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Durkheim e Saussure: dois clássicos e duas ciências na abordagem do fato social

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Academic year: 2020

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Helson Flávio da Silva Sobrinho1  Universidade Federal de Alagoas    Resumo:  Este  artigo  traça  conexões  entre  o  pensamento  de  Émile  Durkheim  e  Ferdinand de Saussure, dois clássicos das ciências humanas, a Sociologia e a Linguística.  Tal relação é pensada, especificamente, no tocante à postura epistemológica. Considera‐ se que há, de forma efetiva, uma semelhança diante das concepções do fazer ciência da  época, particularmente de perspectiva positivista. Constata‐se que, apesar das tentativas  de separação desse paradigma, Durkheim e Saussure acabaram se rendendo às exigências  do fazer ciência que pressupõe a fragmentação da realidade e a “criação”, a partir de um  ponto de vista, de um objeto e de um método “próprio”, mirando a autonomia científica.  Palavras‐chave: Sociologia; Linguística; Fato Social; Língua.    

Resumen:  Este  artículo  hace  conexiones  entre  el  pensamiento  de  Émile  Durkheim  y  Ferdinand de Saussure, dos clásicos de las ciencias humanas, Sociología y Lingüística. Tal  relación  es  pensada,  específicamente,  en  cuanto  a  la  postura  epistemológica.  Se  considera que hay, de modo efectivo, una semejanza frente a las concepciones del hacer  ciencia de la época, particularmente de perspectiva positivista. Constatamos que, a pesar  de  las  tentativas  de  separación  de  este  paradigma,  Durkheim  y  Saussure  acabaron  por  rendirse a las exigencias del hacer ciencia que presupone la fragmentación de la realidad  y  la  “creación”,  a  partir  de  un  punto  de  vista,  de  un  objeto  y  de  un  método  “propio”,  mirando hacia la autonomía científica.  

Palabras clave: Sociología; Lingüística; Hecho social; Lengua.    

Abstract: This  paper  makes  connections  between  Emile  Durkheim´s  and  Ferdinand  de 

Saussure´s  thoughts,  two  classic  thinkers  of  humanities,  sociology  and  linguistics.  This  relationship  is  thought  specifically  in  epistemological  terms.  It  is  considered  that  there  is,  effectively,  a  similarity  between  the  conceptions  of  doing  science  in  that  period,  particularly, in the positivist perspective. Despite separation attempts of this paradigm,  we  found  that  Durkheim  and  Saussure  ended  up  surrendering  to  the  requirements  of  doing  science  that  involve  the  fragmentation  of  reality  and  the  "creation",  from  a  viewpoint,  from  an  object  and  from  an  own  method,  in  order  to  aim  at  scientific  autonomy. 

 Key‐Words: Sociology; Linguistics; Social Fact; Language.   

1 Doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Alagoas (2006), é professor Adjunto da

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Introdução   

  Este  trabalho  expressa  algumas  conexões  entre  o  pensamento  de  Émile  Durkheim  e  Ferdinand  de  Saussure,  dois  grandes  clássicos  das  Ciências  Humanas,  a  Sociologia  e  a  Linguística.  Tal  relação  será  estabelecida pelo olhar teórico, especificamente em relação à postura  epistemológica  dos  dois  pesquisadores  em  face  da  concepção  de  objeto e método científico.  

  Vale  ressaltar,  de  início,  que  chamam  atenção  as  semelhanças  entre  os  dois  pensadores,  dos  quais  a  Sociologia  e  a  Linguística  acabaram  recebendo  a  marca  do  caráter  de  ciência  moderna.  Muitos  estudiosos  já  atentaram  para  a  possível  relação  entre  Durkheim  e  Saussure;  no  entanto,  as  abordagens  parecem  não  ultrapassar  pequenos  flashes,  como  é  o  caso  de  Robins  (1983),  Lyons  (1979),  Carvalho (2000), Lahud (1977) e Culler (1979). Alguns chegam a afirmar  que  há  uma  influência  do  pensamento  de  Durkheim  na  teoria  saussuriana,  como  Normand  (2009a);  outros,  porém,  simplesmente  consideram  apenas  uma  semelhança  de  datas  na  fundação  das  respectivas ciências. Ainda, segundo Normand (2009a: 40), “sabemos a  que ponto o CLG e o início da linguística geral sofrem a influência de  Durkheim; influência que ainda não foi determinada de modo preciso”.     Diante  dessa  constatação  de  Normand  (2009a),  nossa  leitura  considera  que  há,  de  forma  efetiva,  uma  relação  que  não  se  reduz  exclusivamente ao tempo cronológico, mas, sobretudo, às concepções 

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do  fazer  ciência  da  época,  particularmente  em  relação  à  perspectiva  positivista. 

  Aqui  nos  deparamos  com  o  primeiro  problema  para  avançar  nessa  reflexão,  a  saber:  Durkheim  e  Saussure  são  positivistas?  Diríamos (ou já ouvimos) que não, necessariamente. Mas isso não é o  bastante, sendo preciso trazer fatos.   

  É  interessante  levar  em  consideração  que  os  pensadores  são  sujeitos  histórico‐culturais,  nascem  em  determinada  época,  na  qual  existem relações sociais, políticas e econômicas que atuam nas formas  de pensar, ver, analisar e compreender o mundo. É nesse sentido que  consideramos  que  a  ciência  não  é  uma  produção  abstrata,  livre  das  determinações  históricas.  Assim,  pode‐se  afirmar  que  Durkheim  e  Saussure  são  influenciados  por  reflexões  já  existentes  sobre  o  real  (social/linguístico),  e  a  partir  dessa  produção  eles  reelaboram  a  prática  teórica  e  analítica,  acrescentando  novidades  que  marcam  a  história das respectivas disciplinas.  

