proposta se completaria em traçar a genealogia de tais clubes e compilar informações para um possível arquivamento de informações e produção de conhecimento sobre o período imediato do pós-abolição. Mas não nos

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contentaremos em articular ideias para produzirmos apenas uma linha histórica distante e omisso aos reais processos sociais em (trans)formação. Escolhemos estes dispositivos culturais para refletirmos sobre questões socialmente postas após o período abolicionista e, principalmente, como a estrutura escravista se transmuta, mas vigora, nos anos seguintes à sua extinção. Dito de outra maneira, propomos pensar o choque social a partir de clubes fundados como organizações coletivas de grupos socialmente excluídos do registro e da memória, os quais se designou a análise de meros pacientes do movimento histórico. Em suma, o que propomos neste artigo é invertemos a lente sociológica/histórica e pensarmos o conflito social como a disputa entre potências equânimes e potencialmente ativas na construção social de suas próprias biografias.

Palmares, balaios, malês, alfaiates Fugas, guerrilhas, combates Mão na cara, dedo em riste Pagodes, fundos de quintal, candomblés, Blocos, jongos, afoxés Assim também se resiste Negritude resplandecente Consciente a se reconstruir (Nosso nome, resistência- Nei Lopes)

O espaço, a priori geográfico, mas muito

mais social, que se disputa

A constituição do município de Rio Claro, como de alguns tantos outros encravados no interior paulista, “tem origem na doação, por fazendeiros

locais, de parcetes de suas terras, logo seguida da construção de uma capela” (BILAC,2001, p.29). A cidade, em sua formação, fora posta em destaque a partir de sua importante função de pouso de tropas que se ocupavam do chamado “povoamento do Oeste Brasileiro”. Contudo, com a decadência do processo de mineração no Brasil do século XVIII, a cultura canavieira ganha impulso nas cidades do interior e do litoral paulista. Rio Claro, assim, consolida-se economicamente antes da metade do século XIX a partir de transformações urbanas significativas que precederam a instalação dos trilhos da Cia. Paulista de Estrada de Ferro. É deste momento, por exemplo, a elevação da então “São João Batista do Rio Claro”, originada na Sesmaria dos Pereiras, à categoria de Capela Curada.

A partir da segunda metade do século XIX, a lavoura da cidade passa por duas grandes transições: do açúcar para o café e do braço escravo (negro) ao imigrante (branco). Cabe aqui um parêntese. Os municípios que se caracterizaram pelo solo conhecido como “terra roxa” foram aqueles que mais aguçaram os desejos das elites cafeeiras que se formavam então e que, de maneira profética, acreditavam serem portadoras de missão civilizatória (BILAC, 2001). Tal fator de atração determinou, por consequência, a vinda de imigrantes, em sua maioria alemães e italianos, para estas regiões em um processo de branqueamento da sociedade brasileira. Fechado parênteses, a economia cafeeira em Rio Claro atingira seu auge durante os anos de 1880 e 1890, seguido de notável impulso no crescimento urbano. O declínio de tal cultura agrícola na cidade se dá ao longo dos primeiros trinta anos do século XX, com a grande ascensão do setor de serviços. A industrialização na cidade, entretanto, mantivera pouco avanço até os anos de 1960.

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Duas das conclusões que se chega ao analisar o município de Rio Claro são os resultados propiciados pelo cultivo do café referente: ao acumulo de capital nas mãos de imigrantes e retorno financeiro aos fazendeiros que passavam a aplicar parte dos lucros na indústria, que se formava lentamente. A burguesia industrial do município, então, se desenvolvia em relação com a burguesia agrária ao passo que o capital de “pequenas unidades artesanais e industriais” (BILAC, 2001) se concentrava também nas mãos de imigrantes. Por exemplo, os alemães que passaram a habitar o município ocupavam espaço nas atividades de fundição e carpintaria, os italianos na produção de couro e os portugueses, por sua vez, destacavam-se na produção do café. (PICELLI, 2015)

A consequência de tal tipo de desenvolvimento é observar que a vila de Rio Claro, ainda na segunda metade do século XIX, “já se afirmava como centro regional, acentuando-se essa função com o início do tráfego ferroviário”, como afirma Bilac (2001). Assim as funções urbanas passam a se solidificar principalmente no setor de prestação de serviços, dinamizando o contato do município com a capital do estado e colaborando com a atividade industrial rioclarense. Nos anos de 1950-1960, notara-se a consolidação do padrão de pequena indústria, ao passo que os anos 1960-1970 delineavam uma expansão socioeconômica da cidade. Novos bairros surgiram, aumentando, por exemplo, o volume de empregos no setor terciário.

