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Latusa digital N 10 ano 1 outubro de 2004

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Latusa digital – N° 10 – ano 1 – outubro de 2004

A lei do silêncio e a escuta do psicanalista

Maria Inês Lamy*

Para quem trabalha em ambulatórios da rede pública, atendendo moradores das chamadas comunidades carentes, é quase cotidiano o recebimento de pacientes que perderam pessoas próximas, vítimas da violência que rege o mundo do tráfico de drogas. Geralmente, nestes casos, a lei do silêncio, imposta pelos traficantes, faz com que todos se calem, com medo de virem a sofrer nova violência. Como fica aí o psicanalista que, oferecendo sua escuta, convoca o sujeito a falar? O que o psicanalista deve privilegiar na escuta desses sujeitos para que a fala deles não seja apenas um desabafo, ou o regozijo de contar, repetidas vezes, a violência sofrida e os detalhes de uma cena de horror? O título deste trabalho é, pois, uma variação em torno do tema das XV Jornadas Clínicas da EBP-Rio: diante da política do medo, o que pode o dizer do psicanalista?

Maria, por exemplo, procurou ajuda para seu filho, Paulo, de nove anos, que apresenta problemas, segundo ela, desde os três anos, quando seu pai foi assassinado. Paulo é medicado pela Neurologia e, considerado incapaz de aprender, havia sido encaminhado pela escola para o Programa de Educação Especial.

À primeira vista, de fato, Paulo parece um débil mas, já no primeiro contacto comigo, revela o que sabe e o esforço que faz para entender os enigmas a seu redor: escreve seu nome e desenha um menino com braço quebrado, cortado porque “fez raiva pra mãe, pro pai, pros amigos, pra avó e pro avô”; o menino

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ficou chorando, a polícia o prendeu e deu um tapa em sua boca. Em outra estória, o menino derruba a casa, porque “é um ladrão e um bandido”. Durante a entrevista ainda diz, enquanto desenha: “acho que a senhora tem marido”. Enuncia assim, não só um pouco de seu enredo familiar, mas também questões fundamentais das crianças, relativas ao lugar que ocupam no desejo da mãe, à função do pai e à possibilidade de se identificar com ele. A castração aparece ainda como privação, castigo por algo de mau que o menino teria feito.

O que então Paulo não pode mostrar que sabe? A quem ou a que serve sua aparência de débil, sua posição de deficiente? Qual a deficiência de Paulo?

Assunto tabu, tudo que se refere ao pai de Paulo é omitido da conversa entre mãe e filho. Nem mesmo as fotografias ela guardou. Agora, convocada a falar, me conta que, após a morte do marido, seguindo orientação da vizinhança, e por medo de também ser morta, voltou para sua terra natal, retornando a seguir. Algum tempo depois, fez de novo este movimento, de ir embora e voltar. Admite que algo, que não sabe o que é, a atrai ao Rio de Janeiro. Cabe notar que toda vez em que se refere ao marido, Maria diminui consideravelmente o tom de voz, que se torna quase inaudível, e explica que teme que a ouçam.

Como Paulo se posiciona? Passa grande parte das sessões desenhando, de forma detalhada e precisa, vários ônibus, de diversas linhas: os que circulam no Rio de Janeiro, os que vão para outras cidades ou estados. Alguns, não por acaso, passam, em seu trajeto, em frente ao cemitério. Sabe o número das linhas que param perto de sua casa, e quais delas o levam ao Centro de Saúde ou à escola.

Os ônibus, suas linhas e seus números, além de mapearem o trajeto de ida e volta à casa da mãe e de talvez repetirem o movimento materno de saída do Rio de Janeiro e retorno, remetem ainda à profissão do pai. Isto é o que

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deduzo do que sei da história de Paulo. Ele mesmo pouco associa. Somente quando pergunto se gosta de se afastar e voltar para casa reage dizendo, entre surpreso e talvez irônico: “Como você descobriu?”

Mantém-se, assim, apegado à posição de deficiente. Parece nunca ouvir ou entender minhas perguntas, fala às vezes com tom de voz infantil e tem gestos de criança pequena. Apesar de inserido numa escola regular, e de ter tido sua capacidade de aprendizagem comprovada, é sempre considerado problemático, e insiste em não saber, além de se colocar como vítima das chacotas, empurrões e tapas dos colegas.