  Durkheim  e  Saussure  viveram  numa  época  em  que  se  pensava  que  a  humanidade  caminhava  progressivamente,  seguindo  leis  universais. Durkheim encontrava isso nas ideias difundidas sobretudo  nos  trabalhos  de  Augusto  Comte  (1798‐1857),  o  fundador  da  Sociologia.  Naquela época, final do século XIX e início do século XX,  predominava  também  a  proposta  kantiana  de  síntese  entre  o  racionalismo e empirismo; o darwinismo e seu estudo sobre evolução  das  espécies;  o  organicismo  que,  baseado  nas  ciências  biológicas, 

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parecia  explicar  tudo  segundo  o  modelo  orgânico.  Além  disso,  as  ideias liberais e socialistas rondavam o fazer filosófico e científico.     No  caso  específico  da  Linguística  havia  a  predominância  do  comparativismo  e  dos  neogramáticos2,  que  acabavam  por  reproduzir  tais ideias, com as quais Saussure se deparava nos trabalhos de cunho  naturalista  que  buscavam  leis  universais  baseadas  nas  semelhanças  das línguas, como se essas evoluíssem a partir de um mesmo tronco.  

  Não  se  pode  deixar  de  lembrar  também  que,  no  mesmo 

contexto  dessas  ideias,  crescia  a  industrialização  na  Europa,  e  desse  modo as ciências naturais avançavam para responder às necessidades  da sociedade capitalista.  

  Nessa  conjuntura,  inspirada  no  método  positivista,  as  ciências  humanas  surgem  visando  alcançar  também  um  patamar  de  objetividade  semelhante  ao  das  ciências  naturais.  Buscaram,  assim,  sob o efeito do mito da neutralidade, um discurso rigoroso e preciso,  de  acordo  com  as  leis  dos  fenômenos,  sejam  elas  universais  ou  restritas a um determinado estado de tempo (sincrônico). Tal modelo  de  pensamento  também  prescrevia  um  sujeito  distante,  ou  seja,  aquele que se quer separado do objeto para evitar a contaminação da  subjetividade  na  apreensão  do  real.  É  nesse  caldeirão  de  ideias  e  práticas  que  os  dois  estudiosos  se  destacam  na  fundação  de  duas  importantes  ciências:  Durkheim,  a  Sociologia;  e  Saussure,  a 

2 Segundo Coseriu (1980), os neogramáticos expressavam a forma que a ideologia evolucionista e positivista

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Linguística  moderna3.  Há,  portanto,  nos  dois  teóricos  o  desejo  de  fazer ciência, mas, vale lembrar, de uma determinada forma. 

  Cabe  destacar  que  tal  designação  não  implica  dizer  que  Durkheim  e  Saussure  são  positivistas  puros.  Existe  certamente  um  avanço  em  relação  ao  pensamento  do  positivismo,  pois  Durkheim,  embora  tecesse  elogios  a  Augusto  Comte,  criticava  a  sua  concepção  evolucionista. E Saussure criticava os neogramáticos e suas leis gerais,  mas acabava também por defender uma ordem própria da língua num  determinado estado sincrônico. Por isso, insistimos, a articulação que  propomos desenvolver neste trabalho enfatiza que os pontos em que  esses  dois  teóricos  se  assemelham  e  se  aproximam  se  acham  exatamente quando adotam uma postura positivista.  

 

Durkheim e a definição do objeto e método na constituição da  ciência da sociedade 

 

  Iniciaremos  citando  Durkheim,  em  sua  obra,  “As  Regras  do  Método  Sociológico”,  publicada  em  1895,  para  sinalizar  o  potencial  desse teórico clássico:  

 

Quando  uma  ciência  está  a  nascer,  se  é  sem  dúvida  obrigado,  para  construí‐la,  a  tomar  como  referência  os  únicos  modelos  existentes,  quer  dizer,  as  ciências  já  formadas. Há nelas um tesouro de experiências já feitas que  seria insensato não aproveitar. No entanto, uma ciência só 

3 É curioso que, embora clássicos, nem Durkheim cunhou o nome Sociologia, nem Saussure o nome Linguística,

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pode  julgar‐se  definitivamente  constituída  quando  conseguiu  adquirir  uma  personalidade  independente.  Não  tem  razão  de  existir  se  não  tiver  por  matéria  um  tipo  de  fatos que as outras ciências não estudam. (Durkheim 2001:  150) 

 

Émile  Durkheim  nasceu  em  15  de  abril  de  1857,  na  França.  Dedicou‐se  à  filosofia,  à  antropologia  e  à  psicologia.  Seu  principal  empenho  consistia  em  assegurar  à  Sociologia  o  caráter  de  ciência  autônoma com objeto e método próprio. Durkheim aos 29 anos, em  1887, assumiu a 1ª cátedra dedicada à Sociologia na Universidade de  Bordéus,  França,  dedicando  sua  vida  ao  desenvolvimento  dessa  ciência;  escreveu  várias  obras,  entre  elas:  “A  divisão  do  trabalho  social”  (1893);  “As  regras  do  método  sociológico”  (1895)  e  “O  suicídio”  (1897).  Morreu  em  Paris,  no  dia  15  de  novembro  de  1917,  deixando  um  legado  teórico  e  metodológico  que  o  tornou  um  clássico da Sociologia4. 

  Este mestre buscou trazer para a ciência da sociedade o caráter  objetivo,  e  por  isso  insistia  na  precisão  do  objeto  e  do  método,  buscando  uma  objetividade  nos  padrões  das  ciências  naturais.  Afetado  pelo  positivismo  de  Augusto  Comte,  pelo  racionalismo  de  Kant,  pelo  darwinismo,  e  também  pelo  socialismo  e  liberalismo  existentes  à  época,  dialoga  com  essas  correntes  de  pensamento  para  formular sua proposta teórica. Em toda a sua obra, Durkheim foi fiel à  convicção de que a sociedade era um fenômeno que não poderia ser 

4 Quando dizemos clássico, referindo-nos a Durkheim, bem como a Saussure, alinhamo-nos ao pensamento de

Cohn (1977: 2). Este afirma que o clássico não é uma questão histórico-cronológica, “mas com aqueles autores que, pelo alcance e profundidade de suas contribuições originais e pela sua presença na atividade sociológica contemporânea, merecem sem dúvida a qualificação de clássicos”.

