D E M O C R A C I A V I V A
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Estudos demonstram que as causas da insegurança alimentar de parte significativa da
população brasileira estão relacionadas, diretamente, às dificuldades de acesso aos
alimentos, seja pelo não-acesso aos meios produtivos, seja por falta de trabalho e renda
necessária para aquisição nos mercados. Nesse contexto mais geral é que devem ser
abordados os significados da produção de autoconsumo para a segurança alimentar e
nutricional das famílias. Vale ressaltar que essa produção é praticada não apenas pelas
famílias moradoras em áreas rurais, mas também por um grande número daquelas
situadas em áreas urbanas e periurbanas.
Antes considerada sinal de atraso, antítese da modernização da agricultura, a
produção de alimentos para autoconsumo constitui elemento-chave para o acesso a
uma alimentação segura – em face das flutuações da renda monetária própria da
atividade agrícola – e, também, a alimentos saudáveis oriundos de cultivos onde,
raramente, são aplicados agrotóxicos.
Contribuições da
produção para
autoconsumo
no acesso aos
alimentos
A R T I G O
Edmar Gadelha* Renato S. Maluf**te da concentração fundiária, das restrições ao acesso aos recursos naturais e dos baixos preços que recebem pelos produtos – fatores que comprometem o resultado econômico das atividades das unidades familiares rurais no Brasil (Maluf, 2007). A produção para autocon-sumo permite às famílias rurais atender a uma necessidade constante, apesar da variação sa-zonal de sua renda monetária, e dispor de um padrão alimentar superior quando compara-do às famílias urbanas com renda semelhante (Leite, 2004).
Em 2003, a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo José Gomes da Silva (Itesp) realizou pesquisa sobre a produção de alimentos para consumo familiar em assenta-mentos da reforma agrária no estado. De acordo com o estudo, a produção para autoconsumo se faz presente na quase totalidade dos lotes. Há desde famílias que dispõem de apenas al-guns produtos até aquelas que, com elevada e diversificada produção, só compram o que não podem produzir em seu próprio lote (Santos; Ferrante, 2003).
Embora não existam dados específicos a respeito, é possível supor que o plantio e a criação de animais para o autoconsumo repre-sentam, para milhares de famílias rurais no Brasil, duas das principais formas de obter alimentação. Além disso, tal produção ajuda a construir a segurança econômica que a fa-mília necessita para se lançar em novos pro-jetos (pág. 42).
Em boa parte das famílias rurais, o cultivo e a criação de animais para consumo próprio devem ser cotejados à situação de vulnerabilidade em que as famílias se en-contram. Tal situação é própria da exclusão social engendrada pelo modelo de desenvol-vimento predominante na agricultura brasi-leira, centrado na grande produção para ex-portação – que resulta em restrições severas no acesso à terra, à água e aos instrumentos da política agrícola.
A carência de instrumentos de política (agrícola e não-agrícola) adequados a esses segmentos, aliada aos riscos produtivos pró-prios da atividade agrícola, aumenta as difi-culdades das famílias no rompimento do ciclo de pobreza e insegurança alimentar a que se vêem submetidas por gerações.
Nesse contexto, adquire relevância obser-var como o fenômeno da produção para auto-consumo se manifesta entre famílias atendi-das pelo Programa Bolsa Família (PBF), com
Ibase, com apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).
Sem financiamento
ou assistência técnica
Em primeiro lugar, é importante destacar que as famílias beneficiadas pelo programa indica-ram que os gastos com alimentação constituem a maior despesa da família – 24,5% do total declararam ter gasto, nesse item, até R$ 100 nos últimos 30 dias. Para 40,4% das famílias, os gastos com alimentação se situaram entre R$ 101 e R$ 200. Como mostra o Gráfico, os dados indicam que quanto menor a renda da família, maior, proporcionalmente, é o gasto com a alimentação.
Entre as principais formas de se obter alimentação para as famílias identificadas na pesquisa, a compra de alimentos no mercado foi apontada por 96,3% das famílias, seguida pela alimentação escolar (33,4% das indica-ções) e pela ajuda de parentes e amigos (19,8% das citações).
A produção de alimentos para consu-mo próprio foi citada por 16,6% das famílias entrevistadas, percentual que corresponde a 1.833.889 famílias do total beneficiado pelo programa. O cultivo de algum alimento ou a
GRÁFICO
Relação entre renda familiar mensal e percentual
de gastos com a alimentação das famílias
beneficiadas pelo PBF
Fonte: Pesquisa Repercussões do Programa Bolsa Família na Segurança Alimentar e Nutricional das Famílias Beneficiadas, Ibase, 2007.
