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Ler a sociedade em chave dialógica: amostra em discursos do Partido dos Trabalhadores (PT)

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Academic year: 2020

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discursos do Partido dos Trabalhadores (PT)1

Miguel Espar Argerich2

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Resumo:

Algumas amostras de textos do Partido dos Trabalhadores (PT) – o Manifesto ou discurso fundador e alguns mais recentes – são analisadas em chave dialógica – a partir de unidades léxicas, associações de palavras em âmbitos semânticos e enunciados, das vozes fruto da memória social coletiva e a localização histórica e social – para identificar acentuações, apagamentos, deslocamentos, inclusões e exclusões, assumidos como instruções ou restrições de sentido. As análises induzem à conclusão da perda da ênfase no horizonte de classe social e de luta de classes.

Palavras-chave: discurso, dialogismo, política. Abstract:

Some texts of the Labour Party – namely the first manifesto or founding speech and some more recent ones – are analysed in a dialogic key – taking into account the lexical units, word associations within semantic environment and propositions of the voices as product of the social memory as well as the social historical context in order to identify emphasis, deletions, displacements, inclusions and exclusions considered to be instructions or restrictions of meaning. The results lead to the conclusion that the social class horizon and the class struggle have lost emphasis. Key-words: dialogism, discourse, politics.

1. Recebido em 15 de março de 2009. Aprovado em 2 de julho de 2009. A presente reflexão resulta da Tese de doutoramente Dialogismo em Discursos do Partido dos Trabalhadores (PT), defendida na Universidade

Federal de Pernambuco.

2. Doutor (2007) em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) é professor de Língua e Literatura Espanholas e de Práticas de Ensino de Espanhol do Departamento de Letras, da Universidade Federal de Pernambuco.

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Resumen:

Algunas muestras de textos del Partido dos Trabalhadores (PT) – el Manifesto o discurso fundador y algunos más recientes – son analizadas en clave dialógica – a partir de unidades léxicas, asociaciones de palabras en ámbitos semánticos y enunciados, de las voces fruto de la memoria social colectiva y la localización histórica y social – para identificar acentuaciones, apagamientos, deslocaciones, inclusiones y exclusiones, asumidos como instrucciones o restricciones de sentido. Los análises inducen a la conclusión de la pérdida del énfasis en el horizonte de clase social y de lucha de clases.

Palabras-clave: discurso, dialogismo, política.

Anotações apresentação: ler a sociedade em chave dialógica

Ao defender a realização de leituras da sociedade em chave dialógica, proponho a conjugação de um exercício de análise de discurso centrado em correlações identificadas nas unidades léxicas e nos enunciados com a focalização desses dentro dum horizonte enunciativo que assume o caráter dialógico do discurso. Também, o posicionamento perante questões tais como caracterizar o que chamamos de um lugar denso no âmbito discursivo, a relativização do saber como “pretenso saber” e, no caso deste trabalho, a avaliação das características diferenciadas que comporta o fato de trabalhar com textos escritos ou “textos à mão”.

Parece-me fora de questionamento que assumir a consideração do texto como uma estrutura, como algo independente dos sujeitos, como um construto estável de ideias e conceitos como que gravados em pedra sagrada eliminaria qualquer hipótese que não fosse a de agir por mera decodificação perante os textos: nada poderia existir, além da exegese, da gramática ou da filologia, como processos de interpretação textual. A análise textual sobraria, não haveria espaço para ela. Não ser vítima dos estreitos limites dessa cilada exegética, gramatical ou filológica será um dos nossos desafios a superar ao abordar o léxico, os grupos léxicos e diversas modalidades de agrupamentos de palavras como âmbitos semânticos a ditar instruções de

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significação sempre dentro de uma orientação dialógica que contribuirá a gerar os sentidos dos discursos.

Assim, ao responder que o texto sempre será lido de uma forma nova, pessoal, única estamos introduzindo a perspectiva do discurso como imbricado na existência do texto, como sendo ‘texto-para-alguém’, como constituindo alguma espécie de unidade colocada em processos de interação comunicativa.

Perante o dilema: considerar texto e discurso como a mesma realidade ou considerar que há espaço diferenciado para uma linguística textual e uma linguística discursiva, que há espaço para uma análise do texto que tenha diferentes objetivos e conteúdos que uma análise do discurso, preferimos alinhar-nos a esta segunda tendência a fim de tentar construir um caminho de pesquisa próprio.

Desta feita, os objetivos das análises estarão marcados, fundamentalmente, pela visão do texto e do discurso como eventos, acontecimentos imersos numa dinâmica de interação e não como realidades acabadas ou previamente imobilizadas. Tratar-se-á, portanto, de passar a focalizar o texto numa perspectiva fundamentalmente dialógica para abordá-lo como discurso. Assim, esses objetivos, marcados e polarizados pelo propósito de detectar redes ou articulações de significação em enunciados e enunciações, ficarão, de algum modo, já pré-estabelecidos em torno à questão da procura de pistas ou sinais que nos levem a deduzir em que as propostas contidas nos discursos convergem ou não entre si. Isto representa, por exemplo, partir para constatar se as propostas dos vários discursos podem ser vistas ou não como constituindo-se em autênticas paráfrases. Quando consideradas paráfrases suas diferenças se localizarão apenas em seus níveis de acentuação. Quando não, suas diferenças poderão ser reveladas, basicamente, nos apagamentos e deslocamentos, nas inclusões e exclusões.

Nesse horizonte, a metodologia, ver-se-á polarizada pela procura de pistas ou sinais linguísticos e não linguísticos; deverá ser plural e integrada, mas tentando não cair na cilada que representa o ecletismo. A este respeito, tentarei não esquecer o que Geertz (2003:20) afirma: “O ecletismo é contraproducente

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não porque haja unicamente uma direção na qual torna-se útil mover-se, mas porque justamente existem muitas e é necessário escolher dentre elas”.3 Mas,

como retoque a esta visão, assumirei o que Faraco (1991:69-70) expressa: a sua condenação para o recurso de apelar para o ecletismo se adotado como possível saída metodológica quando as teorias em que se baseiam as pesquisas se excluem mutuamente, pois entende que as teorias têm que ser compatíveis, assimiláveis, para possibilitarem sínteses teóricas que não gerem contradições internas.

Na perspectiva proposta, cada novo corpus que serve de base para um novo momento de análise interage com as análises já realizadas e recebe influência das que virão a funcionar como nova contribuição. Uma análise facilmente é enfraquecida quando não existe uma interação concomitante com a práxis em que está encaixado cada discurso específico e vice-versa: a propriedade da teorização sobre cada discurso está condicionada pelo momento do pesquisador e da pesquisa, pelo encaminhamento prático dos objetivos e pelos resultados viabilizados pela própria metodologia.

No presente trabalho firmo as bases teóricas e pressupostos conceituais tratando da caracterização das noções de texto e discurso, enunciado e enunciação para melhor poder debruçar-me em questões como a de mostrar a palavra como expressão da interação entre consciências e ideologias, o discurso como enunciação, a enunciação como interação social e o papel da interação social na enunciação do discurso político.

A análise de documentos a partir das unidades léxicas e dos enunciados é feito num horizonte de interação dialógica com diversos acontecimentos e discursos que marcam a história e influenciam os destinos de diversas sociedades humanas. Isto situa os discursos dentro do processo histórico e capta e mostra convergências e divergências entre eles que os situam como expressão de uma saga universal de opções existenciais.

Adoto, portanto, duas perspectivas interdependentes. Na primeira, que pretendo ancorada ou imanente ao texto, serão procuradas correlações

3. “El eclecticismo es contraproducente no porque hay únicamente una dirección en la que resulta útil moverse, sino porque justamente hay muchas y es necesario elegir entre ellas”

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entre enunciados e suas partes. Ditas correlações estabelecerão pautas para a segunda perspectiva que completa e hegemoniza os resultados do trabalho, na que me coloco basicamente numa compreensão da enunciação que qualifico como ‘bakhtiniana’4 – a do dialogismo ou relação dialógica ou aproximação

dialógica ou em chave dialógica – como possibilidade cognitiva teórica da constatação da interação comunicativa nas relações humanas:

A característica fundamental do pensamento de Bakhtin e seu Círculo é a sua tentativa de compreender os complexos fatores que tornam possível o diálogo [...] Propõe um continuum entre sistema e desempenho, a complementariedade de ambos (Clark; Holquist 1998:36,41).