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reduzido  a  outros  fenômenos  como,  por  exemplo,  os  de  caráter  biológico, físico e psicológico. Considerava que os fenômenos sociais  eram algo diferente, particular, e por isso exigiam uma metodologia e  uma  ciência  específicas  que  se  encarregassem  de  estudá‐los  com  propriedade. 

  A ênfase de Durkheim na especificidade do objeto é marcante, 

sendo  constatada  na  introdução  de  sua  obra  “As  regras  do  método  sociológico”,  uma  vez  que  já  no  início  desta  assevera  que,  “até  o  presente,  os  sociólogos  preocuparam‐se  pouco  com  a  definição  do  método que aplicam ao estudo dos fatos sociais” (Durkheim 2001: 29).  Durkheim  faz  uma  crítica  explícita  a  Spencer,  Mill  e  Comte,  acrescentando que esses autores deixaram de lado 

 

as  precauções  a  tomar  na  observação  dos  fatos,  a  maneira  como  os  principais  problemas  devem  ser  apresentados,  o  sentido em que as pesquisas devem ser dirigidas, as práticas  especiais  que  podem  lhes  permitir  o  êxito,  e  as  regras  que  devem  presidir  à  administração  das  provas,  continuavam  indeterminadas. (Durkheim 2001: 29 e 30) 

 

  Com  essa  crítica  posta,  Durkheim  argumentava  que  os 

precursores  (fundadores)  da  ciência  da  sociedade  tinham  feito  filosofia,  mas  não  uma  ciência  verdadeiramente.  Ele  destaca,  na  introdução  desse  seu  trabalho,  ser  imprescindível  que  a  Sociologia  especificasse  com  rigor  seu  objeto  e  seu  método,  para  garantir  a  autonomia  científica.  À  Sociologia  caberia  o  estudo  das  instituições  sociais,  no  sentido  de  tudo  aquilo  que  é  instituído  pela  coletividade, 

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que  mais  precisamente  ele  denominará  como  fato  social,  conceito  rigoroso defendido em toda sua obra.  

  Nessa  perspectiva,  para  a  Sociologia  permanecer  como  ciência  autônoma, explica Durkheim, não se pode confundir o fato social com  outros fenômenos: 

 

Todos  os  indivíduos  bebem,  dormem,  comem,  raciocinam,  e a sociedade tem todo o interesse em que estas funções se  exerçam regularmente. Mas, se estes fatos fossem sociais, a  sociologia não teria um objeto que lhe fosse próprio e o seu  domínio confundir‐se‐ia com o da biologia e da psicologia.  (Durkheim 2001: 31)      Trata‐se, aqui, da definição e delimitação do objeto sociológico  como critério fundamental para a existência dessa ciência. Durkheim  define fato social como    toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer  sobre  o  indivíduo  uma  coerção  exterior:  ou  então,  que  é  geral no âmbito de uma sociedade tendo, ao mesmo tempo,  uma  existência  própria,  independentemente  das  suas  manifestações individuais. (Durkheim 2001: 40) 

 

  Isso implica que o fato social não pode ser explicado por outras  ciências, pois tem uma ordem e uma existência distintas. O fato social  é  geral,  exterior  e  coercitivo,  podendo,  apenas,  ser  explicado  pelo  social. É, pois, o social pelo social. 

 Dessa definição do objeto, compreende‐se que a sua concepção  de  sociedade  não  é  a  soma  de  indivíduos,  mas  o  produto  que  é  externo  a  qualquer  consciência  individual.  O  fato  social  é  produção  da  coletividade  e  não  de  indivíduos  particulares,  e  deve,  para 

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Durkheim, ser explicado pelos fenômenos da coletividade. Ou seja, o  indivíduo não cria nem modifica o fato social, como se pode constatar  no exemplo abaixo, retirado do texto do autor: 

 

ao  nascer,  os  fiéis  encontram  já  formadas  as  crenças  e  práticas  da  sua  vida  religiosa;  se  existiam  antes  deles  é 

porque  existem  fora  deles.  O  sistema  de  sinais  de  que  me 

sirvo para exprimir o pensamento, o sistema monetário que  emprego para pagar as minhas dívidas, os instrumentos de  crédito  que  utilizo  nas  minhas  relações  comerciais,  as  práticas  seguidas  na  minha  profissão,  etc.,  etc.,  funcionam 

independentemente  do  uso  que  deles  faço  (Grifos  nossos) 

(Durkheim 2001: 32)     

  Observa‐se,  então,  que  o  fato  social  é  exterior  aos  indivíduos,  pois  quando  estes  nascem  os  fatos  já  existem,  e  continuam  a  existir  após  a  morte  dos  indivíduos.  Essa  característica  de  ser  exterior  e  anterior  garante,  segundo  Durkheim,  a  objetividade  da  sociologia  e  afasta a subjetividade do pesquisador, já que esta poderia inviabilizar  a cientificidade nas ciências sociais.   

  Os  fatos  sociais,  além  de  exteriores,  são  também  coercitivos:  exteriores porque os indivíduos não os criam, e coercitivos porque  o  indivíduo  é  obrigado,  muitas  vezes  sem  perceber,  a  entrar  naturalmente  na  sua  ordem.  Como  Durkheim  (2001:  32)  afirma:  “mesmo  quando  eles  estão  de  acordo  com  os  meus  sentimentos  próprios e sentindo‐lhes interiormente a realidade, esta não deixa de  ser objetiva, pois não fui eu que os estabeleci”. 

  Vemos  aqui  o  funcionamento  do  pressuposto  fundamental  do  positivismo,  que  é  a  necessidade  de  colocar  o  objeto  como  algo  independente  da  vontade  do  indivíduo.  Löwy  (1985)  aponta,  como 

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síntese  fundamental  das  ideias  positivistas,  o  pressuposto  de  que  as  leis dos fenômenos são independentes da vontade dos sujeitos: 

 

A  sua  [do  positivismo]  hipótese  fundamental  é  que  a  sociedade  humana  é  regulada  por  leis  naturais,  ou  por  leis  que  têm  todas  as  características  das  leis  naturais,  invariáveis,  independentes  da  vontade  e  da  ação  humana,  tal  como  a  lei  da  gravidade  ou  do  movimento  da  terra  em  torno  do  sol:  pode‐se  até  procurar  criar  uma  situação  que  bloqueie a lei da gravidade, mas isso se faz partindo de que  essa  lei  é  totalmente  objetiva,  independentemente  da  vontade e da ação humana. (Löwy 1985: 36‐37)  

 

  É  partindo  desse  pressuposto  que  a  ciência  social,  seguindo  o  postulado  positivista,  busca  garantir,  epistemologicamente,  um  método  semelhante  aos  das  ciências  naturais  (astronomia,  física,  biologia),  intentando  com  este  modelo  de  objetividade  livrar‐se  das  ideologias e dos conflitos políticos.  