Após algum tempo – de atendimento de Paulo e escuta da mãe – Maria traz nova versão para o assassinato. Diz que o marido, apesar de trabalhador, era usuário de drogas e teria sido morto, então, não por acaso ou engano, mas por um suposto amigo. O ponto importante, no entanto, nesta nova versão, não foram tanto as circunstâncias do assassinato, mas o que Maria enunciou de sua posição em relação à morte do marido. Sob efeito de drogas, ele a espancava e a vida dela havia se tornado um inferno. Conclui, com muita dificuldade, que a morte do marido foi, na verdade, um grande alívio para ela. Interessante notar que Maria abaixa especialmente o tom da voz durante este trecho de seu relato, mostrando, desse modo, que não era apenas a lei do tráfico que regia seu silêncio. A partir deste momento, passa a tematizar suas questões de mãe e mulher – acaba criando os filhos sozinha, já que os homens, de uma forma ou de outra, a abandonam. Reconhece que, apesar de não querer conversar com o filho sobre o pai, algo a traz sempre de volta ao Rio de Janeiro, cidade onde morou com o marido e onde ele está enterrado.

À medida que a morte do marido vai deixando de ser assunto tabu para Maria, o apelo que Paulo dirige ao pai aparece, também, às vezes, de forma radical, como uma provocação à mãe: diz para ela, por exemplo, que quer morrer ou que vai se matar para encontrar seu pai.

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Um novo acontecimento, no entanto, provoca efeitos importantes tanto na mãe quanto no filho. Em uma unidade de Educação Especial, instituição que atende crianças consideradas deficientes, na qual Maria insistia em manter Paulo, este sofre um abuso sexual por parte de um dos instrutores. Conta à mãe o que houve e ela, levando a sério a palavra do filho, resolve investigar o assunto. Comprovado o assédio, Maria decide que Paulo não mais freqüentará a instituição. Ela me diz que as coordenadoras da instituição a estão pressionando, com ameaças, para que se mantenha calada e não conte para ninguém o ocorrido. Ensaia chorar e se mostrar apavorada, ao que eu reajo, dizendo: “Mas de novo, Maria?” Ela imediatamente muda o tom de voz, percebendo a repetição que estava tentando provocar.

Fica claro também que Paulo de alguma forma se entregou ao abuso, já que, nessa instituição, que atende crianças com os mais diversos tipos de distúrbios, ele certamente era um dos meninos maiores, mais fortes e lúcidos. O que quis com isso? Viver, de forma radical, o lugar de vítima, de objeto de gozo do Outro? Ou terá feito, dessa forma, um apelo dramático ao pai, um pedido para que intervenha? Ou ainda, ao se entregar, assumiu o gozo que experimenta na posição de objeto?

De qualquer maneira, o que se percebe é que, a partir de então, Paulo não tem mais se colocado como deficiente e, ao modo da mensagem invertida, chegou a receber uma carta, que teve valor de interpretação, em que um colega lhe diz que ele é inteligente e não precisa se fazer de bobo. A mãe, começando a abrir mão do lugar do filho como vítima e deficiente, passou a cobrar dele posicionamento, especialmente na escola, onde Paulo apanhava, sem reagir, de meninos bem menores.

Mais recentemente, Paulo vem construindo uma espécie de mito edípico no qual localiza, através de figuras que lhe provocam medo, tanto a devoração materna, quanto o gozo do pai e sua própria castração. Antes de tudo, desenhou a cobra boitatá, enorme, capaz de devorar pessoas. “A Tatá te

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engole” – me disse. A seguir fez o lobisomem, homem que à noite sofre uma transformação, tornando-se assustador. E, por fim, um personagem descrito por ele como “gente normal”, o curupira, ou seja, o menino que, por definição, tem os pés tortos, virados para trás. O ponto de falha aparece aí não mais como resultado de uma punição, mas já esboçando sua face de castração simbólica, marcada desde sempre.

Neste caso, vimos como a injunção da lei do silêncio serviu para que Maria calasse não só o fato, mas também sua culpa por ter desejado a morte do marido, além de tudo que isto implicava de sua posição de mãe e de mulher. O silêncio, no entanto, não foi absoluto e o ruído que restou a trazia sempre de volta ao mesmo lugar. O fato de não permitir que se tocasse no assunto dificultava ao filho a possibilidade de interpretar o ocorrido e construir seu lugar no mito edípico, restando-lhe a posição de débil, incapaz de saber, ou o caminho das repetições sintomáticas.

Em suma, a lei do silêncio, imposta pelo tráfico, uma forma de exercício do poder através do medo, quer transmitir a crença em um Outro absoluto e consistente, para, com isso, calar o sujeito. Este, no entanto, geralmente retorna, de algum modo ou de algum lugar – através de sintomas, repetições ou mesmo nos filhos. É aí que a escuta do analista encontra sua função. Na contramão da lei do tráfico, o silêncio do analista, baseado no furo impreenchível do Outro, convoca o sujeito, convidando à fala e à construção do saber inconsciente.

Referências

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