A política rio-clarense, obviamente, não permanece alheia a estes processos que ocorrem na cidade. É interessante um recuo histórico aqui. A política de Rio Claro nos anos de 1845 a 1872 marca a alternância de domínio político de grandes proprietários de terras ligados aos partidos monarquistas, o Partido Conservador e o Partido Liberal. E como se fosse

uma grande bagunça organizacional, ambos os grupos se reconheciam em suas grandes expectativas ideológica: a da conservação do poder e do usufruto de benefícios da cultura do café. A elite política de Rio Claro forma-se, pois, a partir da conjugação, sob o intento de organização dos cargos de administração e exercício político, de membros de famílias de grandes proprietários rurais. Assim, como afirma novamente Bilac (2001), os “canais de recrutamento dos donos do poder” passam a atuar sobre o nascimento, as famílias, os círculos de amizade e o diploma dos herdeiros do domínio político.

A despeito do movimento republicano e da própria Proclamação da República, e até mesmo da ascensão do Partido Republicano na cidade em 1872, o ideal liberal e democrático do regime republicano não fora capaz de produzir alterações e rompimentos com a estrutura política do período antecedente, assim o “regime republicano continuava a marginalizar as camadas populares” (BILAC, 2001, p.53). Dito de outra maneira:

A história política rio-clarense foi marcada na Primeira Republica pelas lutas no seio do perrepismo, ou seja, entre o PRP (Partido Republicano Paulista), sob a direção do “coronel” Augusto Salles, liderança tradicional e irmão de Campos Salles, e o PRH (Partido Republicano Histórico), sob o comando do “coronel” Marcello Schimidt. (ibid, p.58, grifo nosso)

Contudo, a crise da cultura cafeeira no município, em meados da década de 1930, faz com que parte da elite detentora das grandes fazendas de café abandonem a cidade. Assim, adentrara a cena a pequena burguesia urbana, composta em grande parte pelos imigrantes, e os eleitores urbanos da cidade.

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Exemplo disso são as eleições municipais de 30 de novembro de 1904 que

Marcaram uma transição de poder, que passou a contar efetivamente com esses novos elementos, ou seja, com a presença de um eleitorado urbano. Este eleitorado exigiu novas estratégias para a dominação coronelista exercida pelo coronel Schimidt (BILAC, 2001, p.61)

O que se observa, então, em Rio Claro é uma maneira repaginada de disputa política baseada no conflito, não necessariamente violento, entre os coronéis e os novos atores sociais, destacando-se os imigrantes. Sendo assim “a crise da hegemonia oligárquica foi caracterizada mais pela agregação de novos setores aos grupos dominantes do que pela sua substituição” (ibid, p.86), de tal forma que no intervalo temporal de 1900-1930 nota-se na Câmara Municipal da cidade a presença das famílias proprietárias tradicionais postas ao lado de imigrantes e seus descendentes ao passo que se constata a exclusão completa da classe operária. A sociedade rio clarense compunha-se em 1920, por exemplo, em 50.416 habitantes. Destes, 4.843 eram italianos (57,81%); 1.248,portugueses (14,90%); 1.116, espanhóis (13,32%); 700, alemães/suíços/austríacos (8,36%); 218, russos/poloneses/europeus orientais (2,60%); 98 eram asiáticos (1,17%); 85, latino-americanos/norte-americanos (1,01%); e 70 tinham nacionalidade indeterminada. 44.024 habitantes eram de cor branca; 2.898, de cor preta; 97, de cor amarela; 224, de cor parda; e 44 de cor não declarada. “Do total populacional apenas 8.050 homens e 6.612 mulheres poderiam votar, lembrando que estaria legalmente apto(a) ao exercício do voto quem fosse brasileiro(a) nato(a) ou naturalizado(a), alfabetizado(a) e com idade

de 18 anos ou mais” (PEREIRA, 2008, p.36). Dito de outro modo:

A decadência precoce da importância do café na economia de RC levou ao absenteísmo dos fazendeiros e à formação de uma classe média, composta em grande parte por imigrantes, que desde cedo deveria ser integrada ao poder antes que se tornasse uma força contrária (BILAC, 2001, p.97)

Um necessário preâmbulo aos clubes

sociais

Etelvina Vai ter outra lua-de-mel Você vai ser madame Vai morar no Palace Hotel Eu vou comprar um nome não sei onde De Marquês Moringueira de Visconde [...] Mas de repente, de repenguente Etelvina me chamou Está na hora do batente [...] Foi um sonho minha gente (Acertei no milhar- Wilson Batista e Geraldo

Pereira) O que tentou se ilustrar no momento anterior deste texto fora a estrutura social e política que se desenhara na cidade a partir do momento que se propõe pensar. Ou seja, uma estrutura que, de certa forma, articulava politicamente os proprietários das fazendas de café e a nova classe média urbana, principalmente os imigrantes, em sua maioria alemães e italianos, e que excluía da atividade política institucionalizada a classe operária e dos novos homens livres, em sua maioria composta por pardos e negros ex-escravos ou

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descendentes destes. A opção por esta maneira de se pensar a questão é adotada por valorizar aquilo que Bourdieu chama de a “experiência da posição”, ou seja, dar ênfase às etapas do trajeto social que percorrem os grupos. A abordagem estrutural permite, assim, “captar [...] traços transistóricos e transculturais que aparecem, com poucas variações, em todos os grupos com posições equivalentes” (BOURDIEU, 1992, p.9). Um passo adiante da argumentação de que nos valemos para construir nossa leitura do problema é entender, assim como o sociólogo francês, que as diversas características, ou propriedades, de uma classe social, “provem do fato de que seus membros se envolvem deliberada ou objetivamente com indivíduos das outras classes, e com isso exprimem diferenças de situação e de posição segundo uma lógica, tendendo a transmutá-las em distinções significantes” (ibid, p.14). Em outras palavras, as de Bourdieu, no caso, os grupos sociais dão às suas práticas “tradução simbólica do sistema social”. Por isso pensar o espaço social, sendo em nosso caso geográfico também, é refletir sobre o trânsito e disputas que nele se põe a partir da interação entre indivíduos refletidos e refletores de estruturas sociais postas historicamente. É pensá-lo em um espaço onde se copensá-locam em organização as diferenças sociais, articuladas a partir das posições sociais dos indivíduos e de suas práticas. Assim, deve-se pensá-lo relacionalmente. Aqui acreditamos deve-ser de grande valia a leitura feita por Hebe Mattos em “Das Cores do Silêncio” (2013)

Esta obra também intenciona uma abordagem integrada entre as estruturas culturais e socioeconômicas frente ao que a autora chama de imprevisibilidade política, enfatizando o papel da experiência e da liberdade para o entendimento da dinâmica social (MATTOS, 2013, p.29). Assim, segue

a autora, “pensar culturalmente o pós-emancipação é, antes de tudo, explorar os significados da liberdade”. (ibid, p.31) Nos propomos a fazer isso na reflexão sobre os clubes sociais que adotamos como fonte de reflexão. Para tal, já adiantamos, que nos valeremos de quatro grandes ideias de Hebe Mattos, que são: o homem móvel, laços familiares, potência da propriedade e a cor inexistente.

De onde ecoa o som: visões de liberdade

A liberdade já raiou Esta brisa que a juventude afaga Esta chama que o ódio não apaga pelo Universo É a (r)evolução em sua legítima razão Samba, oh samba Tem a sua primazia De gozar da felicidade Samba, meu samba (Heróis da Liberdade- Império Serrano, 1969) Buscaremos aqui, de maneira breve, dar um panorama da formação dos clubes sociais estudados na cidade de Rio Claro. Nossa maior fonte de pesquisa se concentrou nos jornais publicados na cidade a partir das últimas duas décadas do século XIX até a década de 1960. A ausência de produção bibliográfica sobre este tema nos leva a consulta do material veiculado pela imprensa munícipe, em outras palavras, nos leva às fontes legitimadas socialmente com formas fidedignas de circulação de informação.