 Assim,  na  definição  de  fato  social  como  exterior  e  coercitivo,  encontra‐se refletida a defesa da objetividade dos fenômenos sociais,  compreendendo  que  “eles  existem  de  um  modo  definido,  que  têm  uma  maneira  de  ser  constante  e  uma  natureza  que  não  depende  da  decisão individual e de onde derivam relações necessárias” (Durkheim  2001: 27). Por isso, são também coercitivos no sentido de que é muito  difícil o indivíduo lutar contra eles, principalmente porque não pode  mudá‐los  a  seu  bel‐prazer.  Durkheim  exemplifica  isso  com  a  educação: 

 

toda a educação consiste num esforço contínuo para impor  à  criança  maneiras  de  ver,  de  sentir  e  de  agir  às  quais  ela  não  teria  chegado  espontaneamente  (...)  Esta  pressão  permanente exercida sobre a criança é a própria pressão do 

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meio  social  que tende a  moldá‐la  à  sua  imagem,  e  do  qual  os  pais  e  os  professores  são  meros  representantes  e  intermediários. (Durkheim 2001: 35)  

 

  Ao  mesmo  tempo  em  que  eles  são  coercitivos,  os  fatos  sociais  muitas  vezes  não  são  sentidos  como  tais,  e  os  indivíduos  acabam  desejando‐os,  uma  vez  que  desejam  a  ordem  e  as  regularidades  das  práticas  sociais.  Durkheim  exemplifica  também  com  o  crime,  pois  quando  se  reage  a  ele,  condenando‐o,  está‐se,  na  verdade,  defendendo a sociedade.  

  Para  apreender  o  funcionamento  dos  fatos  sociais,  Durkheim  explicita  seu  método  que,  reservadas  certas  restrições,  estava  ancorado  no  modelo  das  ciências  naturais.  Pode‐se  perceber  isso  quando ele afirma que embora os fenômenos sociais fossem de outra  ordem  e  não  naturais,  o  sociólogo  deveria  se  colocar  de  forma  semelhante  aos  cientistas  das  ciências  naturais  quando  estão  diante  de  um  objeto  desconhecido  e  exterior.  Essa  atitude  de  Durkheim  demonstra  que  ele  tentava  escapar  da  fragilidade  que  as  ciências  sociais  possuem,  pois  se  o  pesquisador  é  parte  da  sociedade,  como  este  sujeito  poderia  atuar  com  objetividade  em  sua  pesquisa,  já  que  vive na sociedade?  

Durkheim  responde  a  esse  problema  afirmando  que  é  preciso  que  o  pesquisador  observe  os  fenômenos  sociais  como  algo  exterior  (coisa) − “a primeira regra e a mais fundamental é: considerar os fatos  sociais  como  coisas”  (Durkheim  2001:  42).  Defendia,  portanto,  que  o  pesquisador  afastasse  as  pré‐noções  e  se  colocasse  diante  de  algo  completamente  desconhecido  e  que,  também,  reconhecesse  que  o 

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fato  social  “não  pode  ser  modificado  por  uma  simples  decisão  da  vontade” (Durkheim 2001: 52). 

  Na  verdade,  ele  propunha  que  o  sociólogo  tivesse  uma  atitude  mental,  afastando  as  ideias  prévias  surgidas  do  senso  comum,  tidas  como desprovidas de rigor cientifico. Isto acontecia porque Durkheim  se encontrava insatisfeito com a teoria de sua época: 

 

No  estado  atual  dos  nossos  conhecimentos,  não  sabemos  com  exatidão  o  que  é  o  Estado,  a  soberania,  a  liberdade  política,  a  democracia,  o  socialismo,  o  comunismo,  etc.;  o  método  exigia,  pois,  que  evitássemos  qualquer  uso  destes  conceitos  enquanto  não  estiverem  cientificamente  constituídos.  Porém,  as  palavras  que  os  exprimem  aparecem  constantemente  nas  discussões  dos  sociólogos.  Empregam‐se  corretamente  e  com  segurança,  como  se  correspondessem  a  coisas  bem  conhecidas  e  definidas,  quando  não  evocam  em  nós  senão  noções  confusas,  misturas indistintas de impressões vagas, de preceitos e de  paixões. (Durkheim 2001: 48) 

 

  Durkheim  defendia  a  Sociologia  como  ciência  autônoma  com  objeto próprio e um método, segundo ele, rigoroso. Tanto é assim que  ele acaba reduzindo o papel dos indivíduos diante da sociedade, como  se  esta  tivesse  uma  ordem  própria  independente  daqueles.  Já  em  outro  momento,  Durkheim  ressalta  a  importância  dos  atos  individuais,  quando  menciona  o  julgamento  e  a  morte  do  filósofo  Sócrates.  Contudo,  esclarece  que  tais  atitudes  constituem  uma  antecipação  da  moral  futura,  ou  seja,  uma  antecipação  do  novo,  ou  ainda,  trata‐se  de  preparação  para  a  mudança,  não  sendo  ato  de  vontade individual, senão um prelúdio do novo fato social. 

