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A memória, a história e a tradição em Oswaldo Lamartine e Paulo Bezerra

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO CERES

CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA - BACHARELADO

ALEX DE ASSIS BATISTA

A MEMÓRIA, A HISTÓRIA E A TRADIÇÃO EM OSWALDO LAMARTINE E PAULO BEZERRA

CAICÓ/RN 2017

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ALEX DE ASSIS BATISTA

A MEMÓRIA, A HISTÓRIA E A TRADIÇÃO EM OSWALDO LAMARTINE E PAULO BEZERRA

Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte das exigências para a obtenção do título de Graduado em História.

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Profª. Maria Lúcia da Costa Bezerra - - CERES--Caicó

Batista, Alex de Assis.

A memória, a história e a tradição em Oswaldo Lamartine e Paulo Bezerra / Alex de Assis Batista. - Caicó: UFRN, 2017.

53f.: il.

Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ensino Superior do Seridó - Campus Caicó. Departamento de História. Curso de História. PPG/PROPESQ.

Orientador: Dr. Evandro dos Santos.

1. Memória. 2. História. 3. Tradição. 4. Sertão. I. Santos, Evandro dos. II. Título.

RN/UF/BS-CAICÓ CDU 94(813.2)

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BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Prof. Dr. Evandro dos Santos

UFRN-CERES

________________________________________ Prof. Dr. Helder Alexandre Medeiros de Macedo

UFRN-CERES

________________________________________ Prof. Dr. Fernando Cauduro Pureza

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AGRADECIMENTOS

Após este árduo percurso, não tenho como isentar meus agradecimentos àqueles que contribuíram de forma direta e indireta para o desenrolar deste trabalho, sejam com apoio ou com auxílio de conhecimento.

Primeiramente agradeço a Deus, pois conhecendo minhas limitações, sustentou-me neste tempo. Depois, agradeço aos meus familiares e amigos pelo apoio incondicional nos momentos de dúvidas que sobrevoaram minha mente durante o decorrer da pesquisa. Coloco também em meio aos agradecimentos a orientação do Prof. Dr. Evandro dos Santos, pois por meio do seu conhecimento, iluminou a caminhada deste estudo. Por fim, porém não menos importante, estendo meus agradecimentos a PPG/PROPESQ pela concessão da bolsa ligada ao projeto História dos Sertões e ao Edital nº 01/2016 – PPG/PROPESQ.

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RESUMO

O presente estudo dedica-se a análise de trabalhos que remetem ao Sertão do Seridó, escritas por dois memorialistas: Oswaldo Lamartine (1919-2007) e Paulo Bezerra (1933-2017). Entre os trabalhos de Lamartine, utilizamos em analise: A caça nos sertões do Seridó (2014); A. B. C. da pescaria de açudes no Seridó (1961); Ferro de ribeiras do Rio Grande do Norte (1984); Os açudes dos sertões do Seridó (1978); Sertões do Seridó (1980); Em alpendres d‟Acauã (2001); Algumas abelhas dos sertões do Seridó (2004). No que diz respeito a Bezerra, analisamos coletâneas de cartas publicadas em formato de livro entre os anos 2000 e 2013. Destacam-se estas obras por apresentarem informações referentes ao cotidiano e aspectos políticos, sociais e econômicos dos sertanejos. Trabalham com memórias das mais variadas, sendo muitas delas “emprestadas”, ou seja, de outros indivíduos. No âmbito desta análise, procura-se enfatizar o conhecimento que define certa ideia acerca do Sertão Potiguar destacando, de início, elementos de sua narrativa que dizem respeito ao descrever o passado sertanejo que fundamenta tal identidade no Rio Grande do Norte. Seguindo, neste primeiro momento, destacaremos o que Lamartine e Bezerra entendem por memória e trataremos também das transformações desta. Para compreender tal conceito iremos dialogar com a obra de Paul Ricoeur, qual seja, A memória, a história, o esquecimento (2007). No segundo momento, procuraremos identificar como a História é trabalhada nos escritos dos memorialistas. E, no último suspiro, colocaremos em embate os historiadores e os memorialistas e suas concepções sobre tradição. Para um melhor entendimento deste conceito, utilizaremos o conhecimento de Eric Hobsbawn tendo como livro base A Invenção das Tradições (2012). Por fim, avançaremos na leitura das relações entre as narrativas de memória e a forma narrativa escolhida pelo memorialista.

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ABSTRACT

The present study is devoted to the analysis of works that refer to Sertão do Seridó, written by two memorialists: Oswaldo Lamartine (1919-2007) and Paulo Bezerra (1933-2017). Among the works of Lamartine, we use in analysis: Hunting in the backlands of Seridó (2014); A. B. C. of the dams fishery in Seridó (1961); Rio Grande do Norte rivers (1984); The reservoirs of Seridó (1978); Sertões do Seridó (1980); In alpendres d'Acauã (2001); Some bees from the sertões do Seridó (2004). With regard to Bezerra, we analyzed collections of letters published in book format between the years 2000 and 2013. These works stand out because they present information referring to the daily life and political, social and economic aspects of the sertanejos. They work with memories of the most varied, many of them being "borrowed", that is, from other individuals. In the context of this analysis, we try to emphasize the knowledge that defines a certain idea about the Sertão Potiguar highlighting, at the beginning, elements of its narrative that relate to describing the sertanejo past that bases such identity in Rio Grande do Norte. Following, in this first moment, we will emphasize what Lamartine and Bezerra understand by memory and we will also deal with the transformations of this one. To understand this concept, we will dialogue with Paul Ricoeur's work, namely, Memory, History, and Oblivion (2007). In the second moment, we will try to identify how history is worked out in the writings of the memorialists. And, in the last breath, we will confront historians and memorialists and their conceptions of tradition. For a better understanding of this concept, we will use the knowledge of Eric Hobsbawn having as base book The Invention of Traditions (2012). Finally, we will advance in the reading of the relations between the narratives of memory and the narrative form chosen by the memorialist.

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SUMÁRIO

Introdução...07

Capítulo I...12

1. Estudo sobre a memória em Lamartine e Bezerra...12

1.1. As transformações da memória...12

1.2. A memória em Oswaldo Lamartine...16

1.3. Memória em Paulo Bezerra...20

Capítulo II...26

2. Usos da história na obra dos memorialistas seridoenses...26

2.1. Características do Memorialismo...26

2.2. O uso da História em Lamartine...31

2.3. O uso da História em Bezerra...35

Capítulo III...38

3. A invenção das tradições e os dilemas do esquecimento em finais do século XX...38

3.1. A tradição na Modernidade...38 3.2. Tradição e Memória...42 3.3. Tradição e História...44 Considerações Finais...48 Fontes...50 Referências...51

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INTRODUÇÃO

O estudo em torno da memória, pós Escola dos Annales, foi intensificado, muito motivado pela formulação no conceito de fonte histórica, onde esta foi alargada dando atenção à literatura, à iconografia, mais a frente às audiovisuais, à oralidade, na qual a memória se encaixa. Para entender o viés do presente estudo, o conceito de memória será primordial em conjunto com outros conceitos.

No tocante ao uso da oralidade, os historiadores começaram a se apossar da memória como objeto de estudo/análise da História, tendo como o principal campo a trabalhá-la a História Oral. Esta abordagem surge na década de 1940 quando é criado o gravador de fita, facilitando o armazenamento das informações coletadas em entrevistas1. Nessa área, muitos estudiosos têm-se preocupado em perceber as formas da memória e como esta age sobre nossa compreensão do passado e do presente. Porém, em seu início, grande parte das críticas que o método sofreu dizia respeito justamente às dificuldades da autenticidade da memória, ao fato de não se poder confiar no relato do entrevistado, pois encontrava-se carregado de subjetividade. A memória é resultado de um trabalho de organização e de seleção daquilo que é importante para uma unidade. E porque a memória é mutante, é possível falar de uma história das memórias de pessoas ou grupos. Partindo dessa reflexão, cremos também que não devemos ver a memória como mero depósito mas sim como um lugar onde a criatividade age naquilo que aconteceu e se fixou em lembranças. Em cima disto, a memória deve ser compreendida como espaço vivo, político e simbólico no qual se lida de maneira dinâmica e criativa com as lembranças e com os esquecimentos que restabelecem a personalidade/identidade de um indivíduo a cada instante.