O jornal Correio do Oeste, cuja alcunha remetia a ser o órgão imparcial de São João do Rio Claro, traz, na edição do dia 25 de abril de 1880, um

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anuncio sobre a fuga do escravo Roque da fazenda de Bueno Filho. O escravo fora caracterizado por ser “preto, não retinto, barbado com falta de dentes na frente, com fala abobada, tendo os três dedos mais pequenos dos dois pés bastante curtos e levantados de maneira que não assentão no chão e não aparecem no rasto” (CORREIO DO OESTE, 25/04/1880, Arquivo Publico Municipal de Rio Claro). No dia 2 de maio do mesmo ano, o jornal traz em sua parte policial a noticia da prisão do escravo João Pavão a pedido do seu senhor João Baptista de Mello Oliveira em função da fuga daquele. Na mesma seção, ainda informa sobre a prisão da escrava Sophia e do italiano Folquete João. Em um parênteses, acrescento que no dia 23 de maio o próprio Correio do Oeste ainda informa seus leitores que “A missão de uma mulher é ser mãe [...] a Ella não pode ser ao mesmo tempo mãe e empregada pública” (ibid).

Por sua vez, o periódico Echos do Povo, na edição de 11 de setembro de 1873, já havia publicado que fora encontrado o cadáver do preto Calysto. A causa mortis: não se sabe, mas publicara-se como evento ocasional. Outro fato curioso encontrado nas páginas agora digitalizadas dos jornais da época, do evento a narrar-se em O Futuro, de 1º de janeiro de 1876, fora a briga na Fazenda Angélica, importante fazenda cafeeira de Rio Claro e que tivera acionistas do London e Brazilian Bank, entre o funcionário James Deeirs (inglês) e o trabalhador João Paulista, ambos acabaram morrendo no conflito. Nota-se, por estes breves informes noticiais, o clima no qual se dá a passagem de uma sociedade escravista para uma sociedade livre. Treze anos após a assinatura de Lei Áurea, O Alpha, em edição de 1º de agosto, traz o informe de que a “mulata Joaquina de tal, ante hontem, a porta do circo” fora trancafiada pela polícia dentro

de um bonde. Já em 26 de fevereiro de 1935, O Diário do Rio Claro traz um anuncio comumente visto pelas páginas dos periódicos: “PRECISA-SE: para cuidar de creanças e fazer todos os serviços domésticos precisa-se de uma mulher de idade. Prefere-se branca e que não tenha família. Tratar a avenida 9, número 79”. Por estas breves e selecionadas informações de jornais pesquisados notamos a persistência de uma estrutura social com origens escravistas. Soma-se a isso uma nova percepção aos grupos imigrantes que aportam no Brasil. O que propomos desde o início, então, é refletir sobre como esses grupos disputam o espaço em que se inserem e como experimentam a liberdade.

Os clubes sociais negros de Rio Claro surgem a partir do ano de 1930. Contudo, a história de clubes sociais no município tem início ainda no fim do século XIX. As organizações da elite rio-clarense formam-se ao redor de três grandes grupos que organizam as atividades sociais das classes altas e médias do município. O primeiro a ser fundado fora A Philarmônica. Situada inicialmente na “rua do comércio”, é datada de 1º de junho de 1879 e agrupava, principalmente, a aristocracia da cidade. Logo em seguida, a 5 de agosto de 1896 forma-se o Grêmio Recreativo da Companhia Paulista, grupo que reunia os funcionários da companhia administradora da linha férrea da cidade. Por fim, o Grupo Gymnastico Rio-Clarense, de 6 de janeiro de 1919, organizado a partir de grupos da classe média emergente rio-clarense. Outro grupo surge em 28 de julho de 1917, mas não assume longevidade como os clubes já citados que estendem suas atividades até os dias atuais. O grupo a que nos referimos é a Sociedade Dramático Dançante Cidade Nova, nome oriundo do bairro marcado pela forte presença de imigrantes

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brancos de classe mais baixas da cidade. Em linhas gerais e amplas, estes clubes encarregavam-se de organizar os festejos e bailes das classes mais abastadas da cidade. Eram promovidas festas dançantes e as famosas “domingueiras”, eventos realizados sempre aos domingos e que proporcionavam a seus sócios freqüentadores interagirem a partir de música e dança. Um artigo assinado por Lysandro muito curioso fora encontrado no jornal A Mocidade de 21 de abril de 1922:

É no baile que nossa alma se expande no meio dos encantos e redobras de calor [...] É no baile por entre passos medidos e cadenciados [...] que nossa alma se enleva e extasia em sonhos de amor.