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Ora,  o  caso  de  Sócrates  não  é  isolado;  reproduz‐se  periodicamente na história. A liberdade de pensamento de  que  gozamos  hoje  nunca  poderia  ter  sido  violada  antes  de  ser  solenemente  abolida.  Todavia,  naquele  momento,  essa  violação  era  um  crime,  pois  ofendia  sentimentos  ainda  muito  vivos  na  generalidade  das  consciências.  Não  obstante, tal crime era útil, pois preludiava transformações  que  de  dia  para  dia  se  tornavam  mais  necessárias.  (Durkheim 2001: 87) 

 

  Durkheim  advogava  que  a  sociedade  era  dinâmica  e  que  as  mudanças  só  ocorriam  mediante  as  práticas  individuais  que  produziriam  um  fato  novo.  Embora  se  realize  nos  indivíduos,  a  sociedade  é  qualitativa,  e  não  quantitativamente,  distinta  deles.  Os  fatos  sociais  são  criações  das  ações  combinadas  dos  indivíduos,  pois  um indivíduo seria incapaz de criar ou modificar sozinho o fato social.  Para  Durkheim,  as  mudanças  ocorrem  no  decorrer  do  tempo  e  são  controladas pela tradição e herança, e não por revoluções.  

  Vale  lembrar  que  para  Durkheim  os  indivíduos  não  são 

homogêneos;  a  uniformidade  é  algo  impossível,  segundo  ele,  pois  resguarda  o  caráter  individual  de  cada  sujeito.  Mas  lembra  sempre  que  sobre  eles  age  a  sociedade  e  que  não  se  poderia  entender  a  sociedade  pelos  indivíduos,  já  que  a  explicação  dos  fenômenos  não  está  nas  partes  (indivíduo),  porém  no  todo  (sociedade).  Trata‐se  de  uma  explicação  que  prioriza  a  estrutura  social  sobre  os  indivíduos,  pois  sem  a  sociedade,  conforme  o  pensamento  de  Durkheim,  o  homem continuaria a ser um animal.  

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Saussure:  numa obra póstuma, a fundação da Linguística  moderna 

 

sem  essa  operação  elementar  [determinar  a  natureza  do  objeto de estudo] uma ciência é incapaz de estabelecer um  método para si próprio. (Saussure 1995: 10).    

 

Refletir sobre Ferdinand de Saussure (1857‐1913), considerado o  fundador  da Linguística moderna, é sempre algo fascinante devido  à  sua  importância  para  esta  ciência,  como  divisor  de  águas  entre  uma  atitude  pré‐científica  e  uma  científica5.  Chama  atenção  também  o  modo peculiar de sua contribuição a esta ciência, pois, como se sabe,  ele foi um pensador que não viu sua obra publicada (na verdade, não  a escreveu de fato). Contudo, a ele são atribuídas as ideias contidas no  “Curso de Linguística Geral” (doravante CLG).  

O  estudioso  genebrino  aos  15  anos  já  realizava  estudos  linguísticos. Com 21 anos, publicou “Mémoire sur le primitif système  des  voylles  dans  les  langues  indo‐européenes”,  um  estudo  sobre  o  indo‐europeu,  o  que  fez  de  forma  inovadora,  afastando‐se  das  explicações  atomistas  e  buscando  unidades  relacionais.  Tendo  como  formação acadêmica o comparativismo do século XIX, é a partir desta  base que Saussure pensa uma nova forma de olhar a língua, em busca  de um método de abordagem tido por ele como o mais adequado. 

5 Há bastante controvérsias em relação à originalidade da teoria saussuriana. Por exemplo, que a noção de signo,

a arbitrariedade, a distinção entre significado e significante, eram discussões existentes antes de Saussure. Contudo, atribui-se a ele a originalidade da teoria do valor linguístico. Deixando este debate de lado, concordamos com Benveniste que “Não há um só lingüística hoje que não lhe deva algo. Não há uma só teoria geral que não mencione o seu nome [Saussure].” (Benveniste 2005: 34).

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 Segundo  alguns  estudiosos  de  Saussure,  entre  eles,  Culler  (1979)  e  Benveniste  (2005),  Saussure  tinha  uma  resistência  em  escrever, pois se sentia incomodado com os termos técnicos que eram  utilizados  na  Linguística.  Embora  tenha  sido  herdeiro  da  tradição  linguística  da  época,  sua  visão  ultrapassava  a  de  seus  contemporâneos.  Ele  questionava  o  caráter  da  língua,  os  termos  e  a  forma  de  abordagem  dos  linguistas  diante  do  objeto.  Conforme  Benveniste, Saussure vivia um drama de pensamento.  

 

Saussure  afastava‐se  da  sua  época  na  mesma  medida  em  que  se  tornava  pouco  a  pouco  senhor  da  sua  própria  verdade, pois essa verdade o fazia rejeitar tudo o que então  se ensinava a respeito da linguagem. Mas ao mesmo tempo  em  que  hesitava  diante  dessa  revisão  radical  que  sentia  necessária, não poderia resolver‐se a publicar a menor nota  antes  de  haver  assegurado,  em  primeiro  lugar,  os  fundamentos da teoria. (Benveniste 2005: 40)    Para Saussure (1995), a Linguística, antes de se estabelecer como  ciência autônoma, passou por três fases até chegar ao que ele chama  de “verdadeiro e único objeto”, ou seja, a língua, e assim garantir seu  estatuto cientifico propriamente dito6.  

Segundo  Benveniste,  Saussure  era  “um  homem  dos  fundamentos”.  Neste  ponto,  a  relação  Durkheim  e  Saussure  já 

6 As fases refletem o interesse pela linguagem humana e a forma como se concretizou tal interesse. As três fases

citadas são: Gramática − interesse dos gregos da Antiguidade clássica pelo aspecto normativo do uso da língua; a fase dos estudos filológicos que eram destinados a “fixar, interpretar e comentar textos”; e a terceira fase, a Gramática Comparada ou Filologia Comparativa − os estudos deste período visavam comparar línguas, ou seja, explicar uma língua comparando-a com outras. A descoberta do sânscrito e suas semelhanças com as línguas latina, germânica e grega foi um marco da linguística comparativa. Saussure considerou que a gramática comparada só aproximou a linguística do seu verdadeiro objeto, mas não deu a ela uma posição de reconhecimento entre as ciências.