A prática da oralidade remonta à Antiguidade, foi nesse período que teve início o registro dos relatos orais, tanto familiares quanto coletivos. Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva diz que “A memória está nos próprios alicerces da História, confundindo-se com o documento, com o monumento e com a oralidade” (SILVA; SILVA, 2006, p. 275). A memória é um meio pelo qual podemos ter acesso à história, porém ela não é isenta de análise crítica. A partir do momento que encontramos nela um potencial como fonte, a mesma deve passar pelo rigor crítico. Porém, no início da disciplina histórica, o uso da memória como base de estudos em História foi escasso, Marieta de Moraes Ferreira, em seu artigo intitulado

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História Oral: Um inventário das diferenças2, diz que “A consolidação da disciplina da história e a profissionalização do historiador no século XIX impuseram o domínio absoluto dos documentos escritos como fonte, em detrimento da tradição oral, expulsando a memória em favor do fato.” (FERREIRA, 1998, p. 01). O século XIX é marcado pelas concepções positivistas em torno da fonte histórica, nesse período, os documentos oficiais (emitidos pelo Estado) eram os únicos detentores da “verdade”, deixando de lado os relatos testemunhais tendo em vista que a memória é algo maleável, devido a isto, os historiadores diminuíam a sua importância como fonte de informação.

A busca pela verdade, principalmente por parte dos positivistas, no século XIX marcou o domínio do documento escrito no campo da História que vinha a se formar nesse período. No século XX, surge uma nova forma de se fazer História, onde busca a se dar ênfase também aos fenômenos pertencentes a um tempo de longa duração, ou seja, os comportamentos/ações coletivos passaram a terem mais importância sobre o desenvolvimento da história do que as ações individuais. Porém, essa nova forma de se fazer História, não alterou, pelo menos dentro das duas primeiras gerações dos Annales, as relações com as fontes. Notamos isto neste fragmento de Marieta Morais de Ferreira do capítulo denominado de História Oral: um inventário das diferenças que encontra-se no livro Entre-vistas: abordagens e usos da história oral:

Ao valorizar o estudo das estruturas, dos processos de longa duração, a nova história atribuiu às fontes seriais e às técnicas de quantificação uma importância fundamental. Em contrapartida, ao desvalorizar a análise do papel do indivíduo, das conjunturas, dos aspectos culturais e políticos, também desqualificou o uso dos relatos pessoais, das histórias de vida, das biografias. (FERREIRA, 1998, p. 03)

Este contexto se alterou a poucas décadas. Só no fim dos anos 1970 que os historiadores da Nova História começaram a trabalhar com a memória. Como dito antes, foi a História Oral que mais se utilizou (e se utiliza) da memória. Na década de 1950, essa prática começa a se intensificar, em especial nas Ciências Sociais e, com a Nova História, ocupam definitivamente o campo dessa disciplina, embora enfrente sempre resistências por parte de historiadores mais ortodoxos e relutantes quanto à utilização da memória. Verena Alberti, no livro Fontes Históricas, descreve que

No final da década de 1950, o Instituto Nacional de Antropologia do México começou a registrar as recordações dos chefes da Revolução Mexicana

2 Artigo publicado no livro Entre-Vistas: abordagens e usos da história oral em 1998, coordenado pela própria Marieta Moraes Ferreira

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(1910-11), trabalho que foi intensificado por Alicia Olivera e Eugenia Meyer, nas décadas de 1960 e 1970. (ALBERTI, 2008, p. 157)

Nos anos de 1960 e 1970, a pesquisa histórica recupera definitivamente a importância dos relatos dos narradores. Com os constantes conflitos sociais e étnicos nos Estados Unidos (hippies, movimento pelos direitos civis dos afrodescendentes, movimento feminista...), desenvolveu-se uma história oral militante com claras intenções políticas, dentre as quais, criar uma consciência de grupo marginalizado e/ou excluído. Essas mudanças na interpretação acerca da importância da memória como suporte à pesquisa juntaram-se ao estabelecimento de novas fontes e novas metodologias históricas.

Diante disso, dentre as variadas interpretações ou opiniões que podemos ter da memória, não importando a natureza que ela se encontra, torna-se relevante o que elas têm a fornecer, a riqueza de recuperar a história de um povo considerando a sua base material e social.

A memória, por está envolvida com as experiências mais íntimas de um indivíduo, possui uma ligação direta com o passado, mesclado com os sentimentos carregados nas vivências do homem. E por tratar diretamente com o passado, a memória passa por reconstruções ao longo do tempo. Seguindo essa linha, o filósofo francês Paul Ricoeur, em sua obra A memória, a história, o esquecimento, diz que:

A própria historiografia, digamo-lo desde já, não conseguirá remover a convicção, sempre criticada e sempre reafirmada, de que o referente último da memória continua sendo o passado, independentemente do que possa significar a preteridade do passado. (RICOEUR, 2007, p. 26)

Para Paul Ricoeur, a memória é a principal ferramenta que podemos dispor e utilizar para se chegar ao íntimo de um indivíduo tendo em vista que por meio dela podemos ter acesso às lembranças.

Para melhor complementar o uso do conceito de memória, analisamos também concepções em torno da ideia de tradição. A tradição como tema de estudos tem também ganhado espaço na História. Eric Hobsbawm, por exemplo, estudando o mundo contemporâneo, utiliza o conceito de “tradições inventadas” para denominar o conjunto de práticas, de natureza ritual ou simbólica, regulado por regras aceitas por todos, que tem como objetivo desenvolver na mente e na cultura determinados valores e normas de comportamento, por meio de uma relação com o passado feita pela repetição constante dessas práticas. Por meio disso, notamos que a tradição está intimamente ligada com o passado, contudo, ela visa

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à perpetuação de um determinado costume ou prática, devido a isso, a tradição também está ligada ao futuro. Sobre isto a socióloga Caroline Krauss Luvizotto em seu trabalho As tradições gaúchas e sua racionalização na modernidade tardia trata que:

A tradição também se reporta ao futuro, ou melhor, indica como organizar o mundo para o tempo futuro, que não é visto como algo distante e separado; ele está diretamente ligado a uma linha contínua que envolve o passado e o presente. Essa linha é a tradição. (KRAUSS, 2010, p. 65)

Por meio disso, notamos uma ligação entre a tradição e o tempo, sendo a primeira um elo que mantém uma ligação entre o passado, presente e o futuro.

Trazendo para a nossa perspectiva de estudo, temos como recorte espacial o Sertão nordestino. Quando nos deparamos com a cultura sertaneja no Brasil, a primeira palavra que vem em nossa cabeça é a heterogeneidade. O Sertão se estende em várias regiões, muitas vezes se diferenciando culturalmente entre si, apesar da mesma nominação. Em grande parte, possui características físicas semelhantes, mas o indivíduo termina por dar singularidade a esses lugares. Entendendo o Sertão em sua pluralidade encontramos nos memorialistas uma fonte rica de detalhes em torno do cultural e social da região.

Os memorialistas a serem estudados são Oswaldo Lamartine de Faria (1919-2007) e Paulo Bezerra (1933-2017). Ambos trabalham com o Sertão partindo de uma saudade e nostalgia que alimentam o desejo de levar ao papel a cultura sertaneja que, sob seus olhares, está ficando exclusivamente no passado. Com exceção de alguns lugares de memórias que resistiram ao tempo, porém encontram-se em fraca condição de durabilidade. Os memorialistas, veem em suas produções um meio de tornar viva aquelas práticas e costumes de suas épocas, apesar de no mundo moderno novas práticas terem surgidos.

Vendo as suas produções como repositórios de memórias, encontramos nelas discursos que favorecem uma busca/resgate pelas tradições, e esse processo de procura se dar por meio das memórias, estas são as principais fontes utilizadas pelos memorialistas em seus trabalhos.