Os espaços da produção para o autoconsumo variam em função do planejamento de cada família, que leva em conta disponibilidade de terras, mão-de-obra, insumos e água. Em geral, as hortas, os pomares e a criação de pequenos animais, soltos ou abrigados em pequenas construções de madeira, localizam-se ao redor da casa para facilitar o trabalho. As famílias que dispõem de área para pastagem, com criação de algumas vacas leiteiras, podem melhorar o padrão da alimentação.
A produção proveniente das hortas fami-liares garante grande variedade de verduras e legumes, permitindo o acesso rápido e faci-litando o preparo dos alimentos. O pomar doméstico possibilita o acesso a frutas que são utilizadas tanto para consumo in natura como no preparo de sucos e doces. A criação de porcos, confinados em baias ou piquetes e alimentados com milho, mandioca e sobras
de comidas fornece a carne, assim como a criação de galinhas, patos e codornas. A pro-dução oriunda de lavouras, como arroz, fei-jão, milho e mandioca, possui área própria e também se destina ao consumo da família, sendo o excedente geralmente vendido, tro-cado ou doado.
Nas áreas urbanas, famílias que dispõem de pequenos lotes ou têm acesso a terrenos públicos utilizam esses espaços para a pro-dução de alimentos para o autoconsumo como forma de garantir o acesso familiar à alimentação. Essa prática – conhecida como agricultura urbana e periurbana – vem cres-cendo nos últimos anos e já é objeto de ações e programas públicos específicos em diver-sos municípios brasileiros, bem como no âmbito dos planos-diretores das cidades e das políticas municipais de segurança ali-mentar e nutricional.
Como funciona essa produção?
criação de animais para consumo próprio adquire maior importância como forma de acesso à alimentação na Região Nordeste (21,3% das famílias), e é menos significativo na Região Centro-Oeste (7,0%).
Mais da metade (56,6%) das famílias que plantam e/ou criam animais para a própria alimentação é proprietária da terra onde tra-balha – no Norte, o percentual chega a 70,9%. Na Região Sul, 8,8% das famílias que produ-zem para consumo próprio são assentadas por programas de reforma agrária; no Nor-deste, o índice cai para 1,6%. O tamanho das áreas pertencentes às famílias que se dedi-cam ao cultivo e à criação de animais para o consumo alimentar é de até 2 hectares para 61,5%. Na Região Sudeste, as famílias com áreas de até 2 hectares representam 75,9% do total da região.
As famílias que têm na produção de alimentos para consumo próprio uma das prin-cipais formas de acesso à alimentação, geral-mente, não acessam os programas de crédito para custeio de suas plantações ou criações. Tampouco recorrem a financiamentos e emprés-timos para as atividades produtivas. A pesquisa constatou que das famílias beneficiadas pelo programa que produzem para o autoconsumo, 83,1% não firmaram nenhum contrato de finan-ciamento. Na Região Centro-Oeste, 91,5% não acessaram nenhuma modalidade de financia-mento agrícola nos últimos três anos.
Por fim, as famílias produtoras de ali-mentos para subsistência que participam do programa alegam não receber nenhum tipo de assistência técnica para a prática da agricul-tura e/ou criação de animais. A falta de as-sistência técnica é realidade para 95,5% dessas famílias – na Região Norte, o percentual sobe para 98,6%.
Terra para quem vive dela
As condições adversas em que se encontram as famílias atendidas pelo PBF, mas que con-tam com a produção para autoconsumo entre as formas de acesso à alimentação, indicam ser necessário ampliar e integrar programas e ações públicas na busca pela superação da insegurança alimentar constatada na maioria dessas famílias.
A percepção dos(as) titulares do bene-fício do programa sobre a sua repercussão na alimentação da família é de que o incremento de renda proporcionado favorece o aumento da quantidade e da variedade de alimentos consumidos. Com mais recursos financeiros, os(as) beneficiados(as) ficam em melhores con-dições de satisfazer necessidades principais, en-tre as quais se destaca o acesso aos alimentos. A produção de alimentos para o auto-consumo faz parte da estratégia de reprodução das famílias, particularmente entre as famílias rurais. Sua importância é maior nas situações
onde a escassez de recursos monetários se agrava. Podendo dispor de alguns alimentos produzidos pela família, a renda conseguida com a venda de pequenos excedentes, do tra-balho assalariado ou de benefícios de progra-mas públicos pode fazer frente a outras neces-sidades, como gastos com saúde, educação, vestuário e habitação.