Baile! Baile Mystico! Baile Divino!

Pensamos estes bailes e eventos como experiências práticas das classes altas, médias urbanas que ajudaram a construir uma visão possível para a experimentação da sociedade entre seus pares. Em outras palavras, eram eventos de congraçamento onde ideais e práticas se compartilhavam possibilitando sua sustenção na estrutura social. Nestes bailes as regras eram claras: exigia-se traje social, era necessário à associação aos clubes para freqüentá-los e que, preferencialmente, o associado fosse branco, caso contrário sua presença seria indesejada. É importante notar que, mesmo que a associação aos clubes fosse desejada, o trânsito entre seus membros era estimulado. Principalmente nos bailes carnavalescos das altas sociedades, “que eram comandados e incentivados na cidade pelo Club dos Lyricos e patrocinado pelas sociedades recreativas e pelas elites do café”. (“Rio Claro, Capital da Alegria”, Ano 1, número 1, Maio 2006, p.38). Assim, a despeito da crise do café os festejos carnavalescos ganham força na década de 1930 e com elas surgem os primeiros clubes sociais negros.

Antes faço uma breve rememoração do Samba do 13 em Rio Claro para mostrarmos com maior precisão a importância dos festejos do samba para a população negra de Rio Claro.

Pereira (2008) afirma que os negros rio-clarenses, de maneira geral, seguiram a tendência nacional em exaltar Princesa Isabel como a redentora da raça negra, ou seja, sob a ótica da historiografia oficial e instituída a partir dos heróis nacionais brancos. Entretanto o Samba do 13, realizado sempre em maio no dia rememorado da Abolição

consistia menos na exaltação da princesa que na prática do Tambu no largo do São Benedito, autêntico quilombo urbano de Rio Claro na época (hoje bairro central). O que, na imprensa, noticiava-se como “o tradicional Samba” ou “o tradicional Samba do 13”, no interior do meio negro era denominado Tambu (silaba tônica “bu”).” (PEREIRA, 2008, p.60,)

Um dos entrevistados por Pereira prossegue ainda sobre o Tambu:

(...) meu pai falava pra mim sempre assim: “quando os escravos foi libertado, então teve uma festa, foi feita uma festa pros negros, então o Tambu é uma dança, é uma dança também pra, pra unir o povo”. Então ... vão supor, uma semana antes os caras saía com uns quatro escravos avisando que ia ter o Tambu. Ia fazer o Tambu, então marcava aquele lugar. Ia só negros, só os negros ia fazer o batuque... (Entrevista com Arlindo Aparecido dos Santos). (PEREIRA,2008, p.61)

O que buscamos dizer, e Pereira em seu trabalho também, é que os festejos do 13 tinham pouquíssimo a ver com o enaltecimento do feito de Isabel. O

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Tambu era prática de uma possibilidade experiencial de liberdade negra. A partir da ocupação do espaço a partir da formação de um quilombo urbano, no Largo do São Benedito, aos pés de uma figueira ancestral, a população negra congraçava suas experiências e anseios de liberdade sob as práticas corpóreas da dança e do canto. Contudo, o festejo fora reprimido pelo poder político institucionalizado no ano de 1933 e, no Diário de Rio Claro de 1º de agosto de 1933, a possibilidade de corte da árvore histórica fora aventada. A dança, não como nos bailes dos clubes brancos, era veicula como “immoral, a dansa macabra não é considerada dansa, são movimentos bruscos ou gestos indecorosos de pessoas sem pudor ou de espíritos extraviados” (O Commercio, 20 de fevereiro de 1908).