Dentro dessa pesquisa, dois estudiosos são responsáveis pelo corpo teórico dessse estudo. O primeiro é o filósofo Paul Ricoeur (1913-2005), um dos principais expoentes em torno do estudo sobre memória. Na sua obra A memória, a história, o esquecimento (2007) o autor faz uma grande análise fenomenológica sobre memória relacionando-a com a história. Não foi o único especialista em memória ser consultado, porém, as suas ideias, em primazia, foram responsáveis por um entendimento mais completo em cima das fontes.

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O outro estudioso que contribui para os debates inferidos nessa pesquisa em torno do conceito de tradição é o historiador britânico Eric Hobsbawn (1917-2012) e sua obra A invenção das tradições (2012). Neste trabalho o autor discute sobre a construção e o desenvolvimento das tradições dentro do contexto do Estado-nação. Hobsbawn traz a participação das elites na construção das tradições e sua disseminação nas nações.

As fontes acessadas para esta pesquisa foram as produções do memorialista Oswaldo Lamartine, agrônomo por formação e uma das principais referências para quem quer estudar o Sertão Potiguar nos mais diversos aspectos. As obras analisadas foram: A caça nos sertões do Seridó (1961); A. B. C. da pescaria de açudes no Seridó (1961); De Cascudo para Oswaldo (2005); E adonde era sombra se fez sol. E adonde era solo se fez chão... (1987); Encoramento e arreios do vaqueiro no Seridó (1969); Ferro de ribeiras do Rio Grande do Norte (1984); Os açudes dos sertões do Seridó (1978); Sertões do Seridó (1980); Algumas abelhas dos sertões do Seridó (2004).

No que diz respeito às fontes para pesquisa, destacamos aqui as cartas escritas por Paulo Bezerra que depois tornaram-se livros. Nelas são destacadas, em tom de saudades, práticas e costumes que dizem respeito ao Sertão potiguar e a infância de Paulo Bezerra. Essas cartas foram escritas em um recorte temporal que vai de 1985 a 2012 e encontram-se compiladas em quatro livros denominados: Cartas dos Sertões do Seridó (2000), Outras Cartas dos Sertões do Seridó (2004), Novas Cartas dos Sertões do Seridó (2009) e Cartas dos Sertões do Seridó 4º Livro (2013).

No aspecto estrutural desta pesquisa, ela é dividida em três capítulos, onde é feito uma ligação de debates entre eles. No primeiro capítulo, denominado Estudo sobre a memória em Lamartine e Bezerra, discutimos e analisamos as concepções e usos da memória por parte dos escritores buscando identificar no discursos de ambos a relação da memória com o espaço e o tempo relatado nas produções de cada um. E também, fazemos uma transição da Antiguidade aos dias de hoje, mostrando as transformações em torno dos usos da memória.

No segundo capítulo, Usos da história na obra dos memorialistas seridoenses, continuamos a analisar as produções dos memorialistas, porém enfatizamos aqui o que cada um entende por história, ao retratar os eventos que marcaram o passado de cada um, olhamos para o método que cada um descreve em suas obras e as fontes utilizadas para sustentar os acontecimentos descritos em suas produções.

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No último capítulo, denominado de A invenção das tradições e os dilemas do esquecimento em finais do século XX, destacamos aqui o conceito de tradição e enfatizamos as formas que os memorialistas enxergam este conceito e confrontamos esta visão com as dos historiadores em torno também da tradição, procurando destacar as divergências que derivam desta comparação.

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CAPÍTULO I

ESTUDO SOBRE A MEMÓRIA EM LAMARTINE E BEZERRA

Neste capítulo, adentraremos nos escritos dos memorialistas Oswaldo Lamartine de Faria e Paulo Bezerra e analisaremos a narrativa e os usos da memória por parte de cada um. A busca de rememorar algo nos leva sempre a entender a importância daquilo que se quer rememorar. Os memorialistas, especialistas nesse quesito, buscam retratar e, se possível, tornar vivo aquilo que passou. Paul Ricoeur nos mostra aquilo que nos motiva a buscar o passado:

De início e maciçamente, é como dano a confiabilidade da memória que o esquecimento é sentido. Dano, fraqueza, lacuna. Sob esse aspecto, a própria memória se define, pelo menos numa primeira instância, como luta contra o esquecimento (RICOEUR, 2010, p. 424).

É isto que se busca enfrentar, o esquecimento, temendo que as lembranças se dissolvam no passado, os memorialistas cumprem o papel de resgatá-los, de salvaguardá-los do perigo do esquecimento. Veremos a seguir esta questão.

1.1 As transformações da memória

A Memória, no sentido primeiro da expressão, é a presença do passado. Trata-se de uma construção psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, que não está restrita apenas ao indivíduo, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional. Jacques Le Goff, em seu livro História e Memória (1994), no mostra que foram os gregos antigos quem fizeram da Memória uma deusa, nomeando-a de Mnemosine. Esta lembrava aos homens a recordação dos heróis e dos seus grandes feitos, e nela reside a poesia lírica.

Se olharmos no Dicionário de Conceitos Históricos (2006), Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva3, pegando emprestado de Jacques Le Goff, dizem que a memória é uma

[...] propriedade de conservar certas informações, propriedade que se refere a um conjunto de funções psíquicas que permite ao indivíduo atualizar impressões ou informações passadas, ou reinterpretadas como passadas. (SILVA; SILVA, 2006, p. 275)

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A memória é essencial a um grupo porque está ligada à construção de sua identidade. Ela é resultado de um trabalho de organização e de seleção do que é importante para o sentimento de unidade, de continuidade e de coerência. E pelo fato da memória ser mutante, é possível falar de uma história das memórias de pessoas ou grupos.

No que diz respeito ao uso(s) da(s) memória(s), os trabalhos em torno dela podem ser identificados nas produções clássicas greco-romana, pois desde a Antiguidade, e durante a Idade Média, diversos cronistas, historiadores e escritores de História em geral tinham a preocupação de situar sua obra entre outras produções do gênero e compará-la com a produção de seu tempo. Desde Platão e Aristóteles, falamos da memória não só em termos de presença/ausência, mas também em termos de lembrança, de rememoração, aquilo que eles chamavam de anamnesis. Paul Ricoeur, recuando à Antiguidade, nos lembra que “Aristóteles [...] naturalizou, de certo modo, a anamnesis, comparando-a àquilo que, na experiência cotidiana, chamamos de recordação.” (RICOEUR, 2007, p. 46) Por meio disto, entendemos que a recordação ocorre de forma reconstrutiva, iniciando-se no presente e caminhando para uma nova forma de ver, revalorização ou renovação de algo lembrado. Assim, a memória como deve ser compreendida como um mecanismo que está em constante atividade/ativo e não como um repositório protetor.

Ao ligar a crença/tradição a algo, a memória torna-se a medida da própria realidade. Ela usa a legitimidade do observador para assegurar que a realidade vivenciada é tal como lembrada. Em determinadas condições, o testemunho tem se convertido na própria noção de verdade, de realidade do acontecido, tornando o real um discurso em primeira pessoa. De modo a clarear, Ricoeur diz que “A memória é do passado. É o contraste com o futuro da conjetura e da espera e com o presente da sensação (ou percepção) que impõe esta caracterização primordial.” (RICOEUR, 2007,P. 35). A lembrança é então produzida ao mesmo tempo na alma e no corpo, o que significa reafirmar que ela afeta, ao mesmo tempo, ambas.

Saindo da Antiguidade e entrando na Idade Média, notamos uma relação íntima entre a Memória e a religião, o cristianismo, especificamente. Nesse período ocorre a cristianização da memória e das técnicas relacionadas a ela, repartição da memória coletiva entre uma memória litúrgica girando em torno de si mesma e uma memória laica de fraca penetração cronológica, desenvolvimento da memória dos mortos, principalmente a hagiografia, papel da memória no ensino que articula o oral e o escrito, aparecimento enfim de tratados de

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memória, tais são os traços mais característicos das metamorfoses da memória na Idade Média. Jacques Le Goff, de modo a exemplificar, nos diz que

Nesta época, saber de cor é saber. Os mestres, retomando os conselhos de Quintiliano [Inst. orat., XI, 2] e de Marziano Capella [De nuptiis, capa V], desejam que os seus alunos se exercitem em fixar tudo o que lêem. (LE GOFF, 1990, p. 451).