Definir-se-á brevemente o dialogismo, noção tomada de Bakhtin, como as relações que todo enunciado mantém com os discursos anteriores e os que estão por vir que ele propicia a seus destinatários (Moirand 2006:5).5

Contando com a interdependência e indissociabilidade dessas perspectivas, ouso distinguir três ‘inquietos momentos’ no âmbito da reflexão proposta, situando-me nesse continuum, nessa complementaridade. No entanto, antes de prosseguir, advirtamos que são delimitados como ‘momentos’ porque atendo a uma certa precedência temporal identificável, tratada duma forma que reconheço um tanto arbitrária, por não existir a descontinuidade que aporta a noção habitual do termo momento; e, também, que me permito a prosopopeia na adjetivação, através do termo ‘inquietos’, para reforçar que tratamos de ‘limites não limites’, por não serem estáticos ou delimitados: afinal de contas trata-se duma realidade contínua.

A fim de ilustrar o significado temporal de um continuum ou de uma realidade contínua, me acolherei às chamadas fases da vida dum ser humano,

4. Bakthinianas ou referentes a Bakthin e seu Círculo de Estudos

5. “On définirá brièvement le dialogisme, notion empruntee à Bakhtine, comme le relations que tout enoncé entretient avec les discours anterieurs et les discours à venir qu’il prête à ses destinataires“.

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mesmo sabendo que as comparações relacionam os fatos limitadamente. Passamos pelas grandes fases: intra-uterina, criança, jovem, adulto, idoso. Após o parto, fica difícil delimitar com precisão quando começa uma ou outra fase, mas chegam momentos em que as características que percebemos nos certificam que estamos diante de uma criança ou de um idoso. De forma semelhante, após abrir as páginas de um texto fica difícil, por exemplo, delimitar o quando e o quanto das influências linguísticas ou extralinguísticas são mais ou menos responsáveis pelos sentidos resultantes; mas existem momentos, sempre inquietos, mutáveis, em que temos a certeza de que já ocorreu o advento do discurso, de que no continuum que caracteriza a comunicação atingimos o âmbito discursivo.

O interesse de utilizar a expressão ‘inquietos momentos’ representa o reconhecimento do caráter irredutível da linguagem, dentro da decisão de trabalhar a reflexão acerca do discurso a partir de textos, co-textos e contextos. E representa também que esses ‘momentos’ são cognitivos e que, portanto, a temporalidade não tem porque ser sequencial: na prática, constituir-se-á numa sucessão de concomitâncias, de simultaneidades: sucessão há quando o conhecimento advém pela via da reflexão; simultaneidade, quando advém pela via da intuição.

Tendo presentes essas restrições, no primeiro ‘momento’, procurarei reduzir-me a considerar o texto como documento – ou aqui, indistintamente, como corpus – como algo fixado por autor(es)(as) à espera de leitor(es)(as) até o instante de acontecer uma nova abordagem e o tratarei ou qualificarei como ‘documento’. François (2003:65) prefere falar em “corpus como o dito fixado, em que os signos e as palavras são considerados como objetos.

No segundo ‘momento’, me referirei ao texto, propriamente, como ‘texto’’,6 como documento presente no processo em que está sendo apropriado

por leitor(es)(as) que o assume(m) em seu co-texto.

6. Utilizo esta expressão ‘texto’ intencionalmente para referir-me ao texto em situação de enunciação antes de ser assumido como discurso e, portanto, sendo lido numa perspectiva que, indo além da leitura metalinguística ou gramatical da linguagem e da co-textual, não invade as instruções de sentido que são tributáveis ao contexto situacional. O conceito de ‘texto’ será explicitado com maiores detalhes logo a seguir.

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No terceiro ‘momento’, tratarei do ‘discurso’, como enunciado já apropriado por leitor(es)(as) em seu contexto de enunciação.

O ‘documento’ comporta duas dimensões que permitem que seja concebido dialeticamente: segundo uma dimensão, trata-se de um conjunto de dados fixados, imutáveis; segundo a outra, trata-se dum conjunto de dados que carrega histórias de significações em processo contínuo de diversificação e de mudança qualitativa, em sintonia com as mudanças sociais e culturais que modificam as condições existentes de interpretação. O documento assim caracterizado situa-se dentro de alguma sistemática linguística que, através de formas e modos de organização e de apresentação fixados inscreve nele e lhe propicia, de alguma forma, potenciais significados dialógicos inferíveis de suas relações sintático-semânticas, sócio-culturais ou político-ideológicas, de sua localização espaço-temporal e de gênero: dos elementos que o caracterizam para ser um ente comunicável por alguém para alguém.

Enquanto ‘texto’ é visto como compêndio do processo de apreensão cognitiva que vai acolhendo, além das instruções auferidas como documento, todo o tecido dialógico que é gerado ao estar sendo assumido por leitor(es) (as) capazes de destrinchar o apreensível em relação a seu co-texto: dêixis, discursividade, tematizações, implicaturas, pressuposições, argumentações, contra-argumentações, figuras, tropos e elementos retóricos”, fenômenos identificáveis a partir de enunciados prenhes de significados, e o ethos.7

Enquanto ‘discurso’, é visto como expressão duma enunciação, fruto dum contexto, que se permite, além de contar com ou de ignorar todo o apreendido nos momentos cognitivos expostos antes, acrescentar o autêntico terremoto de instruções de sentido que significa assumir a relação dialógica com esse contexto: nos enunciados apreendidos como discurso são encarnados, além das próprias, as vozes de outros carregando memórias da própria história, visões de mundo em disputa ou em acerto, valores e interesses próprios e alheios, mundos que se fazem presentes. Dispor-se a realizar análise do discurso, representará optar

7.Ethos aqui é uma noção que quer assinalar a inscrição do enunciador na enunciação do seu discurso: deliberadamente ou não, ele se apresenta (Amossy 1999).

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por obter instruções e restrições de sentido, concomitantemente, a partir de texto(s) em seu(s) co-texto(s) e seu(s) contexto(s). Isso implica em considerar cada discurso como a expressão concreta resultante dos diálogos travados pelo somatório de vozes que interage(m) no(s) texto(s) numa enunciação. Assim, na presente opção tratar-se-á de correlacionar determinados textos consigo mesmos e com outros textos numa perspectiva de apreender sua relação dialógica, o que equivale a assumi-los em seus respectivos processos de enunciação, quer dizer, assumi-los nos processos em que se constituem em discursos. Mais especificamente, visar-se-á a tentar evidenciar texto(s) como discurso(s) de caráter político. Com este fim, serão focalizadas, como categorias reveladoras do discurso, fenômenos linguístico-discursivos como acentuações, apagamentos, deslocamentos, inclusões ou exclusões.8 Para melhor tentar

atingir essa meta, procurar-se-á detectar fios dialógicos que permitam identificar essas categorias tanto nos texto(s) focalizado(s) num corpus explicitamente escolhido para ser analisado em detalhe quanto em outro(s) texto(s) com eles relacionáveis e referidos por seus conteúdos e suas significativas circunstâncias de uso. Também, por fidelidade à visão dialógica, universalizadora, do Circulo de Bakhtin, deverão colocar-se determinado(s) texto(s) sob o foco de alguns acontecimentos e circunstâncias históricos avaliados como relevantes.

A partir dos dados obtidos, acolhidos como sendo instruções e restrições semânticas e semântico-pragmáticas orientadoras e geradoras de efeitos de sentido, tentar-se-á inferir conclusões. A análise pretenderá ser uma leitura, para verificar convergências e divergências, partindo de diversas temáticas ou focos e de processos de construção de uma identidade discursiva - aspecto, este, inspirado na teorização acerca posicionamentos discursivos9 entre os

8. Nesta reflexão opto por considerar a ‘exclusão’ como uma categoria diferenciada em relação ao ‘apagamento’. É claro que a exclusão pode ser considerada um apagamento total, completo. Porém, faço isso, em primeiro lugar, porque ‘exclusão’ é um termo marcado em sua relação binária, de oposição, a ‘inclusão’, o que não acontece com o termo ‘apagamento, que, por sua vez, opõe-se a ‘acentuação’ Mantenho, assim, os pares opostos acentuação / apagamento e inclusão / exclusão.