A pesquisa do Itesp (Santos; Ferrante, 2003) em assentamentos concluiu que parte significativa da alimentação é retirada ou depen-de diretamente da produção comercial do lote, e esse consumo é tanto maior quanto melhor o desempenho econômico do(a) assentado(a). A pesquisa do Ibase, por sua vez, revelou outro aspecto importante. Para as famílias rurais beneficiadas pelo programa que plantam e criam animais para autoconsumo, a relação com a propriedade da terra torna-se significa-tiva para a segurança alimentar.
Entre as famílias rurais que detêm a pro-priedade das áreas onde desenvolvem ati-vidades agrícolas e de criação, 19,5% encon-tram-se em situação de segurança alimentar. Esse percentual, já reduzido, é ainda inferior (6,9%) para aquelas que afirmaram não serem proprietárias da terra (posseiras, arrendatárias, comodatárias, agregadas e outros). Já para as famílias assentadas em projetos de reforma agrá-ria, aquelas em situação de segurança alimentar atingem o percentual de 26,5% – dado bastan-te significativo se comparado com as famílias que não detêm o controle da terra onde trabalham – mas ainda revelando uma grande fragilidade na sua capacidade de provir alimentos.
As famílias que se utilizam da produção para autoconsumo apontaram a dificuldade de acesso à terra como principal problema – 20,9% do total. Na Região Sul, a pouca dispo-nibilidade de terra para trabalho é indicada por 23,5% das famílias. No Nordeste, a pouca disponibilidade de água (19,0%) e os altos custos dos insumos agrícolas (20,1%) foram também citados como dificuldades enfrenta-das para realização enfrenta-das atividades agrícolas. Além disso, as pequenas áreas disponíveis para a produção, quase sempre, encontram-se degradadas ou com baixa fertilidade. Outros problemas mencionados dizem respeito a perdas da lavoura diante de adversidades cli-máticas e ataques de pragas, influenciando na produtividade.
A falta de programas públicos específi-cos voltados para essas famílias compromete ainda mais a já frágil situação de vulnerabili-dade social em que vivem. Embora programas
* Edmar Gadelha Sociólogo, consultor do Ibase e membro da coordenação nacional do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN) ** Renato S. Maluf Professor do Centro de Pós-graduação em Desenvolvimento Agrícola da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ)
e presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea)
públicos de transferência de renda, como o PBF, venham aportando recursos monetários signi-ficativos, são necessárias ações que possam va-lorizar, promover e apoiar a produção de ali-mentos para o consumo próprio no âmbito de uma política nacional de segurança alimentar e nutricional e na perspectiva do direito hu-mano a uma alimentação saudável e adequa-da. Nesse aspecto, a integração de ações nos territórios e sua interação intersetorial pode-rão ser capazes de contribuir para o fortaleci-mento das famílias em um processo de cons-trução de cidadania ativa.
Algumas iniciativas tornam-se funda-mentais no sentido de valorizar, promover e apoiar as famílias que recorrem à produção de alimentos para o próprio consumo, principal-mente nas áreas de maior ocorrência. Para isso, o PBF deve se articular às ações nas seguintes áreas: fortalecimento da agricultura familiar de baixa renda, com linhas de crédito e assistên-cia técnica; agricultura urbana e periurbana no contexto da reforma urbana; acesso à terra mediante ações de distribuição e regulariza-ção fundiária; implementaregulariza-ção de programas de fundos solidários; comercialização do exce-dente da produção no mercado institucional, por exemplo, na alimentação escolar.
REFERÊNCIAS
CONFERÊNCIA NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL, 2., 2004, Olinda. Relatório final. Brasília, DF: Consea, 2004.
INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS. Repercussões do Programa Bolsa Família na segurança alimentar e nutricional das famílias beneficiadas. Relatório final de pesquisa. Rio de Janeiro: Ibase; Redes; Brasília, DF: Finep, 2008.
SANTOS, I. P.; FERRANTE, V. L. B. Da terra nua ao prato cheio: produção para consumo familiar nos assentamentos rurais do Estado de São Paulo. Araraquara, SP: Itesp; Uniara, 2003.
LEITE, S. “Autoconsumo y sustentabilidad en la agricultura familiar: una aproximación a la experiencia brasileña”. In: BELIK, W. (Org.). Políticas de seguridad alimentaria y nutricion
en América Latina. São Paulo: Ed. Hucitec, 2004.
p. 123-181.
MALUF, R. S. Segurança alimentar e nutricional. Petrópolis: Vozes, 2007.
ROMEIRO, A.; GUANZIROLI, C.; PALMEIRA, Moacir; LEITE, Sérgio (Orgs.) Reforma agrária, produção, emprego e renda. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Ibase; FAO, 1994. VIEIRA, M. A. C. “A venda de terras do ponto de vista dos
lavradores: a venda como estratégia”. In: Terra de
trabalho e terra de negócio – estratégia de reprodução