RECLAMAÇÃO 23.849 SÃO PAULO
RELATOR : MIN. CELSO DE MELLO
RECLTE.(S) :MONIQUE MACEDO GOUVEIA
ADV.(A/S) :MAURÍCIO GARCIA PALLARES ZOCKUN
RECLDO.(A/S) :PRÓ-REITOR DE GRADUAÇÃO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ADV.(A/S) :SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS
EMENTA: Reclamação. Julgamento da
ADI 3.324/DF. Decisão impregnada de eficácia vinculante. Garantia de matrícula
de agentes públicos (civis ou militares) – e respectivos dependentes – transferidos por
motivo de interesse público ou em razão de conveniência da Administração Pública.
Acórdão plenário do Supremo Tribunal Federal que assegura matrícula do aluno,
qualquer que seja o sistema de ensino, desde
que respeitada a congeneridade das instituições de ensino: de instituição
particular para instituição particular ou, então, de instituição pública para instituição pública, sendo indiferente, neste último caso,
que se trate de instituição federal, estadual,
distrital ou municipal. Legitimidade, no caso,
de matrícula na USP (de natureza pública
estadual) de aluna oriunda de instituição
universitária federal (UNIRIO), pelo fato de manter união estável com integrante das Forças Armadas transferido “ex officio” do Rio de Janeiro para São Paulo, em razão de interesse da Administração Pública.
Supremo Tribunal Federal
RCL 23849 / SP
USP que transgrediu a autoridade do julgamento que o Supremo Tribunal Federal proferiu, com efeito vinculante, na ADI 3.324/DF. Invalidade do ato reclamado. Reconhecimento, em favor da parte
reclamante, de seu direito de ser matriculada
na USP. Reclamação julgada procedente.
DECISÃO: Trata-se de reclamação, com pedido de medida liminar, na qual se sustenta que o ato ora questionado – emanado do Senhor Pró- -Reitor de Graduação da Universidade de São Paulo – teria transgredido a autoridade do julgamento que esta Suprema Corte proferiu, com efeito
vinculante, no exame da ADI 3.324/DF, Rel. Min. MARCO AURÉLIO.
Aduz a parte ora reclamante, para justificar o alegado desrespeito à autoridade decisória do julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal, os seguintes fundamentos:
“3. Em 4/1/2016, o companheiro da Reclamante foi
redistribuído ‘ex-officio’, do Rio de Janeiro para São Paulo, de
acordo com a Ordem de Movimentação nº 02.42814.8/15/CC. E, por força desta redistribuição, o companheiro da Reclamante foi incorporado ao Centro de Coordenação de Estudos da Marinha em São Paulo, e automaticamente matriculado no curso de Engenharia Naval na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo – USP, em 5/1/2016 (docs. 9 a 11).
Assim, quando a Reclamante já cursava o sexto semestre do curso de Direito da UNIRIO, o seu companheiro foi redistribuído da capital do Estado do Rio de Janeiro para a capital do Estado de São Paulo, onde passou a integrar o Centro
de Coordenação de Estudos da Marinha em São Paulo.
4. Por força disto, em 13/01/2016 a Reclamante postulou ao Reitor da Universidade de São Paulo – USP a sua transferência ‘ex-officio’ para o curso de Direito daquela
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Universidade estadual, o que restou formalizado por meio do Processo nº 16.1.1029.1.8 (doc. 12). Como este pedido foi instruído
com declaração formalizada pela Marinha do Brasil no sentido de que (i) a Reclamante mantinha (e ainda mantém) união estável com seu companheiro; e (ii) o seu companheiro, Primeiro-Tenente daquela força armada, havia sido compulsoriamente transferido para São Paulo (doc. 13), postulou-se o deferimento da sua matrícula na Faculdade de Direito da USP. E isso com fundamento no art. 49 da Lei federal nº 9.394/96 e no art. 1º da Lei nº 9.536/97 (…).
…...
Finalmente, em 24/3/2016, o pedido de matrícula formulado
pela Reclamante foi apreciado e indeferido pela autoridade Reclamada sob os seguintes fundamentos:
‘Tendo em vista
a) a decisão normativa proferida pelo Magnífico Reitor nos autos USP nº 2002.1.23973.1.7 (publicada no Diário Oficial do Estado em 18.04.2003), bem como o quanto decidido pela Comissão de Legislação e Recursos (CLR) em sessão ocorrida em 17.05.2005 (autos USP nº 2003.1.15688.1.6)
INDEFIRO o pedido de transferência para a Universidade de São Paulo’ (doc.3).