Se a memória antiga foi fortemente penetrada pela religião, o judaico-cristianismo acrescenta algo de diverso à relação entre memória e religião, entre o homem e Deus. Entendendo o cristianismo como uma religião de recordação, notamos que os atos divinos de salvação situados no passado formam o conteúdo da fé e o objeto do culto, mas também porque o livro sagrado, por um lado, a tradição histórica, por outro, insistem, em alguns aspectos essenciais, na necessidade da lembrança como tarefa religiosa fundamental.

Entrando agora na modernidade, a principal característica que vai influenciar na modificação da memória, comparada com o período anterior, será a utilização da imprensa.4 Até então, o acesso a memória se dava por meio da mnemotécnica (Antiguidade) e dos escritos religiosos (Idade Média). Na Modernidade, com a evolução da imprensa, ocorre um crescimento abusivo de textos, com isso, não só o leitor é colocado em presença de uma memória coletiva enorme, cuja matéria não é mais capaz de fixar integralmente, mas é freqüentemente colocado em situação de explorar textos novos. Ocorre-se então à exteriorização progressiva da memória individual. Exemplificando tal reflexão, Le Goff nos traz que

O século XVIII cria, em 1726, o termo mémorialiste e, em 1777, memorandum derivado do latim através do inglês. Memória jornalística e diplomática: é a entrada em cena da opinião pública, nacional e internacional, que constrói também a sua própria memória. Na primeira metade do século XIX, presencia-se um conjunto massivo de criações verbais: amnésie, introduzido em 1803 pela ciência médica, mnémonique (1800), mnémotechnie (1836) e mémorisation, criados em 1847 pelos pedagogos suíços, conjunto de termos que testemunha os progressos do ensino e da pedagogia; finalmente, aidemémoire que, em 1853, mostra que a vida cotidiana foi penetrada pela necessidade de memória. (LE GOFF, 1990, p. 461)

Entre as manifestações importantes ou significativas da memória coletiva, encontra-se o aparecimento, no século XIX e no início do século XX, de dois fenômenos. O primeiro, em seguida a Primeira Guerra Mundial, é a construção de monumentos aos mortos. A

4

A imprensa foi descoberta no século IX na China, contudo se ignoraram os caracteres móveis, a tipografia; até à introdução, no século XIX, dos processos mecânicos ocidentais. Antes disso, a China limitou-se à xilografia, impressão de pranchas gravadas em relevo. Ver História e Memória de Jacques Le Goff.

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comemoração funerária encontra aí um novo desenvolvimento. Em numerosos países é erigido um Túmulo ao Soldado Desconhecido, Paul Ricoeur, em meio a essa reflexão, relata que

A noção de objeto perdido encontra uma aplicação direta nas „perdas‟ que afetam igualmente o poder, o território, as populações que constituem a substâncias de um Estado. As condutas de luto, por se desenvolverem a partir da expressão da aflição até a completa reconciliação com o objeto perdido, são logo ilustradas pelas grandes celebrações funerárias em torno dais quais um povo se reúne.” (RICOEUR, 2007: 92)

Diante dessa reflexão de Ricoeur, entendemos que ocorre uma dilatação dos limites da memória, pois passa a está associada ao anonimato, proclamando sobre um cadáver sem nome a coesão da nação em tomo da memória comum. Retornando as manifestações dita antes, o segundo a se destacar é a fotografia, que revoluciona a memória: multiplica-a e democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma verdade visuais nunca antes atingidas, permitindo assim guardar a memória do tempo e da evolução cronológica. No decorrer do século XX, os desenvolvimentos da memória, sobretudo depois de 1950, constituem uma verdadeira revolução da memória e a memória eletrônica não é senão um elemento, sem dúvida o mais espetacular. Após a Segunda Guerra Mundial, surgem as grandes máquinas de calcular, computadores enfim. Distinguem-se as memórias "fatoriais" que registram os dados a tratar e as memórias "gerais" que conservam temporariamente os resultados intermediários e certas constantes. Encontra-se, em qualquer espécie de computador, a distinção dos psicólogos entre "memória a curto prazo" e "memória a longo prazo". Em definitivo, a memória é uma das três operações fundamentais realizadas por um computador que pode ser decomposta em "escrita", "memória", "leitura". Esta memória pode em certos casos ser "ilimitada". 5

Quando nos realocamos para o campo histórico, podemos afirmar que a história busca produzir um conhecimento racional, uma análise crítica dos acontecimentos e vidas do passado. A forma de maior interesse para o historiador é a memória coletiva, composta pelas lembranças vividas pelo indivíduo ou que lhe foram repassadas, mas que não lhe pertencem somente, e são entendidas como propriedade de uma comunidade, um grupo. A memória coletiva fundamenta a própria identidade do grupo ou comunidade, mas normalmente tende a se apegar a um acontecimento considerado fundador, simplificando todo o restante do passado. A memória coletiva reelabora constantemente os fatos.

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Ver LE GOFF, Jacques, História e Memória; tradução Bernardo Leitão. Campinas, SP Editora da UNICAMP, 1990, p. 468.

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A memória é também uma reconstrução do passado, mas pautada em emoções e vivências; ela é flexível, e os eventos são lembrados à luz da experiência subsequente e das necessidades do presente. Contudo, notamos que a memória e a identidade estão indissociavelmente ligadas, pois sem recordar o passado não é possível saber quem somos. E nossa identidade surge quando evocamos uma série de lembranças. Isso serve tanto para o indivíduo quanto para os grupos sociais.

1.2 A memória em Oswaldo Lamartine

A seleção dos elementos que compõem uma representação do passado não é uma atividade exclusiva do historiador, mas se dá também em outros âmbitos, como é o caso da memória individual e da memória social ou coletiva. Essa prática de coleta e reordenação das reminiscências é comum entre os memorialistas já que são responsáveis por narrar um evento ou acontecimento tendo como base comprobatória dos fatos as memórias. A experiência memorialista parte de uma imaginação embasada em experiências vividas. Compreendemos que a memória é um elemento de ligação entre a realidade material e imaterial6. Paul Ricoeur em sua obra A memória, a história, o esquecimento (2007), tomando emprestado de Sócrates, diz que:

A memória, sugere Sócrates, no seu encontro com as sensações e com as reflexões (pathemata) que esse encontro provoca, parece-me então, se é que posso dizê-lo, escrever (graphein) discursos em nossas almas e, quando uma reflexão (pathema) inscreve coisas verdadeiras, o resultado em nós são uma opinião verdadeira e discursos verdadeiros. (RICOEUR, 2007, p. 33)

Por meio disso, podemos inferir que a memória toca não só em lembranças que remetem a atitudes ou vivências práticas, mas também em experiências que remetem a sentimentos, sejam eles bons ou ruins, sejam eles motivados por eventos de perdas, de derrotas, de decepções ou de alegrias. A memória atinge o íntimo e a essência do homem. Portanto, o conceito de memória está relacionado ao conjunto de ideias que envolve as lembranças, o corpo, a razão, as imagens, o espaço social e o momento histórico. A articulação desses elementos, acompanhada de uma atividade mental (intelectual), constrói o que conhecemos por identidade social de um povo, família ou lugar. Procurar uma relação da memória com o passado é entender que não existe presente sem influências do passado. Por outro lado, falar de memória é tratar de experiências, de aspectos concretos do passado, é falar da vivência de ruptura e das construções sociais dos agentes da memória viva.

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No tocante ao memorialismo, este trata-se de trabalhar com experiência vivida e revivida no território da temporalidade, onde se apresenta principalmente como discurso de retrospecção, sempre lançando seu olho ao passado, aos acontecimentos sejam eles políticos, econômicos ou culturais. Dentro dessas reflexões, encontramos os trabalhos de Oswaldo Lamartine de Faria.