À população negra abria-se como possibilidade alterar o foco da ótica de suas experiências e práticas de liberdade a partir da estrutura social que sufocava seus festejos. Passaram a se organizar a partir dos clubes negros. Em 1930 surge o primeiro deles, a Sociedade Dançante 28 de Setembro. Em 1932, organiza-se em Rio Claro uma ramificação da Frente Negra Brasileira. Alguns dissidentes da Frente unem-se e constroem a Sociedade Henrique Dias no mesmo ano. Ainda em 1932 é fundado a A.A José do Patrocínio (que dividia o mesmo espaço físico com a FNB) e dois anos mais tarde a Sociedade Dançante Familiar Progresso da Mocidade. O grupo Uma Noite de Alegria e o Centro Cívico Luiz Gama são os dois últimos clubes negros fundados na década de 30. É interessante notar que é na década de 1940 que o carnaval em Rio Claro passa por um período de ostracismo e sem incentivo por parte do poder público e de poderes privados da cidade. Assim, em 1948 forma-se a Sociedade Dançante Familiar José do Patrocínio, em

1951 o Tamoio Futebol Clube, que também era uma sociedade dançante, e por fim, em 1960 a Sociedade Beneficente Recreativa José do Patrocínio.

Este artigo não busca esmiuçar detalhes genealógicos destas sociedades, mas, de uma maneira geral, traçar as diretrizes que orientavam a formação destes. Os clubes sociais negros, em um panorama mais amplo, constituem-se, segundo Comissão Nacional de Clubes Sociais Negros (2008), como “espaços associativos dos grupos étnicos afro-brasileiros, originários da necessidade de convívio social do grupo, voluntariamente constituído e com caráter beneficente, recreativo e cultural, desenvolvendo atividades num espaço físico próprio”. Assim, afirma Escobar (2010)

Os clubes negros constituíram “lugares” de distinção de uma “raça”, dos negros empoderados pela mobilidade social proporcionada pelo trabalho remunerado viabilizado, em especial, pelo advento da ferrovia, que impulsionou e desenvolveu o Brasil ao longo dos séculos XIX e XX, permitindo aos trabalhadores negros também construírem os seus espaços de poder e sociabilidade” (ESCOBAR, 2010, p.74)

Concebemos, então, os clubes sociais negros como monumentos, pois, de maneira geral, foram formados a partir de um determinado fim, e pensados como estratégias para demarcação de um espaço, em um determinado tempo e sobre a pretensa de construção identitária. Formaram-se como espaços físicos a partir de lembranças petrificadas de um sentimento de pertença (ibid, p.82) e como espaços simbólicos a partir das experiências plurais de liberdade. Estes clubes prestavam assistência à população negra abandonada pelo poder estatal, além de organizar festejos dançantes e musicais, e mobilizar

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a formação dos ranchos carnavalescos que desfilavam pela cidade no período da folia de Momo. Estes clubes permitiam a entrada apenas de membros negros e associados. Exigiam trajes finos e comportamentos íntegros nos eventos realizados. A análise das atas do Conselho Deliberativo formado para o triênio a partir do ano de 1967 da Sociedade Beneficente Recreativa José do Patrocínio nos permite importante reflexões a partir das experiências de liberdade propostas por estes clubes, embora se encontrem no período situado fora de nossas reflexões.

A ata, de número 7, datada de 11 de outubro de 1969 traz três relatos interessantes para se pensar o modo de sociabilidade experimentada pelos clubes e seus membros. José Carlos, conselheiro do clube, “falou também da orquestra que abrilhantou o baile de aniversário, da qual ninguém gostou, e se a sociedade puder fazer brincadeiras todos os domingos com o conjunto seria bom para evitar que os nossos sócios, que já são poucos, continuassem diminuindo”. O senhor José afirmou que “presidente deveria tomar providencias para evitar pessoas de traje esporte em festa de gala nas dependências da sociedade”, ratificando a postura deste, Real Ventura Dumas “atentou para rapazes no salão durante o carnaval sem camisa, evitar que isso se repita” (Atas de 1967, p.10, Arquivo Público de Rio Claro). A ata de número 10, de 29 de julho de 1970, ainda traz o alerta do conselheiro José Nascimento para o fato de que “pessoas estranhas a nossa coletividade [...] vem freqüentando nossa sociedade e portando-se inconvenientemente e ainda mal acompanhados”, propiciando algazarra no banheiro e o uso de um “tabaco diferente”.