6. Ao juízo da Reclamante, a decisão proferida pelo
Pró-Reitor de Graduação da USP, Prof. Dr. Antonio Carlos Hernandes, contraria o que restou afirmado pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.324, na qual se assentou a constitucionalidade do art. 1º da Lei federal nº 9.536/97. Fundado nestes elementos, a Reclamante suscita a presente reclamação.” (grifei)
Sendo esse o contexto, passo a analisar a pretensão deduzida nesta
sede reclamatória. E, ao fazê-lo, devo registrar, inicialmente, que o Supremo Tribunal Federal tem enfatizado, em sucessivas decisões, que a reclamação reveste-se de idoneidade jurídico-processual, quando utilizada,
como na espécie, com o objetivo de fazer prevalecer a autoridade decisória
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dos julgamentos emanados desta Corte, notadamente quando impregnados
de eficácia vinculante, como sucede com aqueles proferidos em sede de fiscalização normativa abstrata (RTJ 169/383-384 – RTJ 183/1173-1174, v.g.):
“O DESRESPEITO À EFICÁCIA VINCULANTE,
DERIVADA DE DECISÃO EMANADA DO PLENÁRIO DA SUPREMA CORTE, AUTORIZA O USO DA RECLAMAÇÃO.
– O descumprimento, por quaisquer juízes ou Tribunais, de decisões proferidas com efeito vinculante, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sede de ação direta de inconstitucionalidade ou de ação declaratória de constitucionalidade,
autoriza a utilização da via reclamatória, também vocacionada, em
sua específica função processual, a resguardar e a fazer prevalecer,
no que concerne à Suprema Corte, a integridade, a autoridade e a eficácia subordinante dos comandos que emergem de seus atos
decisórios. Precedente: Rcl 1.722/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO (Pleno).”
(RTJ 187/151, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)
Todos sabemos que a reclamação, qualquer que seja a natureza que se lhe atribua – ação (PONTES DE MIRANDA, “Comentários ao Código de Processo Civil”, tomo V/384, Forense), recurso ou sucedâneo recursal (MOACYR AMARAL SANTOS, RTJ 56/546-548; ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, “O Poder Judiciário e a Nova Constituição”, p. 80, l989, Aide), remédio incomum (OROSIMBO NONATO, “apud” Cordeiro de Mello, “O processo no Supremo Tribunal Federal”, vol. 1/280), incidente
processual (MONIZ DE ARAGÃO, “A Correição Parcial”, p. 110, 1969), medida de direito processual constitucional (JOSÉ FREDERICO MARQUES,
“Manual de Direito Processual Civil”, vol. 3º, 2ª parte, p. 199, item n. 653, 9ª ed., l987, Saraiva) ou medida processual de caráter excepcional (Ministro DJACI FALCÃO, RTJ 112/518-522) –, configura instrumento de extração constitucional destinado a viabilizar, na concretização de sua dupla função de ordem político-jurídica, a preservação da competência e
a garantia da autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal (CF,
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art. 102, I, “l”), consoante tem enfatizado a jurisprudência desta Corte Suprema (RTJ 134/1033, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Esse instrumento formal de tutela, “que nasceu de uma construção
pretoriana” (RTJ 112/504), busca, portanto, em essência, ao lado de sua
função como expressivo meio de preservação da competência do Supremo Tribunal Federal, fazer prevalecer o efetivo respeito aos pronunciamentos jurisdicionais emanados desta Suprema Corte (RTJ 149/354-355, Rel. Min. CELSO DE MELLO), especialmente quando
revestidos de efeito vinculante, como anteriormente enfatizado:
“Reclamação e preservação da autoridade das decisões do
Supremo Tribunal Federal.
O eventual descumprimento, por juízes ou Tribunais, de
decisões emanadas do Supremo Tribunal Federal, especialmente
quando proferidas com efeito vinculante (CF, art. 102, § 2º), ainda que em sede de medida cautelar, torna legítima a utilização
do instrumento constitucional da reclamação, cuja específica função processual – além de impedir a usurpação da competência da Corte Suprema – também consiste em fazer prevalecer e em
resguardar a integridade e a eficácia subordinante dos comandos que emergem de seus atos decisórios. Precedentes. Doutrina.”