Oswaldo Lamartine de Faria (1919-2006), natalense, foi considerado um dos maiores estudiosos do sertão. Vendo as suas produções, notamos que elas têm como espaço primordial de estudo o Sertão Nordestino, apesar de Lamartine ter vivido em muitos lugares. Muito das suas produções são oriundas de lembranças pessoais, pois Lamartine foi morar no sertão ainda muito novo, com isso as memórias de sua infância são refletidas em seus escritos. Ainda que à primeira vista os títulos dos trabalhos evidenciem a formação como técnico agrícola, com estudos realizados na Escola Superior de Agricultura de Lavras, em Minas Gerais, trata-se de uma coleção de escritos com conteúdos variados tanto no que diz respeito à forma e ao estilo quanto nas referências que sustentam e constroem as narrativas. Se atendo em primazia a vida sertaneja, na compreensão mais lata dessa expressão, Lamartine distribui em suas obras uma ponte entre conhecimento técnico acerca da natureza do Seridó, advinda de sua formação, com os registros da tradição e da cultura oral, do cordel, da história e, sobretudo, da memória.

Notamos suas lembranças em uma obra denominada Em alpendres d’Acauã (2001) que é uma entrevista organizada pela escritora Natércia Campos de Saboya, nesta entrevista, Lamartine deixa bem claro como as memórias são as principais responsáveis pelo seu apreço ao sertão, logo uma constituição de um laço afetivo mesclado com a importância de tornar viva aquilo que antes era abundante, mas que com o passar do tempo, foi perdendo espaço por meio das mudanças ocorridas na vida do homem, ao ser perguntado, porque o Seridó é atuante em seus escritos, Lamartine diz:

O Seridó é a terra dos meus pais. Lá, irmão, pais, avós e antepassados deixaram seus imbigos nos moirões das porteiras. E fui criado ouvindo páginas daquela terra e daquela gente. Meu pai, do exílio (Paris, 1931) escrevia pedindo notícias do inverno e ate da Melada – a sua burra-de-sela. (CAMPOS, 2001, p.10)

Percebemos que a memória coletiva confunde-se com a memória individual, Lamartine, embebecido pelas experiências dos familiares também foi influenciado a sentir aquele sertão. Vemos que ao narrar, estamos sempre próximo ou dentro da história, pois o sujeito que discursa não conta a história de si mesmo sem narrar a história dos seus coetâneos.

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A função primordial da narrativa, portanto, é tentar uniformizar o tempo e torná-lo inteligível, é inscrever a experiência do vivido na história. Os personagens da história de qualquer narrativa encontram-se sempre em um espaço, o que comprova que tempo e espaço estão imbricados de maneira imanente na recordação. As memórias estão, de fato, inscritas em lugares determinados.

Sobre o espaço trabalhado por Lamartine, o Seridó se destaca pela sua heterogeneidade em termos de simbologias, valores e práticas culturais. Trata-se de uma região que dispõe de algumas expressões singulares e bastante peculiares. Além do mais, trata-se de uma área geográfica onde sua população preserva até onde pode, os seus costumes e valores, práticas, saberes e crenças. São costumes relacionados ao trabalho, ao convívio social, portanto, às relações sociais, à religiosidade e à fé que, por sua vez, se constituem e se traduzem por meio de práticas, hábitos e símbolos, muitos deles dogmatizados e sacralizados que se reproduzem e se mantêm de geração em geração por meio da cultura.Os discursos de cada memorialista, através de seus escritos, embora motivados por interesses pessoais, não conseguem deixar de explicitar a diversidade de visões sobre o Sertão, caracterizando-o como uma região ou até mesmo como um espaço de diferenciação em termos cultural e identitário.

Seguindo a análise das obras de Lamartine, notamos que nelas constam também não só aspectos de um memorialista que buscar manter viva uma memória, mas notamos também características que remetem ao profissional Lamartine já que é formado em agronomia pela Escola Superior de Agricultura de Lavras-MG. Em seu livro A caça nos Sertões do Seridó (1961), o autor dedica partes do primeiro e segundo capítulo a descrever os aspectos da natureza da região, destaca a flora onde se modifica de acordo com o tempo natural que se encontra, seja seca ou inverno. Lamartine descreve que

Logo nas primeiras chuvas a vegetação despida se veste de uma linda folhagem – a rama, ficando o chão atapetado de ervas rasteiras – a babugem. [...] Passado o inverno a folhagem caduca amadurece e cai deixando apenas galhos tortuosos e nús apontando para os céus – o cinzento dominando a paisagem de um quadro geográfico e dantesco, em que a verdadeira moldura são os limites ecológicos. (LAMARTINE, 1961, p. 21)

Por meio da descrição de Lamartine sobre o sertão, notamos também que esta região possui características próprias, para que possa ser analisada é necessário compreender seus estágios naturais, tendo em vista que ela se modifica conforme o seu tempo natural. As características da região mudam, as práticas cotidianas do sertanejo também se alteram, pois a

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existência do sertão, enquanto espaço, está intimamente ligada a sua natureza. As relações da população com o espaço é motivado pelos valores construídos na cotidianidade e nas novas demandas econômicas, sociais e espaciais. Para tentar recuperar o passado, precisamos ver o espaço, a cultura material, que nos cerca e onde a memória se conserva.

Retornando às memórias de Lamartine, uma característica interessante a se destacar nas experiências do memorialista é a sua pouca vivência no sertão, tendo em vista que ele passou apenas a infância, e por ter ficado pouco tempo na região, buscou nas memórias de outros indivíduos uma espécie de “acervo de experiências” para que suas publicações em torno do Seridó fosse o mais autêntico possível. No livro, Em alpendres d’Alcauã, ao ser questionados sobre suas lembranças, Lamartine respondeu que suas memórias se tratavam

[...] mais dos momentos vividos desse meu espichado viver e também do muito que eu escutei do proseado em redes de alpendre no tempo em que as pessoas conversavam. Isto, está bem visto, antes do rádio e da TV, quando a gente se apoiava no desfiar dos acontecidos relatados pelos mestras da palavra. (CAMPOS, 2001, p.65)

Notamos que Lamartine constrói o seu Sertão mediante memórias pessoais, como já sabemos, mas também emprestadas, que partem de seus familiares e de pessoas próximas. Vemos também que o Sertão é algo construído, tendo em vista que Lamartine deixa claro que o que ele viveu passou, não existe mais, ou pelo menos, encontra-se em vias de desaparecer, muito motivado pelas mudanças culturais advindas da modernidade que levam a (re)construção de um “novo” Sertão, que sob o olhar de Lamartine, este novo, de nada tem de similar com aquele que encontra-se em suas memórias.

Em cima daquilo que colhemos das fontes - neste caso específico, as obras de Lamartine – inferimos que Oswaldo Lamartine, não se atém apenas em rememorar o Sertão do passado, mas também buscar se aprofundar na história da região, trazendo para os leitores informações que remetem desde o povoamento até as práticas de sua época. Em meio ao mar de informações de suas obras, notamos uma relação, quase que constante, do Sertão com a natureza, isto se evidencia pela sua formação em técnico agrícola, ou seja, sua narrativa bebe de seu conhecimento acadêmico.

Ademais, tudo que é praticado e vivido que diz respeito ao Sertão entra no radar de Lamartine, o seu receio de perda do passado surge de um temor vinda da modernidade. Assim, é da constante contraposição entre o conhecimento formal e saberes da memória que

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Lamartine constrói imagens para a região do Seridó que, constantemente, articula passado e presente.

1.2. Memória em Paulo Bezerra

Neste momento, adentraremos nas cartas de Paulo Bezerra, conhecido memorialista do Seridó, porém, pouco estudado no campo da História. No percurso heurístico da pesquisa, foram encontrados poucos trabalhos tendo como objeto central de estudo as obras do memorialista citado antes, destacamos aqui: Danycelle Pereira da Silva, com a dissertação de mestrado intitulada Os fios da memória: presença afro-brasileira em Acari no tempo do algodão, que data de 2014. Encontramos também um artigo de Alcineia Rodrigues dos Santos, denominado de Os últimos instantes e a vivência da “boa morte” no Seridó/RN, apresentado no ano de 2009 no XXV Simpósio Nacional de História – ANPUH. Por fim, localizamos a dissertação de mestrado de Márcia Rejane Brilhante Campêlo, intitulada Análise Textual-interativa das Cartas dos Sertões do Seridó: em busca de efeitos estético-estilísticos, defendida no ano de 2015 na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Por ser pouco estudado, vemos a necessidade de apresentá-lo ao público. Conhecido também como Paulo Balá, nasceu na cidade de Acari em 1933, foi criado na Fazenda Pinturas, onde morou a partir dos dois anos de idade até sair para realizar seus estudos. Formou-se na Faculdade de Medicina de Pernambuco. Durante a juventude sua família era muito próxima à família Lamartine, tradicional na região do Seridó, que é composta por dois memorialistas conhecidos do sertão, Juvenal Lamartine e Oswaldo Lamartine, analisado anteriormente. Esta proximidade evidencia sua relação e interesse em rememorar o sertão7.