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aparece,  e  podemos  retomar  nossas  conexões,  pois  Durkheim  também  era  um  homem  dos  fundamentos  e  definições,  e  se  via  insatisfeito com os termos utilizados na Sociologia. Durkheim escreve  sobre isso em suas obras; já Saussure escreve pouco, e localizamos sua  insatisfação  com  a  Linguística  em  uma  carta  endereçada  a  Meillet  (Culler 1979: 09). 

De  acordo  com  Saussure,  colocar  o  objeto  linguístico  em  evidência  era  uma  questão  fundamental  para  o  reconhecimento  da  Linguística enquanto ciência autônoma. Como é dito no curso: “sem  essa  operação  elementar  [determinar  a  natureza  do  objeto  de  estudo],  uma  ciência  é  incapaz  de  estabelecer  um  método  para  si  própria”  (Saussure  1995:  10).  Assim,  percebe‐se  que  a  forma  de  abordar o objeto da Linguística é histórica, e a posição de Saussure,  embora em certo sentido se afaste de uma postura positivista, reflete  o  paradigma  existente  na  necessidade  de  delimitar  suas  fronteiras,  por  isso  ele  traz  no  CLG  exemplos  de  ciências  como  Astronomia,  Geologia,  Fisiologia,  além  da  Matemática  e  das  ciências  humanas  como Psicologia, Economia, especialmente para demarcar fronteiras. 

A partir daqui podemos relacionar com mais precisão a relação  Durkheim/  Saussure.  Relembramos  que  a  ciência  enquanto  produção  social  não  é  feita  isoladamente,  porquanto  o  conhecimento  é  produto  também  de  uma  época.  Sabemos  que  Saussure  esteve  na  França  e  ensinou  em  Paris  durante  11  anos.  Arriscamos  a  hipótese  de  que  aí  ele  tenha  tido  contato  com  os  trabalhos de Durkheim e com o pensamento dominante na época, já 

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que é somente depois, quando volta à Genebra, que ministra os três  cursos  de  Linguística  Geral  (1907/1908‐9/1910‐11).  É,  pois,  a  partir  desses  cursos  ministrados  que  surge  sua  grande  obra  publicada  postumamente.  Embora  tenha  sido  produzida  e  publicada  por  seus  discípulos  Charles  Bally  e  Albert  Sechehaye,  as  ideias  contidas  no  CLG são atribuídas à Saussure7.  

O  que  interessa  no  momento,  para  este  trabalho,  é  a  preocupação  explícita  no  CLG  sobre  o  objeto  e  o  método  da  Linguística  e  sua  semelhança  com  o  trabalho  de  Durkheim,  “As  regras do método sociológico”, publicado em 1895. Tanto um como o  outro  estavam  preocupados  em  colocar  as  suas  respectivas  ciências  num patamar de cientificidade válido para a comunidade acadêmica.  Os  dois  primeiramente  relatam  os  estudos  da  época  para  mostrar  que  estes  não  eram  verdadeiramente  científicos.  Enfatizamos  também a atenção dada por Saussure ao fato de que outras áreas de  conhecimento trabalham com a linguagem e poderiam desejar tê‐la  como  objeto.  Ao  afirmar  que  a  linguagem  é  um  fenômeno  heterogêneo,  Saussure  não  se  arrisca  em  considerá‐la  como  objeto  da  Linguística,  pois  correria  o  risco  de  ter  de  dividi‐la  com  várias  outras ciências que poderiam reivindicar seu estudo.   

7 Esse fato é marcante e ponto ainda hoje de discussão e muitas controvérsias, principalmente quando se

questiona a autenticidade das ideias de Saussure no Curso, se comparadas aos manuscritos do autor. Não entraremos nessa discussão, apenas indicamos o trabalho de Silveira (2007) onde é abordada essa problemática e se chega à conclusão de que marcas (“ecos esparsos”) dos autores e do próprio Saussure existem no CLG. “Nessa passagem de discordantes a esparsos algo se perdeu e algo se construiu” (Silveira 2007: 24). Além disso, Silveira, com base nas reflexões de Harris, Normand, De Mauro e Milner, argumenta que o pensamento original de Saussure tem relação com a formação que teve com a tradição da gramática comparativa do século XIX. Para compreender isso, a autora faz uso da figura topológica banda de Moebius.

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A saída de Saussure (1995: 15) para essa dificuldade foi afirmar  que  “é  o  ponto  de  vista  que  cria  o  objeto”,  ou  seja,  nesse  momento  começava‐se  a  se  instituir  um  novo  objeto  para  a  Linguística,  que  não era nem a linguagem nem a fala, porém a língua: “a língua é para  nós a linguagem menos a fala. É o conjunto dos hábitos lingüísticos  que  permitem  a  uma  pessoa  compreender  e  fazer‐se  compreender”  (Saussure 1995: 92). 

 Saussure  reconhece  a  complexidade  do  fenômeno  da  linguagem,  e  constata  que  não  pode  dar  conta  de  tudo.  Por  isso  propõe como solução que a Linguística deveria  

 

colocar‐se  primeiramente  no  terreno  da  língua  e  tomá‐la  como  norma  de  todas  as  outras  manifestações  da  linguagem.  De  fato,  entre  tantas  dualidades,  somente  a  língua  parece  suscetível  duma  definição  autônoma  e  fornece  um  ponto  de  apoio  satisfatório  para  o  espírito.  (Saussure 1995: 17)    

 

  Como foi visto, Durkheim também havia atentado para o risco 

de  considerar  tudo  como  social,  por  isso  faz  distinção,  separando  o  que é individual do que é social e elege o fato social como objeto da  Sociologia.  Saussure  age  de  modo  bastante  semelhante  ao  separar  língua e fala. Segundo ele, “com o separar a língua da fala, separa‐se  ao  mesmo  tempo:  1º  o  que  é  social  do  que  é  individual;  2º  o  que  é  essencial  do  que  é  acessório  e  mais  ou  menos  acidental”  (Saussure  1995: 22).   Entre as várias características que são atribuídas à língua  no CLG, destacam‐se: 

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- Não se confundir com a linguagem nem com a fala; 

- É  produto  social,  conjunto  de  convenções  necessárias  adotadas pelo social;  - A língua é um todo por si;  - É algo adquirido;  - Tem sua ordem própria.    É bastante interessante esse olhar sobre a língua como produto  social e não um objeto natural. Ao dizer que a língua é algo adquirido,  uma  convenção  social,  afirma‐se  que  ela  não  é  inata,  pois  produzida  pela  coletividade,  no  sentido  durkheimiano:  não  é  a  soma,  mas  um  produto  sui  generis.  Eis  onde  mais  claramente  encontramos  semelhanças  e  aproximações  de  Saussure  com  o  pensamento  sociológico  de  Durkheim.  Como  diz  Saussure:  “o  objeto  concreto  de  nosso estudo é, pois, o produto social depositado no cérebro de cada  um, isto é, a língua” (Saussure 1995: 32).   