9. A referência a ‘posicionamento discursivo’ envolve uma primeira referência a Maingueneau (2006:10-14), quem confessa que o utilizou para substituir a noção ‘formação discursiva’, em palavras suas, “devido à incapacidade em que me encontrava de atribuir-lhe um estatuto bem claro”. O posicionamento se define

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textos e discursos selecionados. A abordagem de documentos, na perspectiva da relação dialógica, servindo-se das categorias de análise como sejam as acentuações, apagamentos, deslocamentos, inclusões ou exclusões acredito que permitirá analisar com profundidade conexões e correlações e servirá como caminho revelador do caráter das concordâncias e dos confrontos e contradições presentes.

Tento mostrar o quanto uma perspectiva enunciativa de análise do discurso que assumir como pauta dirigente o dialogismo adquire uma focalização na qual podem ser integradas outras metodologias e categorias analíticas; é que algumas perspectivas analíticas podem ser vistas como centradas no empenho do pesquisador em descobrir e transmitir os diálogos que os textos estabelecem consigo próprios. Outras perspectivas analíticas acrescentam a esse empenho o diálogo com outros textos; a perspectiva dialógica que assumo, inscreve nos discursos o diálogo com quanto de discursivo constituir o fenômeno humano: relações sociais e políticas, condicionamentos históricos, pensamentos, sentimentos e utopias.

O dialogismo, neste horizonte, vem a ser: por um lado, uma macro-metodologia capaz de acolher outras metodologias – neste caso, uma plenamente ancorada ou imanente ao texto, quando são estabelecidas correlações entre enunciados, suas partes e componentes como expressões discursivas – e outra, a da própria relação dialógica que se estende aos demais discursos, situações e acontecimentos; por outro lado, vem a constituir-se numa macro-categoria de análise discursiva capaz de integrar múltiplas categorias de análise – acentuações, apagamentos, deslocamentos, inclusões no interior de um campo discursivo e gira em torno “da construção e da gestão de uma identidade em um campo discursivo”. Explicita que a noção de ‘formação discursiva’ foi introduzida por Michel Foucault, mas que ela “oscila constantemente entre uma interpretação em termos de “regras” e uma outra em termos de “dispersão”, a ponto de aí se perder”. Acrescenta que, no grupo de Michel Pêcheux, a noção é definida como “determinando o que pode e não pode ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão,

de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc) a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada”. Não se definem claramente as relações com “gênero” e com “posicionamento”. Tratar-se-ia, sim, de uma “posição” inscrita no espaço da luta de classes. Segundo Maingueneau é empregada habitualmente “na falta de uma expressão melhor” ou porque permite evitar o embaraço de usar noções como “gênero” ou “tipo de discurso”.

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ou exclusões, etc. – e, ainda, funciona como um macro-momento, expressão do continuum que configura no espaço e no tempo a atividade discursiva dos seres humanos.

Daí que me pareça plausível considerar compatíveis para a leitura de instruções de sentido não somente o trabalho analítico feito arbitrando diferentes “momentos”, mas também as tentativas de implementar análises discursivas com o enfoque “dialógico”, que se originariamente se inspira nos escritos do Círculo de Bakhtin e nos de Moirand paulatinamente adquire uma feição diferenciada, pessoal.

A relevância acadêmica do enfoque se nutre da importância que adquiriram para a sociedade ocidental as elaborações teóricas realizadas no âmbito da análise do discurso nos últimos decênios e seu aproveitamento prático em terrenos como os da comunicação de massas, a política, a justiça e no das próprias relações interpessoais e institucionais.

O reconhecimento da importância dos temas não livra o analista do discurso de ver-se jogado no meio de uma aluvião de propostas teóricas e metodológicas diversas que pretendem seduzi-lo ou arrastá-lo. Provavelmente é no meio desse aluvião onde o analista sente um impulso maior ou a necessidade de definir-se e constituir sua própria opção teórica. Oportunidades para fazê-lo surgirão testando a consistência, viabilidade e praticidade das teorias mediante um corpus motivador.

Em relação às definições teóricas, não posso esconder a tendência à relativização da sua validade/idoneidade: como quem acaba pensando que não são tão certas as que nos parecem certas, nem são tão limitadas as que nos parecem limitadas. No fundo, ao juntar suas possibilidades de sucesso e fracasso, é como se todas mostrassem tanto sua capacidade como sua incapacidade de desvelar ou revelar o real. Não distante desse raciocínio, Espar (1994), ao avaliar diversas propostas teóricas e metodológicas contemporâneas, chama a atenção para o paradoxo da multiplicidade das terminologias que permitem que nos perguntemos se o objeto de pesquisa – o discurso – permanece o mesmo:

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O desenvolvimento das ciências da linguagem nestes últimos vinte anos manifesta-se através da mudança dos metatermos do seu próprio discurso; a complexidade do objeto de análise e as diferentes vias de aproximação que os linguistas exploram, originam uma polissemia que pode confundir. Quando falamos “discurso”, falamos do mesmo? [...] A análise do discurso – suas teorias e metodologias – apresentam-se a nós como um continuado intertexto cujo denominador comum seria o da construção duma figura da lógica e da retórica conhecida como o paradoxo [...] Paradoxo da procura científica que nunca pode achar a realidade daquilo que analisa.10

Mais ainda, a autora chama a atenção quanto à falta de coerência, fundamentação e delimitação que pode caracterizar o próprio trabalho analítico:

Partimos da confusão, do amálgama e depois segmentamos, distinguimos, analisamos para conhecer; se não somos fiéis aos fundamentos epistemológicos que guiam nosso percurso – coerência interna da teoria, adequação da metodologia ao objeto, seleção de níveis de pertença – corremos o risco de resultar numa algaravia dissolvente, em vez de descobrir os limites e o horizonte duma polifonia como metáfora do inatingível do discurso.11 (Espar 1994)

10.El desarrollo de las ciencias del lenguaje en estos últimos veinte años se manifiesta a través del cambio de los

metatérminos de su propio discurso; la complejidad del objeto de análisis y las diferentes vías de acercamiento que los linguistas exploran, originan una polisemia que puede confundir. Cuando decimos "discurso", ¿hablamos de lo mismo? [...] El análisis del discurso -sus teorías y sus metodologías- se nos presentan como un continuado intertexto cuyo denominador común sería el de la construcción de una figura de la lógica y de la retórica conocida como la paradoja. [...] “Paradoja de la búsqueda científica que nunca puede dar con la realidad de aquello que analiza”.

11.“Partimos de la confusión, de la amalgama y después segmentamos, distinguimos, analizamos para conocer; si

no somos fieles a los fundamentos epistemológicos que guían nuestro recorrido – coherencia interna de la teoría, adecuación al objeto de la metodología, selección de niveles de pertenencia – corremos el riesgo de desembocar en una algarabía disolvente, en lugar de descubrir los limites y el horizonte de una polifonía como metáfora de lo inalcanzable del discurso”.

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A autora, após tratar da problemática da delimitação do campo do discurso, destaca a riqueza potencial que comporta a novidade deste campo de estudo, sempre e quando sejam assumidas as consequências das necessárias correlações dos conhecimentos propiciados pelas ciências da linguagem com os conhecimentos de outras ciências: “A análise do discurso [...] impõe às investigações o dever não postergável de reconhecer a legitimidade e a necessidade que o objeto evidencia de abordar o conhecimento do discurso em suas múltiplas dimensões. (Espar 1994)

Em consequência, sobrevoa o campo da teorização sobre o discurso a necessidade de aproveitar e harmonizar um sem-fim de pistas, caminhos, descobertas conhecimentos que tornam esse campo, ao mesmo tempo, rico e complexo, plural e problemático.