As suas cartas começaram a serem escritas em 1985, mas só nos anos 2000 que se tornaram livros. Foram publicadas com essas titulações: Cartas dos Sertões do Seridó (2000), Outras Cartas dos Sertões do Seridó (2004), Novas Cartas dos Sertões do Seridó (2009) e Cartas dos Sertões do Seridó 4º Livro (2013). Nestas cartas, os temas mais recorrentes são os hábitos, a religiosidade local, os costumes praticados, encontramos também histórias interessantes de alguns indivíduos, enfim, descreve o dia a dia do sertanejo. As cartas se transformaram num registro tão importante que viraram obras literárias. Eleito por

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SANTOS, Evandro dos. Estilo e Temporalidades na Escrita de Oswaldo Lamartine de Faria: Em Busca do tempo perdido do Seridó Potiguar, 2017. Texto não publicado e cedido pelo autor.

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unanimidade, Bezerra ocupou, até recentemente, a cadeira número 12 da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras. Ao atentarmos para o autor, notamos sua importância no que diz respeito a uma descrição da cultura sertanista, ao descrever os eventos e práticas que, sob o seu olhar, tomam um corpo de nostalgia mesclado com o objetivo de levar ao seu amigo, o jornalista Woden Madruga (e, posteriormente, aos demais leitores) uma espécie de necessidade de tornar viva, pelo menos em textos, aquelas memórias. Dentro dessa reflexão, destacamos que as cartas de Bezerra descrevem reminiscências que apresentam dois passados: um vivido, que parte de suas memórias pessoais, um outro pautado por lembranças “emprestadas”, que são recuperadas de outros indivíduos. Dentro dessa reflexão, percebemos a relação com as palavras a seguir de Ricoeur:

Da memória compartilhada passa-se gradativamente à memória coletiva e as suas comemorações ligadas a lugares consagrados pela tradição: foi por ocasião dessas experiências vividas que fora introduzida a noção de lugar de memória, anterior às expressões e as fixações que fizeram a fortuna ulterior dessa expressão. (RICOEUR, 2004, p. 157)

A memória tem a capacidade de possuir vários suportes, sejam eles iconográficos, escritos, materiais, imateriais, por meio disso, o acesso as essas reminiscências encontra-se facilitado, porém, não encontra-se eximido de críticas e análises. Por meio da memória, seja ela individual ou coletiva, podemos coletar informações referentes não só aos eventos, mas, também, sobre o(s) espaço(s) social e cultural que ali são destacados nas entrelinhas, mesmo se esses espaços encontrarem-se fragmentados na memória.

As cartas surgem de um interesse do memorialista em retratar curiosidades da cultura sertaneja, motivado por isto, começa a escrevê-las e enviá-las para o seu amigo e colunista da Tribuna do Norte o jornalista Woden Madruga. Notamos isso neste fragmento:

A primeira carta, eu enviei a Woden Madruga por conta de Jagunço e outro mais a falar de peso de gado, ambas por ele publicadas. Depois, um silêncio de anos. Lá um dia imaginei: as coisas que me contaram, as que vi e as que vivi, bem que poderiam ser passadas para o papel a fim de não se perderem no tempo. E então me botei a relembrá-las, indagando e anotando. Fiz delas cartas, mandando-as ao Amigo que as publicou. (BEZERRA, 2000, P. 09)

Como descrito, a primeira carta (denominada no livro de “Do peso de um touro”) refere-se a um boi chamado Jagunço e a segunda carta (chamada de “Da cobra de veado que lançou Tiburtino”) trata-se da luta de Tiburtino – figura real e personagem seridoense – com uma cobra. Ambas as cartas foram escritas em 1985. Ao notar a relevância e as informações relatadas nas cartas sobre o Sertão Potiguar, Madruga começa a publicá-las na Tribuna do

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Norte. Quando nos deparamos com as próximas cartas, notamos também um lapso de tempo entre as duas primeiras cartas e as demais, pois a terceira carta vem a ser escrita dez anos depois, percebendo que o interesse em publicá-las não foi instantâneo.

Quando examinamos as cartas de Paulo Bezerra, nos deparamos com uma escrita que faz referência constante à identidade entendida como particular à região sertaneja. A prova da valorização dessas narrativas, por parte de seu autor, é justamente suas edições em livros. Esses escritos são ricos no que diz respeito à descrição de aspectos do cotidiano do Sertão. A cidade de Acari é, sem dúvida, o referente mais citado. Local de nascimento de Bezerra, isso reforça a identidade que este busca estabelecer entre suas experiências pessoais e uma noção mais ampla no que tange à ideia de sertão compartilhada coletivamente. Apesar de trabalhar como memórias, Paulo Bezerra, buscou outras fontes para enriquecer seus escritos:

Paulo Bezerra [...] Foi mais adiante, foi buscar comprovações em vasta e dispersa documentação, soprando a poeira dos papéis dos cartórios e das sacristias, nos periódicos que o tempo amarelou, nos arquivos particulares de tantas famílias onde bateu com sua curiosidade, a sua perquirição. (PREFÁCIO, 2000, p. 15)

Considerando a perspectiva de uma leitura inicial e mais geral da tetralogia composta pelas obras de Bezerra, destacamos uma narrativa composta por elementos fortemente locais. Paulo Bezerra utiliza termos e expressões comuns da região como: “estropiado”, “quicé”, “correr os duros”, “cabra”. A oralidade é um modo de expressão intimamente ligada à memória, conforme a análise em torno do memorialista, nos aproximamos não apenas das palavras e os seres, mas também das pessoas, falantes e os ouvintes. As suas cartas, de início, tem o intuito de relatar ao seu amigo jornalista os aspectos da região sertaneja, por isso utiliza-se de um linguajar mais informal, devido a estar dialogando com alguém mais íntimo.

Esse primeiro livro enfatiza temas referentes aos períodos de chuvas. Dedica-se também a expressar os artistas locais. Ao tratar da cultura sertaneja, o autor invoca alguns personagens como: Pe. Costa, Oswaldo Lamartine, Antônio Silvino entre outros. Nem só de história são feitas as cartas. Paulo Bezerra dedica uma delas a explicar como se deu a construção do açude Gargalheira e do açude Água Doce, como também da história de sua cidade, Acari-RN. Questões econômicas também fazem parte de seu conteúdo, Paulo Balá retrata também a elevação e queda do algodão mocó. Uma das justificativas é que com a chegada das usinas, e o ataque do bicudo (uma praga agrícola), o valor de mercado do algodão caiu.

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As festas e comidas locais (coalhada com rapadura, carne de sol, “imbuzada”) estão presentes também nas cartas. As cartas desse primeiro livro da quadrilogia datam de 1985 a 1999, porém, os eventos que são retratados nos escritos, são anteriores, ou seja, Paulo Balá trabalha restritamente com o passado. Notamos um excesso de informações referentes a eventos pretéritos, Paulo Balá se atém, de forma quase plena, ao passado, tendo poucas referências ao presente. Por meio disto, podemos afirmar que Balá, em seu tempo, já consumia uma nostalgia perante o Sertão, isto se dar pois o memorialista dedicou várias cartas a descreverem as práticas do sertão, que nos dias de hoje encontram-se escassas, e ao descrever é notável a preocupação com a preservação desses hábitos.