Ao  se  posicionar  sob  tal  ponto  de  vista,  “cria”8  o  objeto  linguístico  como  algo  exterior,  não  reduzido  aos  cérebros  dos  indivíduos,  pois  “a  língua  não  está  completa  em  nenhum,  e  só  na  massa ela existe de modo completo” (Saussure 1995: 21). A semelhança  com a postura de Durkheim fica ainda mais evidente pela concepção  de  fato  social  como  coisa  exterior  aos  indivíduos,  geral  e  coercitivo.  Dizer que a língua é fato social implica afirmar que ela vem de fora e  que o sujeito (indivíduo) está impedido de modificá‐la de acordo com 

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sua  vontade.  Isso  é  uma  característica  própria  do  fato:  ser  exterior  a  qualquer consciência individual. 

Por  outro  ângulo,  há,  no  entanto,  uma  discussão  no  CLG  que  afasta a língua da concepção de fato social ao dizer que a língua não  possui  a  característica  de  ser  coercitiva.  Também  se  pode  destacar  que há um outro caminho em que o CLG se afasta da conceituação de  fato social: no momento em que Saussure faz o fechamento da língua  sobre  si  mesma,  ou  seja,  toma  o  conceito  de  signo  que  não  liga  um  nome  a  uma  coisa,  pois,  para  ele,  a  língua  não  é  nomenclatura  do  mundo.  O  signo,  arbitrariamente,  une  um  significante  e  um  significado.  Depois  o  CLG  privilegia  aos  poucos  o  funcionamento  da  língua  em  si  e  por  si  mesma,  enquanto  sistema,  afastando  seu  funcionamento  do  social  para  explicá‐lo  através  das  relações  associativas  e  sintagmáticas.  Com  isso,  abstraem‐se  as  relações  da  língua  com  a  “exterioridade”9.  Vê‐se,  pois,  que  ao  mesmo  tempo  em  que  a  língua  é  tida  como  fato  social,  ela  é  afastada  do  social,  no  intuito de manter a autonomia da Linguística. 

Portanto,  mais  uma  vez  encontramos  marcas  expressas  da  necessidade  imposta  pelo  pensar  da  época  de  tornar  a  Linguística  uma ciência autônoma por meio da delimitação do seu objeto. Vemos  isso  como  algo  similar  ao  gesto  de  Durkheim  realizado  alguns  anos  antes,  ao  enfatizar  que  caso  considerássemos  como  fato  social  todos 

9 A exterioridade aqui é entendida como as relações sociais, os fatos históricos e culturais dos povos. Ver capítulo

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os  acontecimentos  humanos,  isto  resultaria  numa  indefinição  e  imprecisão do objeto da Sociologia. 

Como,  além  do  objeto,  há  também  a  preocupação  com  o  método,  é  preciso  destacar  que,  para  Saussure,  o  linguista  deveria  privilegiar  a  explicação  sincrônica,  uma  vez  que  “a  língua  é  um  sistema que conhece somente a sua ordem própria”10 (Saussure 1995:  31).  Ele  chega  a  apontar  métodos  delicados  para  a  linguística  sincrônica e a linguística diacrônica, pois considera que elas possuem  objetos  distintos.  Nesse  sentido,  segundo  ele,  é  necessário  não  confundir os métodos: 

 

A Lingüística diacrônica estudará, ao contrário, as relações  que  unem  termos  sucessivos  não  percebidos  por  uma  mesma  consciência  coletiva  e  que  se  substituem  uns  aos  outros sem formar sistema entre si. (Saussure 1995: 116)      

A  Lingüística  sincrônica  se  ocupará  das  relações  lógicas  e  psicológicas  que  unem  os  termos  coexistentes  e  que  formam  sistemas,  tais  como  são  percebidos  pela  consciência coletiva. (Saussure 1995: 116) 

     

   Nota‐se  que  em  relação  à  abordagem  da  língua  nas  suas  relações sincrônicas, privilegia‐se o todo e não as partes, assim como  fez  Durkheim  em  relação  aos  fenômenos  sociais.  Como  afirma  Saussure: “o todo vale pelas suas partes, as partes valem também em  virtude de seu lugar no todo, e eis por que a relação sintagmática da  parte  com  o  todo  é  tão  importante  quanto  a  das  partes  entre  si”  (Saussure 1995: 148).     

10 Vale lembrar a metáfora do jogo de xadrez: o observador não precisa analisar como as peças chegaram a tal

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  Em  relação  ao  sujeito,  Saussure  o  pensa  enquanto  indivíduo,  assim  como  Durkheim.  Os  dois  afastam  de  suas  explicações  os  atos  individuais  (a  fala,  no  caso  de  Saussure).  No  entanto,  isso  não  significa  dizer  que  o  indivíduo  não  é  tido  como  importante  em  suas  respectivas teorias. Tomar isso como verdade significa que os objetos  das duas ciências não poderiam ser explicados pelos atos individuais.  Em  Durkheim  isto  é  explícito  no  estudo  sobre  o  suicídio,  e  em  Saussure,  quando  trata  da  mudança  da  língua  que  se  deve  à  fala11.  Assim como Durkheim, Saussure também destaca os atos individuais,  pois ao classificar os fatos sincrônicos e diacrônicos, afirma que: 

 