De fato, ao realizar as nossas análises acolho o modo de aproximação de achar um caminho que nos permita contribuir à sinfonia que representa a construção dos sentidos. Da possibilidade e conveniência de realizar aproximações multidisciplinares e diferentes emerge outro dos fatores que tornam interessante e importante o trabalho no âmbito da análise do discurso: se o estudo do discurso já é interessante – e pode ser relevante - por sua própria índole, tanto mais o será quando colocados perante discursos de caráter político, potencialmente, responsáveis em nível elevado dos acontecimentos verificáveis na sociedade.

Considero que nos discursos políticos podemos assistir de camarote ao confronto de simulacros linguísticos que abrigam propostas de sociedade. Identificar com maior ou menor precisão essas propostas pode iluminar o habitual caminhar às apalpadelas da humanidade pelas lombadas não só do próprio país, mas do universo.

As análises podem ser realizadas como que situadas na encruzilhada de duas das perspectivas teóricas que acredito acabam por complementar-se em suas indicações e achados. Afinal de contas, a linguagem, em sua imensidão de dimensões enquanto discurso, supera e apequena toda e qualquer tentativa de confinamento ‘cientifico’, pretensamente científico e indiscutível.

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Por isso, pretendo assentar este trabalho em linhas teóricas complementares: por um lado, e fundamentalmente, com elementos significativos que podem ser extraídos através da aplicação da teoria da enunciação, na perspectiva do Círculo de Bakhtin; por outro lado, com elementos significativos que podem ser extraídos através da aplicação de vertentes ancoradas nos textos, situadas apenas no âmbito das correlações. A expectativa é que as instruções de sentido que surgirem desta segunda perspectiva representem pautas para a pesquisa de elementos da relação dialógica, sem que isso represente ficar amarrado a um formalismo mecânico ou sequencial, a um caminho único e simétrico para todas as análises específicas; a proposta é a de confiar-se a dinâmicas específicas, plurais, que, em cada caso, pareçam mais idôneas para ajudar a revelar instruções de sentido.

Concretamente, não se orientará o trabalho de reflexão e pesquisa com formas idênticas para textos de gêneros diferentes: textos, co-textos e conco-textos serão tidos como dados prestes a serem aproveitados; ora procurar-se-á pistas e relações nas palavras e nos enunciados ou em sua ausência, ora nas realidades e acontecimentos sociais. Dentro do foco de correlações imanentes ao texto, como também quando situado fundamentalmente dentro do foco dialógico com relação ao exterior, a observação de diversas opções linguísticas (como reformulações, repetições, inclusões, exclusões, etc.) sinalizam para acentuações, apagamentos ou deslocamentos discursivos. Em ambas as vertentes, abrem-se diante do pesquisador possibilidades de leituras diferenciadas. Por exemplo, uma primeira perspectiva de abordagem atenta mais para as instruções ou restrições de sentido extraíveis das escolhas e associações de palavras nos ‘âmbitos semânticos’. Âmbito semântico como um espaço cognitivo de associações de palavras seja como sintagmas – em razão de aportar uma significação específica –, seja como paradigmas – quando articuladas com a mesma finalidade por relações de substituição, comutação, conotação, etc. Ou, ainda, âmbito semântico entendido como ambiente textual onde são

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integradas vozes, expressões ou enunciados passíveis de agrupamento em razão da ocorrência de coincidências representativas de significação e das contribuições ou instruções de sentido advindas da memória discursiva que se atualiza em determinado evento comunicativo. Funciona como um espaço cognitivo de associações de palavras num ambiente textual que as relaciona porque propicia coincidências com vozes, expressões ou enunciados e instruções de sentido advindas da memória discursiva que se atualiza em determinado evento comunicativo.

Assim, o que chamo de âmbito semântico abrange as espécies de agrupação de palavras que, ao interagirem, simultaneamente, com o seu co-texto podem ser classificadas como possuidoras de alguma(s) instrução / instruções ou restrição / restrições semântica(s) distintiva(s) coincidente(s). Assumo esta noção de âmbito semântico com o intuito de poder trabalhar palavras, blocos léxicos e enunciados, no tocante à sua forma ou composição, com uma categoria mais ampla e elástica, o que deverá facilitar as análises realizadas com foco preponderantemente dialógico. Com esta teorização me distancio de outros conceitos utilizados na semântica, como os relativos aos chamados campos semânticos em que são isolados campos conceituais (cor, parentesco, etc.) e os itens lexicais usados para se referir aos vários traços destes campos são analisados em termos de uma rede de relações de sentido (Crystal1988:41). Procurar-se-á, também, dentro desta linha de abordagem, descobrir e interpretar a articulação existente entre os enunciados que compõem um texto tentando apontar, na direção dos eixos temáticos.

Na segunda perspectiva de abordagem atentar-se-á para quanto puder ser caracterizado como resultante de relações dialógicas entre palavras ou enunciados, contando com seus co-textos e contextos, em processos de enunciação; tratar-se-á de relacionar a interação entre vozes que se constitui em cada enunciação. Conforme Bakhtin (apud Authier 2004:24-25), a palavra apresenta-se saturada, atravessada por discursos. Discursos que podem emergir tanto de ditos como de não-ditos, ou da conjunção de ditos e não ditos presentes no nível da língua e no nível da interação

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enunciativa, dado que estamos tratando dum continuum, o que equivale a abolir fronteiras formais, claramente diferenciadoras, nas reflexões acerca das manifestações da linguagem.

Neste sentido comenta Lozano (1999:218-219):

Além do dito ou expressamente dado, a atividade discursiva, põe em jogo as numerosas formas no não dito às quais alude-se com a denominação genérica de ‘pressuposições’. Costumam excluir-se delas os supostos que não expressam uma intenção comunicativa particular, aliás, as implicações lógicas. Algumas pressuposições [...] possuem caráter linguístico, aliás, estão vinculadas a certos lexemas ou construções, e enquanto tais remetem para a competência linguística dos falantes. Certamente não é sempre fácil diferenciar as implicações lógicas das pressuposições12

Em relação aos não ditos como parte constitutiva da enunciação, numa das intuições de Bakhtin, o texto é visto “como uma espécie de mônada que reflete em si todos os textos possíveis duma esfera determinada de sentido”13

(2002:295-296) e acrescenta mais adiante o caráter criador do enunciado na enunciação a partir de quanto chega a nós no processo enunciativo:

Um enunciado nunca é somente reflexo ou expressão de algo já existente, dado e concluído. Um enunciado sempre cria algo que nunca tinha existido algo absolutamente novo e não repetível, algo que sempre tem a ver com os valores (com a verdade, com

12. Además de lo dicho o expresamente dado, la actividad discursiva pone en juego las numerosas formas de lo no dicho a las que se alude con la denominación genérica de ‘presuposiciones’. Suele excluirse de

ellas a los supuestos que no expresan una intención comunicativa particular, a saber, las implicaciones lógicas. Algunas presuposiciones [...] poseen carácter linguístico, es decir, están vinculadas a ciertos lexemas

y construcciones, y en cuanto tales remiten a la competencia linguística de los hablantes. Ciertamente no es

siempre fácil diferenciar las impicaciones lógicas de las presuposiciones”.

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o bem, com a beleza, etc.). Mas o criado sempre se cria do dado (a língua, um fenômeno observado, um sentimento vivido, o próprio sujeito falante, o definido em sua visão do mundo, etc.). Todo o dado se transforma no criado14 (2002:312).

Num horizonte epistemológico destas características, a correlação do dito com o não dito revela-se como um dos aspectos mais fecundos e complexos da reflexão contemporânea sobre a linguagem. De fato, definir partes num continuum terá sempre algo de arbitrário e subjetivo e porque o dado linguístico é transformado no sempre renovado dado discursivo.