(RTJ 179/995-996, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno) A destinação constitucional da via reclamatória, portanto – segundo acentua, em autorizado magistério, JOSÉ FREDERICO MARQUES (“Instituições de Direito Processual Civil”, vol. IV/393, 2ª ed., Forense) –, além de vincular esse meio processual à preservação da competência global do Supremo Tribunal Federal, prende-se ao objetivo específico de salvaguardar a extensão e os efeitos dos julgados desta Suprema Corte.
Esse saudoso e eminente jurista, ao justificar a necessidade da
reclamação – enquanto meio processual vocacionado à imediata
restauração do “imperium” inerente à decisão desrespeitada –, assinala,
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em tom de grave advertência, a própria razão de ser desse especial
instrumento de defesa da autoridade decisória dos pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal (“Manual de Direito Processual Civil”, vol. 3/199-200, item n. 653, 9ª ed., 1987, Saraiva):
“O Supremo Tribunal, sob pena de se comprometerem as
elevadas funções que a Constituição lhe conferiu, não pode ter seus
julgados desobedecidos (por meios diretos ou oblíquos), ou
vulnerada sua competência. Trata-se (…) de medida de Direito Processual Constitucional, porquanto tem como ‘causa finalis’ assegurar os poderes e prerrogativas que ao Supremo Tribunal foram dados pela Constituição da República.” (grifei)
Mostra-se irrecusável concluir, desse modo, que o descumprimento, por quaisquer juízes, Tribunais, órgãos, entidades ou agentes da Administração Pública, de decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal autoriza a utilização da via reclamatória, vocacionada, em sua
específica função processual, a resguardar e a fazer prevalecer, no que
concerne à Suprema Corte, a integridade, a autoridade e a eficácia dos comandos que emergem de seus atos decisórios, desde que proferidos
com eficácia vinculante, na linha do magistério jurisprudencial consagrado
por este Tribunal (RTJ 187/150-152, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). Cabe examinar, de outro lado, se terceiros – que não intervieram no processo objetivo de controle normativo abstrato – dispõem, ou não, de legitimidade ativa para o ajuizamento de reclamação perante o Supremo Tribunal Federal, quando promovida com o objetivo de fazer restaurar o “imperium” inerente às decisões emanadas desta Corte em sede de ação
direta de inconstitucionalidade ou de ação declaratória de constitucionalidade.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal, a propósito de tal questão, ao analisar o alcance da norma inscrita no parágrafo único do art. 28 da Lei nº 9.868/99 (Rcl 1.880-AgR / SP , Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA), firmou orientação que reconhece a terceiros qualidade para
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agir, em sede reclamatória, quando necessário se torne assegurar o efetivo respeito aos julgamentos desta Suprema Corte proferidos no âmbito de
processos de controle normativo abstrato :
“(…) LEGITIMIDADE ATIVA PARA A RECLAMAÇÃO
NA HIPÓTESE DE INOBSERVÂNCIA DO EFEITO VINCULANTE.
– Assiste plena legitimidade ativa, em sede de reclamação,
àquele – particular ou não – que venha a ser afetado, em sua esfera
jurídica, por decisões de outros magistrados ou Tribunais que se revelem contrárias ao entendimento fixado, em caráter vinculante, pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos processos objetivos de controle normativo abstrato instaurados mediante ajuizamento
quer de ação direta de inconstitucionalidade, quer de ação declaratória
de constitucionalidade. Precedente. (…).”
(RTJ 187/151, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)
Vê-se , portanto, que assiste à parte ora reclamante plena legitimidade ativa “ad causam” para fazer instaurar este processo reclamatório.
Cumpre verificar , agora, se a situação exposta na presente reclamação traduz , ou não, hipótese de ofensa à autoridade do julgamento que o Supremo Tribunal Federal proferiu, com eficácia
vinculante, em sede de fiscalização normativa abstrata.