Uma  vez  de  posse  desse  duplo  princípio  de  classificação,  pode‐se  acrescentar  que  tudo  quanto  seja  diacrônico  na  língua não o é senão pela fala. É na fala que se acha o germe  de  todas  as  modificações:  cada  uma  delas  é  lançada,  a  princípio,  por  um  certo  número  de  indivíduos,  antes  de  entrar em uso. (Saussure 1995: 115) 

 

A definição de língua proposta por Saussure, antes de chegar à  ideia  de  sistema  relacional  de  valores  puros,  cuja  identidade  se  dá  pela  diferença,  entrecruza‐se  com  o  conceito  de  fato  social  da  Sociologia  durkheimiana  e  gera  ressonâncias  de  caráter  positivista.  Para  Saussure,  ainda  que  a  língua  fosse  um  fato  social,  ela  era,  sobretudo,  o  “verdadeiro  objeto  da  Linguística”  e  só  poderia  ser  explicada  em  si  e  por  si  mesma.  Seu  trabalho,  além  da  busca  da  autonomia da ciência linguística, é também uma reação à Linguística 

11 Também podemos observar isso quando Saussure compara a língua com uma sinfonia, que não é afetada por

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do século XIX, caracterizada pelo comparativismo. A fim de estudar a  língua  como  sistema  não  era  preciso  rastrear  suas  mudanças  no  tempo,  mas  sim  entender  como  ocorrem  suas  relações  naquele  momento. Neste sentido, não interessavam as circunstâncias em que  a  língua  foi  produzida,  sua  relação  com  a  civilização,  sua  história  de  mudança,  ou  mesmo  a  língua  tido  como  fato  social,  mas  o  seu  funcionamento num período de tempo. 

 

Considerações finais 

   

  O  propósito  deste  artigo  foi  o  de  trazer  uma  reflexão  sobre  a  relação  existente  entre  Durkheim  e  Saussure,  mostrando  que  há  relações  entre  a  Sociologia  e  Linguística,  uma  vez  que  existe  um  patamar de cientificidade guiando as fundações bem como as práticas  das  ciências  modernas.  Assim,  buscou‐se  destacar  que  por  mais  que  tentassem  se  apartar  do  paradigma  positivista,  Durkheim  e  Saussure  acabaram por se render às exigências do fazer ciência, que pressupõe  necessariamente a fragmentação da realidade e a criação, a partir de  um  ponto  de  vista,  de  um  objeto  e  de  um  método  próprio  para  garantir  autonomia  e  diferenças  em  relação  às  outras  ciências.  Hoje  em  dia  podemos  notar  isso  nas  constantes  investidas  e,  de  certa  forma, no controle sobre o que é próprio de cada ciência, pois perder  o  objeto,  no  campo  científico,  equivale  a  perder  sua  própria  identidade,  e  isso  tanto  Saussure  como  Durkheim  parecem  ter  expressado bem em suas reflexões.  

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  Em  Durkheim,  a  Sociologia  ganha  esse  estatuto  definindo  seu  objeto,  o  fato  social,  com  caráter  exterior  e  superior  aos  indivíduos,  não permitindo ser explicado por outras ciências, já que o fato social  como objeto aparece como propriedade da Sociologia moderna. 

Com  Saussure,  sua  reação  à  Linguística  comparativa  do  século  XIX  levou‐o  à  busca  do  “verdadeiro  e  único  objeto”.  Embora  não  tenha  escrito  o  CLG,  é  Saussure  o  marco  inaugural  da  Linguística  enquanto ciência moderna. A língua é apresentada como tendo uma  ordem  própria,  devendo  ser  explicada  em  si  mesma,  no  seu  sistema,  sem  precisar  encontrar  no  exterior  linguístico  explicações  causais  de  seus fenômenos. 

Como  pano  de  fundo,  vimos  que  a  filosofia  positiva,  ainda  reinante, atua produzindo ressonâncias em Durkheim e em Saussure,  exigindo  deles  uma  postura  e  um  método  análogos  aos  especialistas  das ciências naturais. Visa à neutralidade cientifica, afastando as pré‐ noções,  ideologias,  buscando  um  rigor  científico  que  significa,  sobretudo,  afastar  a  subjetividade  das  análises.  Separa‐se,  então,  o  social do individual, e, no caso da Linguística, separa‐se a língua dos  sujeitos  falantes.  Qual  seria,  então,  a  conclusão,  ou  mesmo,  as  implicações desse percurso histórico na atualidade?  

A fim de encaminhar nossa reflexão para o efeito de finalização,  citamos  outra  vez  Normand  (2009b:  124),  que,  ao  questionar  se  Saussure  seria  um  positivista,  afirma:  “Digamos  que  seja  um  positivismo ultrapassado, que irrita com suas exigências tanto quanto  interroga  com  suas  questões  sempre  em  aberto;  a  abundância  dos 

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debates é testemunha disso”. Vale lembrar, por fim, que Durkheim e  Saussure  forneceram  as  bases  fundamentais  para  a  gênese  do  paradigma  estruturalista,  do  qual  Lévi‐Strauss,  só  para  citar  um  exemplo,  na  Antropologia,  influenciado  pela  Linguística  e  pela  Sociologia,  é  um  grande  representante.  Portanto,  os  efeitos  de  continuidade/descontinuidade  desse  gesto,  às  vezes  tido  como 

positivismo  ultrapassado,  não  cessam  e  constantemente  são 

retomados,  para  o  bem  e/ou  para  o  mal,  nas  ciências  humanas  e  sociais.    Referências Bibliográficas    ARON, Raymond. 2000. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins  Fontes.  ARRIVÉ, Michel. 2010. Em busca de Ferdinand de Saussure. São Paulo: Parábola.  BENVENISTE, Émile. 2005. Saussure após meio século. In: ______. Problemas de  linguística geral. 5. ed. Campinas: Pontes, v. 1, p. 34‐49.  BOUQUET, Simon. 1997. Introdução à leitura de Saussure. São Paulo: Cultrix.  COHN, Gabriel. 1977. Sociologia: para ler os clássicos. Rio de Janeiro: LTC, Livros  técnicos e científicos.  

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