Assim, teorizar colocando no âmbito do dito o que pertencer ao plano da língua enquanto sistema de expressão e representação não resulta conflituoso. Como não há dificuldade em colocar no âmbito do não dito o que pertencer ao âmbito do contexto. O verdadeiro problema radicará em delimitá-los nas fronteiras. Inspirado no esquema de Kerbrat-Orecchioni (apud González 2001:239-240), considero ditos todos os conteúdos explícitos e, também, boa parte dos conteúdos implícitos considerados como pressupostos; considero não ditos todos os conteúdos subentendidos. Estes são um conjunto heterogêneo tributário sempre do contexto (González 2001:240):

Vão da simples alusão ou da insinuação a uma ampla gama de atos ilocutórios indiretos. Kerbrat-Oriocchione relaciona a adequada interpretação dos subentendidos, por uma parte, com os índices interpretativos – como os marcadores ou outras formas de enunciação – que às vezes proporciona o co-texto e, por outra, com as diversas competências verbais e, em concreto, com as competências enciclopédica e retórica [..] Sua proposta consiste

14. “Un enunciado nunca es sólo reflejo o expresión de algo ya existente, dado y concluido. Un enunciado siempre crea algo que nunca había existido, algo absolutamente nuevo e irrepetible, algo que siempre tiene que ver con los valores (con la verdad, con el bien, con la belleza, etc.). Pero lo creado siempre se crea de lo dado (la lengua, un fenómeno observado, un sentimiento vivido, el sujeto hablante mismo, lo concluido en su visión de mundo, etc.). Todo lo dado se transforma en lo creado”.

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basicamente em considerar os diversos tipos de subentendidos no seio da teoria clássica dos tropos.15

Comentário que sinaliza para a difícil fronteira do continuum documento/ texto/discurso onde dados co-textuais somam-se a dados contextuais sem que seja simples determinar onde começam as instruções ou restrições creditáveis ao co-texto ou ao contexto.

Certamente agem como vozes discursivas originadas no contexto as decorrentes dos interesses, dos imaginários, das crenças, do ethos que se veicula, intencionalmente ou não, conscientemente ou não, mas agem como vozes originadas, simultaneamente no co-texto, por exemplo, os termos subjetivos, modalizadores, axiológicos ou avaliativos. Agem simultaneamente no co-texto e no contexto, figuras retóricas como a metáfora, a ironia ou as dêixis exofóricas, aquelas que se referem ao contexto da situação enunciativa, ao seu tempo e lugar.

O âmbito do dialógico, das vozes que comparecem no ato da enunciação é sem dúvida o divisor de águas que Bakhtin propugna para a abordagem da linguagem.

Ducrot (1999) revela a própria evolução e crescimento na compreensão ou avaliação do dire et ne pas dire (dizer e não dizer), em que em vez de considerar o não dito fundamentalmente nos pressupostos e subentendidos numa relação de sujeitos únicos passa a enxergá-la numa relação de sujeitos

desinstalados pela polifonia de vozes presentes na interação discursiva.

Autores como Maingueneau (2005:33-48) trabalham com a hipótese do primado ‘do interdiscurso”, do não dito sobre o dito, tendência que parece dominante, hoje, entre analistas do discurso. Tese que pode não ser tão interessante, sem ir mais longe, para abordar algumas espécies de gêneros de 15. “Van desde la simple alusión o la insinuación a toda la amplia gama de actos ilocutivos indirectos. Kerbrat-Orecchioni relaciona la adecuada interpretación de los sobreentendidos, por una parte, con los índices interpretativos – como los marcadores y otras formas de enunciación- que a veces proporciona el cotexto y, por otra, con las diversas competencias verbales y, en concreto, con las competencias enciclopédica y retórica [...] Su propuesta consiste basicamente en considerar los diversos tipos de sobreentendidos en el seno de la teoria clasica de los tropos”.

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textos escritos. Esta qualificação de ‘não tão interessante’, para nós, é correta, por exemplo, quando referida a texto como os aqui abordados (manifestos, resoluções congressuais) que trazem discursos constituintes, em que o olhar dos autores é pressionado pelo interesse de explicitar os conteúdos reduzindo os implícitos. O dizer desses discursos constituintes, no afã primordial de proclamar, de identificar, de esclarecer, procuram dotar a palavra de um grau maior de objetivação na qual o interdiscurso poderá não prevalecer, porque procura ser explicitado no texto o outro que impregna o discurso . São casos em que se pode dizer: ‘veja, tudo isso consta no texto’ e em que a maioria dos leitores aos que se dirige apreenderá uma leitura restrita a marcos próximos, com a captação de instruções de sentido semelhantes. São tipos de texto em que o axiológico e avaliativo é abundante.

Não se pretende com esta observação negar o caráter essencialmente dialógico do texto ou a presença de outras vozes nele, senão assinalar que, em alguns casos, o relacional não prima sobre a palavra, sobre a língua como linguagem, como fenômeno total e concreto, a língua como integrante de uma plenitude completa e viva, porque as relações dialógicas são extra-linguísticas mas não podem ser separadas do domínio da palavra (Bajtin 2004:264-266).

Para mim, na linha dos escritos do Círculo de Bakhtin, todo discurso enquanto representação tem características de simulacro do real, de tentativa. No entanto, todo discurso apreende outros discursos e é atravessado por eles; todo discurso se debate e estrutura com outros discursos: em todo discurso está a presença do outro, de outras vozes; todo discurso interage dialogicamente com outros discursos. Porém, uma coisa é ser um simulacro e outra bem diferente é a simulação, a ocultação, a falsidade ou a mentira, porque nesses casos, sim, prevalece o não dito: tanto naquilo que é representado, como naquilo que é desvirtuado pelo interlocutor como naquilo que é relacional.

Authier-Revuz (2004) concebe o sentido como um fenômeno em aberto situado entre a transparência e a opacidade; em suas análises discursivas, trabalha a partir do linguístico e certifica a presença da heterogeneidade em toda enunciação. A heterogeneidade se faz presente no discurso num continuum que tem modos ou formas diferenciáveis. Pode ser ‘mostrada’ através de formas

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marcadas, exteriores à palavra, mais facilmente detectáveis – comentários, citações entre aspas, alusões, explicitações, correções, explicações, trocadilhos, etc. E pode ser ‘constitutiva’ através de procedimentos menos marcados ou não marcados, constitutivos da palavra e onde vão-se diluindo os limites da linguística (não coincidências interlocutivas, rupturas sobre o fio enunciativo, figuras retóricas, redes de oposições, elementos semióticos, gêneros, interlocução, cena, estilo, ironia, humor, riso, etc.).

A certificação tão enriquecedora da presença do heterogêneo, do outro no discurso abre importantes horizontes à compreensão do dialogismo assim como para a reflexão e compreensão da abrangência do dito e do não dito.

As considerações precedentes permitem-nos aplainar caminhos que nos autorizam a confirmar que trabalhos desta natureza podem ter uma importante significação social. Em relação às análises realizadas com amostras de discursos políticos, o interesse coletivo e a relevância social, tenderão a restar valor às tentativas de minimização da sua importância de conhecer melhor o que têm a dizer a povo, ao povo brasileiro.

Mesmo antes de iniciar quaisquer análises tenho consciência de que encontram-se prontas em nossa mente ou no coração diversas espécies de resposta desejadas às indagações incluídas nas hipóteses. Sou consciente de que os desejos agirão, queiramo-lo ou não, como forças condicionadoras da escolha das propostas e dos resultados. Sei que, de algum modo, nossas preferências e sentimentos – razão e coração na prática existencial – procuram condicionar as opções a fazer, desde a eleição do corpus, à escolha das hipóteses metodologia e objetivos: pode ser tão fácil arrumar discursos justificadores para as nossas opções! Lembre-se quando a sabedoria popular, para relativizar a verdade das pretensas verdades, costuma dizer que “há discurso para tudo”. Para mim é um diagnóstico certeiro.

François (1998:13-15) ao falar na interpretação como relação “na qualidade de”16 reconhece esta realidade ao considerar que cada um de nós

é, de alguma forma, intérprete, leitor genérico e intérprete leitor específico, 16.en tant que”.