Entrando agora no conteúdo do segundo livro (Outras Cartas dos Sertões do Seridó (2004)), vemos que muitos assuntos remetem-se a flagelos sertanejos como a seca e a fome. Paulo Bezerra destaca figuras importantes como os ciganos no sertão. Além dos muitos assuntos, as vestimentas ganham atenção, são relatados os seus cuidados e usos, principalmente pelas mulheres em tempo de festa da padroeira. A fauna também ganha espaço nas cartas, os animais mais comuns da região são descritos: Acauã, aranha caranguejeira, cavalo do cão e o tejo. Ênfase no esporte, esse livro contém uma carta referente ao surgimento do primeiro campo de futebol de Acari.

O sertão potiguar nos séculos XIX e XX era marcado pelo marasmo, pela tranquilidade, notando isto, Paulo Balá (apelido a qual também era cinhecido) nos mostra como era a sociabilidade na região, onde ele destaca que devido às longas distâncias no Sertão, as notícias corriam de forma oral. Mas tempos depois foi surgindo indivíduos responsáveis por levar cartas, sendo os mensageiros locais. Ademais, nesse livro as cartas datam de 2000 a 2003.

As Novas Cartas dos Sertões do Seridó (2009) é o terceiro livro desta coletânea. Neste, no prefácio, se destaca o uso das cartas como um gênero literário, sendo feita uma descrição histórica do seu uso e ao mesmo tempo descreve uma breve bibliografia que tem como fonte principal as cartas. Seguindo a mesma linha de escrita, encontram-se as Cartas de Eloy de Souza e de Hélio Galvão como indispensáveis para se conhecer o sertão, em seus aspectos linguísticos e culturais. Adentrando ao conteúdo do livro, Paulo Bezerra retoma algumas temáticas dos livros anteriores, como futebol, festa da padroeira e flagelos. E também dedica uma carta aos presidentes do seu tempo, são eles: Washington Luís, Getúlio Vargas, Café Filho e Luís Inácio “Lula” da Silva. Nesse ponto, Bezerra constrói uma cronologia muito

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baseada em sua própria biografia. Sendo assim, percebemos o quanto a memória está vinculada a impressões pessoais e é fortemente pautada pelo presente de quem escreve, mesmo quando a temporalidade analisada é preferencialmente o passado.

Seguindo a linha do primeiro livro, Paulo Bezerra descreve alguns açudes das regiões, destaca também como surgiram os transportes em Acari, sua cidade natal. Além de expor o costume local, um ponto de destaque dessa obra é que o memorialista discorre sobre alguns métodos que os sertanejos utilizam para conviver com a seca, um deles é o xiquexique. Além do mais, as cartas datam de 2003 a 2009.

Por último, as Cartas dos Sertões do Seridó 4º Livro (2013), retoma algumas temáticas dos outros livros. Porém, nesse, o autor pensa o Sertão, em termos conceituais partindo de suas vivências. Paulo Bezerra comprova que o sertão é um mundo interior; é o que fica suspenso na eternidade de todos os momentos para quem nele viveu e se recorda de tudo. Dentro desta reflexão, o autor vê o Sertão como um lugar de contraste e ao mesmo tempo ligado à flora. Para entender o Seridó, é necessário vivê-lo em dois tempos: inverno e seca. Essa reflexão nos recorda do posicionamento da Prof. Dra. Olívia Morais de Medeiros Neta sobre a narrativa em torno do sertão, ela diz

Entendemos a construção do sertão como um espaço de sentimentos múltiplos que é composto por marcas, por formas ambíguas, mas que por força de sua formação dentro dos interesses políticos, econômicos e culturais, é lido de forma universalizante, sendo congelado em formas discursivas que denotam como elementos de composição deste espaço, enunciados como o gado, a seca e o algodão. (MEDEIROS NETA, 2007, p. 05)

O conceito de sertão é um recorte espacial, mas também histórico que se apresenta como alternativa às delimitações mais gerais como nação e região, comuns no discurso da modernidade. Os sertões impõem limites tanto aos conceitos citados como, inclusive, aos modos de vida e produção que se desenvolvem no discurso sobre a modernidade.

A medicina popular ganha espaço nesse livro, destaca-se o uso de remédio caseiro para a cura de ferimento, ele o denomina de Ciência do Povo. Uma informação interessante que se encontra nesse livro é sobre o progresso da região, para o memorialista isto está ligado a chegada do jumento no sertão no século XIX. Concluindo, destaca-se o ano em que a

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freguesia – que deu origem a Acari - foi criada (1835) e a Igreja (1863). Nesse momento, as cartas datam de 2010 a 2012.

As reflexões que recolhemos quadrilogia é que as cartas, em sua maioria, retratam eventos que Paulo Bezerra não presenciou. Muitas delas recuam ao século XIX, demonstrando o largo recorte temporal. Descreve o Sertão, não só em suas características gerais, mas Paulo Balá procura também dar destaque a personagens simples, sem nenhuma relevância social para determinada historiografia mais tradicional (focada nas elites políticas, por exemplo). Além da cultura, retrata também a economia, dando destaque ao algodão mocó. Enfatiza também os meios utilizados pelos sertanejos para conviver com a seca. E por fim, traz histórias de cunho pessoal e de outras famílias.

Possui uma narrativa rica em termos locais, em nenhum momento se preocupa com a possível dificuldade que os leitores possam ter com suas cartas. Utiliza-se de expressões bem locais. Diante de sua narrativa composta de termos específicos da região, isto pode ter sido motivado por essas cartas Já não se tratarem mais de correspondências particulares, por isso a suposição de leitura fosse de leitores da região ou minimamente informados sobre os termos e costumes do Seridó. Além de se preocupar com a memória, Paulo Balá procura dar destaque à origem da sua cidade.

Quando analisamos as memórias, nos ocorre, mais uma vez, uma afirmação de Paul Ricoeur sobre as reminiscências, onde ele diz: “E, no entanto, nada temos de melhor que a memória para garantir que algo ocorreu antes de formarmos sua lembrança.” (RICOEUR, 2004, P. 26). Por meio disto, fica claro que as lembranças para a constituição da História é imprescindível, porém não são isentas de análise e crítica.

Ademais, no tocante às memórias que encontramos nas cartas, o que se observa é a transmissão cuidadosa de lembranças que permeiam as redes familiares e os ciclos de amizades, mas, também, uma constante relação com o indivíduo em sua essência, pois as memórias sustentam a personalidade do sertanejo nas cartas. Há uma permanente interação entre o vivido e o aprendido, o vivido e o transmitido. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis.

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CAPÍTULO II

USOS DA HISTÓRIA NA OBRA DOS MEMORIALISTAS SERIDOENSES

Ao analisar as fontes já destacadas no decorrer deste estudo, buscamos agora destacar características que remetam aos memorialistas elevando as suas autoridades como escritores do passado. Contudo, trata-se de um passado específico pensado para o Seridó, com base nas tradições e documentos.. Em meio a isto, buscamos também ver e enfatizar o uso da História nos escritos dos memorialistas, apesar deles não terem formação nas ciências humanas.

Encontramos nas obras ricas informações sobre o Sertão e o seu passado, desde o período colonial até o século XX, a partir disto, entendemos que a História caminha em conjunto com essa cultura memorialística buscando sempre dar autenticidade a um passado que encontra-se em perda.

2.1 Características do Memorialismo

Com o surgimento da escrita, a civilização desenvolveu-se enormemente, pois único reservatório de experiências era a memória. Esta era encarada como a verdadeira guardiã de hábitos, costumes, tradições, enfim, do complexo cultural de uma determinada comunidade ou sociedade. Cada época traz em seu tempo uma concepção própria de memória, que por sua vez está interligada aos diversos níveis de temporalidade, sejam eles: passado, presente e futuro. Nessa linha de reflexão, tempo e memória são elementos uníssonos, que se articulam conjuntamente, possibilitando um processo permanente de construção de um determinado objeto. A memória individual, tem como intuito, elevar o íntimo do indivíduo, a sua particularidade/singularidade, que é a experiência que pertence unicamente àquele ser humano, o que poderá possibilitar a revivescência de lembranças que, de certa forma, se perderam no tempo.