Observo que os elementos produzidos na presente reclamação
evidenciam a alegada transgressão à autoridade da decisão que o Supremo
Tribunal Federal proferiu, com efeito vinculante, no exame da ADI 3.324/DF, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, revelando-se suficientes para justificar, na espécie, o acolhimento da pretensão deduzida pela ora reclamante.
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Com efeito, o Plenário desta Suprema Corte, ao julgar a
ADI 3.324/DF, Rel. Min. MARCO AURÉLIO (RTJ 198/64), firmou entendimento que confere suporte legitimador à pretensão de direito material deduzida pela parte ora reclamante:
“UNIVERSIDADE – TRANSFERÊNCIA OBRIGATÓRIA
DE ALUNO – LEI Nº 9.536/97. A constitucionalidade do artigo 1º da Lei nº 9.536/97, viabilizador da transferência de alunos,
pressupõe a observância da natureza jurídica do estabelecimento educacional de origem, a congeneridade das instituições envolvidas – de privada para privada, de pública para pública –, mostrando-se inconstitucional interpretação que resulte na mesclagem – de privada para pública.” (grifei)
Cabe ressaltar, neste ponto, que essa orientação plenária
tem-se refletido em sucessivos julgamentos, monocráticos e colegiados,
emanados desta Corte (AI 541.533-ED/PR, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA – AI 712.869/RN, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA – AI 826.832/SP, Rel. Min. DIAS TOFFOLI – ARE 701.534/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO – Rcl 3.480/DF, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI – Rcl 6.425/SP, Rel. Min. ROSA WEBER – Rcl 7.483-MC/SP, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA – RE 495.325-AgR/RR, Rel. Min. ELLEN GRACIE – RE 575.830/SP, Rel. Min. ELLEN GRACIE, v.g.), valendo referir, dentre
eles, aquele que, proferido pela colenda Segunda Turma do Supremo
Tribunal Federal, apreciou controvérsia idêntica à ora versada nesta causa, em decisão que torna acolhível o pleito formulado pela parte ora reclamante:
“1. RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Policial
militar. Remoção ‘ex officio’. Matrícula em instituição pública federal. Possibilidade. Agravo regimental improvido. O servidor público estadual, estudante de universidade pública do Estado, removido de ofício, pode ser matriculado em instituição congênere federal, caso não haja vaga na universidade de origem.”
(RE 464.217-AgR/RN, Rel. Min. CEZAR PELUSO – grifei)
Supremo Tribunal Federal
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Impende mencionar, ainda, ante a pertinência do seu conteúdo,
fragmento da decisão que o eminente Ministro TEORI ZAVASCKI,
defrontando-se com situação jurídica idêntica à dos presentes autos, proferiu no julgamento da Rcl 11.920/SP, de que foi Relator:
“Assim, conflita com o conteúdo decisório da ADI 3.324 a
conclusão que a Universidade de São Paulo insiste em adotar, mesmo após o julgamento de ação direta de inconstitucionalidade
sobre a questão, no sentido de que as universidades públicas
estaduais não estariam obrigadas a acolher matrículas de funcionários públicos federais removidos de ofício, ou de seus
dependentes, mesmo que egressos de instituições públicas (…).
O desrespeito à autoridade da decisão desta Corte se revela, portanto, ao ser criada restrição não constante do texto da lei, tampouco da interpretação que esta Corte lhe atribuiu, porque, conforme demonstrado, apenas a transferência entre universidades privadas e públicas foram consideradas incompatíveis com a Constituição da República.” (grifei)
Em suma: tenho para mim que os fundamentos subjacentes a esta ação reclamatória ajustam-se aos critérios que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consagrou na matéria em análise.
Sendo assim , em face das razões expostas e com apoio em delegação
regimental (RISTF, art. 161, parágrafo único, na redação dada pela Emenda
Regimental nº 13, de 25/03/2004), julgo procedente a presente reclamação, para invalidar a decisão administrativa ora reclamada, proferida pelo Senhor Pró-Reitor de Graduação da Universidade de São Paulo (Processo/USP nº 2016.1.1029.1.8), determinando, em consequência, seja efetivada a matrícula da ora reclamante na Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo.
Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão ao Senhor Pró-Reitor de Graduação da Universidade de São Paulo.
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Arquivem-se os presentes autos.
Publique-se.
Brasília, 16 de junho de 2016. (21h30)
Ministro CELSO DE MELLO Relator