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sem poder especificar de forma unívoca o quanto é de um ou de outro. Consciente dessa dimensão assumo o desafio de tentar articular um discurso não manipulado conscientemente, com pretensões de ser veraz, mesmo sabendo que o analista dificilmente consegue impedir que seu trabalho reflita as suas preferências pessoais. Isso num horizonte pautado por perspectivas teóricas relacionadas ou decorrentes das principais intuições bakhtinianas como a refletida na postura aberta e visão ‘escatológica’ de Bakhtin pouco antes de morrer (1997:392-393):

Não existe nem primeira nem última palavra, e não existem fronteiras para um contexto dialógico (ascende a um passado infinito e tende igualmente a um futuro igualmente infinito). Não existe nada morto de uma maneira absoluta: cada sentido terá sua festa de ressurreição. Problema do grande tempo.17

Dialogismo em discursos do Partido dos Trabalhadores (PT)

Observo que muitos cidadãos leitores da situação política do Brasil e técnicos analistas do discurso político compartilham a consciência de que na complexa sociedade brasileira se confrontam e enfrentam posições contrárias e interesses conflitantes, alguns contraditórios e irreconciliáveis entre si, por conseguinte, difíceis de administrar e articular. Neste sentido, parece-me uma ação socialmente significativa relacionar vozes dos discursos que se confrontam abertamente e dos discursos que estão por trás, e que são exaltados, deturpados, apagados ou silenciados, etc., em outras palavras, que interagem no espaço-tempo histórico em que nos cabe viver.

No momento em que escrevemos (julho de 2009) faz seis anos e meio que o Partido dos Trabalhadores ocupa a presidência da República. Mas seu poder social é relativo: ao não dispor de maioria no Parlamento vê sua autonomia diminuída e para garantir a governabilidade entende ver-se forçado a agir através

17.“No existe ni primera ni última palabra, y no existen fronteras para un contexto dialógico (asciende a un

pasa-do infinito y tiende igualmente a un futuro igualmente infinito). No existe nada muerto de una manera absoluta: cada sentido tendrá su fiesta de resurrección. Problema del gran tiempo”.

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de um recurso utilizável nas democracias parlamentaristas contemporâneas, o de pactos ou coalizões, incluso com algumas agremiações políticas de posições históricas dificilmente compatíveis com as assumidas pelo PT. De fato, as oposições tentam tomar do PT a fatia de poder que possui por encabeçar o Governo e afastá-lo dos lugares simbólicos que tem conseguido conquistar no imaginário de amplas camadas da população de ser o partido que quer mudar o País para melhor, especialmente em relação aos socialmente excluídos. Neste sentido é fundamental para a sobrevivência política dos opositores, inviabilizar a efetivação no Brasil das propostas políticas petistas que, segundo advertem, mudam substancialmente as perspectivas e papéis consolidados nas relações políticas até então estabelecidas na sociedade brasileira. Nesses pressupostos para a oposição configura-se como algo necessário o retorno a uma situação de governo mais próxima das precedentes, identificável, fundamentalmente, pela concentração do poder e da riqueza nas mãos de poucos, ao preço da exclusão social de boa parte da população. Nesse embate político, tanto o Governo quanto o Partido dos Trabalhadores têm vivenciado uma permanente situação política de grande tensão.

De fato, é constatável que uma das propostas que centra o discurso do Partido dos Trabalhadores é aquela que acaba encontrando seu espaço ideológico dentro de uma visão que pretende combater as relações de poder instauradas e firmemente assentadas na sociedade brasileira, por considerá-las excludentes da maioria dos trabalhadores, concentradoras de renda e poder nas mãos de minorias privilegiadas e, consequentemente, alimentadoras da instabilidade, da violência e da marginalização. Nesta direção, a princípio, poderia ser útil atribuir alguma relevância política e social ao discurso petista – como um arquétipo de discurso político: o que está em jogo é a tentativa de dar e ser a direção ideológica e política do País. Segundo o discurso do PT, seus adversários pretendem a volta ao jogo da desesperança e do fatalismo imobilizador que representa a opção por uma sociedade capitalista selvagem e que predominou na prática política e nos discursos durante os quinhentos anos anteriores da história do Brasil.

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Nesta linha de denuncia e embate, o PT em seu discurso fundador, o

Manifesto18 apresenta-se como resposta a uma necessidade de efetiva participação

e protagonismo político dos trabalhadores e do povo e inserida num processo multisecular de lutas pela democracia, liberdade e justiça: “Somos um Partido dos Trabalhadores, não um partido para iludir os trabalhadores” (M); “um partido amplo e aberto a todos aqueles comprometidos com as causas dos trabalhadores”, que “afirma seu compromisso com a democracia plena e exercida diretamente pelas massas” e que “lutará [...] pela democratização da sociedade em todos os níveis” (M).

O nascente Partido dos Trabalhadores se anuncia como o espaço democrático a ser construído para organizar politicamente, de forma autônoma, os trabalhadores com o objetivo de construir uma sociedade verdadeiramente democrática: reflete e refrata as carências de quantos estão fora do poder; o Manifesto constrói sua utopia, situado numa posição de ainda não poder: é como uma voz que anuncia que os trabalhadores organizados são chamados a serem sujeitos da história como que reafirmando seu destino político, cunhado no discurso predecessor do Manifesto Comunista.

O Manifesto do Partido dos Trabalhadores ostenta como fato de relevância histórica que o partido se tenha constituído numa proposta de organização política diferente das conhecidas no Brasil até então, ao conseguir incorporar a maioria das ideologias de esquerda numa proposta básica assimilável de emancipação política e social:

a grande novidade conhecida pela sociedade brasileira é a mobilização dos trabalhadores para lutar por melhores condições de vida para a população das cidades e dos campos [...] Mas, tendo de enfrentar um regime organizado para afastar o trabalhador do centro de decisão política, começou a tornar-se cada vez mais

18. As referencias relativas ao texto do Manifesto (M), surgido em 1980, ao 13º Encontro (13º), realizado em 2006, e ao Estatuto atual do PT (E) serão indicadas apenas pelas letras que constam entre parêntese, dado

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claro para os movimentos populares que as suas lutas imediatas e específicas não bastam para garantir a conquista dos direitos e dos interesses do povo trabalhador. Por isso, surgiu a proposta do Partido dos Trabalhadores(M)

Aspectos assumidos na formulação atual do Estatuto em seu Artigo. 1º que assume a tarefa de identificar o Partido dos trabalhadores (PT):

O Partido dos Trabalhadores (PT) é uma associação voluntária de cidadãs e cidadãos que se propõem a lutar por democracia, pluralidade, solidariedade, transformações políticas, sociais, institucionais, econômicas, jurídicas e culturais, destinadas a eliminar a exploração, a dominação, a opressão, a desigualdade, a injustiça e a miséria, com o objetivo de construir o socialismo democrático.

No Manifesto do PT, as principais teses, basicamente, relativas à “emancipação das massas populares” constituem o que poderia ser considerado como o núcleo ideológico do discurso da esquerda, de inspiração e linguajar marxista, que aspira a conquistar o poder:

O PT quer atuar [...] no dia-a-dia de todos os trabalhadores, pois só assim será possível construir uma nova forma de democracia, cujas raízes estejam nas organizações de base da sociedade e cujas decisões sejam tomadas pelas maiorias [...] queremos construir uma estrutura interna democrática, apoiada em decisões coletivas e cuja direção e programa sejam decididos em suas bases [...] O PT lutará [...] pela democratização da sociedade em todos os níveis (M):

Também é explicitada a vocação emancipatória internacionalista, numa formulação de caráter mais genérico, ao proclamar a “solidariedade à luta de todas as massas oprimidas do mundo” (M).

O Manifesto do PT reflete vozes do seu tempo que representam o simulacro de sociedade existente, na contraposição ‘dominador/explorador/ privilegiado’ frente a ‘dominado/explorado/não privilegiado’. O léxico traz essas e outras marcas que confirmam a heterogeneidade constitutiva do seu discurso, como saldo da luta entre a velha e a nova ideologia, ao atualizar

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contraposições dualistas próprias das análises do marxismo clássico (‘massas/ elites’, ‘oprimidos/opressores’, ‘trabalhadores/não trabalhadores’, ‘povo/ não povo’, ‘maioria/minoria’, etc.