A experiência de liberdade da população negra de Rio Claro passa, como afirma Hebe Mattos (2013) refletindo das disputas por espaço social de

fins do período escravista, pela significação de prática daqueles que se caracterizavam como homens livres no Brasil no período que estudamos. A experiência da mobilidade do homem livre indica a ruptura com o controle social do mundo escravista. Assim transitar entre os clubes e os eventos realizados por eles sinaliza a realização de “viver sobre si”, ou seja, tomar suas decisões de onde e como se relacionar com outros possibilitando a criação de vínculos mais duradouros. Não à toa os clubes negros centravam-se em núcleos familiares que centravam-se reuniam nos espaços destas sociedades. Amplia-se, portanto, desde fins do século XIX, os espaços de autonomia da população negra, antes escrava ou ex escrava. Em suma, de sua experiência de individuo móvel se origina a busca de estabilidade e criação de laços dentro dos clubes.

É importante compreender que os papéis desempenhados dentro da sociedade brasileira eram fundamentalmente estruturais, de tal maneira que analisar essas experiências é ao mesmo tempo relacioná-las. Assim sendo, pensamos a criação de laços a partir da mobilidade e fixação de indivíduos a determinados espaços sociais. Os clubes representam essas possibilidades de associação e construção de vínculos e, como são formados a partir de núcleos familiares, eles valorizam a experiência de reciprocidade que se dá em suas atividades. Demanda-se um tipo de comportamento adequado dentro de eventos, trajes apropriados e valores que os distingam de sua condição estrutural. Além disso, o espaço físico da sede social, usando o conceito de potência de propriedade (MATTOS, 2013), é de extrema importância aos membros dos clubes. Ter uma sede representa poder construir um monumento, aqui lido pela ótica de Escobar (2010). Sendo ela fonte experimental de construção e manutenção de laços,

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a partir da mobilidade de indivíduos que poderiam transitar entre estas sociedades.

Um parêntese que deve ser feito é que o uso das análises de Mattos neste artigo só se faz possível pois ambos se situam historicamente num período de declínio e perda de legitimidade do sistema escravista. Desta maneira, o homem livre passa a se balizar pela a ideia de autonomia e trabalho assalariado. Assim sendo, a cor ao invés de marcar pigmentação, marca lugares sociais e, por consequência, era signo de cidadania o qual apenas a liberdade era precondição (MATTOS, 2013, p.106). Tal estrutura se arrasta para o período que estudamos, assim a experiência de liberdade continua se estruturando em oposição a escravidão. Por isso é curioso atentarmos que boa parte dos membros dos clubes negros exerciam alguma profissão relacionada às estradas de ferro na cidade. Outro fato curioso é perceber que a informação do exercício profissional era pré-condição de associação a estes clubes. Portanto, não se busca se dissociar da cor, mas experimentar práticas históricas tidas como liberdade.

Conclusão

Até que ponto resistem / A lógica e a razão, Já que nas coisas existem / Coisas que existem e não? O que dizer do indizível, / Se é preciso precisão, Pra quem crê no que é incrível / Não devanear em vão? (Experiência- Chico César) Este “artigo ensaístico”, se assim podemos chamá-lo, é fruto de uma pesquisa maior sobre os clubes sociais de Rio Claro feita com apoio do CNPq. Tentamos, a partir de certa mistura de audácia e

ambição colocarmos as práticas culturais do samba, dentro do espaço social urbano e da formação de clubes negros, como experiências de liberdade e agência dos grupos negros frente à estrutura social que se ressignifica com a abolição da escravatura e de processos anteriores a este ato institucional, colocando o espaço social em disputa entre os distintos grupos da sociedade. Isso significa, portanto, que mais que assertivas, buscamos reflexões sobre um processo que deve caminhar contra o desenrolar proposto pela historiografia clássica acerca do processo abolicionista e pós-abolicionista. Buscamos movimentos, falas e cantos no silêncio daqueles que jamais estiveram calados.

Referências bibliográficas

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Referências

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