Conforme sabemos, e é visto na historiografia, principalmente no decorrer do século XX para o XXI, a história tem sido alvo de inúmeros questionamentos e, como tal, a perspectiva do historiador diante do tempo e da memória não poderia ficar de lado. Como afirma Le Goff,

A cultura (ou mentalidade) histórica não depende apenas das relações memória-história, presente-passado. A história é a ciência do tempo. Está estritamente ligada às diferentes concepções de tempo que existem numa sociedade e são um elemento essencialmente da aparelhagem mental dos seus historiadores. (LE GOFF, 1990, p. 52)

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Partindo desta reflexão de Le Goff, devemos entender que a memória e a história estão intimamente ligadas à concepção de tempo, pois suas concepções se modificam ao longo da história, sendo o tempo responsável pelo enredamento no tocante a memória. As relações entre memória e história, assim como entre passado e presente, são profundamente complexas, dependentes de inúmeros elementos. Jacques Le Goff, sobre este assunto, nos diz que

Hoje, a aplicação à história dos dados da filosofia, da ciência, da experiência individual e coletiva tende a introduzir, junto destes quadros mensuráveis do tempo histórico, a noção de duração, de tempo vivido, de tempos múltiplos e relativos, de tempos subjetivos ou simbólicos. O tempo histórico encontra, num nível muito sofisticado, o velho tempo da memória, que atravessa a história e alimenta. (LE GOFF, 1990, p. 13)

Partindo dessa reflexão de Le Goff, podemos inferir que o historiador assume uma nova responsabilidade, a de entender as mudanças na concepção de tempo e de memória dentro uma determinada civilização.

Contudo, partindo de novos pensadores, assim como da materialidade dos próprios fatos, não podemos ignorar que a leitura do passado depende em grande parte do trabalho feito no presente. Seguindo essa linha, a história e a literatura essencialmente memorialista podem se articular conjuntamente, sobretudo resgatando ritmos temporais individuais singulares, que talvez tenham sido deixados de lado com o tempo.

Quando buscamos a fundo o uso do termo memória em escritos diversos, encontramos a partir do século XVII a sua utilização diretamente ligada, primeiramente, a textos de historiadores ou de pessoas que não eram profissionais de literatura, por exemplo: memórias de parlamentares, de militares, de nobres, de religiosos.8

No século seguinte, surge o romance memorialístico, obras de ficção, que tomam conta do mercado literário, principalmente os da França e da Inglaterra. Seguindo, nos séculos XIX e XX, o termo “memória", apesar de, em muitos casos, ainda comparecer para designar um certo tipo de obra de cunho histórico e autobiográfico, vai aos poucos sendo substituído pelo de "autobiografia".9

8 Ver Memórias Literárias na Modernidade de Maria Lucia Aragão (ARAGÃO, 1992, p. 42) 9 Ibidem (ARAGÃO, 1992, p. 43)

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É significativo notar que nos últimos anos tem havido um retorno à memória ou uma onda memorialista identificada por vários teóricos e exemplificada por vários fenômenos. Enzo Traverso, em seu O passado, modos de usar, história, memória e política, destaca que

A memória transforma-se em obsessão comemorativa e a valorização, por vezes mesmo a sacralização, dos lugares de memória engendra uma verdadeira topolatria. Esta memória superabundante e saturada sinaliza o espaço. Tudo doravante contribui para fazer memória. (TRAVERSO, 2012, p. 10)

De modo a confirmar essa reflexão de Traverso, destacamos aqui o surgimento de várias obras em torno desse assunto, e por meio disto, isso nos leva a empreender que esse retorno à memória é um indicativo do desejo do homem em retornar ao passado, e isto é um fator sintomático da sociedade ocidental.10

Em âmbito europeu, quando a Revolução Francesa derruba a ordem milenar adotada pelo Antigo Regime, substituindo-a por uma organização fundamentada na razão e no direito, pondo em perigo o equilíbrio europeu, o Romantismo aparece como uma reação de compensação. Esta revolução passa a representar a consolidação da ideologia das Luzes, a partir de então a França é elevada a posição de uma nação onde a razão é triunfante, sob a invocação do universalismo abstrato dos direitos dos homens e dos cidadãos. Antes da Revolução Francesa, vivia-se uma sociedade extraordinariamente desigual, onde as classes mais abastadas possuíam privilégios e isenções notáveis ao custo da exploração de parte esmagadora da população, neste cenário, o Iluminismo rapidamente ganharia adeptos entre a ascendente classe burguesa. A difusão paulatina dos ideais iluministas de valorização da razão e da liberdade acabou por divulgar os novos ideais filosóficos liberais centrados no indivíduo. Entretanto, essa experiência grandiosa, sob os olhos atentos de toda a Europa, muda rapidamente de curso: as ideias levantadas pelos iluministas de liberdade e de igualdade entra em contraste com a violência.11

Em meio a isto, era preciso uma arte que fomentasse o espírito burguês. Os românticos não viam mais a natureza como objeto de imitação, mas sim como objeto de inspiração. Dar vazão ao sentimento era fundamental. Os burgueses defendiam que a partir do esforço individual era possível se obter sucesso; o mesmo pensamento ocorria com o romântico que

10 Dentre as obras sobre memória que surgem no século XX, citamos aqui: “A memória Coletiva” (1950) de Maurice Halbwachs; “A Síndrome de Vichy” (1987) de Henry Rousso; “História e Memória” (1988) de Jacques Le Goff;” A memória, a história, o esquecimento” (2000) de Paul Ricoeur.

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defendia a subjetividade e a individualidade como algo a ser defendido nas artes. Apenas os temas que expressassem o sentimento individual eram valorizados. 12

A visão de mundo difundida pelo romantismo corresponde à renovação dos tempos. A consciência romântica, confrontada pelas bruscas alterações provocadas pelos acontecimentos, deve centrar-se em si mesma para reagir às inseguranças do ambiente, estabelecendo, assim, uma nova relação com seu tempo.

Partindo desse complexo movimento que ocorreu na Europa, a consciência de si passa a ser o centro da perspectiva romântica, em torno do qual gravitam as representações e os valores relevantes sobre o fundo comum da época. Assim, o homem não mais seria fruto das pressões dogmáticas e não se curvaria mais às exigências lógicas do intelectualismo da época das Luzes. As pressões históricas e o determinismo dos acontecimentos enrodilham o ser humano que, tomado pela torrente que o carrega para um futuro incerto, percebe-se imerso no espírito do seu tempo.

A busca de “eu”, do indivíduo, neste instante, refletia uma compreensão mais ampla, mais abrangente do tempo em que se vivia. Os românticos, apesar de sua atitude crítica com relação a seus antecedentes históricos e da necessidade de lançar mão de novas maneiras de expressão, preocupavam-se em pensar o significado de sua cultura, pois se viam como herdeiros e descendentes de épocas anteriores. Apropriavam-se do passado, revivendo-o.13

Trazendo para a perspectiva nacional, a narrativa de cunho memorialista tem forte tradição no Brasil, pelo menos desde fins do século XIX, muito influenciado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, com o Romantismo começam a surgir os primeiros textos que se pautam pelo registro de eventos e de recordações relacionados à vida pessoal dos escritores e à sua inserção cultural e identitária na história de nosso país. Nesse período destacaram-se: José Alencar (1829-1877), Joaquim Nabuco (1849-1910), Machado de Assis (1839-1908), enfim. No decorrer do século XIX, a literatura, em conjunto com a historiografia, estiveram empenhadas na definição de uma identidade para o Brasil. O movimento geral caiu na dubiedade de se decidir entre a afirmação da especificidade brasileira e o desejo de produzir uma civilização de tipo europeu. Esta via de mão dupla estava na tentativa de preencher uma lacuna que era a de definir uma tradição brasileira – que

12 (SILVA; SILVA, 2006, p. 374-375)

13 Ver MENDES, Maria Lúcia Dias. No limiar da história e da memória. Um estudo de Mes mémoires, de Alexandre Dumas / Maria Lúcia Dias Mendes; orientadora Glória Carneiro do Amaral. -- São Paulo, 2007. 320 f

Referências

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