Tinham-se passado 26 anos de existência no Partido dos Trabalhadores quando foi realizado o seu 13º Encontro Nacional (de 28 a 30 de abril de 2006). Antes, nesse período, aconteceram doze Encontros Nacionais e dois

Congressos Nacionais. Pouco depois, de 31 de agosto a 2 de setembro de 2007,

foi realizado o III Congresso. É nesses fóruns que se debate, legisla, avalia e va sendo definida e renovada a identidade oficial do Partido. Participaram desses eventos centenas de milhares de filiados refletindo e deliberando em reuniões pelos quatro cantos do Brasil. Milhares de páginas de documentos foram analisados. Apenas alguns foram aprovados e passaram a representar oficialmente a identidade e o discurso políticos do Partido. Porém, muitas dessas resoluções, aprovadas ou não, continuaram interagindo, como vozes atuantes, sobre a prática e o discurso petista até os dias de hoje, especialmente quando reivindicadas, por uns, como expressão da necessária volta às origens, e, por outros, como justificativa para reivindicar a re-fundação do Partido. Na conjuntura em que se celebrou o 13º Encontro Nacional do Partido dos

Trabalhadores compõe-se uma voz que reflete e refrata a posição hegemônica

de poder então ocupada no governo da República. Apesar disso, a conjuntura era plenamente adversa, desesperadora para o conjunto do Partido, não fosse, em medida significativa, pelo fato de que as pesquisas de opinião pública teimavam em mostrar a preferência pela reeleição do membro do Partido, o Presidente Lula. Porém, era um contexto no que circulavam e se reproduziam as ameaças de cassar tanto o mandato do Presidente quanto o registro legal do Partido dos Trabalhadores, em razão de denúncias de corrupção no Governo.

Por sua vez, o espaço de destaque empregado para enaltecer as lutas sociais no passado petista, presente no Manifesto, é, em grande parte, ocupado no 13º Encontro pelas eleições ou pela campanha eleitoral: apaga-se o caráter classista do PT. Aspectos que podem ser vistos como um deslocamento de metas na direção do que pode ser mais significativo para manter o poder. E,

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principalmente, ao passar da proposta de emancipação dos trabalhadores, característica do Manifesto, a uma espécie de concretização transitória e limitada da utopia: a construção de um país pós-neoliberal como tarefa central do Governo Lula.

No 13º Encontro podem ser observados novos focos discursivos: as teses centrais tratam do combate ao neoliberalismo e da importância da reeleição de Lula:

5. Frente a isto, o 13º Encontro Nacional estabelece como objetivos táticos centrais: vencer as eleições presidenciais, impedindo que os neoliberais reconquistem o governo federal; e ampliar a força do PT e das forças democráticas e populares, criando uma das condições necessária para realizar a transição do modelo econômico e social (13º)

100. A tarefa central de nosso governo era e segue sendo construir um Brasil pós-neoliberal (13º).

Outros destaques do discurso do 13º Encontro a ênfase nos temas da corrupção, alianças e a priorização de questões eleitorais (candidatura à reeleição, Programa de Governo, etc.); o apagamento da referência à ‘luta’.

No 13º Encontro elaboram-se os documentos, dentro dum horizonte de democracia parlamentar institucional consolidada, com base num importante acúmulo de experiências de ação política conjuntural, para servirem, fundamentalmente de base à campanha de reeleição do seu filiado como Presidente da Republica; às campanhas de seus candidatos a governadores e vices de Estado, senadores, deputados federais e deputados estaduais; e como pautas dirigentes – “diretrizes’ – dos governos e mandatos conquistados. São abordadas as principais polêmicas que envolvem membros do Partido dos Trabalhadores; sem esquecer da apresentação para a sociedade dos limites e do “custo” da democracia numa sociedade capitalista como um problema crônico e sugerir medidas para minimizá-lo. Temática na qual ressoam com força os ecos das acusações de corrupção sofridas pelo PT e tornam necessário dar a volta por cima:

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65. É evidente que não podemos ser ingênuos e achar que é possível participar das disputas eleitorais, da forma como elas ocorrem hoje, sem contar com recursos privados. Mas também é ingênuo achar que todos os empresários que contribuem com as campanhas eleitorais do PT o fazem desinteressadamente (13º). 66. Neste sentido, o PT deve debater abertamente os riscos envolvidos na dependência em relação ao financiamento privado de campanhas. Estes riscos incluem, no médio prazo, a alteração dos compromissos programáticos e dos vínculos de classe do Partido (13º).

67. Não se trata, apenas, de um problema para o nosso Partido. Trata-se de um problema crônico da democracia nos marcos do capitalismo (13º).

70. Uma análise de conjunto desta questão remete para um debate mais complexo, sobre o “custo” da democracia, numa sociedade capitalista (13º). Nas resoluções, o sujeito da enunciação aparece como sujeito do enunciado ou utiliza possessivos referidos à primeira pessoa quando trata de temas como a política internacional – especialmente quando referida à América Latina –, a responsabilidade com as mudanças sociais positivas, as lutas dos setores populares (idealizados como homogêneos em seus interesses) ou a questão do socialismo; quando o discurso procura apagar a sua responsabilidade e comprometimento, prevalecem o uso de enunciados em terceira pessoa ou com formas impessoais: assim, em relação às opções do PT em sua relação com o Governo ou aos seus erros e alianças ou às suas derrotas (como quando lamenta a perda por parte do Partido da batalha do discurso para traduzir a realidade dos fatos para a sociedade); ou ao procurar apagar a relação dos enunciadores com Lula e seu Governo, especialmente no referente às suas opções de política econômica e social:

9. O Programa para as eleições de 2006 tem dois pontos de partida: por um lado, as realizações do Governo Lula, que o colocam muito à frente dos últimos governos, sobretudo do de FHC. Por outro lado, nosso objetivo de construir um Brasil democrático e popular, liberto da dependência externa, com soberania nacional e igualdade social [...] O fundamental é afirmar a

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validade e a atualidade de uma transição de um velho Brasil, para um novo projeto nacional de desenvolvimento, que harmonize o econômico e o social, impulsionando as potencialidades locais produtivas e sociais, capaz de avançar mais rapidamente em direção a um ciclo de crescimento acelerado, fundado na distribuição de renda, macroeconomicamente sustentado, com mínima vulnerabilidade externa a realizar-se em um marco de expansão da democracia e da solidariedade continental (13º).

Nas deliberações do 13º Encontro acontece a quase completa eliminação de uso desses termos, que eram fundamentais nos textos inspirados no marxismo clássico. Por exemplo, verifica-se uma importante redução no uso de ‘trabalhador(es)’: no uso da palavra ‘trabalhadores’, que no falar marxista vinha a equivaler a ‘explorados’, podemos verificar que nos textos do 13º

Encontro - que tem uma extensão 14 vezes maior que o do Manifesto – a sua

incidência é, proporcionalmente, no mínimo, 70 vezes menor. Números, sem dúvida, relevantes por tratar-se de um indício de apagamento da voz ‘trabalhadores’, uma palavra marcada tanto pelo fato de identificar o Partido enunciador dos textos quanto pela tradição ideológica marxista; são preferidas outras expressões como ‘país’ ou ‘sociedade brasileira’. E, efetivamente, no 13º Encontro, o trabalhador é expressão de quem sustenta a sua vida com o que recebe do trabalho que realiza, é um sujeito de direitos, sem implícitos relativos a que é dominado ou explorado. Outrossim, ‘excluído(s)’ vem a ocupar o lugar de ‘explorados’.

A ruptura com análises marxistas de luta de classes é mais significativa na medida em que trabalhadores invocam a auto-gestão ou o associativismo até em níveis macro-econômicos:

28. Distribuir renda. O crescimento não pode ser apenas fator de distribuição de renda, mas também sua consequência. A inclusão social, o combate à pobreza, a distribuição de renda serão alcançadas com reformas econômicas e sociais [...] Serão fundamentais a definição de metas sociais a serem alcançadas e o estabelecimento de mecanismos regulatórios de proteção aos micro, pequenos

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e médio empreendedores, intensificando o fomento ao desenvolvimento local endógeno, baseado nas potencialidades produtivas e sociais, tendo como modelo de organização produtiva empreendimentos associativos de economia solidária auto-geridos pelos trabalhadores/produtores, estimulando o cooperativismo, a autogestão e a participação dos trabalhadores na gestão micro e macro-econômica. O novo Governo prosseguirá em seu esforço de constituir uma economia solidária, estimulando o cooperativismo, a auto-gestão e a participação dos trabalhadores na gestão micro e macro-econômica (13º). Em qualquer caso, estamos perante a incorporação de um imaginário relativo ao mundo do trabalho e da produção bem diferente daquele dualista que se limitava a refletir a oposição capital – trabalho, trabalhadores – burgueses que inspirara o Manifesto. No atual momento, podemos considerar que o Estado

Proporcionalmente ao tamanho do texto, se comparados o Manifesto e o

13º Encontro, o uso da expressão ‘Partido dos Trabalhadores’ é muito díspar,

porque, em caso de salvaguardar a mesma proporção, deveria aparecer neste último em mais de quarenta e três ocasiões. Em razão disso, inferir daqui a leitura de que ocorre um processo de apagamento pode ser algo obrigado. Por outra parte, no 13º Encontro, a sigla PT aparece em 71 ocasiões.

Mais uma constatação vista como relevante emerge das referências aos sindicatos e ao Governo. Esta última é mínima ou praticamente inexistente no Manifesto, e não poderia ser de outra forma, uma vez que o Partido estava sendo fundado. E é frequente nas deliberações do 13º Encontro Nacional: sem dúvida, como indício de uma grande preocupação com a questão do poder que é exercido ao ser ou estar no Governo. Por contra, sem o brilho e o papel social de lutas do passado, a referência aos sindicatos tende a desaparecer, bem como a insistência na referência ao ‘regime’ político, presente apenas nos prolegômenos dos discursos da fundação do Partido.

Como já foi apontado, em diferença óbvia para com o Manifesto, no

13º Encontro os olhos voltam-se também para um candidato que representa

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eventos com a palavra ‘Lula’ e a diversificação de situações de uso fala da importância que tem no discurso dos enunciadores: são atribuídos a ele, principalmente, valores simbólicos, conjunturais de poder, de proximidade e de identificação. No entanto, ele é o “outro”. Daí pode inferir-se que existe um certo apagamento quanto a uma interação mais profunda entre a pessoa Lula e seus enunciadores. Ou, também, pode-se supor um certo distanciamento: não há forma em que se inclua Lula nesses documentos; a que mais se aproxima dos sujeitos da enunciação é “nosso presidente”.

Um destaque comum a todos os documentos é relativo à incidência constante do tema da democracia. Só no Manifesto não vem acompanhado da característica ‘popular’. Ao sublinhar a importância de fortalecer a democracia representativa e participativa no 13º Encontro pode-se escutar o eco, a repercussão prática do Manifesto quando falava do cansaço sentido pelos trabalhadores por estar servindo “de massa de manobra para os políticos e os partidos comprometidos com a manutenção da atual ordem econômica, social e política”.

Com a explícita expressão ‘socialismo’, ausente no Manifesto, o documento “Diretrizes para a Elaboração do Programa de Governo do Partido dos

Trabalhadores (Eleição Presidencial de 2006)”, do 13º Encontro, realça o sonho

ou a utopia de alcançar uma sociedade socialista e cita a formulação do 7º

Encontro Nacional para pautar o futuro da relação Partido dos Trabalhadores/

sociedade socialista: “O socialismo petista – nosso horizonte estratégico

– é uma construção histórica e não um objetivo abstrato a ser atingido”.

(13º). Com isso, dialoga com posições de dentro e de fora do Partido que defendem a realidade do socialismo como um modelo prefixado ou a sua implantação como uma necessidade histórica irreversível.

Para o imaginário coletivo, a dialética privilégio vs exploração, característica do Manifesto, está sendo substituída no 13º Encontro por outra que se concentra na questão da inclusão vs exclusão. Nesse sentido, é que o

13º Encontro assinala que políticas compensatórias – como é o caso de uma

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Considerações finais

Numa ponderação de caráter mais global chegamos a algumas percepções que nos parecem significativas do ponto de vista discursivo em chave dialógica:

1ª. Enquanto as categorias linguísticas, ideologicamente mais marcadas pelo marxismo perdem força no Manifesto e praticamente já foram deixadas de lado quando da realização do 13º Encontro Nacional, algumas aspirações, como o socialismo, não explicitadas no Manifesto, têm um notável peso no 13º Encontro. Isso, por um lado, consolida opções ideológicas e políticas que traduzem um afastamento significativo da tradição do discurso marxista tradicional, ao tempo que afirmam e atualizam outras de caráter social que dão sequência às utopias das diversas tradições humanísticas, incluindo as socialistas.

2ª. Do imaginário atraente da procura do paraíso terrestre para e pelos trabalhadores e pelas massas, viável a partir da participação democrática na política, própria do Manifesto, é consolidado e apresentado no 13º Congresso um imaginário de luta por manter a transição de um modelo de sociedade democrática e popular que propicie a construção do socialismo, realidade dependente em grande medida de conseguir manter a hegemonia no controle do Estado.

3ª. Da conclamação aos trabalhadores a construir seu próprio Partido, a fim de avançar nas conquistas sociais e na construção de espaços democráticos, presente no Manifesto passa-se no 13º Encontro Nacional a uma voz polarizada pela necessidade de viabilizar um segundo mandato do Presidente Lula e o combate ao neoliberalismo.

4ª. Das vozes exultantes do Manifesto, transpirando orgulho e destemor, identificam-se, no 13º Encontro Nacional, vozes à defensiva que transpiram constrangimento diante das acusações de corrupção que pairam sobre dirigentes e parlamentares do Partido.

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5ª. Do sentimento e da crença de ser a representação exclusiva e natural de milhões ou de todos os trabalhadores frente aos exploradores passa-se à consciência de representar uma parte, a majoritária, dos cidadãos.

6ª. De dialogar com a vozes dos movimentos e posições marxistas tradicionais e neo-marxistas passa-se a dialogar com as vozes das propostas e posturas social-democráticas e reformistas ou das qualificadas como progressistas. 7ª. De um partido mais preocupado em restringir alianças, afirmando seu caráter classista, passa-se a um partido preocupado com viabilizar amplas coalizões, adjetivadas de progressistas, que viabilizarão a permanência do Partido dos Trabalhadores como hegemônico no Governo.

8ª. De um partido mais preocupado em marcar posições de classe social, passa-se a um partido mais polarizado em alicerçar a manutenção da atual situação de poder político.

9ª. De um partido mais preocupado com a afirmação organização dos trabalhadores, passa-se a um partido mais preocupado com o combate a uma ideologia - a neoliberal - e a manutenção da hegemonia no Governo. 10ª. Do tipo de discurso associável a uma situação de minoria social organizada, próprio dos inícios do Partido, passa-se a um tipo de discurso associável a uma situação própria dum movimento político hegemônico no País, a um Partido que fala desde uma situação de poder. Na prática, os compromissos históricos do PT são mantidos, renovados e são partilhados por um número maior de cidadãos.

11ª. O ethos de altruístas heróis da classe trabalhadora e das massas, que procura passar o Manifesto, é substituído no 13º Encontro por um ethos de firmes combatentes contra o neoliberalismo.

Ao avaliar a construção e evolução dos discursos do PT, analisados em chave dialógica, podemos inferir que, estamos perante a pistas ou instruções de

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sentido que nos indicam que, diferentemente que no Manifesto, no 13º Encontro

do Partido dos Trabalhadores, para o(s) sujeito(s) do discurso, ser governo, ter

ou exercer poder, ser do Partido, contam mais do que pertencer a uma classe ou a um país vitoriosos, ou ter utopias ou possuir uma determinada ideologia. Mesmo assim, em relação à evolução do discurso do Partido dos Trabalhadores, a avaliação mais global me sugere que o discurso político do Manifesto, oficializado como o de fundação do Partido e os refletidos nas deliberações do 13º Encontro Nacional convergem nas linhas mestras e propósitos políticos, porém, hoje, atualizando temáticas, léxico, expressões e formulações.

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Referências

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